JUNHO/JULHO 2014 • NÚMERO 15 • FAMECOS/PUCRS • WWW.PUCRS.BR/FAMECOS/EDITORIAL J
Uma copa que dura para sempre Três pessoas com vidas transformadas pelas obras realizadas em Porto Alegre contam suas histórias no primeiro dia da Copa do Mundo no Brasil
Mulheres abrigadas
Caroline Ferraz (6º sem.), Luiza Antonioni (4º sem.) e Yanlin Costa (2º sem.)
Protegidas e sob o resguardo da Lei Maria da Penha, vítimas aguardam a hora de poder voltar para casa. PÁGINAS 4 E 5
Contra a tecnologia Para preservar identidade e cultura, surdos reagem a implantes modernos que prometem melhorar a audição. CADERNO ESPECIAL
PÁGINAS 6 E 7
papo de redação
Jornal do Laboratório de Jornalismo da Faculdade de Comunicação Social (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Avenida Ipiranga, 6681 Porto Alegre/RS PUCRS Reitor Ir. Joaquim Clotet
Ao lado de quem perdeu
Vice-reitor Ir. Evilázio Teixeira Pró-reitora Acadêmica Mágda Rodrigues Cunha FAMECOS Diretor João Guilherme Barone Reis e Silva
Alunos
Coordenador do curso de Jornalismo Fábian Chelkanoff Thier Coordenadora do Espaço Experiência Denise Avancini Coordenador do Editorial J Fabio Canatta Coordenadora de produção Ivone Cassol Projeto gráfico Luiz Adolfo Lino de Souza e Núcleo de Design Editorial/ Espaço Experiência Professores responsáveis Alexandre Elmi Fabio Canatta Flávia Quadros Ivone Cassol Marcelo Träsel Marco Villalobos Paula Puhl Rogério Fraga Tércio Saccol Alunos editores Bibiana Dihl, Caroline Ferraz, Guilherme Almeida, Thamíris Mondin, Thiago Valença e Victor Rypl
Amanda Gonçalves, Amanda Oshida, Ana Paula Conrad, Antonio Carlos De Marchi, Bruna Gassen, Bruna Goulart, Bruna Zanatta, Bruno Ibaldo, Carine Santos, Caroline França Medeiros, Daniely Medeiros, Douglas Agostinho, Douglas Cauduro, Edna Alves, Elisa Célia, Frederico Martins, Gabriel Correa, Gabriel Palma, Gabriela Brasil, Gabriela Giacomini, Gabriel Gonçalves, Jéssica Moraes, Jéssica Tarantino, João Alexandre Rodrigues, João Pedro Arroque Lopes, Júlia Alves, Júlia Bernardi, Júlia Braga, Julia Tarrago, Julian Schumacher, Juliana Bonotto, Karyne de Oliveira, Kelly Freitas, Kimberly Winheski, Luiza Menezes, Laura Marcon, Manoela Tomasi, Mariana Fritsch, Mariana Lubke, Mariana Melleu, Marianne Santiago, Maura Meregali, Natalia Rodrigues, Nathalia Adami, Pamela Floriano, Pedro Francisco Pacheco, Rafaela Johann, Raquel Baracho, Renata Araújo, Renata Fernandes, Ricardo Miorelli, Rômulo Fernandes, Sofia Schuck, Thiago Rocha, Yanlin Costa e Yasmin Luz
POR Thamíris Mondin (5º sem.) O mês de junho para o Editorial J foi de experimentações. Nesta edição, o leitor pode conferir o resultado de algumas delas. Na reportagem sobre a resistência da comunidade surda em relação aos implantes auditivos, o repórter Antonio De Marchi viveu a necessidade de expandir seus conceitos sobre comunicação, sem que ele dominasse a linguagem de sinais. Seu objetivo era tentar entender de que forma e por quais motivos o grupo desenvolveu um preconceito contra tecnologias inovadoras que prometem melhorar a audição. No caderno especial produzido para a Copa do Mundo, um grupo de três repórteres e três fotógrafas se propôs a cobrir a abertura do maior evento esportivo do planeta, no dia 12 , a partir de uma perspectiva diferente. Acompanhamos a primeira partida do Mundial, entre Brasil e Croácia, ao lado de personagens
CONTEÚDOS DO EDITORIAL J
Foto Yanlin Costa (2º sem.)
FamecosCast É uma webradio com programação diária de reportagens, debates, entrevistas, colunas e noticiários ustream.tv/channel/famecos-cast.
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que tiveram suas vidas mudadas reportagem e na rotina dos brapelo campeonato mundial de sileiros. seleções. Entrar no espaço destas pesO dono da lanchonete mais soas e nas suas histórias foi uma famosa do entorno do Beimaneira diferente de construir as ra-Rio, que teve de deixar o matérias, em que a percepção dos ponto, os moradorepórteres manifesres da Vila Tronco tou-se nos textos redesalojados pelas digidos logo depois Indignaobras e um ex-moda experiência e em dos, tristes rador de mais de cima da hora do feuma década da chamento. O projeto e também área ao lado do era viver a dinâmica felizes, estádio, que tamdo deadline, mesbém foi despejado. mo que em torno de uma Estas foram nosuma pauta especial. síntese da sas companhias na Nos limites de um largada da grande Laboratório de JorCopa. festa que domina nalismo, buscou-se o país e boa parte reproduzir a rotina de do mundo entre os uma redação envolvida em meses de junho e julho. uma cobertura diferenciada. Resignados, indignados, Esta e outras reportagens tristes e também felizes, estes foram produzidas e trabalhadas personagens formam uma síngraficamente em um tempo mais tese da esquizofrenia emocional acelerado do que o previsto, com brasileira sobre a Copa. A cono cuidado de não comprometer fusão entre euforia e revolta, o resultado e alinhavadas pela um pouco mais de uma ou de intensidade e a expectativa do outra, e até mesmo a sensação evento que o Brasil esperava há de apatia, estão presentes nesta sete anos.
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Editorial J na TV Telejornal quinzenal, com pautas temáticas e reportagens sobre assuntos diversos. As edições estão disponíveis em youtube.com/ editorialj.
IMPRESSÃO Gráfica Epecê - PUCRS
Laboratório convergente da Famecos www.pucrs.br/famecos/editorialj
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Banheiros da Capital A equipe do Editorial J avaliou as condições de higiene, preservação e acessibilidade de dez banheiros públicos da Capital, por onde vão transitar os turistas da Copa do Mundo. A visita revelou sanitários limpos, embora sem itens básicos de higiene e com problemas de acessibilidade para cadeirantes. Confira a reportagem: http://www. eusoufamecos.net/editorialj/ banheiros-porto-alegre/
mídia
Jornalista, robô E MP RE S AS DE COMUNICAÇÃO RE CORRE M A A LGORITMOS PA RA AU TO M AT I Z A R A P RODUÇÃO D E TE X TOS E ACE LE RA R CICLO DE NOTÍCIAS P O R Gabriel Gonçalves (3º sem.)
trimestres, a empresa tem visto aumentar sua receita. No quarto trimestre, a receita subiu 7%, para 2.050 milhões de dólares m um portal de notícias, o repórter americanos, enquanto no terceiro trimesrelata um terremoto próximo à tre elevou 38%”, escreve o software. cidade de Los Angeles (EUA), pouEm um cenário em que programas de cos minutos após os tremores de computador se encarregam de escrever terra. “Um terremoto de 4.2 graus de maghard news, Araújo entende que a atuação nitude foi registrado nesta segunda-feira, dos seres humanos ficará concentrada em a quatro milhas de West Wood, de acordo procedimentos que exijam atividades comcom o Serviço Geológico dos EUA. O tremor plexas, delegando aos não humanos funções ocorreu às 7h23min, a uma profundidade que não sejam tão interessantes. Araújo vê o de 4,3 milhas”, informa o texto. No mesjornalista do futuro como um intérprete das mo site, um eficiente jornalista esportivo informações organizadas pela automatizaescreve sobre uma partida de baseball, que ção. “Cada vez mais o papel do humano não terminou há poucos segundos. “Os esforços é só levar e trazer informação, mas também de Willie Argo levaram o Illinois a uma vitósuas impressões. O jornalista tem de se coria de 11-5 sobre os Lions Nittany, no sábado, locar como um ser humano que entende e em Nêspera Field”. Os dois textos foram reconfigura os dados, não apenas um coletor produzidos por algoritmos, programas de de dados, que vai fazer algo no local e trazer computador capazes de escreinformações”, argumenta. ver com a precisão de um ser No Brasil, o mercado de humano. O que parece enredo comunicação também dá de ficção científica já pode ser seus primeiros passos na O lead, considerado realidade. Os adequação aos novos meios em certo algoritmos escritores fazem de obter e organizar informaparte da realidade de imporção. Professor do Programa sentido, é tantes veículos de comunicade Mestrado e do Curso de algoritmo ção, escrevendo notícias de Jornalismo da Faculdade economia para a Forbes ou Cásper Líber, Walter Lima, também.” relatando terremotos para o j ornalis ta bras ile iro com Willian Araújo Los Angeles Times. formação em Consultoria em Algoritmos são sistemas Internet, afirma que os veícude comandos pré-programalos nacionais devem se arriscar dos para resolver um promais nos investimentos em pesblema específico, determinado por um quisa de novas plataformas de tecnologia, programador. Em 2010, pesquisadores da caso contrário, a implementação de novas Medill University of Journalism, nos Estecnologias fica “parecendo uma ação de tados Unidos, ampliaram a funcionalidamarketing para se mostrarem modernas”, de dos softwares, desenvolvendo o Stats pondera. Monkey, um algoritmo com comandos Nas faculdades de comunicação, que capazes de transformar as estatísticas de concentram a formação no aspecto humaum jogo de baseball em texto jornalístico. nista do jornalismo, passam por um inédito Desde lá, os algoritmos-escritores ganhaperíodo de adaptação aos novos meios, da ram a confiança em redações. Para o doumesma forma que o jornalismo. No Brasil, torando em Comunicação e Informações os programas de ensino das faculdades pela Universidade Federal do Rio Grande ainda engatinham na implementação de do Sul (UFRGS) Willian Araújo, a fórmula disciplinadas voltadas para a computação. do lead jornalístico já é uma espécie de Willian enxerga um necessário momento de automatização da escrita, em busca da transição nos cursos. “Se nós continuarmos objetividade. “O lead, em certo sentido, é formando pessoas para o mercado, vaum algoritmo também. A própria fórmula mos formar desempregados, pois existem do jornalismo, em busca da objetividade, poucas vagas. Atualmente, o jornalismo acaba se automatizando”, afirma. é claramente próximo ao curso de Letras. No portal da Forbes, uma seção à Mas agora, vemos uma outra aproximação, parte é dedicada às notícias publicadas com tecnologia, que é tão fundamental por um repórter-robô. Na página, um quanto essa primeira”, observa. algoritmo relata a variação monetária de uma empresa, com a precisão de um ser Os textos produzidos por algoritmos foram humano. “Em cada um dos últimos três originalmente publicados em inglês.
E
Repórteres autômatos
“
Narrative Science, a agência-robô de notícias Principal desenvolvedora de inteligências artificiais voltadas para o jornalismo, a empresa é responsável pela maior parte da parcela de jornalistas-robôs no mercado. Capazes de transformar dados e estatísticas em textos jornalísticos, os robôs da Narrativre Science atuam em veículos como a Forbes, onde atualizam as últimas variações monetárias do mercado financeiro, e até cobrem partidas de baseball.
The Homicide Report, o robô policial
Stats Monkey, o robô esportivo
Por meio de um mapa interativo da cidade de Los Angeles (EUA), o algoritmo é responsável por situar os locais dos últimos homicídios ocorridos nos mais diversos bairros. No local onde os crimes são cometidos, o robô anexa um pequeno texto, com a descrição da vítima e do homicídio, o que pode funcionar como prevenção.
O Stats Monkey produz textos sobre partidas de baseball em menos de dois segundos, o que garante a agilidade na publicação logo depois das disputas. O robô é capaz de apontar o melhor jogador da partida em seus textos, além de escrever diferentes matérias para um mesmo jogo. Uma das vantagens é, inclusive, publicar sob os pontos de vista de cada um dos times. O programa se baseia em estatísticas coletada no minuto-a-minuto dos jogos, além de contar com moldes textuais definidos por jornalistas esportivos e uma biblioteca de termos comumente utilizados em matérias sobre baseball, o que garante o estilo. Os serviços do algoritmo podem ser encontrados em um aplicativo desenvolvido para smartphones.
Quakebot, o robô do tempo O software produz textos jornalísticos sobre terremotos ocorridos na cidade de Los Angeles, na Califórnia, região ameaçada por abalos sísmicos, a partir de dados enviados pela Agência de Pesquisa Geológica dos EUA. O robô seleciona as informações consideradas relevantes e as encaixa em moldes textuais pré-estabelecidos.
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violência
Uma lei com várias faces P ROT E G I DAS E M UM ABRIGO NA CAPITAL,TRÊ S MULHERES A LVO DE V I O L ÊN C I A FA M I L I A R CONTAM H IS TÓRIAS S OBRE DE SEJO DE VOLTA R PA RA CAS A Frederico Martins (5º sem.)
P O R Júlia Bernardi (3º sem.)
A
cada 15 segundos, uma mulher é agredida no Brasil. 70% destes crimes acontecem no âmbito familiar e são de autoria dos próprios companheiros. No Rio Grande do Sul, conforme a Secretaria de Política para Mulheres, a Central de Atendimento à Mulher registrou 108 mil casos de violência contra a mulher em 2013. A Lei Maria da Penha foi criada em 7 de agosto de 2006, para defender as mulheres quando agredidas no âmbito doméstico ou familiar. Surgiu depois que a biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes lutou para ter seus direitos atentidos, após ser agredida pelo companheiro. Sua história deu origem à lei em defesa das mulheres. Segundo a psicóloga Luciana Krebs, coordenadora da Casa de Apoio Viva Maria, a agressão pode não vir somente do homem. “Chegam casos para nós de mulheres agredidas por filhas, tias e mulheres próximas, e essa também é uma forma de violência, temos que combater e dar todo auxílio aqui”, comentou. Desde 2011, no Rio Grande do Sul, aproximadamente 19 mil mulheres denunciaram abusos cometidos por seus companheiros. As delegacias especializadas foram o meio encontrado para que elas contassem suas histórias com uma confiança maior no tratamento e no auxílio. Além disso, o Centro de Referência da Mulher de Porto Alegre, que tem o papel de articular os serviços que integram a rede de atendimento à mulher, deveria ser uma forma de passagem da vítima para que chegue às casas de abrigo, quando necessário. O centro, criado em 2011, ainda busca apoio para se consolidar. Após o pedido de medida protetiva, as famílias são monitoradas por patrulhas Maria da Penha, soldadas da Brigada Militar que visitam as casas. Na Capital, são quatro patrulhas que atuam nos Territórios de Paz dos bairros Rubem Berta, Lomba do Pinheiro, Restinga e Santa Tereza. A sol-
Com endereço omitido para evitar os agressores, Casa Viva Maria oferece segurança às vítimas dada Bruna Aguiar, que atua no bairro Rubem Berta, conta que a confiança entre a mulher e policial é importante para que os casos sejam analisados corretamente. “O que elas mais querem é manter a família e a gente tenta ajudar, dando apoio e confiança para que elas contem sua história”, relata. Em contrapartida, quando essa proteção não é obtida com eficácia ou as mulheres não se sentem seguras de estar em suas próprias casas por terem sofrido tentativa de morte, os abrigos são uma alternativa para que elas possam recomeçar suas histórias. No Rio Grande do Sul, há sete casas-abrigo ligadas a assistentes sociais. Em Porto Alegre, só a Viva Maria atua nesse formato. A casa Viva Maria foi a primeira do Brasil. Completa, em 2014,
22 anos de existência. A casa é na redondeza. Segurança 24 horas exemplo para que outras intensié essencial no local. fiquem seus trabalhos na defesa A rede de atendimento funciona da mulher. “A maior dificuldade a partir das Delegacias da Mulher, é fazer com que os que fazem a triagem e homens não descuencaminham ao abribram onde é a casa, go as vítimas que paspara que não vesaram risco de vida, O que nham procurar suas pois as vagas são eselas mais esposas ou ex-mucassas. Hoje, existem lheres. Em Caxias do vagas para 11 famílias querem é Sul, a casa já trocou (mães e filhos), totalimanter a três vezes de lugar. A zando no máximo 40 nossa, Graças a Deus pessoas na residência. família.” nunca foi descober“Agora estamos com Bruna ta”, conta Luciana seis famílias. AguarAguiar sobre o motivo do damos mais uma vinda cuidado da preservada Palestina e outra de ção do endereço da São Paulo. Não é comum, casa. Segundo ela, se mas como estamos com lugar, o companheiro ou agressor descovamos receber casos mais graves”, brir o endereço da casa pode proenfatiza Luciana. curar à mulher e causar problemas Um trabalho especial é re-
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alizado com as crianças, pois a realidade pode ser alterada no início da história de vida. “Se elas viram só isso, como podem agir diferente? Esse ciclo de violência é reproduzido nas crianças”, pondera a psicóloga. Como ciclo ela se refere às mulheres que retornam as suas casas, reatam com os companheiros agressores e retornam ao abrigo, posteriormente. A permanência é de três meses na casa. Depois, as famílias tem que conseguir apoio e com seu trabalho conquistar as próprias vitórias. Em depoimento, três mulheres contaram ao Editorial J um pouco da sua luta, vida e saudade. O uso de nomes fictícios foi necessário para preservar a identidade das mulheres que trocaram a casa pelo abrigo, devido à violência doméstica.
Laura, 23 anos Laura recebeu a medida protetiva na hora da entrevista e pretende retornar para casa nos próximos dias, depois que seu companheiro deixar a residência. Mãe de dois filhos pequenos, está grávida de mais um:
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Como vou ficar em casa com meus filhos se ele me ameaçou com uma pedra? Tive que vir para cá. Fui na Delegacia da Mulher, e eles me mandaram para cá. Faz sete dias que estou aqui. Estou gostando, mas não é como a casa da gente. Poderia voltar para casa, mas com esse papel que eles me entregaram agora. Com a medida protetiva, poderia ir para casa e ele poderia sair. Não tinha esse papel ainda (medida protetiva). Agora espero, como ele não pode ficar perto de mim, que dê certo. Não quero mais. Ele me incomodava faz tempo,
só que nunca havia me ameaçado. Mas, agora, ele desceu um soco em mim e na minha outra filha. É complicado para as crianças também. Esse aqui é dele (mostra o filho), mas aquela é enteada e ele não gosta dela. Ele quer me agredir e agredir ela também. No primeiro dia, fui dormir na madrinha da minha filha e de manhã cedo vim pra cá. Precisamos estar aqui por causa da proteção, porque casa a gente tem. Mas, se sair daqui, não posso voltar, com ele lá. Poderia morar com meu irmão, mas é mais horrível do que aqui. Neste lugar, há cuidado com as crianças, todo um trabalho, tem horário, não pode ficar muito tempo na rua, tem a divisão da limpeza. Gosto de cuidar das minhas coisas, de limpar, de lavar roupa, louça. Queria que ele saísse de casa e se tratasse, para eu poder voltar para casa, porque ele não deve ser certo! Pessoa que quer agredir a mulher não pode ser certa. O juiz concedeu a medida de distância e, agora, posso sair com a nenê na pracinha. O meu ex-marido ainda pode me procurar, tenho medo. Não quero ficar no abrigo sem precisar.”
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Vim, pela primeira vez, no dia 29 de julho de 2013, por causa da agressão da minha filha. Tivemos uma briga e ela me agrediu, me rolou no chão e levei seis pontos no rosto. Fiquei uns dias no Hospital de Pronto-Socorro (HPS), depois vim para cá. A Luciana, que comanda aqui, foi me buscar e fiquei três meses. Aqui me sinto feliz, como se estivesse em casa. São muito bons pra mim, desde as psicólogas e todos que nos auxiliam. A gente tem tudo. Estou feliz, mas a gente sempre quer voltar para casa. Estou com 75 anos e tenho muita vontade de voltar para minha casa, porque tenho uma netinha e sinto saudades de casa, dos meus bichos, de tudo. Aqui estou muito bem. Agora, é segunda vez que estou aqui. Quando voltei para casa, ela (a filha) não chegou a me agredir porque fugi, de noite. Vim, me deram novamente amparo na Viva Maria. Pela idade em que estou, tenho que ter meu descanso na minha casa,
que custei tanto para arrumar, construir, ter meu lar. A minha filha mora lá e não tiro porque acho ela uma infeliz, pois não tem para onde ir. A menina dela, 11 anos, criei desde pequena. Não faço questão de que ela saia de casa também, só queria que, se eu voltasse, que não me maltratassem. Criei ela desde pequena, mas ela judia de mim. Está fazendo tratamento e me obrigou a fazer também, mas estou lúcida. Faço tudo o que posso para voltar. Tenho que cumprir as regras aqui também. Tenho idade, mas sou muito obediente. E amo todos que estão aqui. No fim do mês de junho serão três meses que estou aqui, nesta segunda vez. Mas quero voltar para minha casa, ter um quartinho. O que eu vou fazer? Eu amo demais a minha casa. Quase não saio daqui. Quando saio, vou de camionete com eles, assim não tem perigo.”
Paula, 42 anos Agredida pelo companheiro, foi esfaqueada no rosto e nas mãos e aguarda, com ansiedade, o dia de voltar para casa:
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Era casada há 15 anos. Daí pedi para me separar, e ele acabou não concordando. Não aceitou a separação e tentou me matar. Fui direto para o pronto-socorro, porque os cortes foram muito profundos. Só depois que consegui prestar queixa na Delegacia da Mulher. Agora, ele está preso. Com isso, pretendo voltar para casa, porque ficou tudo lá. A casa ficou abandonada, então quero retornar. Não dá para ficar mais tempo
Entre os dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Sul a respeito da violência praticada contra as mulheres no Estado em 2013, um é relevador da necessidade de afastá-las dos agressores – pouco mais da metade dos homens que atacam as companheiras são reincidentes:
37%
Tânia, 75 anos À espera da medida protetiva negada porque a juíza entendeu que violência só é de gênero (homem para a mulher) e não doméstica (qualquer pessoa que faça uma agressão), Tânia explicou sua situação:
Mapa da agressão contra a mulher
aqui. Vim com meus filhos. Tenho três crianças pequenas. São seis filhos, na verdade, mas os três mais velhos ficaram em casa. Apenas três ficaram comigo, porque são menores e precisam da mãe por perto. É difícil me acostumar a estar aqui. Não é a mesma coisa que a nossa casa, mas há momentos bons e outros em que a gente fica ansiosa. Certas coisas acabam nos irritando, como morar com tanta gente, porque não estamos acostumadas a morar com tantas pessoas. A gente vai levando, até vou sentir falta depois, da companhia, do cuidado com as crianças, do apoio das meninas. Mas quero voltar. Cheguei essa semana aqui e não pretendo ficar muito tempo, se Deus quiser.”
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das agressões contra mulheres acontecem à noite.
44,3% utilizam arma branca.
54,5% cometem violência usando separação como justificativa.
83,7% das agredidas são brancas.
69,6% são atuais ou antigos companheiros.
23,9% das vítimas têm entre 18 e 24 anos.
53,3% dos agressores já têm antecedentes com a vítima.
sociedade Fotos Guilherme Almeida (5º sem.)
Crianças aprendem a se comunicar com Libras desde os primeiros dias no Colégio Concórdia
O som do preconceito
R EAÇÃO DA C O MU N I DA DE S URDA A AVANÇOS TE CNOL ÓGICOS, COMO O IMPLA NTE COC L EA R, B U S C A VA LORIZ AR A IDE NTIDADE P OR ME IO DA LINGUAGEM DOS SINA IS POR Antonio Carlos De Marchi (4º sem.)
O
diagnóstico de surdez modifica e rearranja a dinâmica familiar. Choque, negação, raiva ou culpa, seguidos por esperança de cura, costumam ser os primeiros sentimentos dos pais de um deficiente auditivo. Em uma sociedade que exige sentidos aguçados, o indivíduo surdo fica suscetível à intransigência de quem não sabe lidar com suas necessidades. A desinformação agrava a situação, mesmo que a ciência já permita a reversão de um quadro de surdez. E neste ponto surge um novo conflito: a resistência da própria comunidade surda às técnicas da medicina. Na história dos surdos são evidentes as marcas que os identificam como ser incompleto, incapaz ou deficiente. A partir desse ponto, todo tipo de violência física e simbólica foi exercida, como extermínio, reclusão domiciliar, proibição do uso da língua de sinais, segregação em escolas especiais. Embora tenha sofrido tanto desrespeito, não se espera que esse mesmo grupo exerça juízos preconcebidos – mas é o que acontece. Em nome de uma justificativa conhecida como “cultura surda”,
essa parcela da sociedade escolhe contraditoriamente a segregação própria num mundo que precisa como nunca de integração. A história de resistência começa na década de 1980, quando experimentos médicos surgiram prometendo a cura para a surdez. Pesquisadores criam um sistema tecnológico implantado na cabeça - colocado cirurgicamente debaixo da pele atrás da orelha, capaz de fazer o surdo ouvir. Chamado de Implante Coclear (IC), ou conhecido popularmente como “ouvido biônico”, é um equipamento eletrônico computadorizado que substitui totalmente a função auditiva do ouvido de pessoas que têm surdez total ou quase total. Segundo Hiltrud Elert, diretora do Colégio Especial Concórdia, da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), que atende deficientes auditivos, há um posicionamento por parte dos surdos adultos sinalizados – que utilizam somente a linguagem gestual e não se comunicam através da fala - que são contra o Implante Coclear. “Os principais argumentos estão ligados à falsa impressão de extermínio da cultura surda, dirigidas por médicos responsáveis pelos implantes e entendidas de forma errada pelos surdos sinalizados”, explica Hiltrud. Essa reação se constata a partir
dos anos 1990, quando houve um avanço nas tecnologias de IC, que causou na comunidade surda uma ideia inapropriada de extinção da sua cultura.
Com isso, esse grupo se sentiu afetado, pois vinha de uma recente luta pela oficialização da Linguagem Brasileira de Sinais (Libras), método de comunicação pelo qual os surdos adquiriram a possibilidade de se expressar, mas que também enfrentou oposição desde o século XIX. Em meados de 1880, a Libras foi proibida com a intenção de pressionar os surdos a desenvolverem a oralização. Desde então, iniciou-se uma luta da comunidade para mostrar que a linguagem por meio de sinais é uma língua, por possuir estrutura textual. No Brasil, a Libras é reconhecida como meio legal de comunicação e expressão, conforme Lei nº 10.436 de abril de 2002. Devido a essa conquista, os surdos solidificaram seus princípios de cultura e, consequentemente, aversão a procedimentos médicos como o implante. Hoje a comunidade surda, em geral, entende o IC como uma
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forma de abuso do poder, onde o indivíduo se vê induzido pela possibilidade de ser consertado, independente da oportunidade de se desenvolver como uma pessoa normal. Para o militante da comunidade dos surdos, Emiliano Aquino, filósofo e estudioso dessa cultura, a resistência ao IC e as ações radicais apresentadas pelos surdos sinalizados é algo natural. Ele não vê tais atitudes como um preconceito camuflado. “Todo o discurso médico, fonoaudiológico, familiar, que acompanha o implante constitui a construção de um discurso negativador do mundo surdo”, completa. Segundo Simone Machado Fontoura, professora de Educação Física e deficiente auditiva, o implante deveria ser feito somente em adultos, quando o sujeito teria a oportunidade de escolher o que é melhor para ele. “Penso muito nas crianças, pois são pequenas e isso dói no meu peito. É melhor ser adulto e já saber o que é o IC e também estar preparado para escolher”, salienta Simone. Em 2013, foi lançado o livro Implante coclear: normalização e resistência surda que questiona o implante. Nele, a autora, Patrícia Rezende, surda, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), afirma que o implante é uma violência contra as crianças surdas, que
são obrigadas a aprender a falar e, portanto, estariam sendo privadas de absorver a língua de sinais e a participar da cultura surda. Para ela, o surdo que usa implantes ou aparelhos auditivos está dominado pela ideologia do “ouvintismo” e da “medicalização da surdez”, além de ter vergonha de não escutar e ser “infeliz”, por não conseguir se inserir nem no mundo dos não ouvintes e dos ouvintes. Porém, Patrícia não está sozinha. São muitos os surdos que só usam a língua de sinais e são contra receber implantes cocleares e aparelhos auditivos. Em 1998, quando Hiltrud assumiu a direção da escola, constatou um princípio desse conflito entre os surdos sinalizados e as técnicas da medicina. Ela fazia parte da equipe médica do Sistema Único de Saúde (SUS) responsável pelo implante. “Percebi um certo desprezo vindo de alguns alunos. Os surdos sinalizados não aceitavam que o corpo docente e administrativo fosse ouvinte. Também não concordavam com a comunicação oralizada entre essas partes”, acrescenta a diretora.
Para alguns deficientes auditivos, principalmente os adultos, a Libras se sobrepõe ao implante, visto que há uma maior valorização pelo desenvolvimento e adaptação individual somado ao conforto, do que passar pelo processo cirúrgico e pela reabilitação oral e auditiva. Há também quem não tenha acesso ou não possa arcar com as despesas que garantem maiores chances de sucesso no procedimento. O médico Celso Dall’Igna, especialista em otorrinolaringologia e membro da equipe médica responsável pelos implantes do SUS, no Hospital de Clínicas (HCPA), diz que os surdos que resolvem fazer o implante não são proibidos de usar a linguagem de sinais. “Os médicos desestimulam o uso da Libras para priorizar a linguagem oral, visto que, em casos de crianças, não é comum aprender duas línguas ao mesmo tempo”, garante. Ele também aponta que a Libras é utilizada mais por adultos, que, quando implantados, são estimulados a usar a linguagem oral. A medicina indica e prioriza este tipo de implante para crianças com idade entre um ano e um ano e meio por ser considerado o ponto zero da oralização. “Com o Teste da Orelhinha há um diagnóstico de surdez bastante eficaz, e é fator determinante na escolha dos pais de pacientes do SUS. Em clínicas particulares já foram feitas cirurgias em crianças de quase dez meses”, acrescenta Dall’Igna. O especialista explica, ainda, que o mais complicado no que diz respeito à fila de espera é o acesso primário, aquele feito nos postos de saúde, de onde é encaminhado à Secretaria de Saúde Municipal e, posteriormente, à Estadual, que redireciona ao Hospital de Clínicas. Os critérios para seleção de pacientes passam então por aspectos médicos, psicológicos e sociais. Hospitais universitários e privados têm diferentes prioridades – o peso da condição social do paciente é muito maior em serviços que operam gratuitamente. Dall’Igna frisa que o importante é ter o diagnóstico precoce, facilitar o acesso e fazer a avaliação adequada. “O objetivo é fazer
a cirurgia o quanto antes, buscando resultados melhores. É um procedimento caro, porém resolutivo, pois insere o paciente na sociedade”, explica. Segundo a Secretaria de Saúde do Estado, o HCPA é a única unidade habilitada pelo SUS para a cirurgia. O valor deste dispositivo na tabela do SUS é de R$ 43.830,15. Atualmente são realizadas, em média, duas cirurgias por mês. Dall’Igna aponta que já vivenciou preconceitos e resistências vindas, principalmente, de adultos. Ele acha que o grupo é bastante fechado e pensa que essas questões partem do medo dos integrantes de perder um componente. “A comunidade se fecha e começa a correr boatos de que é uma máquina dentro da cabeça, que a pessoa vai ficar louca. Isso tudo na tentativa de preservar a comunidade”. O médico também observa que esse preconceito não começou após o surgimento do IC, mas existe desde que a prótese auditiva - aparelho convencional - foi inventada. “Com as próteses, não havia um preconceito forte, pois eram resultados pouco satisfatórios, e a comunidade surda aceitava em partes”, conclui. Devido à valorização da cultura que surge entre os grupos de surdos, cria-se a falsa impressão da não deficiência, onde eles se julgam naturais a partir do contato com outro indivíduo que também não ouve, quando não pela religião. É o que relata o documentário Som e fúria, no qual a mãe surda de uma criança com problemas auditivos, após ter coletado todas as informações sobre o IC, resolveu que não submeteria a filha ao procedimento e, como argumento, usa o direito de ser surda por naturalidade e pela vontade divina. Em outro momento do documentário, os pais, surdos, de uma filha ouvinte, adulta, conversam sobre a decisão que ela tomou de fazer o implante no seu filho de 11 meses. Os avós, muito críticos, e contrários à opção da filha, chegam a creditar a surdez do neto à benção de Deus e que, se a filha não aceita o filho como surdo, admitem assumir a criança e criá-la. Dependendo do ponto de vista, faz sentido dizer que os surdos têm uma cultura particular, por usarem a língua de sinais e terem seus próprios modos de expressão, mas culturas não se excluem mutuamente. O jornalista com surdez neurossensorial bilateral severa José Petrola tem uma posição mais flexível: “Se o aparelho auditivo ou o implante coclear permite que um surdo ouça ainda que com limitações, não há porque se opor ao uso da tecnologia”. Segundo Geraldine Brandeburski de Oliveira, mãe de uma criança implantada, as direções escolhidas por alguns surdos sinalizados deveriam ser repensadas. “Acho bem complicada a maneira com que eles veem esta questão, pois a maioria repudia seus pares por não usarem a Libras, quando não deveria ser assim. São escolhas, e todas são em prol do mesmo tipo de deficiência”, explica Geraldine. Em contrapartida, o militante das causas surdas Emiliano Aquino, pai ouvinte de uma criança implantada que conhece as duas línguas, adverte que o argumento mais simples é também o mais importante. “Nós não precisamos ser consertados. Você imagina o que significa para um surdo quando ele adquire a língua de sinais, quando
ele encontra outro surdo e passa a fazer parte da comunidade surda? Essa é uma aquisição simbólica da qual não querem e não devem abrir mão”, explica.
Se fosse possível fazer uma comparação, defender que os surdos oralizados não usem implantes cocleares ou aparelhos auditivos para preservarem uma cultura faz tanto sentido quanto dizer que alguém deveria se arrastar pelo chão em vez de usar cadeira de rodas para não perder sua identidade. Este é um pensamento entre especialistas e pessoas envolvidas com a surdez. Roner Dawson é um deles. De forma voluntária, ele atravessa o Brasil fazendo palestras sobre o IC. Ele mostra que o implante não é uma tecnologia para todos e que não deve, jamais, ser imposto aos surdos pré-linguais adultos. “Quando viajo, junto as tribos procurando aumentar o conhecimento e diminuir estes ‘ataques por ignorância’”, esclarece Dowson. Ele também observa que não existe somente preconceito vindo da parte dos surdos sinali-
Rodrigo Panceri defende que decisão seja individual
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zados, que também há interesses e intolerâncias. “O preconceito vem da desinformação e ignorância pura e simples. Os interesses vêm dos profissionais (como interpretes) que veem no IC uma ameaça ao trabalho deles”, aponta. Para Rodrigo Nunes Panceri, analista de Tecnologia da Informação, surdo desde os cinco anos, que perdeu a audição gradativamente e ficou 30 anos sem escutar nada, cada indivíduo deve tomar as suas próprias decisões. “A generalização que os surdos sinalizados exercem é desnecessária. Na tentativa de me aproximar desse grupo, observei um sentimento de segregação daquelas pessoas que optaram por ouvir”, admite. Panceri também destaca que, para uma comunidade que sofreu e ainda enfrenta o preconceito, eles mesmo se flagelam. “Certo dia conversando com outro surdo, eu disse que iria fazer o implante coclear. Prontamente o outro surdo disse que nunca faria porque tinha medo”, conta.
Guilherme Almeida (5º sem.)
Crespo
N O LU G A R DA Q UÍMICA, A BE LE Z A DO F IO NATURA L P O R Kelly Freitas (8º sem.)
Aos 10 anos, Luana de Brito experimentou pela primeira vez a química nos cabelos. No começo, fez apenas um relaxamento, mas em seguida os fios foram alisados. “Quando alisei, me sentia bonita, até porque sempre tive vontade de ter ele liso e poder ter variedades de cortes. Mas quando você fica anos passando química, chega uma hora em que seu cabelo não aceita mais, não aguenta tanta violência”, conta a estudante de Marketing e Propaganda. Hoje com 24 anos, Luana afirma que ficou 12 deles mantendo o processo químico. Parou quando começou a perder muito cabelo, chegando a ter queimaduras de segundo grau no couro cabeludo. “Foi um despertar que me aconteceu em um momento muito importante na minha vida. Várias escolhas, decisões de fortalecer minha identidade, de me empoderar perante qualquer situação e principalmente de aceitar meu cabelo como ele é!”, garante. Enquanto Luana sofreu as consequências dos frequentes alisamentos antes de abandoná-los, outras meninas, através de incentivos, aprendem antes disso a admirarem seus cabelos naturais. No grupo do Facebook denominado Gurias Crespas e Cacheadas, mais de 700 mulheres encontram-se nas mais variadas fases do descobrimento de seu próprio cabelo. “Aceitamos a todos que desejam dicas para cuidados dos cabelos crespos e cacheados. Não importa se a pessoa utiliza química, não incentivamos o uso da mesma e também não persuadimos as pessoas a deixarem ao
natural”, diz Silvia Letícia Moura da Silva, uma das administradoras do grupo. Vanessa Dias, 24 anos, afirma que procurava saber como cuidar melhor dos cachos.“Achava que o meu cabelo era uma vassoura e que tinha que criar cachos. Nunca fiz alisamento, optei pelo relaxamento porque não sabia cuidar. Achava que era igual as outras, que deveria pentear meu cabelo pela manhã ainda seco”, diz a estudante de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O período em que se para de utilizar técnicas de alisamento e o cabelo cresce naturalmente é chamado de transição. Depois de chegar a um tamanho em que a dona se sinta confortável para cortá-lo, é feito o big chop, que é quando as mulheres chegam a tê-lo o mais curto que já tiveram ou terão na vida. É um período de descobrimento pessoal, de que as madeixas não são o único elemento que define sua feminilidade. Luana, um ano após tomar a iniciativa sozinha, procurou grupos de identificação negra e começou a fazer parte do Meninas Black Power, do Rio de Janeiro, o Coletivo Negração, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que trata do preconceito dentro e fora das paredes da universidade, e o Gurias Crespas e Cacheadas. “Aumentou ainda mais a minha vontade de conhecer outras gurias, aflorou a minha militância de ir atrás de outras histórias na qual a libertação é nosso grito de identidade”, esclareceu a estudante.