Uma Nova Idade Média

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UMA NOVA IDADE MÉDIA



NICOLAI BERDIAEV

UMA NOVA IDADE MÉDIA REFLEXÕES SOBRE O DESTINO DA

RÚSSIA E DA EUROPA

Tradução de

TASSO DA SILVEIRA


© Novoe Srednevekov'e: Nikolai Berdiaev, 1924, 2017 © Tradução: Tasso da Silveira, 1936 © Tradução do apêndice: Evandro Ferreira e Silva, 2017

Ficha Catalográfica Berdiaev, Nicolai Alexandrovich, 1874–1948 Uma nova idade média, edição de Jefferson Bombachim e Luiz Cezar de Araújo. – Curitiba, PR: Arcádia, 2017. 200 pp. ISBN: 978-85-92855-01-7 1. Ensaios. 2. Filosofia política. 3. Filosofia russa. I.Título.

Editor: Jefferson Bombachim Luiz Cezar de Araújo Coordenador Editorial: Daniel Fernandes Revisão: Ademir Júnior Sousa Amaral Capa: Matheus Bazzo

Distribuição: CEDET - Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico Rua Ângelo Vicentim, 70, Campinas-SP

Os direitos desta edição pertencem à Editora Arcádia - CNPJ: 17.764.031/0001-11 E-mail: contato@ arcadiaeditora.com.br – Site: www.arcadiaeditora.com.br Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.


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Apoio Institucional:



ÍNDICE

Fim do Renascimento

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A nova Idade Média

61

Reflexões sobre a revolução russa

109

O socialismo, a democracia, e a teocracia

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O espírito burguês

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FIM DO RENASCIMENTO



I

A divisão clássica da história em antiga, medieval e moderna cairá breve em desuso; será excluída de nossos livros de estudos. A história contemporânea chega ao termo, e se inicia uma era desconhecida, à qual será preciso dar um nome. Saímos, na verdade, do quadro da história. É um fato, este, de que tivemos a aguda sensação quando irrompeu a guerra mundial. Para os que, então, viam mais longe, se fez evidente que seria coisa impossível um retorno à existência burguesa e aprazível de antes da catástrofe. Muda o ritmo da história: vai-se tornando catastrófico. Os homens que pressentiam o futuro tinham de há muito percebido que havia catástrofes iminentes e lhes discerniam dos sintomas espirituais sob as aparências de uma vida tranqüila e bem ordenada. É que os acontecimentos se desenrolam na realidade do espírito antes de se manifestarem na realidade exterior da história. Algo se abalou e destruiu na alma do homem moderno antes de se haverem abalado e destruído os seus valores históricos. E o fato de haver hoje entrado todo o universo em dissolução não deve surpreender os que estavam atentos aos movimentos do espírito. Em nossos dias, parece que os velhos, os seculares fundamentos do mundo europeu estremecem. Tudo o que, na Europa, estava como que estabilizado pelo hábito, se desloca. Em parte nenhuma, seja o que for de que se trate, sentimos firme a terra sob os pés — o terreno é vulcânico e todas as irrupções são possíveis, no material como no espiritual. O velho

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mundo, a Europa central, se deixa atrair por um mundo novo: o ExtremoOcidente, ou seja a América; o Extremo-Oriente, ou seja o Japão, para nós misterioso e quase fantasmagórico, e a China. E do fundo da velha Europa se erguem elementos desencadeados que derruem os fundamentos sobre que repousava a sua cultura caduca sempre em continuidade com a antigüidade. Fôra preciso ser bastante míope para negar que a civilização européia estava a pique de atravessar uma crise que ia assumir, historicamente, importância mundial e cujas conseqüências se perderiam em longínquo e indeterminável futuro. Teria sido pueril e superficial imaginar-se que se poderia reter por meios exteriores esse vertiginoso movimento de devastação a que se acha entregue nosso velho mundo pecador, e voltar, à custa de pequenas modificações, à vida passada de antes da guerra e da revolução russa. Penetramos no reino do desconhecido e do ainda não vivido, e nele penetramos sem alegria, sem radiosa esperança. O futuro é sombrio. Não podemos crer mais nas teorias do progresso que seduziram o décimo nono século e em virtude das quais o futuro próximo deveria ser sempre melhor, mais belo, mais amável do que o passado que se vai. Inclinamo-nos, antes, a julgar que o melhor, o mais belo e o mais amável se encontra não no porvir, porém na eternidade, e que existiu igualmente no passado enquanto o passado comungava com a eternidade e suscitava o eterno. Ainda está por explicar-se esta crise da civilização européia, iniciada de há muito por diferentes faces e que hoje atinge o apogeu de sua manifestação. A história moderna que termina foi concebida na época do Renascimento. Nós assistimos ao fim do Renascimento. As cumiadas da cultura, tudo o que era humana criação, na esfera da arte como na do pensamento, faziam de há muito adivinhar um esgotamento do Renascentismo, qualquer coisa assim como o fim de toda uma época mundial. Esta procura desenfreada de novos filões criadores era sem dúvida uma prova do fim do Renascimento. Mas o que sucede no pináculo

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da vida repercute em baixo. No próprio fundo da vida social também se preparava o fim do Renascimento. Porque o Renascimento significava um tipo completo de “sensação do universo” e de cultura, e não apenas um conjunto de criações eminentes. A vida do homem, a vida dos povos é um organismo hierárquico completo, no qual as funções superiores e inferiores são inseparavelmente ligadas. Há uma correspondência entre o que se passa nas alturas da vida espiritual e ao fundo da vida material da sociedade. Por isto mesmo, o fim do Renascimento é o fim de toda uma era histórica — de toda a história contemporânea —, e não apenas a extinção de tais ou tais formas criadoras. O fim do Renascimento é precisamente o fim desse humanismo que lhe servia de base espiritual. Ora, o humanismo não significava simplesmente um renascimento da antigüidade, uma nova moral e um movimento das ciências e das artes; era ainda um novo sentimento da vida e uma relação nova com o universo, aparecidos, estes últimos, à aurora dos tempos modernos para reger-lhe a história. Acontece que este novo sentimento da vida e esta nova relação com o universo chegaram ao seu termo, tendo-se-lhes esgotado todas as possibilidades. Caminhou-se até ao fim das vias do humanismo e das vias do Renascimento; não se pode ir mais além por essas vias. No fundo, toda a história moderna foi uma dialética imanente de auto-revelação, depois de auto-negação dos mesmos princípios que haviam motivado o seu aparecimento. Há muito que o sentimento humanista da vida perdeu o seu frescor; caiu em estado de decrepitude e não pode mais ser experimentado de maneira tão patética quanto nos dias da moça efervescência do humanismo. No interior do humanismo estalaram contradições destrutivas, minou-lhe a energia um mórbido cepticismo. A fé no homem e nas forças autônomas que o sustinham está abalada até o fundo. Regera ela a história moderna, mas a história moderna se encarregou de a

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desmantelar. A livre vagabundagem do homem que não conhece mais nenhuma autoridade superior não deu firmeza à sua fé em si mesmo; muito pelo contrário: enfraqueceu irremediavelmente essa fé e comprometeu a consciência que ele tinha de sua identidade. O humanismo não fortaleceu, debilitou o homem — tal é o término paradoxal da história moderna. Através de sua auto-afirmação, o homem perdeu-se ao invés de se encontrar. Se o homem europeu entrou na história moderna cheio de confiança em si mesmo e em suas capacidades criadoras; se tudo, à aurora desta época, lhe pareceu depender de sua arte, para a qual não via nem fronteiras nem limites, presentemente ele dela sai para penetrar numa época inexplorada, num grande abatimento, a fé em pedaços — a fé que ele tinha em suas próprias forças e no poder de sua arte —, ameaçado do perigo de perder para sempre o núcleo de sua personalidade. Ah, não é nada brilhante o homem saído da história moderna, e que trágica dissimilhança entre o começo e o fim desta história! Partiram-se muitas esperanças. A própria imagem do homem acha-se inteiramente obscurecida. E espíritos dotados de alguma intuição remontariam de boa vontade à Idade Média para pedir-lhe outra vez as verdadeiras origens da vida humana — para, numa palavra, pedir-lhe outra vez o homem. Nosso tempo é um tempo de decadência espiritual, não de reabilitação. Não seriamos nós que poderíamos repetir as palavras que, à aurora da história moderna, pronunciava Ulrich von Hutten: “Os espíritos despertaram. É bom viver!” A história moderna é uma empreitada que não resultou bem, que não glorificou o homem, como o fizera esperar. As promessas do humanismo não foram cumpridas. O homem experimenta uma fadiga imensa e está pronto a apoiar-se sobre qualquer gênero que seja de coletivismo, em que definitivamente desaparecesse a individualidade humana. O homem não pode suportar seu abandono, sua solidão.

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II

Com o Renascimento, as forças humanas se desbridaram e seu jogo impetuoso criou uma nova cultura, fundou uma nova história. Quer dizer que toda a cultura desta época mundial que, nas escolas, é chamada história dos tempos modernos, foi a experiência da liberdade humana. O homem novo quis ser autor e ordenador da vida, sem o socorro do alto, indiferente às sanções divinas. O homem se arrancou ao centro religioso ao qual permanecera submissa toda a sua vida durante a Meia Idade; quis andar por uma estrada livre e independente. Ao se meter por essa via, ao europeu dos tempos modernos pareceu que pela primeira vez se havia descoberto o homem e o mundo humano, comprimidos pela Idade Média. E muitos ainda, em nossos dias, cegos pela fé humanista, imaginam que é ao humanismo, ao começo dos tempos modernos, que se deve o descobrimento do homem. Nossa época, todavia, porque levou até a última acuidade todas as antinomias da vida e entrou no conhecimento de suas próprias origens, começa a compreender que na segurança do humanismo havia um fatal desvio e um abuso de si mesmo, e que, à raiz da fé humanista, se escondia uma auto-negação virtual do homem e de sua queda. Quando o homem, como acabamos de dizer, rompeu com o centro espiritual da vida, arrancou-se à profundidade e passou à superfície. Seu afastamento do centro

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espiritual tornou-o cada vez mais superficial. Tendo perdido o centro espiritual do ser, perdeu, ao mesmo tempo, seu próprio centro espiritual. Tal descentração da essência humana era a mina da sua constituição orgânica. O homem deixou de ser um organismo espiritual. E, então, à periferia mesma da vida, surgiram centros falaciosos. Tendo-se libertado de sua relação orgânica com o centro verdadeiro, os órgãos subordinados da vida humana se proclamaram a si mesmos centros vitais. Em conseqüência disto, o homem se tornou de cada vez mais superficial. Em nosso século, atingido o pináculo da era humanista, o homem europeu se ergue num estado de vacuidade terrível. Não sabe mais onde é o centro de sua vida. Sob seus pés não sente profundidade. Vota-se a uma existência mais que vulgar, vive sobre duas dimensões como se habitasse exatamente a superfície da terra — ignorando o que está acima dele e o que está abaixo. Há, pois, formidável distância e formidável contradição entre o começo da era humanista e o seu fim. Bem ao princípio, a efervescência da liberdade nas forças do novo homem, na Europa, se assinala por admirável, deslumbrante floração de obras de gênio. Quando se vira no homem, com efeito, um ímpeto criador tão vivo como o desses primeiros tempos do Renascimento? Afirmava-se, então, a livre criação do homem, a liberdade de sua arte. Mas é que ele ainda estava próximo das fontes espirituais de sua vida, ainda se não havia afastado tanto em seu movimento para a superfície. O homem do Renascimento é um homem desdobrado, pertencente a dois mundos. É o que faz a complexidade e a riqueza do seu poder criador. À hora atual não mais se pode tomar o início do Renascimento por simples reprodução da antigüidade e simples retorno ao paganismo. O que é verdade é que a esse tempo muita coisa subsistia de elementos cristãos e de princípios medievais. Um homem característico do décimo sexto século como Benvenuto Cellini, vindo ao poente do Renascimento, não era um pagão apenas, mas

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também um cristão. Não, o Renascimento não era e não podia ser inteiramente pagão. A gente do Renascimento nutria-se da atmosfera da antigüidade, procurava nela a fonte da livre criação do homem, tomava-lhe de empréstimo a forma perfeita de suas imagens, mas nem por isso tinha o espírito antigo. Tratava-se de homens na alma dos quais bramia a tempestade nascida da colisão dos princípios pagãos e cristãos, antigos e medievais. Em sua alma não podia haver essa clássica nitidez e essa unidade perdida para os séculos, e sua arte não podia engendrar formas absolutamente acabadas ou determinadas, classicamente perfeitas. A alma cristã está envenenada pelo sentimento do pecado, sedenta de redenção, inclina-se para um outro mundo. Foi isto que matou o velho mundo pagão. Preparava-o para o cristianismo uma fatalidade interna. Na história, um renascimento é possível, se este vocábulo significa uma retrospecção dos modos antigos de criação, mas nenhum renascimento pode ser uma volta para traz, isto é, a restauração de uma época já vivida. Os princípios criadores das épocas passadas para os quais se voltam os renascimentos agem em novo meio complexíssimo, entram em relação igualmente complexíssima com princípios novos, e criam tipos de cultura inteiramente diferentes dos antigos tipos. Assim, o movimento romântico do começo do décimo nono século também não será um retorno à Meia Idade; com efeito, os princípios medievais para os quais se orientava o romantismo tinham sido quebrados na alma do homem enquanto ele percorria uma história nova; os resultados que poderão produzir agora serão inteiramente estranhos à Idade Média. Pode Friedrich Schlegel proclamar a sua filiação medieval; porventura assemelha-se ele a um homem da Idade Média? Os homens do Renascimento também não se pareceram com os homens da antigüidade, nem com os gregos, nem com os romanos. Tinham sido batizados, e a água do batismo não podia mais ser excluída por nenhum retorno à antigüidade, por coisa alguma do que lhes trazia um paganismo superficial. No cristianismo da

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Europa, jamais o paganismo poderia ser um paganismo profundo. Poderia, acaso, complicar a alma do europeu, porém nunca estabelecer nela a sua unidade. A alma dos homens do Renascimento era tão complexa, efetivamente, que deles jamais se fariam bons pagãos. É fácil estudar esta dualidade, esta complexidade na arte e na vida de uma figura central do Quattrocento como Botticelli. O Renascimento existia já nas profundezas da Meia Idade e seus móveis primeiros foram puramente cristãos. A alma medieval, a alma cristã despertou à vontade de criação. Este acordar toma corpo nos séculos doze e treze. Assinala-se por um florescimento perfumado de santidade, que é bem a mais alta elevação a que possa atingir o espírito criador do homem. Faz-se acompanhar de um surto da mística e da filosofia escolástica. O Renascimento medieval inspira a arte gótica e a pintura dos Primitivos. O Renascimento dos Primitivos italianos é um renascimento cristão. São Domingos e São Francisco, Joaquim de Fiore e Santo Tomás de Aquino, Dante e Giotto, eis o verdadeiro renascimento do espírito humano, da criação humana, e ao qual não faltam ligações com a antigüidade. À época do Renascimento medieval e cristão havia já, no modo de criar, uma relação com a natureza, com o pensamento do homem, com a arte, com a totalidade da vida. O que se entende pelo primeiro Renascimento italiano, o Trecento, é a maior época da história européia, seu ponto culminante. A ascensão das forças criadoras do homem era, então, como que a réplica de uma revelação humana à revelação divina. Tal era o humanismo cristão concebido segundo o espírito de São Francisco e de Dante. Mas não serão tão cedo realizadas as imensas esperanças e profecias que se fundam sobre esse primeiro Renascimento cristão. Muitas coisas, nele, adiantavam-se aos tempos. Era preciso ainda que o homem passasse por um estado de desdobramento ou de separação. Devia o homem fazer, não apenas a experiência de suas forças, mas ainda a de sua impotência.

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