Audaces Fortuna Juvat A SORTE PROTEGE OS AUDAZES
MÁRCIA SABINO
Audaces Fortuna Juvat A SORTE PROTEGE OS AUDAZES
Copyright © Márcia Sabino Duarte Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma e por qualquer meio mecânico ou eletrônico, inclusive através de fotocópias e de gravações, sem a expressa permissão do autor. Todo o conteúdo desta obra é de inteira responsabilidade do autor. Editora Schoba Rua Melvin Jones, 223 - Vila Roma - Salto - São Paulo - Brasil CEP 13321-441 Fone/Fax: +55 (11) 4029.0326 | 4021.9545 E-mail: atendimento@editoraschoba.com.br www.editoraschoba.com.br
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ D873a Duarte, Márcia Sabino Audaces fortuna juvat : a sorte protege os audazes / Márcia Sabino Duarte. - 1.ed. - Salto, SP: Schoba, 2012. 324p. : 23 cm ISBN 978-85-8013-173-4 1. Romance brasileiro. I. Título. 12-4194.
CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3
20.06.12 02.07.12
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Para minha filha Luma, que o gosto pela leitura possa levĂĄ-la ao encontro da prĂłpria essĂŞncia.
AGRADECIMENTOS
Escrever é um ato solitário, mas ao mesmo tempo o mais solidário. É uma tentativa de decifra-se, que acaba abrindo portas e janelas da alma aos leitores. Mas num processo como este nunca estamos sozinhos, trazemos todas as vivências, as viagens, as leituras, as conversas, as músicas e as pessoas que amamos. Agradecer é, antes de tudo, reconhecer as contribuições que recebemos durante esse caminho. E como fazê-lo sem ser injusta? É difícil porque corremos o risco de tornar o agradecimento aquém daqueles que mencionamos e fadados ao pecado de não listar todos aqueles que de uma forma ou de outra nos ajudaram neste percurso. Consciente disso, agradeço à todos e principalmente a você leitor que abre espaço para conhecer esta obra. Agradeço ao meu marido Francisco Neto pelo amor e companheirismo de tantos anos. À minha família, em especial a minha mãe, Tina, que ensinou a ser forte e ao meu pai, Diogo, a ser persistente. Aos meus irmãos Márcio e Marcelo pela torcida de sempre. A família Claudino (Abadia, Iracélia, Elaine, Edmara, Lú e Luciane) mulheres de raça e determinação, que me recebeu em seu seio desde sempre. A Ana Lúcia pelos sonhos inspiradores e as demais amigas cangaceiras, Sônia Matheus e Marluce Claudia por partilhar comigo um caminho de luta e força. Ao casal Bira e Glau, companheiros de viagens inesquecíveis. Aos amigos, primeiros leitores, que me incentivaram a ousar: Carlos Eduardo (Kadu) pelas observações e contribuições inteligentes e pertinentes neste trabalho; Isis Rejane pela alegria constante; Maurício Campos que enxergou em mim uma “verve” literária e Fábio Albernaz não apenas pela sua amizade e encorajamento oportuno, mas também pelo exemplo de caráter e retidão.
e CAPÍTULO 1
C
lara abriu os olhos e ainda com a visão turva viu a silhueta de um homem; não se lembrava de tê-lo visto antes, mas teve uma estranha certeza de conhecê-lo desde o nascimento. O rosto era perfeito, um nariz fino, olhos pequenos e ofertava um sorriso amável, quase infantil. Sentiu um alívio e soube que aquele sorriso lhe devolvera a vida. Antes que pudesse balbuciar uma única palavra, sentiu uma tontura e tudo voltou a escurecer. A brisa leve de outono tocava-lhe o rosto e esvoaçavam-lhe os cabelos, enquanto ouvia o bater dos cascos de cavalo; o calor do corpo do amado que se espalhava pela sua pele morena era conduzido pelos braços entrelaçados à sua cintura. As cores do pôr-do-sol no horizonte se misturavam ao brilho do trigo e criavam um mar de ouro que se perdia na imensidão. Lembrou-se das palavras do pai: A riqueza da humanidade consiste na arte de semear, cuidar e colher. Este princípio vale para tudo na vida. O som do vento batendo nas hastes de trigo gerava um zunido musical e um clima de paz invadia a sua alma e a fazia sentir-se mais leve e feliz. Pararam para descansar sob a sombra de um carvalho. Ficaram em silêncio por alguns instantes, enquanto observavam as folhas caindo lentamente. Haviam percorrido um grande trecho e o cavalo devia estar exausto. Os dias já estavam mais curtos e a luz do dia começava a perder a intensidade, dando lugar ao espetáculo do crepúsculo. De um lado do alto do monte podiam-se avistar as águas agitadas do riacho desembocando num esplêndido véu no despenhadeiro e, do outro, as luzes das lamparinas das ruas de Lucca cintilavam em uma dança sincronizada. O vilarejo era pequeno e de longe o muro que o circundava formava uma onda em volta do riacho. 11
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As janelas das casas exibiam a silhueta das pessoas transitando pelos cômodos; já devia ser a hora do jantar. O rapaz retirou de uma capanga um embrulho com pão e um cálice de vinho e lhe ofereceu. Conversaram e riram animadamente, enquanto saboreavam o alimento. Observando as luzes, o amigo contou-lhe que a cidade de Lucca surgira como parte da República Romana. Explicou-lhe que esse era o motivo do centro de Lucca preservar o plano de ruas romano e um anfiteatro usado para as apresentações populares. Completou que na época do Império Romano o anfiteatro era usado para o enfrentamento entre gladiadores. Ela o ouvia atentamente e as expressões faciais da moça denotavam a admiração pela inteligência e didática com que ele discorria. Clara aninhou-se no peito do homem corpulento. Ouviu o silêncio da noite e sentiu-se confortada pelo aconchego dos braços do amado. Nunca tinha sido tão protegida. Pôde pensar em todas as lutas que tivera que travar para permanecer com direito à vida e, naquele instante, teve a sensação de que o destino finalmente a presenteava com a leveza característica dos inocentes. Lembrou-se do incêndio que quase lhe tirou a vida quando ainda era uma criança. Sentiu um arrepio só de pensar que ficara escondida até que os invasores fossem embora, depois de banirem quase toda a província. A fumaça parecia que iria sufocá-la quando o tio Galeno ouviu o choro baixinho e reprimido. Era o único som que se conseguia ouvir além dos estalos da madeira queimando. Depois de muito procurá-la ele conseguiu acabar com aquele martírio. A menina olhou de um lado para outro e viu apenas cinzas. Por baixo das folhas queimadas avistou o cabelo de Flora, sua única boneca. Chorou forte e abraçou o que restava do velho brinquedo. O abraço do amante agora representava a força que a tornava capaz de enfrentar os fantasmas que lhe atormentavam desde a infância. O sorriso sincero do homem corpulento alimentava a sua alma e a tornava apta a superar os seus maiores medos. Ao lado dele, seus algozes não conseguiam paralisá-la. A dor que sentia pela perda da família, neste instante, deu lugar ao sentimento de esperança e à crença de que a vida vale a pena. Essa era a primeira vez que se sentia inteira e de fato tendo um encontro consigo mesma. “A melhor maneira de superar os sofrimentos é tendo um encontro com a própria alma e permitindo que a força cria12
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dora flua pelos poros, renovando as energias”, concluiu, em pensamento, com os olhos fechados. Lembrou-se também dos momentos felizes ao lado da família antes do trágico acontecimento. Todas as manhãs acordava cedo e junto com a mãe ia até o celeiro para ordenhar e alimentar os animais. Quando a porta se abria, os bichos corriam em sua direção. Conhecia cada um pelo nome e acariciava-os como se fossem filhos. O papagaio gritava animado: “Comida! Comida!” e pulava em seu ombro. Sentia o cheiro bom dos grãos de café torrados na hora... esse cheiro nunca mais lhe saiu da memória, desde o dia em que seu pai trouxe o grão negro de uma de suas viagens. A rotina era severa para a sua idade, mas nunca reclamava, pois sabia da necessidade de cumprir as suas obrigações para ajudar a família pobre. A mãe era uma mulher forte e acumulava as tarefas domésticas com os afazeres do sítio, uma vez que as idas e vindas do pai como mercador não o permitiam fazê-lo. Dona Vera fazia um pão como ninguém e uma comida de lamber os beiços. A mulher branca falava alto e gesticulava bastante; não tinha lá muito jeito com criança, mas nunca deixou de dar carinho à única filha. A senhora, assim como o seu marido, gostaria de ter mais filhos, mas, por algum problema que só Deus sabe, tiveram somente a pequena morena. Era assim que o pai a chamava. O retorno do mercador era só alegria. Parecia dia de festa. Ele sempre lhe trazia alguma lembrança e ficava horas e horas contando a ela as aventuras de sua viagem. Apesar da pouca idade, a mãe sempre a orientou a aprender tudo o que fosse possível para a sua sobrevivência. Parecia uma premonição. A menina tinha pressa nos afazeres; precisava de tempo para correr à casa do tio Galeno e ter aulas de leitura. Ele dizia que ela era muito inteligente e esperta; talvez esta certeza justificasse o seu empenho nas lições. Apesar de não ser comum mulher estudar, ela fazia disso uma brincadeira gostosa. Clara não gostava das tarefas domésticas; preferia as intermináveis aventuras com os livros... Sabia que o estudo era o caminho que a levaria rumo à liberdade. Tinha sede do saber e arregalava os olhos atenta a cada explicação do tio. O mestre dizia que era necessário exercitar a imaginação, pois poderia transportá-la para qualquer lugar. Mas Clara era uma criança arteira também. Responsável, mas artei13
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ra. Adorava subir e descer em árvores, e correr pelos morros brincando de pique e pega com as primas. Eram seis irmãs, todas com idades próximas, e moravam na casa da frente. A tia, uma mulher doce e meiga, fechava os olhos para as traquinagens das meninas, pois achava que a severidade do pai, que sempre sonhou ter filhos homens, já as punia costumeiramente. Ao entardecer elas se reuniam para jogar com bolas feitas de couro e bexigas de animal e também lutar com espadas de madeira. À noitinha, nos dias de inverno intenso, brincavam de boneca de pano na frente da lareira. Tio Galeno era um homem de meia-idade e passava a maior parte do dia enfiado no pequeno cômodo da casa que chamava de laboratório. Lá fazia seus estudos e experiências científicas. Já havia criado diversas engenhocas. Clara passava horas e horas acompanhando-o em seus experimentos e, a cada nova descoberta, ele a pegava no colo e rodopiava com uma risada de dar gosto. O que mais a animava era ficar horas observando as estrelas. Cansara de sair da cama sorrateiramente para acompanhá-lo nessas expedições noturnas. Ela queria entender como as coisas funcionavam e tio Galeno parecia ter a chave de todos os segredos. Com o tempo percebeu o sentido do que ele dizia: “O conhecimento é o portal do futuro; quem o consegue transpor vê um horizonte se abrir diante dos seus olhos”. A busca por conhecimento sempre foi a sua meta de vida. Intensificou sua dedicação aos estudos depois da morte da sua jovem esposa no parto da primeira filha. A lacuna deixada pela perda das duas passou a ser preenchida com as horas e horas de pesquisas, embora tivesse deixado a universidade há algum tempo. Ao sentir a mão macia do amado acariciando suavemente os seus cabelos, Clara despertou das lembranças e concluiu que o nobre rapaz surgira em seu caminho não só para salvá-la, mas para lhe mostrar um mundo com novos horizontes. Depois de sentir o gosto de percorrer a própria história, ela deu um suspiro profundo e rendeu-se ao sono nos braços de seu protetor. A aurora pintava o céu com uma mistura de cores: amarelo, vermelho e lilás, e o amanhecer iluminava o rosto do casal que adormecera abraçado sob a proteção do velho carvalho. Quando os olhos do jovem se abriram, ele viu o espetáculo do céu e ficou imóvel observando a luz que batia no rosto da linda mulher. Seus cabelos compridos deslizavam 14
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por entre os dedos e seus lábios carnudos suplicavam um beijo. Ainda de olhos fechados ela riu ao sentir o toque suave de sua boca. Ele se levantou, colheu um gerânio cor de vinho na trepadeira que percorria o galho da árvore e colocou no cabelo da moça. Ela sorriu e o abraçou suavemente. Continuaram a montaria em direção à cachoeira. O mato ficou mais denso e engarranchava nas patas do belo corcel negro. Uma paisagem se descortinou diante deles. O homem correu o olho pela região em busca do melhor lugar para parar. Amarrou cuidadosamente o cavalo no tronco. A queda d´água formava uma espuma e um arco-íris reluzia no espaço. A água fria tocou os corpos nus e um arrepio suave tornou-se visível. Como crianças, brincaram de jogar água um no outro. Sorriam sem cessar. Ele a pegou no colo e rodopiou. Clara sentia a água da cachoeira bater sobre os ombros numa massagem relaxante; era como lavar a alma e deixar escorrer as mágoas e frustrações que a vida lhe trouxera. De mãos dadas, o casal seguiu flutuando e olhando o céu, permitindo que a correnteza o levasse até um lago cristalino e calmo, como quem se lança na vida sem restrições. Ele a convenceu de que fazer um mergulho era como realizar uma viagem ao infinito. Depois de superar o medo, ela topou a ideia e partiram rumo ao fundo do lago. A experiência despertou emoções que talvez já existissem em seu interior. Era uma sensação de viver os limites da natureza. O que parecia insanidade do tio sobre a impressão de que o tempo e o espaço não são lineares agora se apresentava como a mais absoluta verdade. Se não fosse loucura, diria que é semelhante a viajar pelo passado e pelo futuro; embaixo d´água se perde a noção de tempo e de espaço. Viram juntos cardumes enormes com peixes coloridos de todos os tamanhos e também o que restara de um naufrágio. Saíram da água em uma pequena praia, cercados de plantas imensas e exóticas, que circundavam o espaço. O lugar transpirava paixão. Numa divertida brincadeira, ela correu e ele a perseguiu. Caiu no chão rindo bastante e o corpo do rapaz se sobrepôs ao dela, impossibilitando-a de se levantar. Ele segurou-lhe os braços esticados, enquanto beijava-lhe lentamente o pescoço. Ela impediu suavemente o avanço do cavalheiro, com sua mão esquerda tocando-lhe o peito; sua atitude era aparentemente contida, já que sua mão direita o envolvia. Em uma dualidade 15
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feminina, ela queria e não queria. Por sua vez, o rapaz, apaixonadamente ousado, a abraçou com sua mão esquerda, enquanto a direita, insinuante, acariciou lentamente um de seus seios. Clara sentiu a pele macia e quente do vigoroso tronco que lhe roçava a carne. Depois de um arrepio, se entregou em um longo beijo. Os corpos se encaixaram permitindo o trânsito do fluxo da vida em uma onda de prazer. Ela sentiu os espasmos do corpo do amado dentro dela até convulsionar em êxtase. Jamais, imaginara sentir tamanha felicidade. Foi abrindo os olhos devagar e percebeu que estava em um lugar estranho. Era um quarto pequeno, com uma janela de madeira coberta por uma cortina encardida; as paredes eram feitas de pedras empilhadas e entrepostas com barro batido. Ao seu lado, uma mulher magra, de aparência simples, segurava um copo com água. – Toma! Vai lhe fazer bem. Você passou muito tempo dormindo. Clara olhou para ela surpresa. Será que tudo não tinha passado de um sonho? Que lugar é este? Onde está aquele homem que me salvou? Muitas perguntas lhe surgiram e ela não sabia o que fazer. Tudo parecia tão real! As lembranças da infância, estas sim, tinha certeza de que eram reais. Sentiu uma dor na cabeça e, ao passar a mão, percebeu uma ferida do lado esquerdo da testa. Não se lembrava do que tinha acontecido... a única coisa viva em sua mente era a imagem daquele que talvez fosse o seu salvador. – Onde estou? O que aconteceu? Quem é você? – Senhora, eu sou Lina, vossa serva. O duque Artur Ferraz me deu a missão de servi-la. Estamos em uma cabana no meio da mata. Ele a trouxe para cá depois do ataque que sofreu, contou-lhe a mulher enquanto refazia o curativo na cabeça. – Mas... quem é o duque Artur Ferraz? – É apenas um homem de bom coração, respondeu a serva. – Preciso ir embora. Clara tentou levantar, mais ainda titubeou e sentou-se na cama novamente. – É melhor que repouse. A senhora teve muita febre e delirou bastante. Clara tomou o chá olhando de um lado para outro, na expectativa de reconhecer algumas daquelas coisas. “Aqueles momentos mágicos foram apenas um delírio”, pensou desolada. 16
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– Mas quem é esse bondoso homem? insistiu com impaciência. – Ele é um homem importante. Administrador da província de Lucca. – Por que ele me trouxe para cá? – Para proteger você daqueles que a atacaram. Clara foi recobrando a memória e a imagem do ataque foi voltando à sua mente. Chorou copiosamente e foi consolada pela mulher simples e doce. – Você de certa forma também está presa aqui comigo. Isto não a incomoda? – Não. Estou aqui há algum tempo e sei exatamente o que você está vivendo. Pode contar comigo para tudo. – Obrigada. O que me tranquiliza é que, do mesmo modo que sempre encontro pessoas injustas e cruéis, também tenho encontrado pessoas bondosas e amigas, como você. Obrigada! voltou a repetir limpando as lágrimas. – Não tem o que agradecer; faríamos isso por qualquer pessoa. Também tive a minha vida decepada pela injustiça, fruto da ignorância dos desígnios de Deus. Aquela mulher com marcas de sofrimento, certamente tinha muita história para contar, mas a imagem do homem que a salvara não saía da cabeça de Clara. – Quando poderei agradecer ao seu senhor? Antes mesmo que pudesse responder, Lina agitou-se ao ouvir vozes distantes. – Que foi? perguntou Clara sem entender. – São vozes! precisamos fugir rápido. – Não ouvi nada. – Quando os sons percorrem caminhos longos é preciso experiência para percebê-los. Rápido! Vamos antes que eles cheguem. A criada catou um saco com alguns pertences que possivelmente havia sido preparado para momentos como este e saiu amparando Clara pela porta afora. Jogou o embrulho por sobre a sela, auxiliou a enferma a montar e saiu apressadamente puxando as rédeas do cavalo.
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e CAPÍTULO 2
E
ncolhido pelo frio, Artur anda apressado pelas travessas e ruazinhas muito estreitas, sobre as quais se alçam torres e se abrem nas improvisadas aberturas das pracinhas. Os flocos de neve cobrem os telhados, formando um confeito branco. Os cristais de gelo tocam-lhe o rosto e rolam pelo casaco com o movimento ligeiro. Ele passa em frente à Igreja de San Frediano, caracterizada pelo mosaico que domina a parte alta da fachada e vê em toda a zona ao redor as mênsolas e armações de madeira muradas das entradas de muitas lojas artesanais. No percorrer da via elegante e pitoresca, vê casas e torres, embelezadas por elementos em ferro batido. No fundo da rua sem saída, crianças formam um boneco de neve em frente à bela casa de portas espessas. Artur entra, retira o casaco e senta-se em frente à lareira que queima um fogo vermelho e forte. O casarão, deixado de herança pelo pai, possuía uma sala de pé direito duplo, com janelas imensas, que permitiam a entrada do verde do jardim, já esbranquiçado pela neve. Um tapete cobria grande parte do piso de mármore. Os móveis de madeira robusta eram iluminados por um grande lustre. No canto, um velho piano, peça favorita de Artur. Era ali que, na infância, passava os fins de tarde, atento às histórias de batalhas do pai,enquanto o ouvia tocar boas melodias. Senhor Miguel foi um homem íntegro, que defendeu a província em diversas ocasiões como comandante de tropas. Era respeitado e admirado por todos. Dele Artur herdou o jeito gentil mas firme de ser. Da mãe Artur se lembrava pouco, pois falecera quando ele era ainda criança, de complicações no parto do que seria o seu irmão caçula. Isso o aproximou muito do pai, mesmo com a existência de um irmão mais velho. O primogênito sempre teve um temperamento complicado e não 18