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A necrobiopolítica como categoria de análise: uma visão preliminar

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Conclusiones

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Fragmentos de uma violência política de gênero a partir do Estado: uma necrobiopolítica “de gênero”

Fernanda Pattaro Amaral

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com o assassinato de Marielle Franco por milícias do Rio de Janeiro. Assim, este texto se desenvolverá marcando quatro partes: começamos com uma explicação do uso da categoria de necrobiopolítica, depois estudamos o assassinato de Marielle Franco contextualizando-o, em seguida trabalharemos o caso da candidata a vice-presidenta do Brasil pelo Partido dos Trabalhadores, Manuela D’Ávila, e encerramos com o levantamento dos movimentos de mulheres e feministas com a hashtag “Elenão” afim de impedir que Jair Bolsonaro acedesse ao poder. Todavia, esse texto pretende apenas jogar luzes em um momento bastante delicado da Historia Brasileira, e não pretende esgotar o assunto em si.

A NECROBIOPOLÍTICA COMO CATEGORIA DE ANÁLISE: UMA VISÃO PRELIMINAR

Hanna Arendt (1970) aponta que a violência necessita constantemente de instrumentos para sua viabilidade efetiva em uma sociedade que se comporta como um “xadrez apocalíptico” entre os poderes. A soberania de um Estado legitima o uso do poder ao envolver uma série de recursos (ou não) justificados que levam à violência implícita e explícita (Pattaro y Gonzalez, 2015), e enquadra um campo em que a política tem predominância em questões de ações de poder repressivo e o uso da força de forma racional-democrática. Foucault (2006) vai aprofundar que existem dois modelos estruturados de poder: o primeiro que conceitua a guerra e a repressão como modelos e formas de um ato primário de política e o segundo que incita que a violência é a base formativa da própria sociedade moderna através do recurso do contrato. Assim, existe uma relação muito próxima e profunda entre o poder político e a violência. Pierre Clastres (1978, p.7), por sua vez, analisa a questão da obediência como um mecanismo de controle desenvolvido nas sociedades para que os indivíduos atendam ao princípio de “você fará isso sem discutir”. Coerção

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Fernanda Pattaro Amaral

e violência são pontos que coexistem nas relações de poder político, mas não são exclusivos nem obrigatórios, tanto que Arendt (1970) aponta que a característica de autoridade é o seu reconhecimento sem discussão por todos a quem corresponde obedecer sem, necessariamente, a necessidade da existência de mecanismos de coerção ou persuasão. No entanto, o poder institucionalizado aparece constantemente na máscara da autoridade - uma forma pela qual nenhuma sociedade poderia ter garantido sua plena existência sem ela. O comum é a existência desse binômio: violência e poder, juntos. Em um jogo de violência entre governos e governados, a superioridade do governo é absoluta, entretanto, quando sua estrutura é quebrada, essa superioridade é posta em risco. A estrutura é quebrada quando as ordens e o exército não exercem mais esse caráter de coerção absoluta e não representam uma ameaça ao exército de cidadãos submetidos pelo e para o Estado. O poder, diz Arendt (1970, p.32), “faz parte da essência de todo governo”, a legitimidade do uso do poder é sinalizada com um olhar para o passado e a justificativa para o uso de meios que facilitem o exercício do poder legitimado é sinalizada com vistas ao futuro. Desta forma, o governo pode ser considerado o “domínio do homem pelo homem” e apoiado pelo uso da violência para prevalecer esse princípio “contratual”. Assim: “A violência sempre lhe deu para destruir o poder; do canhão de uma pistola emerge o domínio mais eficaz, que resulta na mais perfeita e imediata obediência” (Arendt, 1970, p.33). Butler (2011), por sua vez, analisa os instrumentos materiais da guerra e reafirma que os instrumentos são operados por pessoas que fazem parte da guerra - que é o espaço onde a violência política exerce sua atividade de forma mais legítima. Butler questiona um ponto importante de que a noção de pessoa é como “um instrumento útil e descartável”, um mero material de guerra. A autora enfatiza que “existem diferentes versões de violência e instrumentos materiais de violência” (Butler, 2011, p.14), e também questiona

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o uso inerente da objeção a mortes esteticamente seletivas e o princípio de “matar a vida para defender a vida”.

Bento (2018, p.1) argumenta que o Estado “distribui o reconhecimento da humanidade de maneira não igualitária”, e questiona o que faz o Outro não ser definitivamente reconhecido como humano, e como o Estado é o agente que realiza a distribuição do direito à vida, do direito de viver. Afirma que quando se estuda a violência cometida pelo Estado, a justificativa que se coloca é a questão da “soberania” em relação à governança (técnicas orientadas para o cuidado da vida da população). A soberania justificaria uma política de terror. O novo conceito que Bento está firmando se refere à união de dois conceitos estabelecidos como a biopolítica de Foucault e a necropolítica de Mbembe, elaborando assim seu conceito sobre o necrobiopoder. Para que a governabilidade exista, é necessário criar continuamente zonas de morte, portanto, são vidas que podem ser ignoradas pelo e para o Estado (Bento, 2018). A relação dialética dessa constituição do eu, onde não há espaço para uma construção do você que seja diferente do eu, evoca a eliminação daqueles corpos que inviabilizam a noção de uma nação em estado de pureza. Esse estado de pureza é basicamente um estado branco, racional, cristão e heterossexual. O corpo tem uma função para o Estado, é um instrumento a serviço do Estado –um instrumento manipulável e descartável. O conceito de necrobiopolítica de Bento (2018) seria uma união sistemática racional de regras e causas de mortalidade daqueles que são descartáveis ao Estado, enquanto eles são filhos do mesmo Estado que os mata (um Saturno devorando o filho). Como exemplos, o autor nos dá a prisão de Guantánamo, onde muitos dos que estão lá –os presos– nunca foram formalmente acusados de cometer qualquer tipo de crime. Eles também não foram julgados por meio de legislação internacional que regulamenta casos de crimes de guerra. Agamben (1995) afirma que o homem é uma espécie de animal cuja vida está revestida de um significado dado pela experiência de vivência em

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uma estratégia política reguladora de experiências que permitiu, inclusive, a “autorização do Holocausto”. Essa estratégia política ou estratégias no plural, reforçam as tecnologias do biopoder Foucaultiano criando corpos dóceis para servir a fins políticos. Assim, a politização da vida estabelece um marco fundamental da modernidade. Agamben (1995, p.16) se apropria de Foucault quando afirma que “a produção de um corpo biopolítico é a apropriação original do poder soberano”. Foucault (2006), por sua vez, desenvolveu três conceitos relevantes para as discussões atuais: biopolítica, biopoder e governamentalidade. A biopolítica trabalha com estratégias, mecanismos e ferramentas para gerenciar a vida, uma vez que a figura do século XVIII do soberano (daí soberania) foi o personagem central que administrou a morte ao impor leis e regulamentos e condenar aqueles que os seguiam –“faça viver, deixe morrer”. Com a queda posterior do soberano outra figura surge para regular a sociedade: o Estado, cuja estratégia é a regulação da vida e a criação de mecanismos que o tornam mais eficiente para o próprio Estado– e assim o lema se modifica para: “para viver, vamos morrer”. O biopoder administra a vida por meio de dois mecanismos regulatórios: a) adestrando individualmente corpos para fortalecer o sistema capitalista, de modo a criar um exército personalizado coletivamente para atender às necessidades do próprio capital, e b) coletivamente, com o foco em políticas de saúde, controle de natalidade, sexualidade, etc. da população. Para Mbembe (2011), a soberania pode ser percebida como o exercício do direito de matar. Para o autor, “o Estado de Exceção e a relação de inimizade” são as bases normativas que permitem o desenvolvimento da prática da morte como política de Estado. Entre os diferentes recursos executados pelo Estado para justificar uma política de morte está a defesa da soberania nacional. Alguns países do Cone Sul que sofreram períodos ditatoriais onde todo o poder emanou do Estado e se legitimou com o discurso do combate aos ataques do perigo

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