O Bosque da Invernada dos Fundos

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O BOSQUE DA INVERNADA DOS FUNDOS



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André Ghiggi Caetano da Silva

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Livraria Danúbio Editora 2019


© O Bosque da Invernada dos Fundos, André Ghiggi Caetano da Silva, 2019. FICHA CATALOGRÁFICA Ghiggi Caetano da Silva, André, 1978 — 1ª ed. — Curitiba, PR: Livraria Danúbio Editora, 2019. 176 pp. p&b; 14 x 21cm ISBN: 978-85-67801-24-7 1. Literatura brasileira. 2. Romance. I. Título. CDD – B869.93 Editor: Diogo Fontana Diagramação: Lucas Guse Capa: Gabriela Fontana Imagem da capa: Agto Nugroho Revisão: Fausto Machado Tiemann Distribuição: CEDET - Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico Rua Ângelo Vicentim, 70, Campinas/SP Todos os direitos desta edição pertencem à Livraria Danúbio Editora Ltda. CNPJ: 17.764.031/0001-11– Site: www.editoradanubio.com.br Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gra vação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão ex pressa do editor.


À minha amada esposa Alessandra, que graças à Providência, apagou, sem querer, de modo irreversível, as cem primeiras páginas da história.



Agradecimentos Agradeço aos queridos Eduardo Gazola, Eduardo Sens, Daniel Volpato, Fausto Machado Tiemann, Caetano de Freitas Medeiros, Guilherme Quandt, Juvenal Caetano da Silva Neto, Tiago e Lucas Ghiggi Caetano da Silva, Samuel D. Naspolini e aos integrantes do Clube do Livro ou da redundante “Tertúlia Literária”, os pitacos hilários, elogios e críticas quando da inserção de fragmentos recém-escritos no grupo de Whatsapp. Agradeço especialmente a Diogo Fontana pelos preciosos ensinamentos recebidos no trabalho de lapidação desta obra.



Sumário 1 - O Punhal Reluzente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 2 - O Empreendimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 3 - O Desdém da Fortuna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 4 - Histórias de Fogueira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37 5 - As Velas das Raízes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39 6 - A Marca de Fogo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43 7 - A Decisão Sombria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 8 - O Nigromante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59 9 - Moedinhas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77 10 - A Advertência. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81 11 - A Caixa de Espinhos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97 12 - A Sapecada Macabra. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101 13 - O Povo do Caraguatá . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111 14 - A Cidade em Lume. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123 15 - Vicissitudes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129 16 - Os Porões da Capital. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135 17 - O Ouro Execrável. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147 18 - O Brilho do Sol. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167 Epílogo As Lágrimas que Não se Perderam. . . . . . . . . . . . . . 169



Planalto Catarinense, 1977

1 O Punhal Reluzente

Caía uma noite de lua plena naquela fatídica sexta-feira. Não longe do centro havia um armazém. A névoa densa e fria envolvia-o em um abraço alvo e fátuo. O interior era típico, tradicional: balcão azul-celeste coberto de vidros de petiscos e de doces; prateleiras abarrotadas com litros de bebidas e latas de conserva; tulhas de feijão, de arroz, de farinha; gaiolas a rivalizar com ferramentas de ferro fundido; poeira. A mesa de bilhar com pano roto dominava o saguão, cadeiras de palha exibiam fios estropiados, e o aroma dos embutidos mesclava-se ao cheiro de mofo, de queijo defumado, de restos de cerveja coalhada em engradados de madeira. Para onde se voltasse o olhar, via-se cinzeiros entulhados de xepas de cigarro, farelo de pão, litros de pinga, faces vermelhas e consciências pesadas. Um cachorro atirado à entrada com o olhar vago esperava o dono bêbado, fielmente. Já passava das 22 horas e o pessoal de costume estava ali, com as portas fechadas, à luz tíbia de um lampião, na mais intensa jogatina.

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O frio cortante, atípico para a época, há muito entocara o povo de bem ao lado dos fogões a lenha e das lareiras coloniais, exceto aquela turma das cartas, cujo vício suplantava a hostilidade do inverno. João Peruggio, avesso às apostas, jantava sozinho, sentado embaixo das peças de salame emboloradas, erguidas ao abrigo dos ratos. Seus olhos azuis e cansados estavam pregados no canto esquerdo do salão, num vácuo reflexivo. O ruído áspero da mão esquerda roçando a barba incipiente parecia aumentar-lhe o transe. Os dedos fortes e nodosos partiam nacos de pão e fatias de copa, embebendo-os em azeite, para depois misturá-los na boca ao vinho tinto. Ali faziam o melhor pão de torresmo; e toda sexta ele apresentava-se logo após a fornada do fim da tarde para além de mangiare il pane, desanuviar, desvencilhar-se dos problemas. Às vezes permanecia um pouco mais para ouvir histórias sobre embates do Contestado, das pelejas dos Farrapos, sobre os temíveis jagunços que um dia infestaram aqueles sertões. Desenvolvera certa predileção pelos contos de tesouros escondidos às pressas, em meio aos conflitos, e, bem poucos sabiam, sonhava encontrar uma dessas fortunas perdidas. Chegou a fazer planejamentos, mas seu filho Geovane o dissuadiu: “Se existiu algum tesouro, pai, já foi encontrado, esquece isso...”. João não esqueceu e, naquela noite decepcionante, na qual falavam somente de futebol e política, perdeu seus pensamentos naqueles causos lendários. Subitamente, porém, quando principiava a se levantar para ir embora, foi surpreendido por um grito de raiva, um urro bárbaro, inumano, bestial: — Scheisse! João voltou seus olhos alarmados para a mesa de carteado, onde distinguiu o homem loiro, enorme, ombros parecendo degraus, os dois lados da camisa revelando o contorno de revólveres. O gigante atirara um punhado de cartas sobre a mesa, enfurecido. Ninguém se atrevia a encará-lo por mais de dois segundos. Peruggio entendeu tudo. Hans, o “Alemão Lôco”, perdera novamente na cacheta.

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Sem ter em quem descontar o seu ódio, o perdedor sentou diante do balcão e começou a justificar-se, contando vantagem. Bravateava. Dizia ser viril, macho, daqueles que não levam desaforo para casa. Iterou ter surrado dois ao mesmo tempo, e com um braço só; que matara um bandido há alguns anos, quando o ousado tentou entrar pela janela da sua casa. Ninguém o contrariava, é claro, e por isso continuou proclamando não ter medo de nada e que na cidade não havia homem capaz de se bater com ele. — Você não tem medo nem de polícia? — Nein! — E de touro bravo? — Nein! — De assombração? — Nicht auch! Quem indagava era o Chico Minguera, com a boca cheia de ovo em conserva e os olhos arregalados: — Nem do diabo? — Teufel? Teufel? Nichts! — respondeu o homenzarrão, virando num só trago o copo de cerveja quente. Então começou a vociferar: — Diabo, diabo, aparrreça se ecziste! Diabo, você chifrruda! — Mas largue mão de brincar com essas coisa, Alemão Lôco! — advertiu o companheiro de bebida. — Aparrrreça, Diabaaaa! Quero te dar um surra, seu boooostoooo!! — gritou, babando-se. — Tá bom, tá bom, hóme! Você é muito hóme! — apaziguou o dono da venda, atirando um olhar angustiado para o relojoeiro, pois morria de medo que um entrevero terminasse de colocar sua espelunca no chão. Hans Totengraber, todavia, continuava fora de si. Acabara assinando uma humilhante promissória. Seu rosto apresentava a palidez amarelada da incredulidade. Por detrás dos olhos latejavam desespero e ódio de si próprio, prestes a explodirem. Na mesa de canto, os ex-adversários emitiam risinhos zombeteiros de satisfação. Sabiam que ele per-

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dera o dinheiro da venda da colheita de trigo sequer iniciada, e que lá se iam talvez mais uns hectares de terra dos quase quinhentos que herdara fazia quinze anos. Quantos ainda restavam? Duzentos? Talvez nem isso: entre jogos e negócios mal feitos a propriedade se esfarelava. A raiva do alemão emergiu por um filete tíbio de lágrimas, absorvido discretamente pela manga engordurada da camisa de feltro. Súbito, para piorar as coisas, uma voz um tanto cínica irrompeu da mesa de jogo: — E do Chico Pialo? Do Chico da Cruz Preta? Você tem medo? Silêncio imediato no bar. Cessaram as conversas, interrompeu-se o carteado. A atenção unânime voltou para Hans e para Vicente, conhecido como “o trovador”. A provocação continuou: — Duvido, ou melhor, aposto meu cavalo que você não é homem para cravar uma faca bem no meio do túmulo do Chico Pialo — desafiou, num tom que começou como deboche mas, diante do olhar de Hans, tornou-se verdadeiramente receoso. O alemão, enfim, explodiu: — E quem não tem medo de Teufel vai ter medo de almo da cruz preta? Não ecziste! Não ecziste! Cadê a faco? Cadê a faco? — Tem certeza, Alemão? Não se brinca com os mortos. Ainda mais com o Chico Pialo! — advertiram alguns dos presentes, tentando jogar água fria na fervura. Mas o homem estava xucro, indomável: — Já disse! Não ouvirram? Cadê o porcaria do adaga? Que fantasmo cruz preta, nada! Que almo nada! Passem daqui a pouco. Vão enxergar o brilha da lâmina na luz do lua. Zeparre a animal! — ordenou, vestindo a capa de montaria. João Peruggio assistia a tudo com curiosidade, há muito desistira de ir embora. Viu Hans virar um último copo e sair do bar apressado. Lá de fora ouviu tropear um cavalo. Chico Minguera estalou ainda mais os olhos e os pousou sobre os demais, esperando algum comentário, porém só ouviu gargalhadas de escárnio e chiadas de tabagismo. Batiam nas mesas, imitando o jei-

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to histérico do alemão. Chamavam-no de imbecil e burrichó. Alguns sugeriam que ele havia aproveitado a ocasião para dar no pé. Outro, porém, resolveu ir embora de pronto por temer um retorno violento, sobretudo porque havia severas suspeitas de que o jogo não se tinha desenrolado dentro da esperada honradez. — Aposto que o cavalo está amarrado no primeiro toco depois da esquina! — gritou um velhinho de cabelo ensebado, vendedor de mel. — A esta hora já está em casa espancando a mulher. — Que nada! — admoestou outro. — O Alemão pode ser tudo, menos medroso. Não tenho dúvidas de que já está no cemitério! Assim convenceram-se todos, até o bodegueiro, de que era chegada a hora de ir atrás de Hans, para ver se o machão cumprira a promessa. O grupo partiu temeroso, mas a risada logo abundou outra vez. Eram vinte homens, levando garrafas de vinho passadas de mão em mão, entre gritos acalorados e ébrios; entrementes, fumavam cigarros longos, seus queixos sacudindo de frio. A neblina tornou-se mais densa, à exceção do meio da rua, como que os separando do restante da cidade. Acabaram imersos num desfiladeiro níveo. Sem perceberem, duas muralhas de vapor fechavam um arco sobre as suas cabeças. Todos troçavam o alemão, parodiando seu jeito de jogar cartas, andar a cavalo, babar-se de cerveja. Gritavam que ele tinha por ofício dar fortuna. Trouxeram à tona um par dos seus antigos pecados, num rosário sórdido e hipócrita, vociferado em alto volume. À medida que caminhavam, dentro das casas ocultas pelo vapor reverberava toda sorte de xingamentos ao rumoroso séquito de Baco – quiçá de Tânatos… Já passara da meia-noite, há muito que o povo repousava. O protesto seguia um roteiro: as luzes se acendiam em alguma janela, logo eclodiam os palavrões, mais do que justos, seguidos do arremesso dos mais criativos projéteis: penicos, abóboras, ovos e tomares podres.

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Prevendo esses percalços, mas também pelo decoro da sua posição social, João acompanhava-os de longe. Também receava um tiroteio. Prosseguia lentamente, com a mão nos bolsos. Foi logo alcançado por um retardatário, o guarda-livros Marcelino, que apareceu ofegante, emparelhando o passo ao dele. O contador abriu a boca cheia de diastemas e, por algum motivo, resolveu tocar no assunto do famoso tesouro do defunto misterioso, dono da sepultura que era alvo da aposta: — Arf, arf, dizem, dizem, cof, cof, dizem que eram morrinhos de ouro, seu Peruggio! Daria para o senhor fazer jóias por uns dez anos seguidos… Ouro que desapareceu bem no dia da morte do coronel desalmado. — Eu sei… Com uma fortuna dessas non continuaria a fazer correntinhas e alianças, meu caro. Porca miséria! — Como é que pode um homem rico daquele jeito ser enterrado às pressas, sem velório, praticamente insepulto? Crendiospadre! — Ele era ruim, um bandito, não tinha parentes vivos. Por isso o coveiro se contentou em fixar aquela cruz tosca de ferro. — Sabe, sabe, não nasce nem erva daninha em volta do túmulo, o senhor sabe? Deuszulivre! Nem formiga anda por cima da terra! Ai, ai, ai, minha nossa Senhora! Peruggio riu debochado e espirrou. O muco escorregou para os lábios, forçando-o a retirar o lenço do bolso. Perguntou: — Cáspita! Ouvi falar muito da história do tesouro, ou ele escondeu bem ou os jagunços roubaram. Alguém daqui sumiu de repente por ter encontrado algo suspeito? — Não, não, pelo menos eu não recordo de nada — respondeu Marcelino, soltando grandes bolas de vapor condensado da boca, as mãos escondidas sob o pala de abas largas, quase se arrastando no chão. Aquele assunto relacionado do tesouro do Chico Pialo sempre era envolto em temor. À luz da tradição da cidade, todos que partiram atrás da fortuna acabaram voltando de mãos vazias e com um cabedal de relatos de azar: cavalos desgarrados, disparos acidentais, pernas quebradas, botes de jararaca.

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— Que eu saiba ninguém usou algo diferente para procurar. Nunca ouvi falar nada a respeito, você ouviu? — especulou Peruggio. — Olha, olha, difícil... Custa muito caro. Que tipo de coisa? Contratar gente? Aí já é demais! Gastar o dinheiro que não se tem para procurar algo que ninguém sabe se existe! — respondeu o contador, desconfiado. Súbito, à frente da dupla, no galho de uma pereira seca, devastada pelo frio, um gambá repulsivo apareceu com um ratinho entre os dentes, que sacolejava em derradeiros espasmos e guinchos agudos. A pouca luz que atravessava o manto de bruma refletiu nos olhos vítreos do bicho. Como se quisesse demonstrar a sua agressividade a um público seleto, ele agitou ainda mais o roedor, para dar cabo do resto de vida existente. O relojoeiro bateu o pé com força e o gambá fugiu pelo tronco, deixando um cheiro pestilento no ar. Ouvia-se o guincho do rato sendo carregado pelo marsupial. — Vou matar aquele gato vagabundo lá de casa e comprar um gambá cachaceiro — gritou um dos homens após sorver bons goles de vinho. — Este alemão non é certo da cabeça — continuou Peruggio — mas vai ganhar um cavalo de raça esta noite. Marcelino acendeu um charuto curto e guinou a cabeça de um lado para o outro, desacreditando do italiano. João, no entanto, ao perceber a dúvida, continuou com maior ênfase: — Ora, lenda da assombraçon, que conversa fiada! — falou alto depois de pisar uma poça congelada. — O Trovador deve ter se arrependido de apostar o tordilho negro. Logo aquele crioulo de lei! Uma vez eu quis comprar o animal, máh non teve jeito. Ele achou que ia humilhar o alemão; agora já deve estar com saudade do cavalo. — Olha, olha, também não creio muito nas ditas assombrações do cemitério... — reconsiderou Marcelino, sem muita convicção, receoso de transmitir uma imagem de bronco supersticioso. — Sempre os mais bêbados dizem ter presenciado os episódios estranhos, né?

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— Ecco! Isso mesmo, sempre os mais bêbados, o Carlo Mentira, meu primo segundo, aquele que habita os frascos de vino dolce. Conhece ele, né? — Sim, meu vizinho de rua, incomoda demais... — Cáspita! Ele me disse um dia que ao visitar a falecida Nona Maria, ao passar ao lado do túmulo do Pialo e olhar de canto, quase se mijando de medo, viu um gato do mato, de rabo pelado, sapateando em cima da tumba do coronel! Disse que o gato parecia estar sorrindo para ele. Deu uma pausa, gargalhou: — Eu adoro este lugar — prosseguiu Peruggio — Uma vez por semana, pelo menos, preciso ir ao bar do Bruno para ouvir essas coisas. João vestia um sobretudo preto salpicado com gotas de sereno congelado. Encolhia-se de frio; não via a hora daquilo acabar, de ir para casa, enfiar-se sob os cobertores ao lado da esposa. Ao dobrarem a esquina, porém, o clima animado acabou de repente. Viram-se surpreendidos por uma violenta altercação de cachorros, uma matilha de mais ou menos dez animais. Os bichos se atracavam de um modo furioso. Ganidos histéricos estridulavam por todos os lados, sangue em abundância pingava de seus pelos longos. Insolitamente, por entre as patas dos cães serpenteava outro animal negro, esguio, que não era o motivo da briga, muito pelo contrário, passava despercebido, mas parecia insinuar-se sorrateiramente, exasperando ainda mais os animais. A rixa cessou com a presença humana. Os cães voltaram seu olhar aos homens, ameaçando investir. Rosnavam ferozmente, enquanto exibiam seus caninos pontiagudos, escarlates de sangue. João já procurava a árvore mais próxima quando ouviu os estampidos e as arranhaduras nos paralelepípedos. Foram necessários muitos disparos no calçamento para debelar a matilha. Mas e aquele bicho estranho...? Superado o susto, seguiram até o pórtico do cemitério. Da cerca era possível perceber a luminosidade das velas tremeluzindo na base da cruz principal, bem no centro do terreno. Entraram. O local era muito antigo. Pelas vielas espalhavam-se jazigos de pedra crua encimados por

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peças de arte tumular: cruzes de ferro, anjos plangentes. Procuravam a sepultura do Chico Pialo, que não ficava longe. Uma coruja branca pousara em um palanque à frente. A ave girava a cabeça, como se estivesse entre dois perseguidores, fitando a todos com seus olhos imensos. Apenas a viram, o pássaro, num repente, alçou vôo. Alguns chegaram a se abaixar com o movimento fantasmagórico da ave de rapina, que sumiu deixando para trás o eco de um pio áspero. O silêncio tornou-se, então, quase absoluto. Uma brisa suave farfalhava levemente os plátanos e os ciprestes. Foi quando uma visão dantesca estancou a todos. Precisamente no limiar da grade do sepulcrário, caída, abraçada à cruz de ferro preta da sepultura procurada, jazia uma forma humana. Os homens permaneceram algum tempo inermes, titubeantes, sem saber o que fazer. Por fim, Tiago Polenta, engenheiro aposentado, velhinho corajoso, adiantou-se gritando, um cigarro de palha quase caindo do canto da boca: — Boca-mole! Tá querendo pregar peça em nós? Levanta, alemão jaguara! O velho Tiago abaixou-se às duras penas, cortou uma taquara de um terreno ao lado e cutucou o amigo de longe. Não houve movimento. Só de raiva desferiu golpes fortes bem no meio da paleta do suposto defunto, gerando arrepios uníssonos em todos os presentes. Mas nada aconteceu... Marcelino apareceu com uma grimpa em labareda, aproximou-se a passos curtos e iluminou a face de Hans. Mostrava abertos os olhos e a boca, da qual escorria um filete de baba, diáfano e pegajoso. A face sarapintada, imóvel, cianótica, revelava indubitável pavor. A debandada foi descomunal, em direção a todos os pontos cardeais. Saltos de madeira estalaram no calçamento. Os pregos cravados nas extremidades das botas provocavam rastros de faíscas. A cena assemelhava-se a um tropel de cavalos em mangueira pavimentada. O gordinho Marcola, até aquela noite metido a valente, acabou se atirando em um mato próximo, fazendo um peitoral de samambaia. Só deu as caras no meio do dia seguinte, todo lanhado de cipó unha-de-gato. A maioria se ralou ao cair nas pedras ásperas do morro da necrópole.

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Outros, no entanto, permaneceram, entre eles João, acompanhando aqueles a quem o pavor simplesmente enrijecera as pernas, em meio a persignações e pedidos de perdão por terem incitado Hans a cometer um sacrilégio. Wagner Forscher, o delegado, chegou meia hora depois, com aquele seu peculiar bafo de alho. O odor de seu hálito era notório. Comentavam que dez minutos de interrogatório eram suficientes para o suspeito confessar até os pecados da primeira infância. Abriu-se uma espontânea clareira e o homem da lei pôde examinar os indícios da causa mortis. Hans apresentava todas as características ordinárias de um defunto: lábios pálidos, ausência de calor, olhos enevoados, rigidez incipiente; do mesmo modo, não se via sinais de violência, sequer uma gota de sangue fora colhida em sua roupa. Envenenamento? Era pouco provável: ele não tinha inimigos, muito pelo contrário, os credores esperavam ávidos os seus pagamentos. Desta forma, o policial inferiu ali mesmo, sob o influxo da lunação, que o infeliz, ao se abaixar para cravar a faca no túmulo, por conta da pouca luz, acabou por transpassar, sem perceber, o canto da capa de montaria. Consumado o ato, ao se levantar para cobrar a aposta, teria sentido um “repuxão”. Certamente imaginou que “alguém”, a sete palmos, estaria indignado com o vilipêndio. — Infarto fulminante! Caiu feito tábua! — assim decretou o delegado, meneando a cabeça branca e rala. A viúva confirmou os sérios problemas cardíacos de Hans quando recebeu a notícia da morte pelos companheiros de jogo. Seu rosto, porém, assumiu uma expressão contraditória de alívio, perdurando até lhe apresentarem, na mesma hora, a promissória assinada no bar. Os olhos da mulher flamejaram de revolta. Ela sabia que não precisava pagar. Assim, acabou escorraçando os desalmados com toda sorte de impropérios, ameaçando lançar mão da garrucha se não a deixassem em paz. Hans foi enterrado logo após o meio-dia.

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2 O Empreendimento

A cena de Hans morto, agarrado à cruz, não abandonava a memória de João Peruggio. Foram noites e mais noites mal dormidas. Ele sabia, porém, que o motivo da funesta lembrança não era o trauma de ter presenciado a cena macabra, mas o desejo recôndito de encontrar o famoso tesouro. Após o fato/evento, por sinal, as histórias da fortuna perdida ressurgiram com todo o vigor nas mais variadas tertúlias da cidade. Diziam que a alma do coronel estava ativa, protegendo algo por aquelas bandas, mesmo depois de tanto tempo, e que por isso ninguém conseguia encontrar o ouro. Surgiram novos planos de busca. João ficou sabendo de tais projetos, contados a boca miúda nas esquinas e bares; e depois de muita insistência, finalmente conseguiu convencer o seu único filho a partir em busca da lendária fortuna. Não ficariam para trás, e ainda teriam uma carta na manga, um diferencial. Por isso numa certa manhã, depois de muito titubear, solicitou ligação à telefonista, tendo de esperar por longas horas para que fosse completada. Ao fim do dia, uma voz surgiu do outro lado da linha:

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— Arô. — Bom dia, seu Shang. É o Peruggio. Tudo bem? — Ora, ora, que aleglia. Quanto tempo! Tudo! Muito flio aí, né! Nevou? — Tutto certo. Só no inverno, seu Chang, só no inverno. Pois bem! O senhor ainda tem aquela mercadoria diferente que eu quase levei na última viagem? — Sim, sim, clalo! Sabia que senhor ia queler! Guardei ela pala o senhor. Shang semple sabe o que o cliente quer. — Ótimo! — Bem, mas o pleço, o pleço subiu um pouquinho, viu… Difícil de encontlar. Semple tem gente poloculando. — Sr. Shang, Sr. Shang… — Mas, veja bem… — Alô, alô, a ligaçon tá ruim, tá ruim, vai cair. Oi? — Tá bom, tá bom, mantenho o pleço, mantenho o pleço! Arô? Pode ser por vale-postal... Aquele chinês enigmático sempre lhe parecera um xamã. Conhecera-o há tempos, em umas das suas viagens para comprar encomendas especiais. O homem vendia de tudo nas suas lojinhas afuniladas e escuras. No armazém principal, o porão de um edifício antigo em Santa Ifigênia, empilhavam-se artefatos de ouro e prata, ervas afrodisíacas, roupas, bebidas contrabandeadas, artigos de feitiçaria oriental, engenhocas imemoriais, venenos para uma miríade de pragas e parasitas, móveis e até panelas. João o procurava vez ou outra, sempre atrás de engrenagens de relógios antigos, e poucas vezes voltara de mãos vazias. Mais uma vez, o chinês resolvera o seu problema. Nos dias seguintes, o empreendimento passou a consumir todas as atenções de João, que já negligenciava o trabalho e só pensava no cobiçado ouro. Uma idéia o prendia: era preciso sair em busca de animais marchadores. Cavalos não agüentariam o repuxo da empreitada, daí a necessidade de muares de pisada suave, notadamente porque não podia

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correr o risco de ficar numa cadeira de rodas, muito menos se retornasse milionário. Depois de muito pesquisar, encontrou fornecedor. Foi assim: numa tarde modorrenta, nova ligação: — Alô! — Buenos! Estância do Guará. — Buenos! Aqui é o João. Liguei para tratar das mulas. Tudo bem? — Tudo bueno, Sr. Peruggio. Faceiro que nem mosca em tampa de xarope. João soltou uma risadinha protocolar. O estancieiro continuou: — Já separamos os animais para o senhor. Vieram de uma tropa de lei. Pernas compridas. Mais altas que cavalo de oficial. Nova risadinha protocolar. — E a marcha? Lembra que te falei do... — Mas, bah! O melhor fica sempre pro final. Se marcham! Melhor que milico no dia da pátria! O senhor nem vai lembrar que tem hérnia de disco, tchê — disse, aguardando uma nova risada, que não veio. Por isso, pressionou: — Podemos mandar entregar, então? Daqui dois dias já estão atravessando o Pelotas. Os animais foram entregues em uma semana e, apesar de não serem novos, custaram boa parte da poupança do relojoeiro. Foram entregues diretamente nas terras que um dia pertenceram a Chico Pialo, na sede de um dos atuais proprietários. O antigo domínio, a vastíssima Fazenda do Agüeiro, fora dividido em três glebas após a morte do temido coronel. Resolvida a questão da montaria, João encomendou a confecção de uma barraca de lona de carroceria, com tecido duplicado. Solicitou que a costureira emendasse seis pelegos de ovelha em tiras verticais para fazer as vezes de cama de acampamento. O jipe Willys também recebeu especial cuidado na oficina da ladeira do centro, onde trabalhava o melhor mecânico da cidade, que o deixou pronto para subir em pinheiros. Havia tempos que estava parado na garagem, cheio de pó, e por isso foi

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preciso trocar o diferencial, as lâmpadas do farol e os pneus. O toldo foi remendado. Por não ter certeza quanto à data de recebimento da encomenda de São Paulo, foram adiantados os cuidados do corpo, da carne. O vinho João transferiu dos garrafões para bottiglias de 700 mililitros, vedando as rolhas com cera de vela. Salames verdes, queijos pequenos, torresmo prensado, latas de sardinha, de feijoada, tudo isso foi inventariado e organizado com precisão quase militar. Mas se tinham corpo, também tinham espírito. Não se olvidaram, pois, da proteção dos Céus: os medalhões bentos com a imagem de Nossa Senhora do Caravaggio foram colados aos arreios, feitos sob medida em Campos Novos, um deles bem oculto embaixo da montaria. Rezariam, como se dependesse somente de Deus, mas também agiriam, providenciando junto ao armeiro da Lagoinha a minuciosa manutenção da antiga espingarda 36, utilizada vez ou outra para caçar perdizes e pombas carijós. Geovane experimentou a mira em casa. No amplo terreno de fundos, posicionou algumas morangas sobre os palanques do parreiral e esvaziou a cartucheira. Uma a uma, as infelizes abóboras do quintal foram sentindo a fúria dos disparos do rapaz. Explodiam, desintegravam-se, deixavam este mundo. Somente quem já teve o prazer de atirar com precisão, quem conhece as armadilhas e vicissitudes da arte do manuseio das armas de fogo, pode entender a alegria do menino quando viu as frutas todo destruídas, absolutamente esgualepadas, percebendo, então, com orgulho de si mesmo, que não desperdiçara nenhum tiro. O menino atirava e fantasiava, imaginando situações: “Este foi bem no meio dos olhos de um grande veado pardo... A cotia deu dois giros no ar ao ser atingida... O leão baio caiu morto no salto, no meio do bote. Só dera tempo de ver o vulto do bicho morro acima”. Nessas elucubrações, Geovane viu-se deitando no chão, mal conseguindo apoiar a coronha no ombro. Chegou a sentir a onça parda raspando as garras traseiras no seu couro cabeludo.

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— E as capas de montaria, guri? Máh chega de tiro, hóme! Daqui a pouco a polícia tá por aqui — interrompeu o pai, trazendo-o de volta para o chão. — Elas já estão na garagem, chegaram hoje cedo de Lages. — E o Específico Pessoa, comprou? Tá cheio de cobra por lá... — Claro! — e retrucou, sussurrando: — Como se fosse adiantar alguma coisa… Pai e filho continuaram assim, na labuta, preparando as coisas, trabalhando, discutindo, fazendo as pazes, discutindo de novo e fazendo as pazes de novo, até que, ao final da primavera, tudo estava pronto.

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