Sócrates, Fundador da Ciência Moral

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SÓCRATES, FUNDADOR DA CIÊNCIA MORAL

Émile Boutroux

Tradução: Alexandre Müller Ribeiro

Livraria Danúbio Editora Santa Catarina, 2015 3


Título original: Socrate, foundateur de la science moralle FICHA CATALOGRÁFICA Boutroux, Émile. 1845-1921 Sócrates, fundador da ciência moral Balneário Camboriú, SC: Livraria Danúbio Editora, 2015. ISBN: 978-85-67801-04-9 1. Filosofia antiga 2.Filosofia Grega sofista, socráticas e afins 3. Sócrates I. Título. CDD – 183.2 Edição: Diogo Fontana Capa: Eduardo Zomkowski Trechos em grego traduzidos por Bernardo Brandão Copyright © da tradução: Alexandre Müller Ribeiro Todos os direitos desta edição reservados à Livraria Danúbio Editora Ltda. Avenida Brasil, 1010, Centro. Balneário Camboriú, SC. 88330-045 E-mail: contato@livrariadanubio.com Sítio: www.livrariadanubioeditora.com.br Distribuição: CEDET Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico Rua Ângelo Vicentim, 70 Campinas-SP

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endo já os espíritos melhor preparados para dissipar as nuvens que envolvem a pessoa de Sócrates (literatos curiosos, moralistas sagazes, filósofos profundos, historiadores eruditos, e mesmo médicos) se aplicado porfiadamente em reunir e interpretar os documentos capazes de dá-la a conhecer, pode ainda restar algo a dizer a seu respeito. Assim, o escritor que aborde um assunto desses não estará sujeito a deixar-se levar pela banalidade, caso se limite tão somente a dizer coisas verdadeiras?; ou a emitir paradoxos, quando pretenda trazer dados novos? Parece-nos legítimo, em vista disso, fazer uma distinção. É certo que a maior parte dos detalhes da vida e do ensinamento de Sócrates tem sido elucidada o quanto possível, mas é duvidoso que o mesmo tenha ocorrido naquilo que concerne ao conjunto dos dados relativos à sua pessoa e à sua doutrina. A comparação dos estudos contemporâneos relativos a Sócrates é para o leitor ocasião de espanto. Quer-se conhecer o que foi a vida de Sócrates, 9


quais foram as causas de sua condenação, o que era maiêutica, em que consistia a doutrina da virtude, e mesmo outras partes da doutrina socrática: sobre tais pontos, todos os autores dão respostas mais ou menos parecidas. Pergunta-se, porém, o que foi Sócrates, qual o fundo de seu caráter e a idéia-mestra de seu ensinamento: sobre questões assim, aonde vão dar todas as outras, as opiniões são contraditórias. Assim, de acordo com Eduard Zeller1, havendo a antiga física se dissolvido sob a ação da sofística, Sócrates regenerou a filosofia fundando-a sobre um novo princípio: o geral, ou o conceito, considerado como objeto da ciência. A obra de Sócrates, portanto, fora a invenção de um princípio de lógica teórica. Grote, em suas pinturas muito vivas, mostra-nos um Sócrates que é, antes de tudo, um missionário religioso, encarregado pelo oráculo de Delfos de colocar em xeque os falsos sábios e de levá-los a confessar a própria ignorância. Sócrates é o deus da discussão: “an elenchtic or cross-examining god”. 2 Sua obra, religiosa por

Die Philosophie der Grieschen (3ª ed., [7 vols.], Leipzig, Fues, [1879-1892]), div. 2, v. 2. 2 “Um deus elêntico ou contra-interrogatório”, em George Grote, A history of Greece (reimpr. da 1ª ed. e 2ª ed., 12 vols., Nova York, Harper & Brothers, 1875-1880), vol. 8. 1

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inspiração, é ela mesma, essencialmente, uma dialética viva. Com Alfred Fouillée, Sócrates aparece como um especulativo, substituindo às causas físicas as causas finais, para a explicação de todos os fenômenos, tanto os físicos como os morais. Ele é o criador da metafísica espiritualista. Para Jean-Charles Lévêque 3, Sócrates tentou empreender a reforma moral e política de Atenas; e, nessa perspectiva, instituiu a moral como uma ciência independente das ciências físicas. Paul Janet, em um breve mas substancial verbete no Dicionário filosófico, apresenta Sócrates como sendo antes de tudo um filósofo. Caracteriza-o principalmente por dois traços: o sentimento moral, que é dominante em sua pessoa, e que perfaz inteiramente a sua doutrina, e a maiêutica, da qual deveria surgir a dialética platônica. Em um opúsculo publicado em 1881, Gustave d’Eichtal estima que o ponto eminente da doutrina socrática é o ensinamento religioso. Sócrates, afirma o autor, a fim de deter os males que via se abaterem sobre a sua pátria, procurou dar aos seus concidadãos o que, a seus olhos, seria o princípio de toda virtude, a condição La revue politique et littéraire (Paris, ano 1, vol. 1, jul.-dez. 1871), p. 468.

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primeira de toda reforma: uma fé religiosa, especialmente a fé na providência divina. 4 Enfim, Adolphe Franck, em um artigo publicado no Journal des Savants 5 , a propósito do livro de Gustave d’Eichtal, admite, em um sentido análogo, que Sócrates não foi apenas um raciocinador e um filósofo, porém mais ainda, e sobretudo, uma alma profundamente religiosa, no sentido próprio da palavra; uma alma na qual a fé em Deus, a admiração por suas obras, a certeza de seu império sobre a natureza e de sua providência com relação aos homens não estavam isentas de misticismo. Todas essas afirmações se apoiam, aliás, em textos do mais alto valor. Assim, para ficarmos com os três autores contemporâneos que realizaram os trabalhos mais consideráveis sobre Sócrates, ponderemos que Zeller cita, em apoio de sua tese, o texto, tão preciso, de Aristóteles 6, no qual se afirma que Sócrates busca o τί ἐστί 7, a essência geral, mas sem considerar essa essência como existindo separadamente, o que viria a fazer Platão. Grote inspira-se na Apologia 8, a qual efetivamente nos apresenta Sócrates como o Socrate et notre temps (Paris, Chamerot, 1871), p. 3. ‘Socrate et notre temps’, Journal des Savants (Paris, 1881), p. 605. 6 Metafísica, XIII, 4, 1878, b, 23ss. 7 “O que é” 8 Cf. nota 2. 4 5

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filósofo que recebeu dos deuses a missão de convencer os homens de sua ignorância. Enfim, a exposição de Alfred Fouillé 9 parece dominada pela consideração dessas páginas luminosas do Fédon 10 , nas quais vemos Sócrates censurar Anaxágoras por este haver negligenciado, na explicação dos detalhes do mundo, a inteligência ordenadora que o próprio Anaxágoras havia proclamado como a causa universal, e, além disso, vemo-lo asseverar que toda a explicação mecânica, segundo entende, é superficial e que só devem ser aceitas como legítimas as que são desenvolvidas em vista das causas finais 11. Mas por que razão cada um desses autores fixa-se a tal ou qual texto, de preferência aos outros? Podemos nos perguntar se preocupações pessoais ou hábitos do espírito não seriam, em parte, a causa. Um costumado hegeliano como Zeller, que busca sobretudo o lugar dos homens e das doutrinas no desenvolvimento geral do espírito humano, deveria, de fato, tomar por guia principal Aristóteles, que destaca, de entre seus predecessores, justamente as idéias que teriam preparado as suas próprias. O historiador Grote, que pretende nos mostrar que 9 La philosophie de Platon (2 vols., Paris, Ladrange, 1869), vol. 1, p. 17ss. 10 Cap. XLVss. 11 Ibid., cap. XVLI.

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papel desempenharam os homens célebres no conjunto da vida social e política da época em que viveram, tinha de apoiar-se sobretudo na Apologia, quadro fiel, parece, da maneira como o próprio Sócrates se apresenta diante de seus concidadãos. Enfim, o profundo e eloquente intérprete da teoria das Idéias, Alfred Fouillée, estava naturalmente propenso a buscar em Sócrates o precursor de Platão, e de emprestar sua doutrina para nela encontrar o gérmen da metafísica platônica. Não há nada de surpreendente no fato de que ele tome por ponto de partida o texto em que o próprio Platão relaciona sua teoria das Idéias às especulações de seu mestre. Nessa investigação sobre o caráter próprio de Sócrates, Zeller parece estar colocado desde a perspectiva do espírito absoluto; Grote, sob o ponto de vista de um ateniense culto do século V; e Fouillée, situado de acordo com o ponto de vista de Platão. O que aconteceria se nos colocássemos sob o ponto de vista do próprio Sócrates?; se nos perguntássemos o que pode ter sido Sócrates, não segundo viam-no os outros, mas conforme o próprio Sócrates via a si mesmo? O apóstolo do γνώθι σαυτόν 12 devia se conhecer a si mesmo, e talvez estivéssemos sufi-

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“Conhece-te a ti mesmo”

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cientemente instruídos a seu respeito desde que o conhecêssemos na mesma medida. Mas como penetrar na alma de Sócrates, uma vez que ele nada escreveu? Não é justamente a dificuldade de se colocar sob o seu ponto de vista que leva os historiadores a buscar um ponto de vista exterior a Sócrates? Essa dificuldade talvez seja em parte fictícia. Ela se manifestou com maior clareza no dia em que Schleiermarcher avançou o seguinte princípio: para que uma exposição da doutrina socrática seja fiel, ela deve, antes de tudo, fazer compreender como Platão pôde considerar Sócrates como o promotor de sua atividade filosófica. Sob esse ponto de vista, empreendeu-se uma comparação do Sócrates de Xenofonte com o de Platão e Aristóteles, encontrando-se entre as duas versões uma grande divergência. Naturalmente, os discípulos de Schleiermarcher optaram por Platão e Aristóteles, e assim achou-se comprometida a autoridade da única das nossas testemunhas que exercera o ofício de historiador e que se ocupou em nos dizer o que, de fato e em si mesmo, teria sido Sócrates. Depois, porém, as coisas mudaram de feição. Enquanto os campeões de Xenofonte e os de Platão batalhavam a propósito da teoria de Schleiermarcher, uma teoria mais isenta levou à comparação dos testemunhos de Xenofonte, de Platão e de Aris15


tóteles em si mesmos. Ora, verificou-se que esses testemunhos estavam de acordo quanto ao essencial. Assim, para um observador imparcial, a autoridade de Xenofonte estava restabelecida. Talvez se pudesse acusá-lo de haver dado uma apresentação, em certa medida, incompleta da pessoa e das doutrinas de seu mestre, mas não de fazê-lo sob um aspecto falso. Portanto, temse hoje o direito não apenas de invocar o testemunho de Xenofonte lado a lado com o de Platão e de Aristóteles, mas, mais do que isso, pode-se admiti-lo preferencialmente, já que, dos três, era Xenofonte historiador de profissão. É verdade que sua obra parece haver tido por objetivo imediato a refutação do requisitório do retórico Polícrates 13, composto no ano 393; não obstante, Xenofonte deve ter aplicado a ela o caráter de fidelidade e de imparcialidade que distinguem suas demais obras. É certo que não se deve recair no preguiçoso erro dos antigos historiadores que, lendo superficialmente esse autor, não viram ali senão o retrato de Sócrates como um moralista bonachão: é preciso fecundar as indicações de XenoMesmo após a morte de Sócrates, em 399 A.C., durante anos manteve-se a controvérsia em Atenas, numa disputa entre versões históricas favoráveis e contrárias à memória do filósofo. O requisitório de Polícrates acusava Sócrates de “traidor” e “inimigo do povo”. (N.E.)

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fonte com a ajuda daquelas fornecidas por Platão e Aristóteles. De qualquer maneira, convém que nos utilizemos desses dois como o sábio se vale de uma hipótese, quer dizer: colocando questões a partir dela, em vez de resolvê-las. Analisar os dados de Xenofonte, interpretandoos e desenvolvendo-os mediante uma indução científica, à qual Platão e Aristóteles forneçam as idéias diretoras ― esse parece ser o método a seguir-se para se conhecer Sócrates de um modo realmente histórico. Ademais, é necessário estabelecer alguma distância entre as Memoráveis de Xenofonte e a Apologia de Platão, a qual, segundo a maior parte dos críticos 14 , é digna de fé quanto à substância, assim como certas partes do Críton, do Fédon, do Láquis e do Banquete ― partes essas que, na verdade, são difíceis de se delimitar com precisão. Qual é, assim, atualmente, a fisionomia de Sócrates se considerada, o quanto possível, a partir de seu próprio ponto de vista?

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Scheleiermacher, Zeller, Ueberweg e Grote.

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o fazer das Memoráveis a fonte principal da história do pensamento de Sócrates, o primeiro resultado a que se chega é ao de uma confissão de ignorância quanto ao que precedeu os dez últimos anos, aproximadamente, da carreira de Sócrates. É grande a tentação de buscar em outros textos um meio de remontar à vida de Sócrates acima do que nos permitem as Memoráveis. Foi assim que Albert Fouillée pensou haver encontrado, na célebre passagem do Fédon 15 sobre as primeiras reflexões filosóficas de Sócrates, e na coincidência desse texto com As nuvens, de Aristófanes, a prova de que, antes de se dedicar à investigação moral, o filósofo teria percorrido uma primeira fase, marcada por especulações acerca da natureza. Decepcionado com tais especulações, Sócrates terse-ia dirigido em seguida à moral, renunciando ao grande problema da antiga filosofia grega: o da explicação do universo. Mas, além do fato de que as Memoráveis não contêm a menor pista de 15

Cap. XLVss.

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uma trajetória assim, a narrativa que faz o Sócrates do Fédon está em contradição com as declarações formais do Sócrates da Apologia, onde ele afirma 16 que jamais se ocupou da física. Objetarse-á que o personagem de Sócrates que aparece em As nuvens deve repousar sobre algum fundamento histórico. Mas é justamente a respeito do que está em As nuvens que Sócrates, na Apologia, faz essa declaração solene. Encerra-se a questão, é verdade, descartando-se a Apologia sob o pretexto de que se trata de um elogio e alegando-se que o texto do Fédon dá a impressão de realidade histórica. Mas uma opção assim está mal justificada. Uma vez que o texto do Fédon tem por objetivo mostrar-nos a origem da teoria das Idéias, a qual, aliás, é igualmente colocada na boca de Sócrates, é natural atribuir-se ao próprio Platão as reflexões pelas quais se inicia essa exposição. Quanto à Apologia, tem ela certamente um valor histórico, como prova-o claramente essa curiosa predição realizada aos juízes por Sócrates: 17 a de que, estando ele morto, havia de levantar-se contra os atenienses um número muito maior de censores (ἐλέγχοντες), tão mais incômodos quanto mais jovens fossem. Essa predição, que parece não ter se realizado, certamente haveria de ser omitida em uma apologia 16 17

Cap. III. Cap. XXX. Cf. Grote.

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