TRANSCENDÊNCIA E HISTÓRIA A busca por ultimidade das sociedades antigas à pós-modernidade
TRANSCENDÊNCIA E HISTÓRIA A busca por ultimidade das sociedades antigas à pós-modernidade
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Glenn Hughes
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Livraria Danúbio Editora 2019
© Transcendence and history: the search for ultimacy from ancient societies to postmodernity, Glenn Hughes, 2003. FICHA CATALOGRÁFICA Hughes, Glenn, 1951– Transcendência e história: a busca por ultimidade das sociedades antigas à pós-modernidade. Curitiba, PR, Livraria Danúbio Editora, 2019. ISBN 978-85-67801-20-9 Filosofia Moderna CDD – 190 Tradução de Wilson Filho Ribeiro de Almeida (1985–), © 2018 Edição: Diogo Fontana Revisão: Fausto Machado Tiemann Capa: Gabriela Fernandes Fontana Os direitos desta edição pertencem à Editora Danúbio. CNPJ: 17.764.031/0001-11 Distribuição: CEDET Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico Rua Ângelo Vicentim, 70, Campinas/SP Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.
Este livro é dedicado ao meu pai GLENN HUGHES dramaturgo, diretor teatral, estudioso, professor, poeta e à minha mãe CLETA HUGHES que me ensinou a amar o que é excelente
Não é Desfecho este Mundo. Uma Espécie jaz além — Invisível, qual a Música — Concreta, qual o Som, porém — Ela acena, e muda o rumo — Filosofia — a não saber — Por meio de um Enigma, no fim — Sagacidade, há de correr — — Emily Dickinson
Sumário Agradecimentos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 1- O PROBLEMA DA TRANSCENDÊNCIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . Experiências da transcendência. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Símbolos da transcendência. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Recuperação da transcendência. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
33 37 45 49
2 - O TERROR DA HISTÓRIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A busca pelo fundamento na existência cosmológica e a descoberta da transcendência. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O eclipse moderno da transcendência e o problema da história imanente ao mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A história como um processo fundamentado na transcendência. . . . . . .
59 62 76 83
3 - HISTÓRIA E TRANSCENDÊNCIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85 Entre o tempo e a eternidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88 A Diferenciação entre Tempo e Eternidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95 4 - DEFORMAÇÕES DA HISTÓRIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Apocalipse . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Gnosticismo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Historiogênese. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Versões modernas das deformações. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Os movimentos do “deter da história” e a necessidade de símbolos históricos adequados. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
109 109 111 119 122 128
5 - COSMÓPOLE, CULTURA E ARTE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133 Cosmópole. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
Cultura. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137 Arte. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 142 6 - EZRA POUND E O EQUILÍBRIO DE CONSCIÊNCIA. . . . . . . Pound sobre a realidade divina e a verdade histórica. . . . . . . . . . . . . . . . Resistência de Pound à transcendência radical . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Coda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
157 163 173 181
7 - COSMOLOGIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Problema da presença divina no mundo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A experiência primária do cosmos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Mito, mito aberrante e neopaganismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Visão Ambiente. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
185 185 188 193 204
8 - ANTROPOLOGIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O problema da presença divina na consciência humana. . . . . . . . . . . . . Diferenciação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Diferenciações múltiplas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Integração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O dilema de Ernest Becker. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
217 217 219 227 232 240
CONCLUSÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253 O drama da humanidade universal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253 Bibliografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259 Permissões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 269
Agradecimentos NO PREFÁCIO a Viagem com um burro, Robert Louis Stevenson escreveu que “somos todos viajantes naquilo que John Bunyan chama de a selva deste mundo... e o melhor que encontramos em nossas viagens é um amigo verdadeiro.... Eles são a finalidade e a recompensa da vida. E mantêm-nos dignos.... De que se orgulhará um homem, se não se orgulha de seus amigos?” Muitos amigos me inspiraram e auxiliaram na escrita deste livro. Deveras maravilhoso foi o envolvimento dedicado e o apoio entusiástico de Pat Brown, que considerou e respondeu a praticamente todas as suas idéias, e o aperfeiçoou a cada passo do caminho. Tom McPartland, o mais sincero dos parceiros no eros filosófico, foi um guia brilhante através das complexidades do pensamento de Bernard Lonergan e Eric Voegelin. Fico feliz em agradecer a Paul Caringella por seu agradável companheirismo, aconselhamento e encorajamento ao longo de muitos anos. David Levy foi uma fonte constante de percepção crítica e, mais importante, de confiança em minha habilidade de enfrentar tamanhas complexidades. A magnífica Mary Pope Osborne me inspirou várias vezes a continuar escrevendo. Tive a excelente ventura de poder discutir em detalhes a maioria dos tópicos deste livro com meu amigo Sebastian Moore, O.S.B., em cuja homenagem foi escrito o ensaio que se tornou o Capítulo 2. Espero que sua receptividade e paixão espiritual estejam refletidas nestas páginas. Fred Lawrence, cujos convites para dar conferências no Boston College Lonergan Workshop resultaram em dois destes capítulos, tem sido um generoso amigo e colaborador, como também o mais inspirador e estimulante dos professores. Tirei grande proveito das muitas oportunidades de ocupar-me com a obra de Eric Voegelin oferecidas por Ellis Sandoz, diretor do Eric Voegelin Institute da Universidade do Estado da Luisiana, e que tem sido uma fonte inesgotável de apoio aos meus empreendimentos profissionais. Diversos amigos contribuíram com este trabalho na qualidade de companheiros de conversa, leitores ou ouvintes atentos, e, por vezes, fontes de consolo. Eles incluem Paul Kidder e Paulette Kidder, que têm me acompanhado pacientemente através de todos os estágios de entusiasmo e labuta; Julian Bull, cujos
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intelecto e humor honestos, e intensidade de espírito, iluminam o caminho; Ken Whelan, um provocador intelectual e amigo constante; e meu irmão espiritual, David Schuldberg, de quem tiro inspiração em impressionante medida e diante de quem me curvo em agradecimento. Capítulos ou passagens beneficiaram-se da assistência e erudição especializada de vários amigos e colegas. Bob McMahon foi extremamente generoso ao ler as seções e comentá-las com atenção. Gene Webb foi a origem, ao longo de muitas conversas, de percepções e inspiração concernentes a uma ampla faixa dos problemas tratados aqui. Michael Franz, colega estudioso de Voegelin, foi responsável por eu ter escrito o material que resultou nos Capítulos 3 e 4, a semente do projeto, pelo que sou muitíssimo agradecido. A seção sobre Ernest Becker no Capítulo 8 originou-se de palestras realizadas para a Fundação Ernest Becker a partir do gentil e generoso convite de seu diretor, Neil Elgee. A análise dos Cantos de Ezra Pound aconteceu devido a um convite de Jack Trotter. Entre outros que forneceram assistência acadêmica incluem-se Marie Baird, Tom Bolin, Jim Sauer, Todd Breyfogle, David Walsh e Steve Shankman. Por fim, há aqueles cuja amizade ou assistência fomentaram a escrita deste livro de maneiras menos fáceis de assinalar, mas que não obstante foram fundamentais para o seu desenvolvimento e conclusão. Incluem-se aí os sempre generosos Robert B. Heilman; Faith Smith; Carl Adler; Brian St. John; Geoff Price; Barry Cooper; Bill Thompson; Mike Morrissey; Sheldon Solomon; Walt Crowley; e meu querido amigo, poeta da região do Rio Ish, Robert Sund (1929–2001).1 Um reconhecimento agradecido é feito à Fundação Earhart, por uma vultosa doação que tornou possível o planejamento e a escrita deste livro, e à paciência de seus administradores. Também gostaria de expressar especial gratidão à Fundação Ernest Becker, e ao seu fundador, Neil Elgee, por uma generosa doação no início do processo, bem como pelo apoio moral. A Universidade de St. Mary foi constante e generosa, concedendo-me recursos para assistir a conferências e seminários cruciais, que contribuíram para o desenvolvimento do material deste livro, incluindo apoio durante o ano sabático no qual ele teve início. 1 n.t. Ish River country (região do Rio Ish) é um apelido dado à região do estreito de Puget, na costa noroeste dos Estados Unidos, devido aos seus numerosos rios com nomes terminados em “ish” (Samish, Duwamish etc.). Robert Sund usou a alcunha como título de uma de suas obras (Ish River, 1983).
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Finalmente, eu gostaria de expressar gratidão a Beverly Jarrett, diretora e editora chefe da Editora da Universidade do Missouri, por sua duradoura e inabalável dedicação à causa; a Jane Lago e Karen Renner, da Editora da Universidade do Missouri, por sua gentileza e assistência especializada; e a Annette Wendafor, por sua ótima revisão.
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Introdução GRANDE PARTE da cultura contemporânea, tanto popular como intelectual, nos instiga a concluir que o universo físico e temporal corresponde ao conjunto total da realidade. Todas as principais religiões e tradições de sabedoria do mundo baseiam-se, é claro, precisamente na convicção oposta: a de que a realidade última transcende o universo finito; que ser humano é estar envolvido nessa transcendência divina; que implicitamente — e é possível sê-lo explicitamente — estamos sempre cônscios dessa realidade transcendente; e que a realização humana implica a voluntária aceitação e desenvolvimento de nossa relação com o eterno e inextingüível fundamento da existência. O Tao chinês e o Brâman dos Upanishads hindus são últimos que existem para além do mundo da dualidade e da compreensão humana direta. O mesmo vale para o Deus-Criador do judaísmo, do cristianismo e do islã. Entre os filósofos, a realidade transcendente é reconhecida e afirmada nos escritos de Confúcio, Platão, Aristóteles, Plotino, Shânkara, Tomás de Aquino, Maimônides, Descartes, Pascal, Locke, Rousseau, Kant, Hegel, Emerson, Kierkegaard e Jaspers. Uma verdade de natureza transcendente é uma premissa elementar para Newton, Goethe, Jefferson, Thoreau, Tolstói, Einstein, Gandhi e Martin Luther King Jr. Contudo, na maior parte dos círculos acadêmicos e intelectuais de hoje, e dentre muitos dos cultos e educados, as noções de transcendência são rejeitadas como ingênuas ou retrógradas, e o reconhecimento da verdade transcendente é considerado uma recusa implícita da razão crítica e do progresso intelectual. Três causas dessa generalizada atitude moderna contra a transcendência são facilmente identificadas. Primeiro, ela é uma reação à implacável recorrência histórica de guerras e abusos nascidos da intolerância religiosa, baseados em concorrentes alegações de posse exclusiva de uma verdade sagrada absoluta sobre o significado transcendente último e o destino humano. Segundo, é uma conseqüência do impacto da ciência moderna sobre a imaginação popular, e da aceitação generalizada do pressuposto de que o método empírico das ciências naturais é a única base confiável e racional para determinar se algo é real ou se uma proposição é verdadeira. E terceiro, ela reflete o desenvolvimento da sensibilidade his-
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tórica na era moderna, que traz consigo a suspeita de que, estando a compreensão humana sempre imersa numa situação historicamente particular, nós só podemos fingir que falamos de uma verdade que transcende essas limitações. Pode ser útil examinar brevemente cada um desses pontos. A rejeição da transcendência nas imagens contemporâneas da realidade é em parte uma reação ao absolutismo religioso, às pretensões de acesso privilegiado a um conjunto de verdades divino e universal, pretensões estas que se prestam à autoexaltação por meio da opressão, desumanização e mesmo matança daqueles que não possuem “a verdadeira fé”. Quem contestaria a razoabilidade dessa acusação? De todas as distorções a que está sujeita a afirmação de uma realidade transcendente, de longe a mais nociva é a presunção de que, pela aceitação de um conjunto particular de doutrinas religiosas, alguém se torna com isso o detentor e guardião da verdade exclusiva e absoluta sobre a situação humana. As incertezas e a fragilidade da vida humana fazem com que seja tentador encontrar consolo em tal presunção, mas dela provém uma vasta história de perseguição religiosa, conquista e destruição, supostamente a serviço de fins sagrados e justos. Esta é uma história que, obviamente, zomba dos ensinamentos centrais de todas as principais religiões sobre os limites da sabedoria humana e a importância primordial do amor e da compaixão. Todavia, tem sido assim na história das religiões. Os fiéis dentre as mais altas religiões têm se confrontado repetidas vezes, se não se envolvendo de fato em perseguições sangrentas, então desprezando os seguidores de outras religiões como pessoas deploravelmente ignorantes, que devem ser guiadas com toda a rapidez possível para a igreja e a religião verdadeiras. Quantos seres humanos não se tornaram vítimas de guerras religiosas, quão freqüente não foi a opressão de outras consciências religiosas, quão numerosos não são os martírios sofridos com a corajosa confissão de fé individual!2 Este é um dos legados da afirmação de que existe um absoluto transcendente e de que podemos conhecê-lo: a suposição de que suas verdades podem estar sob 2 Friedrich Heiler, “The History of Religions as a Preparation for the Co-operation of Religions”, 132–33.
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a posse inequívoca e exclusiva de uma comunidade ou instituição religiosa, e que essa posse autoriza a intolerância e a brutalidade contra as demais. Nossa suscetibilidade à arrogância religiosa e suas conseqüências é essencialmente, se não exclusivamente, moderna. Aprendemo-la de nossos antepassados dos séculos XVII e XVIII, em especial dos pensadores do iluminismo, para quem o combate religioso, travado contra um pano de fundo de prosperidade, poder e privilégio eclesiásticos, era incontestavelmente a manifestação suprema de mentes envoltas em escuridão. Para Voltaire, para Hume, para Kant, a difusão do “iluminismo” significava acima de tudo o libertar-se da superstição que orienta a ação sob influência da autoridade religiosa. Ao sujeitar as superstições e mistificações entranhadas na tradição religiosa à análise e crítica racionais, eles almejavam destruir as próprias raízes da intolerância e do fanatismo religioso, junto com as do absolutismo político baseado em idéias de direito divino. O progresso na sociedade, argumentavam eles, sucederia até o ponto em que a fé cega na autoridade — seja ela religiosa ou de outro tipo — fosse substituída pelo uso da razão crítica e auto-suficiente, uma convicção condensada celebremente no lema kantiano do “espírito do iluminismo”: sapere aude! (tenha coragem de usar a sua própria razão!). E embora a crítica iluminista se dirigisse contra todos os aspectos da vida pessoal e social, pode-se entender por que a religião era o foco de suas mais fervorosas energias. Os campeões do progresso concordavam que a mais maligna das interferências sobre o pensamento livre e autônomo é aquela que alega autoridade divina e que ameaça com gestos de eternidade. O iluminismo, afirma-se com freqüência, trouxe uma nova fé: fé na completa auto-suficiência da razão humana. Entretanto, devemos lembrar que, no início, essa confiança na razão humana não era considerada antagônica a todo e qualquer sentimento ou convicção religiosa. O seu alvo era o que é irracional na religião, tal como a aceitação deslumbrada de ritos e práticas que equivalem a acreditar em magia, a adoção apaixonada de dogmas fantasiosos, e a crença supersticiosa nos milagres ou poderes das relíquias. Pensadores como Voltaire acreditavam que uma depuração crítica dos elementos irracionais da religião produziria uma reverência sensata e racional pelo ser divino, uma confiança que ecoa no título do livro tardio de Kant, A religião nos limites da simples razão (1794). À época de sua publicação, contudo, o livro de Kant já não integrava a dominante corrente progressista do pensamento europeu. O impulso da crítica havia levado os mais influentes
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pensadores do posterior iluminismo “radical” — tais como Holbach, LaMettrie, Condillac e Condorcet — a uma rejeição total da religião, acompanhada de uma vigorosa promoção de pontos de vista como o naturalismo, o ateísmo ou o materialismo. Para esses pensadores — e nisto eles foram muito mais representativos das tendências intelectuais dos próximos dois séculos do que Voltaire — a rejeição da superstição e do mistério religioso impunha a rejeição das próprias noções de divindade e transcendência. E essa posição, com seu completo repúdio do divino ou sobrenatural, exigia que o reino da “natureza” — o universo finito, inteiramente acessível (em princípio) à exploração imaginativa e à compreensão científica — fosse aceito como a única realidade e o âmbito completo das origens, da vida, do pensamento e do destino humanos. Assim, o iluminismo tardio (e o movimento romântico que nasceu dele) completou a crítica da religião com o obscurecimento integral da transcendência e a atribuição de ultimidade ao universo do espaço e tempo. O horizonte da modernidade, pode-se dizer, foi estabelecido por meio da absolutização da imanência (realidade não-transcendente). Essa transformação do universo finito em uma completude de realidade designada como “Natureza” necessariamente trouxe consigo uma nova interpretação da natureza humana para substituir a antropologia cristã que havia dominado o pensamento europeu por mais de um milênio. Num breve resumo, a nova visão antropológica foi moldada em torno das seguintes asserções e pressuposições: (1) a razão humana natural pode explicar com precisão o mundo físico, conforme demonstrou a ciência moderna; não há razão para supor que ela não resolverá algum dia, além dos problemas sociais e políticos que se apresentam à humanidade, todos os “mistérios” básicos do universo; (2) o valor e a dignidade humana não são dependentes nem da benevolência divina nem de um destino transcendente; antes, a existência mundana é a sua própria finalidade valiosa e última, e a busca pela felicidade perfeita neste mundo é um objetivo nobre; (3) a vontade e a razão humana não estão inseridas em um mysterium iniquitatis, ao qual o significado ou redenção transcendente seja a chave; as pessoas nascem com um desejo natural e, sob condições apropriadas, com a capacidade, de realizar o bem humano exclusivamente dentro dos limites da existência mundana; e (4) o constante aprimoramento da condição humana e seu respectivo aumento de felicidade são resultados inevitáveis de uma racionalidade secular cada vez mais efetiva, uma racionalidade liberta da idéia de que a história
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