AMEAÇAS E DESAFIOS À SEGURANÇA HUMANA NO SÉC. XXI De gangues, narcotráfico, bioterrorismo, ataques cibernéticos às armas de destruição em massa
André Luís Woloszyn
AMEAÇAS E DESAFIOS À SEGURANÇA HUMANA NO SÉC. XXI De gangues, narcotráfico, bioterrorismo, ataques cibernéticos às armas de destruição em massa
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W847a Woloszyn, André Luís Ameaças e desafios à segurança nacional no séc. XXI : de gangues, narcotráfico, bioterrorismo, ataques cibernéticos as armas de destruição em massa / André Luís Woloszyn. - Salto, SP : Schoba, 2013. 220 p. : il. ; 23 cm ISBN 978-85-8013-203-8 1. Segurança pública - Brasil. 2. Segurança naciona. I. Título. 13-0153. 08.01.13 09.01.13 041979
CDD: 327.81 CDU: 327(81)
Sumário
Introdução...................................................................9 Abrir os olhos a tempo................................................. 13 1. As Organizações Criminosas..................................... 15 Como e porquê surgiram............................................................. 15 As três grandes ofensivas do PCC................................................ 23 Outros episódios (de fev./2001 a jun./2012) ������������������������������� 27 As principais organizações criminosas......................................... 36 Lideranças................................................................................... 44 Estrutura financeira..................................................................... 45 2. Facções criadas a partir do CV/PCC e suas conexões.......................................... 67 Análise preliminar....................................................................... 73 3. As gangues e milícias regionais: uma tendência dos conflitos urbanos no futuro ��������������� 77 A era pós-conflitos regionais e mundiais: o ambiente do caos................................................... 79 A questão do Iraque: o laboratório criminal ������������������������������� 81 Facilidade de acesso a novas tecnologias e o novo paradigma de alvos ������������������������������������ 83 Intercâmbios e a tendência dos conflitos urbanos ����������������������� 84 As Farc na Colômbia................................................................... 85 Mara Salvatrucha e Bairro 18...................................................... 87 O comportamento e a reação dos governos: o enfoque brasileiro.............................................. 91 Perfis e motivações.................................................................... 100
Organizações criminosas e gangues versus terrorismo criminal............................................ 101 Conclusões e perspectivas.......................................................... 104 4. Espaço digital: uma nova ameaça à civilização? ���������107 Contextualização....................................................................... 107 Novas mídias e redes sociais nas guerras e conflitos ����������������� 110 A influência no recrutamento de novos combatentes ���������������� 115 A desinformação e o uso em atividades criminosas ������������������� 120 5. Terrorismo e narcotráfico.........................................123 Algumas definições e características........................................... 125 O crescimento em escala mundial.............................................. 130 Perspectivas............................................................................... 131 O narcotráfico........................................................................... 133 Consumo e repressão................................................................. 138 Alternativas............................................................................... 142 6. O tráfico de armas e de pessoas................................147 Armamento utilizado por organizações criminosas ������������������� 151 Desvio de armas das Forças de Segurança Pública (estaduais e federais).................................... 152 A regulamentação...................................................................... 156 As campanhas de desarmamento............................................... 158 O tráfico de pessoas................................................................... 159 Principais rotas e as estatísticas internacionais �������������������������� 161 Tipos de redes criminosas que atuam no tráfico de pessoas ������ 164 A resposta do Brasil................................................................... 165 7. A lavagem de dinheiro.............................................167 Instrumentos mais frequentes.................................................... 170 Algumas técnicas de lavagem..................................................... 171 Como funciona nas fronteiras................................................... 174 As legislações e o Coaf.............................................................. 175 Os casos mais explícitos no Brasil............................................. 178 Programas da OEA/ONU e tratados internacionais ������������������ 179
8. As armas químicas e biológicas................................181 Evolução................................................................................... 181 O que são, tipos e consequências............................................... 185 Países que possuem AQB e vulnerabilidades ����������������������������� 187 Os tratados, protocolos e convenções internacionais ���������������� 189 Conclusões................................................................................ 191 9. Perspectivas...........................................................193 10. Referências..........................................................203
Introdução
Muitas questões têm contribuído para criar instabilidade na comunidade internacional, mas nenhuma é tão evidente e ameaçadora como os aspectos relacionados à segurança em seu sentido mais amplo, ou o que conhecemos como crimes transnacionais. O término da Guerra Fria e o início do processo de globalização econômica podem ser considerados os marcos nos quais surgiram grande número de organizações paraestatais, que visualizaram a possibilidade de lucros em mercados em expansão e fronteiras recentemente abertas, o que ocasionou múltiplas facilidades para comercialização e transporte de diversos materiais provenientes de atividades ilícitas. Passadas pouco mais de duas décadas, pode-se afirmar que o cenário atual é desanimador, e as consequências do que podemos chamar de crise da violência, ou como profetizou Michel Wierviorka em seu artigo “Os novos paradigmas da violência”, tem tido grande impacto econômico e social nas sociedades, desencadeando, inclusive, mudanças culturais e de hábitos. Esse pensamento também é compartilhado por Moisés Naim, quando afirma que os crimes globais estão transformando o sistema internacional, modificando suas regras, introduzindo novos atores e reconfigurando o poder na política e na economia mundiais. Por subestimarem o poder de tais ameaças, em muitas ocasiões, governos são tomados de surpresa com o grau de orga11
nização, planejamento e abrangência dos conflitos criados por organizações criminosas nacionais e transnacionais. Em alguns casos, permanecem sem reação imediata e, não raras vezes, são obrigados a negociar com as lideranças criminosas na tentativa de minimizar riscos e, principalmente, reduzir os impactos negativos que causam na opinião pública. Agindo dessa forma, perdem a oportunidade de identificar estas redes clandestinas, apurar autorias e aplicar sanções, reforçando a sensação de impunidade, o que acaba fortalecendo a criminalidade. Especialmente no Brasil, que conquistou recentemente a quinta posição no ranking da economia mundial, começam a surgir novas ameaças que anteriormente eram específicas de países desenvolvidos, como os ataques cibernéticos. Seguindo uma tendência mundial, organizações criminosas de caráter transnacional, gangues e milícias, narcotráfico, terrorismo e o tráfico de armas e de pessoas, a lavagem de dinheiro e o constante perigo no uso de armas químicas e biológicas, dentre outros, apresentam-se na atualidade como grandes ameaças e, ao mesmo tempo, desafios para os países, independentemente do grau de desenvolvimento. São questões complexas que ainda não estão bem definidas na legislação penal, e sobre as quais existem poucos registros em obras técnicas e especializadas, algumas destas produzidas em outros países e em relatórios de ONGs e de organizações internacionais, como a ONU e a OIT. Pelo caráter globalizado e interativo destas atividades criminosas, a abordagem torna-se perfeitamente factível com a realidade mundial, pois a forma como agem são praticamente as mesmas. Um fato já comprovado é o de que, quanto mais recrudesce a crise econômica, especialmente na União Europeia, ou o combate contra o tráfico de drogas no México e na Colômbia, as organizações tornam-se mais violentas na disputa por espaços e na busca por novos mercados, criando novas formas para manter e expandir seus negócios. 12 | André Luís Woloszyn
Nessa perspectiva, o objetivo deste ensaio, além de se constituir em uma fonte de pesquisa primária, é chamar a atenção para o quadro atual e fomentar o diálogo com diversos segmentos sociais, pois o panorama visto com maior amplitude é, de certa forma, preocupante, uma vez que o crescimento destas ameaças são reais, com reflexos em toda a comunidade internacional e potencialmente formador de crises sistemáticas. A abordagem é, até certo ponto, inédita, pois ocorre em uma conjuntura ao mesmo tempo nacional e internacional. É composta por sete temas interligados, alguns destes publicados parcialmente como artigos em revistas especializadas, como A Defesa Nacional, Revista do Exército Brasileiro e Diálogo (uma publicação de assuntos militares do Comando Sul dos EUA para as américas Central e Latina), alguns apresentados em congressos, seminários e em sites, como o Defesanet, o maior da América Latina em assuntos de defesa, geopolítica, inteligência e segurança. Inicia discorrendo sobre as organizações criminosas, que atualmente é o maior problema nacional por conta de suas conexões com outras organizações similares e pela capacidade destas de cometer atos ilícitos, chamados conexos. Os demais temas possuem como característica comum o alto grau de sigilo com a utilização de redes transnacionais e técnicas avançadas para dissimular suas ações. É por este motivo que são considerados como desafios crescentes a segurança do Brasil e do mundo no século XXI, capazes de desestabilizar governos por meio de crises constantes, desencadeando um ciclo híbrido de violência e de criminalidade. Afirmar que estas atividades criminosas serão erradicadas da comunidade internacional, seria um absurdo devaneio, assim como tratá-los de forma regionalizada, meramente como casos de justiça ou de polícia. O mundo vem sofrendo mudanças de forma acelerada, e com estas, a dinâmica do crime auxiliada pelas novas tecnologias vem demonstrando ser um ingrediente Ameaças e Desafios à Segurança Humana no Séc. XXI | 13
perigoso, levando à crença de que estamos travando uma guerra perdida, como a do tráfico de drogas, por exemplo. Embora muitos especialistas e observadores venham se posicionando da mesma forma, voltamos a repetir que são necessárias a adoção de políticas públicas, especialmente sociais, e novas estratégias de enfrentamento, pois estes tipos de delitos e atividades ilegais se desenvolvem, com maior propensão, em países que apresentam algum tipo de vulnerabilidade, tipo sistemas de segurança inadequados, corrupção, complacência e ou inércia de seus governos, o que é ainda pior. Esforços conjuntos com outros países também se tornam fundamentais em função de que as ameaças descritas contam com o apoio de redes internacionais.
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Abrir os olhos a tempo
“Nem todos os que veem têm abertos os olhos, e nem todos os que olham, enxergam. Perceber tarde a realidade não serve de remédio, e sim de pesar; alguns começam a enxergar quando já não há o que ver. É difícil dar entendimento a quem não tem vontade de aprender, e é mais difícil ainda dar vontade de aprender a quem não tem entendimento. Os que estão ao seu redor brincam com eles como se fossem cegos, para o divertimento dos demais; sendo surdos para ouvir, não abrem os olhos para ver. E não faltam os que fomentam essa insensibilidade, pois a existência material deles se baseia na ausência mental daqueles.” Baltasar Gracian
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As Organizações Criminosas
Como e porquê surgiram O avanço das organizações criminosas constitui-se em uma questão de segurança estratégica internacional, tendência vivenciada por diversos países desenvolvidos ou em desenvolvimento. A própria Comunidade Europeia passa por fenômeno semelhante, resultado das imigrações ilegais, migrações, ou ainda, pela mudança de foco de antigos grupos terroristas que atuavam nas décadas de 1960 a 1980, e que diversificaram suas atividades adaptando-se ao panorama mundial e migrando para o crime organizado. Nesse sentido, o estudo das organizações criminosas brasileiras, ou o que o Código Penal em seu artigo 288 denomina de quadrilha ou bando, é relativamente recente, e na sua grande maioria, guarda aspectos em comum. O maior destes aspectos é a exclusão social, manifestada em suas mais diversas formas, somada a decisões e políticas equivocadas ao longo de décadas por parte das autoridades que tratam diretamente da questão da segurança pública. O resultado desta inércia, ou mesmo da incapacidade de perceber os novos paradigmas da violência profetizados por 17
Michel Wieviorka, acabou por transformar as ações da macrocriminalidade em uma guerra assimétrica que tem como estratégia a tomada de locais públicos, visto por estes como pontos de mercado para estabelecimento e controle, além da eliminação de integrantes de facções rivais e ações voltadas a cooptar agentes públicos mediante corrupção ou afastá-los das regiões onde ocorrem atividades ilícitas. Nesses conflitos, que se aproximam da definição clássica de Clausewitz de que a guerra é a continuação da política por outros meios, o campo de batalha é preferencialmente as comunidades das favelas e regiões adjacentes onde o Estado figura como coadjuvante enquanto multiplicam-se o número de vítimas. Basta observarmos atentamente as imagens destas ações, comparadas a conflitos em andamento no Líbano, aos insurgentes do Iraque, ou ainda, na guerrilha entre grupos palestinos como a Al Fatah e Hamas. Veremos semelhanças assustadoras na forma como estes são desencadeados, comparativamente com o que ocorre em nossas comunidades carentes. Estas organizações possuem estrutura hierarquizada e arsenal bélico que se aproxima do existente em exércitos de muitos países. A movimentação financeira beira a milhões de dólares mensais, e a soma de seus integrantes é maior do que o efetivo das Forças armadas brasileiras, considerando a soma dos efetivos da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. A rede de colaboradores e informantes garante informações privilegiadas em benefício destes grupos, incluindo a participação de funcionários públicos e parlamentares de diversos níveis. Este contexto proporciona que se constituam em um poder paralelo dentro do próprio estado brasileiro, obrigando as autoridades, em muitas circunstâncias, a recuarem em suas estratégias de combate e celebrarem acordos para o término das hostilidades. Pelo viés histórico, existem controvérsias sobre o surgimento da primeira organização criminosa no país. Alguns historia18 | André Luís Woloszyn
dores afirmam que ocorreu entre as décadas de 1920 e 1930 na região do sertão nordestino, conhecidos como cangaceiros, cujo principal expoente foi Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião ou o Rei do Cangaço. Eram bandos constituídos por nômades armados que espalhavam terror nas comunidades do sertão, promovendo saques em fazendas, assassinatos a quem se negava a colaborar com o bando, queima de moradias, ataques e saques a comboios e sequestro de fazendeiros e políticos locais, soltos mediante pagamento de resgate. Chegaram a ser idolatrados por parcela significativa da população, pois caso não encontrassem resistência nas comunidades invadidas, passavam a auxiliá-las na distribuição de gêneros alimentícios (produtos de saques) e em sua proteção contra outros criminosos tradicionais. O enfraquecimento e desarticulação do cangaço após vinte anos de atividades ilícitas e escaramuças com as forças policiais se deu com a morte de Lampião e sua mulher Maria Bonita, em uma emboscada armada por uma volante da Polícia Militar em 29 de julho de 1938. Todos os integrantes de seu grupo foram degolados e as cabeças expostas publicamente para servir como exemplo a pessoas que se enveredassem pelo mesmo caminho ou apoiassem esta prática. Vinte e cinco anos após o cangaço, entre 1965 e a década de 1970, presos políticos de movimentos radicais e de esquerda, condenados com base na Lei de Segurança Nacional, encarcerados junto a criminosos comuns no Presídio da Ilha Grande, no Rio de Janeiro, fundaram a Falange Vermelha. Inicialmente tratava-se de um bando que tinha por objetivo lutar contra as condições desumanas dos presos no estabelecimento penitenciário conhecido como A Ilha do Diabo, uma referência comparativa à prisão francesa de Caiena, na Guiana francesa. Lá, o crime comum foi sendo aperfeiçoado gradualmente por técnicas de guerrilha, com a participação de intelectuais das mais diversas áreas através do compartilhamento de experiências. Estas Ameaças e Desafios à Segurança Humana no Séc. XXI | 19
técnicas seriam posteriormente utilizadas pela organização Comando Vermelho, que sucedeu a Falange Vermelha e se especializou notadamente no tráfico de drogas e sequestros, dando início ao domínio do interior das penitenciárias cariocas, que perdura até hoje. A primeira facção organizada surgida no interior de uma penitenciária no estado de São Paulo ocorreu em 1983, na Casa de Detenção do Carandiru, sendo conhecida como Serpentes Negras. Reivindicavam, a exemplo do Comando Vermelho, melhoria das condições de vida dos detentos, e realizavam greves de fome coletiva, além de não comparecerem quando eram requisitados pela administração carcerária. Buscavam também o direito a visitas íntimas, atendimento médico satisfatório e a liberação de rádio e televisão para os detentos. Seus membros eram identificados por possuírem uma cobra tatuada nos braços. No entanto, as lideranças foram isoladas e transferidas para outras casas prisionais, e o grupo acabou extinto. Nos anos 1990, dissidentes do Comando Vermelho fundaram a facção conhecida como Terceiro Comando, passando a disputar pontos de venda de drogas nos morros cariocas, além da prática de outros crimes, como assassinatos e sequestros. Posteriormente, essas organizações foram se fragmentando e dando origem a outras, como os Amigos dos Amigos e o Terceiro Comando Puro, esta última surgida com a extinção do Terceiro Comando. Em 1993, surge em São Paulo, no interior da Casa de Detenção de Taubaté, uma organização com o nome de Primeiro Comando da Capital. Inicialmente, o objetivo da organização ou partido era, além de auxiliar presos e seus familiares, vingar a morte de 111 colegas mortos no episódio conhecido internacionalmente como O Massacre do Carandiru, ocorrido no ano de 1992. Também desejavam chamar a atenção da população para as condições desumanas vividas no interior desses estabe20 | André Luís Woloszyn
lecimentos, no sentido de sensibilizar a opinião pública e a Justiça para exigir das autoridades do executivo o cumprimento do que estabelece a Lei de Execuções Penais no tocante aos direitos legais dos presos. Embora sinais aparentes de que o PCC estava se articulando rapidamente no interior de vários estabelecimentos penais, cooptando adeptos e angariando simpatizantes, as autoridades governamentais, à época, negavam a sua existência, subestimando o que anos após seria considerada a maior organização criminosa do país. Apenas no ano de 2001 é que as autoridades acabaram reconhecendo o PCC, e isto após uma rebelião de 27 mil detentos, que envolveu 29 estabelecimentos penais paulistas. Em 2006, com a consolidação da organização, autoridades decidiram transferir suas lideranças para presídios federais de segurança máxima localizados em diversos estados brasileiros como estratégia para isolá-las. A iniciativa teve o efeito contrário, pois acabou ampliando o domínio da organização nesses estados, resultando na multiplicação de adeptos, poder de influência e criação de outras facções semelhantes. O surgimento das milícias ou Comando Azul no estado do Rio de Janeiro, na década de 1970, também é um exemplo de políticas equivocadas. São, em última análise, o resultado do espaço deixado pelo estado, que não conseguiu proporcionar a segurança e a tranquilidade pública almejada pelas comunidades mais carentes. Se constituiu, inicialmente, numa alternativa dessas comunidades com o beneplácito de autoridades estaduais para afastar as facções criminosas envolvidas com o tráfico de drogas e da dominação territorial destes locais. Com o passar do tempo, essas milícias agregaram para si outras atividades ilegais além do tráfico de drogas, tornando as comunidades reféns por meio de intimidações e uso de violência. Existem outros grupos, aparentemente de menor potencial ofensivo, cujo negócio principal também é o narcotráfico. DenAmeaças e Desafios à Segurança Humana no Séc. XXI | 21
tre estes, o Terceiro Comando Puro, o Comando Democrático pela Liberdade, o Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade e a Seita Satânica. Atualmente, o poder dessas organizações é inequívoco. Basta o exemplo do ocorrido em 2006, no estado de São Paulo, onde o PCC paralisou por dias a maior cidade da América Latina e a quarta metrópole mundial com táticas de guerrilha e ações terroristas que resultaram na morte de 56 pessoas. As ações do Comando Vermelho, em novembro de 2006, no Rio de Janeiro, em retaliação ao crescimento das milícias, com dezenove mortes, estão nesta mesma linha de impacto. Outro episódio mais recente e de igual magnitude ocorreu em 2009, entre integrantes do Comando Vermelho e a organização Amigo dos Amigos, em represália ao crescimento das milícias e pelo domínio de pontos de venda e distribuição de drogas no Morro dos Macacos. As ações perduraram por três dias, dos quais um helicóptero da Polícia Militar foi derrubado por disparos de uma metralhadora .30, ocasionando a morte de seus ocupantes. Uma semana após o conflito, dados oficiais da Secretaria de Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro apontavam para 46 mortos como total de vítimas. Em novembro de 2010, o Comando Vermelho voltou a agir, sendo protagonista do maior conflito entre forças de segurança e uma organização criminosa registrado no Brasil. Com a mesma forma de atuação de eventos anteriores, porém de maior duração, os conflitos iniciaram com o fechamento da Linha Vermelha por parte de traficantes, queima de veículos e arrastões em vários pontos da cidade. As ações perduraram por sete dias, quando a Polícia Militar, apoiada pelas Forças Armadas, cercou e tomou o complexo de favelas do Alemão, onde residem cerca de quatrocentas mil pessoas. O saldo oficial divulgado pelo Governo do Estado foi de 39 mortes, duzentos presos, cem veículos incendiados e toneladas de maconha e grande quantidade de 22 | André Luís Woloszyn
armas apreendidas. Ainda com relação ao PCC, um levantamento do Departamento de Inteligência da Polícia Civil de São Paulo apurou, em 2007, por meio de escutas telefônicas, que este possui um tribunal paralelo ao da Justiça, onde são julgados pela organização crimes cometidos por seus membros, por integrantes de facções adversárias e pessoas que tenham prejudicado a organização ou parentes destes. As penas variam de perdão, exílio, advertência, tortura e morte. As sentenças são cumpridas imediatamente após o julgamento, que dura em torno de uma hora e trinta minutos. O tribunal é formado por até cinco integrantes, onde é comunicado ao réu a denúncia contra si e dada a oportunidade do direito de autodefesa. Quando o veredicto é a pena capital, faz-se necessário um comunicado via telefone celular a uma das lideranças, geralmente recolhida a algum estabelecimento penal para que este valide o veredicto de morte. Chama a atenção o fato de que estes tribunais tem sido aceitos e utilizados por pessoas da comunidade que não pertencem a nenhuma facção criminosa, mas que sofreram algum tipo de violência no cotidiano. Estas recorrem ao tribunal por desejarem uma solução rápida de suas contendas, já que não acreditam que a força policial ou o Poder Judiciário possam resolver o problema. Como ilustração, o jornalista Carlos Amorin, em seu livro Assalto ao poder, expressa que muitas das organizações terroristas, principalmente as atuantes nas décadas de 1960 a 1980, como o ETA, IRA e Brigadas Vermelhas, tornam-se inexpressivas face às facções criminosas brasileiras ligadas ao narcotráfico. Muitos especialistas corroboram com esta afirmação, pois a diferença entre estas não está no método, que, ao contrário, é semelhante, mas na quantidade de vítimas fatais. Enquanto um atentado terrorista possui elevado número de vítimas fatais em uma só ação, as vítimas brasileiras são em menor número, porém, são vitimadas de forma continuada, o que contribui em Ameaças e Desafios à Segurança Humana no Séc. XXI | 23
muito para a cifra absurda de cinquenta mil assassinatos/ano no país. Nesta estatística, não foram computados os desaparecidos ou pessoas que morreram em decorrência dos ferimentos sofridos dias ou meses após as ações, o que elevaria em mais 20% as mortes. Um dado alarmante e pouco explorado a respeito destas organizações, notadamente sobre o Primeiro Comando da Capital e Comando Vermelho, foi descrito no Relatório Anual Sobre as Drogas, elaborado pelo Departamento de Estado Norte-Americano em 2008, cuja fonte foi a Inteligência brasileira. O documento apontou a crescente participação dessas organizações no narcotráfico internacional, com ramificações na Bolívia e Paraguai e conexões com traficantes colombianos e mexicanos. No Relatório de 2009, essa tendência permaneceu inalterada. Outra informação comprovada é a da participação de ex-guerrilheiros de Angola e Moçambique nos conflitos em favelas cariocas e paulistas, contratados pelas facções como mercenários para ensinar técnicas do manejo de armas, fabricação de explosivos caseiros, emboscadas e estratégias de guerrilha. Em uma avaliação mais apurada da pesquisa apresentada ao longo desta obra, poderemos constatar que as perspectivas de solução para estes conflitos são desanimadoras, principalmente se considerarmos o contexto em que está inserida. Alguns aspectos são relevantes nesta leitura, como a falência do sistema carcerário, em termos de infraestrutura, para abrigar os quinhentos mil apenados com certa dignidade, a morosidade da Justiça Criminal pela sobrecarga de processos aliada a um esgotado sistema policial focado principalmente na prisão de criminosos, e não na natureza dos delitos. Outros fatores corroboram, ainda, para o agravamento deste quadro, como a falta de investimentos e a descrença no processo de ressocialização, hoje apenas um ideal filosófico fomentado em trabalhos científicos nas universidades brasileiras. 24 | André Luís Woloszyn
Basta verificarmos que as reivindicações apresentadas por essas organizações na defesa dos direitos da população carcerária perdura por décadas sem uma solução definitiva, pelo contrário, a cada dia se agrava. Entre os problemas estão os constantes abusos de autoridade, o desrespeito aos familiares e visitantes, serviço médico inadequado, maior agilização nos processos e transferências de apenados que tenham o direito de progressão de regime e desrespeito ao direito de propriedade no interior dos estabelecimentos penais. Nesse cenário, o resultado não poderia ser diferente, pois a matemática torna-se simples. Como veremos a seguir com maior profundidade, as organizações criminosas, com exceção das milícias, surgiram no interior dos estabelecimentos penais, onde multiplicam-se facções que disputam o domínio de áreas públicas, agora não apenas em comunidades carentes, mas em espaços públicos em geral, incluindo os centros urbanos. As atividades ilícitas foram diversificadas, e embora o tráfico de drogas seja o foco principal, os assassinatos por encomenda, o tráfico de armas e a extorsão mediante grave ameaça estão entre o rol dos crimes praticados por essas organizações. Com o aumento da taxa de crescimento urbano na maioria das grandes cidades brasileiras, e mantido o status atual de caos no sistema carcerário, a tendência é de fortalecimento dessas organizações proporcionalmente ao aumento no número de presos no sistema carcerário.
As três grandes ofensivas do PCC O ano de 2002 foi um marco para o PCC no sentido de testar sua força como nova estratégia de promoção de conflitos. As ações anteriores nunca haviam ultrapassado os limites internos dos estabelecimentos penitenciários, movimento conhecido por rebelião. A primeira grande ofensiva, com características de conflito assimétrico e de caráter intimidatório, ocorreu nos meses Ameaças e Desafios à Segurança Humana no Séc. XXI | 25
de janeiro a maio, em que foram realizados atentados na capital paulista e em municípios da região metropolitana, com disparos de arma de fogo e detonação de artefatos explosivos em prédios públicos, principalmente fóruns e um ônibus que transportava agentes penitenciários. Apenas nas ações de janeiro, nove bairros foram atingidos, oitocentos mil passageiros ficaram sem ônibus e parte do comércio fechou as portas. Nesses cinco meses, de forma assistemática, o PCC praticou catorze atentados que resultaram na morte de quatro pessoas e ferimentos em outras dezessete, a maioria, por disparos de arma de fogo. Em novembro de 2003, a organização protagonizou a sua segunda grande ofensiva, desta vez um pouco mais abrangente. Os alvos eram direcionados para integrantes da área de segurança pública, promotores de justiça e membros do poder judiciário, além de instalações físicas destes órgãos estatais. Foram registrados doze atentados, dez contra a Polícia Militar e dois contra a Guarda Civil Metropolitana, resultando em dois policiais militares mortos, cinco feridos por disparo de arma de fogo, dois guardas civis mortos, além de prédios e viaturas danificados por incêndio proposital ou ocasionados pela detonação de artefatos explosivos caseiros. Na oportunidade, o serviço de inteligência da Polícia Militar apurou que as lideranças do PCC pretendiam sabotar torres de transmissão de energia elétrica e de sinais telefônicos com o objetivo de causar um apagão na capital paulista, além da detonação de um artefato explosivo no prédio da bolsa de valores com a finalidade de causar pânico e instabilidade no mercado financeiro. No relatório divulgado pela polícia e confirmado por promotores de justiça membros do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado), constava que, caso as exigências das lideranças do PCC não fossem atendidas pelas autoridades, ou seja, mudanças urgentes no Regulamento Disciplinar Diferenciado - RDD, a qual a maioria destas lideranças 26 | André Luís Woloszyn
estão submetidas, seria operacionalizado um plano alternativo que previa explosões de bombas em alguns restaurantes e casas noturnas frequentados por pessoas de elevado nível social. Nos meses de maio, julho e agosto de 2006, ocorreu a terceira grande ofensiva, a maior já enfrentada pelas autoridades na história criminal do país, com ações simultâneas e coordenadas de eliminação de agentes da área da segurança pública, detonação de artefatos explosivos em prédios públicos, bombas incendiárias em transportes coletivos, o sequestro de um jornalista da Rede Globo de Televisão e outros delitos de menor potencial, causando terror e pânico na população. O balanço geral dessas ações foram impactantes na sociedade paulista e brasileira, com repercussões negativas junto à opinião pública internacional, uma vez que os principais meios de comunicação deram amplo destaque aos episódios em seus noticiários. Na época, o PCC protagonizou 1.022 atentados entre a capital São Paulo e municípios da região metropolitana, totalizando 56 mortos, dentre estes, 42 policiais entre militares e civis. 79 suspeitos de participação nos atentados foram mortos pela polícia por reação imediata ou sequencial, somadas a outros 135 presos. Ainda, 11 prédios públicos atacados por bombas ou armas de fogo, 56 transportes coletivos incendiados, 26 estabelecimentos comerciais saqueados e 5 estabelecimentos bancários assaltados ou alvejados a tiros, além de rebeliões simultâneas em 73 estabelecimentos penitenciários. As ações paralisaram a maior metrópole da América Latina. O medo da população de que os ataques se estenderiam também a outros locais de grande concentração e circulação pública determinou o fechamento do comércio e a suspensão das atividades escolares. Os transportes coletivos deixaram de circular, atingindo cinco milhões de pessoas que aguardavam nos terminais de ônibus e metrôs. A rede de telefonia entrou em colapso pelo grande número de ligações de pessoas que deAmeaças e Desafios à Segurança Humana no Séc. XXI | 27
sejavam informações sobre parentes e amigos. Os prejuízos em apenas um dia de paralisação foram estimados em 50 milhões de reais no comércio e 100 milhões de reais na indústria. Estas três grandes ofensivas inauguraram uma nova fase da criminalidade no Brasil e serviram de exemplo para o desencadeamento de outras ações semelhantes envolvendo facções inimigas, principalmente no estado do Rio de Janeiro. Desses ataques, buscamos elencar apenas aqueles que envolveram armas de fogo, explosivos e incêndios causados por material improvisado como coquetéis molotov (mistura de gasolina ou outro inflamável em uma garrafa com pavio de pano embebido na solução), o que se assemelha à tática dos antigos grupos terroristas das décadas de 1960 a 1980. Os dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública afirmaram que, na capital paulista, haviam sido registrados 79 ataques com disparos de arma de fogo, 22 com a utilização de artefatos explosivos e 46 a ônibus, seguidos de incêndio que resultaram em perda total. Na região metropolitana foram registrados 41 ataques com disparos de arma de fogo, 10 com a utilização de explosivos e 41 a ônibus seguido de incêndio com perda total. Em ambos os casos, as ações praticadas por estas organizações criminosas podem ser classificadas como “terroristas”, embora os grupos que as praticaram não se enquadrem no conceito de grupo terrorista. Este método já havia sido utilizado anteriormente, na década de 1930 pela máfia italiana nos EUA, e atualmente por grupos de narcotraficantes mexicanos. Embora tenha sido inédito na história criminal do Brasil, um verdadeiro caos, situação semelhante já havia ocorrido na América Latina, guardando algumas semelhanças com os episódios do ano de 1993, em Bogotá/Colômbia. Na época, o narcotraficante Pablo Escobar, chefe do Cartel de Medellín, insatisfeito com sua transferência para uma prisão de segurança máxima, promoveu uma série de atentados com artefatos explosivos 28 | André Luís Woloszyn