Origens e Fins

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Origens e Fins



Otto Maria Carpeaux

ORIGENS E FINS


© Origens e Fins, Otto Maria Carpeaux, 1943, 2018 Ficha Catalográfica Carpeaux, Otto Maria, 1900–1978 Origens e fins / Otto Maria Carpeaux. — 2º ed. — Curitiba, PR: Livraria Danúbio Editora, 2018. 404 pp. p&b ; 16 x 23cm ISBN: 978-85-67801-16-2 1.Crítica literária. 2. Ensaios. 3. Literatura. I. Título. CDD – 800

EdiÎÍP: Jefferson Bombachim Notas: Diogo Fontana e Jefferson Bombachim Tradução das poesias citadas: Wagner Schadeck Editoração: Caterina Veneziano Pacce Capa: Matheus Bazzo Os direitos desta edição pertencem à Editora Danúbio CNPJ: 17.764.031/0001-11 — Site: www.editoradanubio.com.br Distribuição: CEDET - Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico Rua Ângelo Vicentim, 70, Campinas/SP Todos os direitos desta edição pertencem à Livraria Danúbio Editora Ltda. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.


NOTA DO EDITOR

Na preparação do presente texto, tomou-se por base a edição dos Ensaios Reunidos Vol. I (Topbooks, Rio, 1999.) fazendo posteriormente o cotejo com o texto da primeira edição (Origens e Fins. Casa do Estudante Brasileiro, Rio, 1943.) e com os artigos publicados originalmente em jornal. Não sendo esta uma edição crítica, nos limitamos a corrigir lapsos e gralhas tipográficas, sem no entando assinalar tais correções. As notas de rodapé com a tradução das citações em língua estrangeira, ficaram a cargo de Diogo Fontana e Jefferson Bombachim, e estão distinguidas pelas iniciais ‘D.F.’ e ‘J.B.’. Os trechos de poesias citados foram traduzidos por Wagner Schadeck e são assinalados pelas iniciais ‘W.S.’. Jefferson Bombachim Curitiba, março de 2018



SUMÁRIO

PRIMEIRA PARTE: POESIA DO MUNDO O sol de homero ......................................................................... 13 Poesia e ideologia ........................................................................ 23 A mensagem de Hölderlin .......................................................... 37 Duas datas poéticas ..................................................................... 61 1. Situação de Mallarmé ......................................................... 61 2. A data de Paul-Jean Toulet ................................................. 71 Góngora e o neogongorismo ....................................................... 79 García Lorca ............................................................................... 89 SEGUNDA PARTE: JUSTIÇAS E INJUSTIÇAS Oblomov .................................................................................. 105 Atrás de Pirandello.................................................................... 115 Alfieri e a tragédia da Itália ....................................................... 125 Pela verdade.............................................................................. 137


Defesa de Ibsen ......................................................................... 149 Daniel Defoe: aventura e economia .......................................... 161 Mauriac? ................................................................................... 171 TERCEIRA PARTE: ORIGENS E FINS Erasmo e as fortificações ........................................................... 185 Estátuas eqüestres ..................................................................... 197 O subconsciente e a realidade ................................................... 211 A revolução européia................................................................. 233 Leviatã ...................................................................................... 255 Solidão de Croce....................................................................... 279 De um velho livro espanhol ...................................................... 289 QUARTA PARTE: NO MUNDO NOVO Última canção — vasto mundo ................................................ 303 Fragmento sobre Carlos Drummond de Andrade ..................... 319 Visão de Graciliano Ramos ....................................................... 329 A propósito do pintor brasileiro ................................................ 341 Alvaro lins e a literatura brasileira.............................................. 355 Tradições americanas ................................................................ 367 Índice onomástico .................................................................... 387


A HELENA minha mulher

Aos leitores deste volume, coleção de estudos publicados anteriormente em jornais do Rio de janeiro e na Revista do Brasil, peço considerar o livro como complemento ao volume anterior: A CINZA DO PURGATÓRIO. São partes dum esforço que, em contradição dialética e em unidade do pensamento, continua. Agradeço ao Sr. Aurélio Buarque de Holanda os trabalhos de revisão, e ao Sr. Arquimedes de Melo Neto os trabalhos de edição. O. M. C.



PRIMEIRA PARTE: POESIA DO MUNDO



O SOL DE HOMERO

MEU ILUSTRE amigo Octávio Tarquínio de Sousa sugeriu-me um estudo sobre Homero. Considerando a erudição clássica de que dá testemunho a sua biblioteca, não me causou estranheza aquela sugestão, admirável no meio dum mundo em que um Valéry pode perguntar, de voz timidamente baixa: “Connaissez-vous une chose plus ennuyeuse que Virgile?”; e Gide responder: “Oui, Homère.” 1 Realmente, Homero tomou-se alheio ao nosso mundo. Já há séculos que não se escrevem epopéias, e, para dizer a verdade, escreveram-

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“Você conhece algo mais chato que Virgílio?”; e Gide responde: “Sim, Homero.” [D.F.]


se sempre apenas epopéias virgilianas. E assim como a forma exterior se tornava obsoleta, a expressão verbal e os assuntos homéricos se transformavam em lugares-comuns da literatura universal. A menção de Homero, na enumeração dos maiores poetas, é uma convenção usual dos letrados ou, pior, uma mentira na boca daqueles que dele não leram nunca uma linha. Para dizer a verdade, a leitura de Homero pressupõe um estudo sério da língua grega e consideráveis conhecimentos históricos: obstáculos à compreensão estética. O Homero vivo morreu, há milênios; continua, para nós, apenas no reflexo, ainda áureo, dos raros exemplos de poesia classicista que têm vida própria: Chénier, Goethe, uns versos de Monti e Matthew Arnold. Últimos raios do sol dum mundo morto. Homero é a expressão poética dum mundo totalmente morto. Tem apenas interesse histórico, exterior; no dizer do crítico August Centeno, “exteresting” em vez de “interesting”. Tanto melhor: a transformação do “exteresse” histórico em interesse vital é a suprema tarefa do crítico; assemelha-se a penetrar na caverna onde — conforme a célebre parábola de Platão, na República — as almas aprisionadas vêem apenas o reflexo enganador do verdadeiro mundo. Passaram-se séculos, milênios; e ainda vale a pena iluminar a prisão das almas com um raio do sol de Homero. A caverna é o túmulo em que os Aquiles e os Ulisses, os bravíssimos guerreiros e os safadíssimos finórios de Homero dormem ao lado das suas mulheres submissas e dos seus deuses transformados em gravuras dos manuais de mitologia. Cinco séculos de escola conseguiram ocultar-nos a verdadeira feição dessas personagens, na qual consiste a grandeza épica do primeiro poeta: o seu realismo. É falsa aparência, de todo, o aspecto de idealismo militar, de panache, da Ilíada, e o aspecto de aventuras lendárias da Odisséia. Homero dá a verdade, toda a verdade da vida de guerreiros feudais e de marujos temerários. O sol desse

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realismo é forte, ao ponto de cegar a gente. “A musa amou-o muito, deu-lhe o bem e o mal; por amor, tomou-lhe, enfim, os olhos” — com razão, Nietzsche chamou a esse verso homérico um texto para meditações sem fim. Meditações que não atingem o resultado de recuperar a visão homérica, totalitariamente artística, do mundo, com todo o seu bem e mal, e iluminar as nossas almas cegas com o sol de Homero, lá fora. Para nós, o mundo de Homero permanece — como disse Maurras sobre o Partenon — “un désert de pierres blanches”. 2 Para revivificar esse mundo morto, que foi tão real, precisamos de romantizá-lo. Há romantismo e romantismo. Há o romantismo das brumas e dos espectros fantásticos do Norte; e há o romantismo mediterrâneo dos latinos, eterna saudade do sol sobre as pequenas ilhas gregas, onde a nossa civilização nasceu. Toda a beleza imortal dos poemas homéricos reside nesse panorama duma Grécia romantizada. Espectro de um mundo adolescente, multicolor, de uma vida mais leve, mais alegre, mais perto dos deuses do Olimpo. Esse romantismo do Sul é também, sem dúvida, uma saudade poetizada. Não se compreende Homero deste modo. É preciso lê-lo como os gregos o leram. E aí, espera-nos a primeira surpresa da nossa investigação. Os antigos não leram as epopéias homéricas como poemas. Leram-nas como obras de erudição. Não acreditaram que Homero tivesse realizado a suprema beleza poética. Ao contrário, consideraram-lhe as epopéias como minas de assuntos poéticos, dignos e necessitados de transformações cada vez mais sublimes. Homero, para eles, era uma fonte. Uma fonte de conhecimentos também. Prestigiavam mais o sábio do que o poeta. Aristóteles cita, ingenuamente, Homero entre os

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“Um deserto de pedras brancas.” [D.F.]

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filósofos. No rapsodo das guerras feudais acharam a suma do saber humano. Homero não foi o Dante da Antiguidade; foi a Bíblia dos gregos. Nenhum outro livro lhes pareceu mais digno do que este de servir ao ensino na escola. Para os antigos, Homero é um manual. Homero é o mais velho livro escolar do mundo. Todas as gerações da Grécia devem-lhe a educação. Nesta altura, porém, o meu raciocínio ameaça-me de choque com outro ilustre amigo, Astrojildo Pereira, que me declarou, outro dia, a sua aversão íntima a todos os assuntos de pedagogia. Como convencê-lo da significação educativa de Homero? Será preciso acomodar-se a gente à sua concepção dialética do mundo: dizer-lhe que a história da superestrutura espiritual das épocas modernas, ponto de partida de análises mais em profundidade, se apresenta num ritmo dialético entre o ideal pedagógico dos gregos e outro, o dos “modernos”. Cumpre escrever, um dia, a história semiológica da palavra “moderno”; vão ruir, nesse dia, uns templos da musa, à direita e à esquerda. Por hoje, basta chamar a atenção para o declínio duma palavra muito antimoderna: “virtude”. Paul Valéry, num dos seus raros discursos acadêmicos, lamentou a desvalorização da velha palavra, que caiu quase para o terreno do ridículo. Uma investigação histórica mostraria a origem homérica desse declínio semiológico: a “virtude” muito realista, sabida e quase safada, de Ulisses, quando ela entra, na época da Renascença, na consciência européia, é logo entendida num sentido amoral, transformando-se em virtù, habilidade sem escrúpulos, de Maquiavel e de toda a política européia, “política” no sentido mais amplo da palavra, incluindo todas as atividades práticas; enquanto uma minoria aristocrática, representada pelo Cortegiano de Castiglione, se esforça, em vão, por manter a significação de virtù como desenvolvimento universal e harmônico da personalidade humana. Toda a história espiritual da

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época moderna é uma luta entre essas duas significações da palavra “virtude”, escondendo esta luta a contradição dialética entre a atitude capitalista, que desenvolve as possibilidades materiais do mundo até à transformação que transcende ao capitalismo, e, de outro lado, a atitude aristocrática, a única atitude capaz de legar ao mundo pós-capitalista, futuro, a herança do passado. As representações mais completas dessas duas atitudes são o Bildungsideal de Goethe, e o que se chamava, na Europa, “americanismo”. Raramente um livro científico me comoveu de modo tão profundo como a História do espírito dinamarquês, de Vilhelm Andersen; descrição do declínio da cultura goetheana na Dinamarca e da vitória do “americanismo”, de que o escritor Johannes Vilhelm Jensen é protagonista. No centro dessa história está a reforma escolar dinamarquesa de 1903, abolindo o ensino do grego. Certamente, a importância da história e do espírito gregos para nós, muito mais importantes do que tantas coisas modernas ou recém-passadas, mais importantes do que todo o velho Oriente, tem algo que ver com a educação grega, na qual Homero, foi o principal livro escolar. Homero é um livro pedagógico, para os antigos e para nós outros. Trata-se apenas de restituir toda a dignidade transcendental à palavra “pedagogia”. Os velhos gregos entenderam a pedagogia como meio de formação do homem ideal da sua civilização. Em todas as civilizações, porém, a figura do homem ideal — o “santo”, o “virtuoso”, o honnête homme, o gentleman, o Gebildeter — é expressão máxima da ideologia reinante, como a outra expressão máxima: a poesia. A relação entre a pedagogia e a poesia significava, para os gregos, uma relação entre a poesia e a ideologia que era a base da civilização antiga. O livro mais completo e mais moderno sobre a civilização grega, a Paideia, de Werner Jaeger, descreve toda a história daquela civilização como processo de auto-educação do homem grego, partindo de Homero, atravessando

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a poesia pedagógica de Píndaro e a filosofia pedagógica de Sócrates, chegando ao cume na pedagogia política de Platão. Homero é pedagogo. A pedagogia homérica, porém, é um pouco estranha. Os modelos — o furioso Aquiles, o sabido e safado Ulisses, e os deuses que participam de todas as fraquezas humanas — parecem-nos bem pouco exemplares. Convém lembrar que devemos ao grande e estranho filósofo napolitano Vico a primeira compreensão histórica de Homero: o primeiro dos poetas o é também no sentido cronológico. É o poeta dum passado muito remoto, é o poeta do feudalismo grego. Os ideais dos heróis homéricos são os de todos os heróis feudais: são aristocráticos; para falar grego, a transformação da areté em aristéia, da “virtude” em “nobreza”, pela força da auto-educação, da qual hoje o self-control inglês é o último traço. A possibilidade dessa transformação está demonstrada pelos deuses homéricos, que, não exigindo nenhuma virtude de resignação ascética, representam, contudo, a plena realização da aristéia. A estimação do ensino da mitologia na escola é um reflexo pálido do valor humanizante desse politeísmo grego. O antropomorfismo quase amoral dos deuses homéricos é o espelho olímpico do individualismo terrestre dos gregos. Individualismo que se manteve em equilíbrio, justamente pela falta de qualquer ascetismo, pela conformidade consciente com a natureza humana e com a Natureza, com o Cosmos, compreendido como indivíduo absoluto. A expressão literária desse individualismo conforme a Natureza é o realismo superior de Homero. Todo equilíbrio está continuamente ameaçado. O equilíbrio do individualismo grego quebrou-se; a paideia grega falhou, justamente no instante da sua aparente vitória sobre a coletividade informe: no momento em que Péricles pronunciou o seu inesquecível Discurso fúnebre aos soldados atenienses, mortos no primeiro ano da guerra; discurso que

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serviu de modelo para tantos discursos da história parlamentar inglesa; discurso grego que serviu de cartaz nos bondes de Londres, nos funestos dias de bombardeios. Foram dias, os de Péricles, nos quais os últimos restos do feudalismo homérico cederam à “democracia” dos empresários ultramarinos. Foram os dias em que o texto de Homero, transmitido oralmente, foi escrito, codificado e entregue aos cuidados dos filólogos. Foram os dias em que se inventou a lenda da cegueira do maior realista entre os poetas, e a outra lenda de que sete cidades se disputavam a sua origem, não tendo ele propriamente uma pátria. Começam os dias da Grécia trágica. Toda a literatura grega busca os seus assuntos em Homero. A tragédia grega, tão empenhada em representar a história pós-homérica do assunto homérico — por assim dizer, as conseqüências — a tragédia grega transforma a pedagogia homérica em princípio político. Toda a tragédia grega tem profundo sentido político. A tragédia de Ésquilo representa o último combate do individualismo feudal contra a força normalizadora do Estado. A maior tragédia de Sófocles, a Antígona, representa a contradição entre as leis naturais da família e do indivíduo, e a lei positiva do Estado que pretende proibir o enterro regular dos próprios irmãos, porque inimigos políticos; lei que arranca a Antígona as maravilhosas palavras de consciência individual, que ressoam como presságio do Evangelho: “Não para odiar com os outros, mas para amar com os outros, foi que nasci.” E, enfim, a tragédia do “sofista” Eurípides acompanha a dissolução da sociedade individualista na autocracia da Polis, do Estado. Diante do fascismo dos sofistas não resta a Platão senão a fuga para o desterro no Ocidente, onde o sol se põe, e para Utopia. Homero já não tem pátria. Os seus assuntos desaparecem da literatura. Os poetas são declarados loucos, cegos de espírito, como ele era cego dos olhos. A Paideia malogrou-se. Apagou-se o sol de Homero.

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Para bem compreender a realidade no fundo da utopia platônica, cumpre ler os capítulos de Tucídides (III, 82) sobre a guerra civil entre os gregos: “Em revolução encontravam-se os Estados, e cada geração superou a anterior na nova mentalidade, na safadeza das agressões e novidade das vinganças. E perverteram o uso das palavras conforme a sua própria opinião: brutalidade cega passou por bravura e espírito de camaradagem, meditação passou por timidez, sabedoria por covardia. Loucura passou por virilidade, fanatismo por certeza, oposição por suspeita.” A observação da “perversão do sentido das palavras” é significativa: o derrubamento dos valores exprime-se de maneira, por assim dizer, filológica; a crise social exprime-se, na superestrutura espiritual, como “nova mentalidade”, como fruto duma nova pedagogia. Ao homem homérico não resta senão o suicídio. O suicídio do último homem homérico, de Demóstenes, significa a impossibilidade, para o indivíduo homérico, de viver na sociedade política. É o suicídio do homem político. A política desaparece da vida grega, cedendo o homem político o lugar ao administrador apolítico, ao “idiota”. Homero, porém, não morrera. Diante do olho interior do “poeta cego” levantou-se o sol duma nova compreensão do mundo. Os filósofos tinham-no citado como filósofo, até, enfim, tirarem da epopéia uma nova filosofia: o estoicismo. A relação entre a poesia e a ideologia gregas torna-se cada vez mais clara. Os estudos de Ernest Hoffmann não deixam subsistir dúvidas quanto ao fato de que o estoicismo nasceu como interpretação da poesia de Homero. Não se trata de filosofia qualquer. Todas as outras “escolas” filosóficas da Antiguidade — epicuristas, cínicos, acadêmicos, peripatéticos — permaneceram escolas, seitas. O estoicismo tornou-se a filosofia sans phrase, a filosofia do mundo inteiro. Porque era uma pedagogia; e a pedagogia homérica continua a

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alma da civilização grega. Sociologicamente, o estoicismo é a acomodação da pedagogia política homérica a um mundo apolítico, anônimo, despótico: o orbis romanus, a grande caverna das almas. Filosoficamente, o estoicismo significa a transformação do mundo divino, homérico, em fatalidade da Natureza; mas sem mudar a lição pedagógica de conformar-se com as forças superiores. A “virtude” do herói homérico transforma-se em “amor fati”, no dizer de Nietzsche, em submissão humilde ao destino, que não é uma força inimiga, mas a grande Mãe, que dá e tira a vida. A lição homérica — como viver ativamente — transformou-se em aula do estóico, ensinando a arte de morrer serenamente. E quanto à poesia — justamente no instante em que o mundo antigo perde o sentimento da poesia homérica, para achar “Homère ennuyeux” — ela se transforma num novo sentimento do mundo, em que o homem já não está abandonado, mas confiado a uma natureza em que o sol, a luz interior do poeta cego, nunca se põe. A sobrevivência da poesia homérica na filosofia estóica abre à compreensão da história perspectivas imensas. Mais do que todas as imitações classicistas, significa a poesia autenticamente homérica da Consolatio de Boécio — erroneamente julgada, por muitos séculos, como filosofia poética cristã, enquanto representa apenas a penetração da ética estóica na ética cristã; assim como a poesia estóica penetrou no mundo aparentemente petrificado do Islã, conservando-lhe — conforme os estudos magníficos de I. C. Becker — sob as aparências do fatalismo islâmico, o pensamento estóico e, com isso, um raio do sol de Homero. Boécio é um começo. O estoicismo penetrou toda a civilização ocidental cristã. Sempre aparece como força subterrânea, invencível, mantendo o equilíbrio moral, sempre ameaçado, do mundo ocidental. Constitui “oposição” secreta na Espanha da Epístola moral a Fábio, na

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França dos jansenistas. Na Inglaterra dos humanistas chega a transformar-se em tradição que sobrevive aos fins ennuyeuses do Ocidente. É um antigo aluno de Oxford o estranho coronel T. E. Lawrence, talvez o último herói homérico da nossa era, que encontra nos desertos da Arábia islâmica a velha consolação estóica, nas palavras inesquecíveis do provérbio árabe: “In nid beguzarad.” “Isto também passará.” E o último raio do sol poente de Homero chega a iluminar a consciência, ajuda a retraduzir, para nós outros, as palavras árabes para a frase que o imperador estóico Marco Aurélio escreveu, no pôr-do-sol dos seus dias, nas fronteiras do mundo e da barbárie, e que dá testemunho da sua atitude homérica: “Ó homem, eras cidadão desta grande Cidade, cinco ou trinta anos, que importa? É como o caso do ator despedido pelo mesmo pretor que o chamara para desempenhar um papel na peça. ‘Mas eu não representei cinco atos, apenas três!’ ‘Bem; na vida já três atos constituem uma peça inteira. O fim está determinado por aquele que arranjou a representação e que a termina hoje; de ti não depende o fim nem o começo. Assim, deixa serenamente este mundo; ele também, que te despede, é sereno.’”

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POESIA E IDEOLOGIA

DEVO AO MEU AMIGO José de Queiroz Lima a sugestão de aplicar à relação entre poesia e ideologia o resultado da leitura do livro Practical Criticism, de autoria do eminente crítico inglês I. A. Richards. Era uma leitura dificílima: um estudo muito técnico, baseado em documentação imensa, e que ficou — o próprio livro — no estado de documentação. Contudo, valia a pena: é talvez o primeiro livro rigorosamente científico sobre poesia. Vale a pena abrir as brenhas compactas dessas investigações psicológico-pedagógico-estéticas, reunindo-as a outros resultados, alheios e próprios, extraindo-lhes uma doutrina. Vamos ver, então, que a poesia mais velha e a poesia mais moderna, igualmente, não se compreendem sem o conhecimento das ligações íntimas entre poesia e ideologia. Vamos ver, então, que o estudo de I. A. Richards; é um dos


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