Menina Mitacu単a
Paulo Stucchi
Menina Mitacu単a
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057
Stucchi, Paulo Menina - Mitacuña / Paulo Stucchi. São Paulo : Schoba, 2012. 256 p. ISBN 978-85-8013-195-6 1. Literatura brasileira 2. Guerra do Paraguai 3. Guerra da Tríplice Aliança 4. Acosta ñu 5. Paraguai I. Título 12-0311
CDU 82-31 CDD 869.3
Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura brasileira
À minha esposa Josy. Ao meu filho Pedro. Cada letra deste livro é para vocês. A Ricardo González Rodrigues, professor e intelectual paraguaio que escolheu o Brasil como lar para sua família, e que contribuiu de modo impagável neste livro, auxiliando nas traduções para o guarani. Ao meu editor Thiago Schoba, pelas horas de conversas e ideias que se perderam entre taças de vinho enquanto falávamos sobre Menina.
Capítulo 1 21 de agosto de 1869
No instante em que quatro enormes gotas d’água atingiram sua testa, Negro João acordou em sobressalto. Num gesto instintivo de quem lutara a vida toda pela sobrevivência, envolveu, com sua enorme mão direita, a pistola presa ao cinturão. Agir antes de pensar. Para muitos de seus colegas, esse fora o lema que os mantivera vivos num cotidiano de guerra. Mesmo enquanto dormia, Negro João ouvia claramente o estrondo dos canhões, o barulho produzido pelo impacto das balas disformes contra o solo, o cheiro e os grãos de terra que se perdiam no ar. Mas, o pior de tudo, de tudo mesmo, era o cheiro de sangue. Várias foram as vezes em que lavou com insistência insana seu corpo coberto pelo sangue dos bugres, como seus camaradas chamavam os soldados paraguaios. Porém, ainda que sua pele negra estivesse limpa, o cheiro acre do sangue permanecia, penetrava-lhe as narinas largas e tomava de assalto todos os cantos do cérebro. Mesmo que voltasse vivo ao Brasil, acreditava que o cheiro nojento de sangue nunca sairia de suas narinas — e de seu coração. Às quatro gotas que acordaram Negro João, seguiram-se ou-
tras tantas que molharam seu rosto, o peito nu e o forte tronco parcialmente coberto pelo uniforme surrado do exército imperial. Negro João percorreu os olhos pela sala ampla. Os sofás de couro trazidos da Espanha e a decoração que mesclava o gosto aristocrático e rústico ainda estavam lá, intactos. Ergueu os olhos para o teto e constatou que as gotas caíam por uma fresta no forro do casarão. Lá fora, chovia a cântaros. Agora que estava acordado, notara que o barulho da água caindo sobre o teto semicoberto por telhas produzia um barulho ensurdecedor. Era realmente incrível que tivesse conseguido dormir tão profundamente com um barulho tão estrondoso. Ele e a menina haviam chegado à fazenda no final da tarde do dia anterior. A propriedade não era muito grande, mas apresentava restos de um lugar que, um dia, fora próspero e rico. O interior do Paraguai era pontilhado por propriedades do tipo, a maioria servindo para a plantação de algodão e mate ou criação de gado. Porém, agora tudo não passava de um cemitério preenchido por lembranças de uma prosperidade morta. Negro João vira muito do cenário rural paraguaio. Foram inúmeras as vezes em que passara por propriedades como aquela. Abandonadas, saqueadas. Seus donos, diziam, fugiram para a capital ou para a Argentina. Outros, no entanto, haviam tido menos sorte e morreram. O preço da guerra. A única coisa em comum entre essas duas realidades é que, invariavelmente, estes latifúndios, um dia pujantes e prósperos, haviam sido saqueados tanto pelo exército paraguaio quanto brasileiro. A necessidade de sobrevivência fazia o homem cometer atos insanos. Mas ele não era saqueador. Caminhara dois dias seguidos sem dormir. Várias vezes teve que carregar a menina no colo. Noutras, teve que segurar a irritação pelo choro contido da garota. Quando avistou a vaca magra, de aspecto doente, caminhan10
do rente à cerca de madeira tombada, não teve dúvidas. Tinha que comer. E mais, tinha que alimentar a menina. Ele era um homem feito, escravo, talhado para sobreviver a uma existência de dificuldades. Mas a garota não tinha mais de dez anos. E crianças têm que comer. Para ele, já fora surpreendente a guria conseguir andar aquela distância toda, sob sol e calor, sem emitir um único som de reclamação. Ela quase não falava, e, quando cuspia poucas palavras, falava numa língua que Negro João não compreendia. Após três anos no Paraguai, conseguira compreender um pouco de espanhol, mas não entendia por que o povo que vivia nas localidades mais ermas falava um idioma tão estranho, tão diferente. Língua de índio, certa vez explicara um oficial. Então, deveria ser isso. A menina falava língua de índio. De certo modo, a pequena indiazinha estava numa situação melhor do que a dele, cuja boca não emitira um único som desde os dezessete anos. A sola de seus pés grandes e descalços fazia o piso do chão de linóleo gemer. Parecia que cada passo seu esmagava as finas tábuas de madeira que, um dia, foram envernizadas e polidas. Então, percebeu que ainda segurava a pistola. Raios de luz entravam pela porta entreaberta do casarão colonial. Negro João chegou a ver beleza naquilo. As réstias do sol traziam um pouco de vida àquele ambiente que, em tudo, lembrava desolação e morte. Empurrou a porta e seus olhos foram imediatamente cegados pela claridade. Apesar da chuva tropical torrencial, o dia estava absurdamente claro. O céu era de um azul lindo. Várias foram as vezes em que Negro João se questionara como era possível haver guerra e sangue sob um céu tão lindo. Chegara a achar o céu paraguaio mais puro e sincero do que o de sua terra natal, no Brasil. Talvez porque tudo o que o firmamento sob o qual crescera representasse apenas dor. 11
Surpreendeu-se ao notar que estava verdadeiramente preocupado com a pequena indiazinha. Procurou sinais da menina na ampla varanda da qual podia se enxergar uma enorme planície. Léguas e léguas de campo. Mais adiante, os sinais mortos do que um dia fora uma plantação de erva-mate. Num canto da varanda, ainda estavam os restos da vaca doente que servira de alimento para ele e a menina na noite anterior. O animal quase suplicara para que Negro João o matasse, que desse fim à sua dor. A pele coberta por pelo marrom tinha vários furos provocados por mosquitos. Os olhos azulados e opacos indicavam que, o que restava de vida naquele corpo, tinha se esvaído. Fora necessário apenas um golpe de sabre para que a vaca moribunda caísse, imóvel. Então, Negro João começou a destrinchar o animal. Não era possível fazer fogo sem que corressem o risco de serem avistados, então, a solução foi comer a carne crua. Para ele, isso já era algo comum. Se inicialmente o gosto de sangue e a textura fibrosa lhe causavam náuseas, os anos de guerra fizeram com que o sabor da carne crua não fosse impecílio algum. Nos últimos meses, os poucos e esmilinguidos gados confiscados e abatidos pelas tropas do Império eram a única fonte de alimento, além das raízes e aves. A má alimentação e o desgaste das campanhas de incursão pelo interior do Paraguai fez com que muitos homens caíssem doentes, vitimados, principalmente, pela cólera e intoxição. Conforme sua tropa fora penetrando o território paraguaio, a escassez de recursos e a convivência com a fome tornaram-se companheiras dos soldados. Negro João perdera muitos companheiros, de malária ou, simplesmente, vencidos pela fome e anemia. Para sua surpresa, a menina também comera a carne crua com avidez. Mastigava como se aquilo fosse a melhor refeição de sua vida. “Deve estar faminta. Provavelmente, a pequena não come 12
há dias”, pensou. Isso também não o surpreendia. Assim como os soldados, a população do interior também sofria com a peste e fome. Uma desolação doentia e pútrida, impossível de ser apagada da memória. A carcaça do animal abatido estava coberta por moscas verdes. Negro João achou indigno o final daquele animal estúpido que dera a vida para matar a fome dele e da menina. Mas cuidaria das moscas depois. Primeiro, tinha que encontrar a indiazinha. Não havia sinal dela do lado de fora, o que deixava a hipótese de que a guria estivesse dentro do casarão, dormindo em algum cômodo, ou caminhando sob a chuva. Ela adormecera ao lado de Negro João, respirando num ritmo angelical, mas agora estava sumida. Abrir os olhos e não encontrar vestígios da menina causou um aperto incômodo no peito do imenso homem negro. Ela deveria estar ali. E, ele, deveria garantir sua segurança. Prometera isso. E se algo tivesse acontecido à paraguaiazinha? Como cumpriria sua promessa? Se conseguisse falar, chamaria a menina aos berros. Mas sua garganta não emitia sons. E, mesmo que pudesse falar, o que diria? A indiazinha balbuciava coisas que ele não entendia, e não dava o mínimo sinal de falar ou compreender português. Girou sobre os enormes pés e caminhou em direção ao interior do casarão. Se não estava no campo, sob a chuva, estava num dos quartos. Encontrava-se com metade do corpanzil no interior da sala do casarão quando ouviu um som que lembrava uma voz humana. Quando chegara, não havia uma vivalma ali. O instinto de sobrevivência fez com que agarrasse a pistola novamente. Havia deixado o sabre junto ao sofá, e, se precisasse, só poderia recorrer às balas. “Depois de tanto tempo no inferno, onde homens se tornam animais e animais são mais humanos do que qualquer um de 13
nós, aprendemos a distinguir as coisas pelo cheiro”, pensou Negro João, quando teve a certeza de que sentira cheiro de doença se aproximando. Com a arma na mão direita, olhou em direção ao campo, cenário turvo em virtude da chuva intensa. Reconheceu um homem magro de aparência doentia caminhando trôpego pela grama. Trajava unicamente uma calça branca. Tinha pele jambo e traços fortes, indicando que era guarani. “Um bugre”, certificou Negro João, caminhando alguns passos adiante. O homem emitia grunhidos selvagens. Quase não se enxergavam os seus olhos. Do contrário, havia apenas uma grande mancha negra, formada no interior de dois sulcos profundos. — Por Dios, ayúdame — murmurou o sujeito. Negro João não falava espanhol ou português, mas conseguiu entender o moribundo. Ficou imóvel no topo dos cinco degraus que davam acesso à varanda, sustentando a pistola. O sujeito era jovem. Não devia ter mais do que vinte ou 21 anos, analisou Negro João. Porém, estava em condições lamentáveis, que o tornavam um cadáver ambulante. Contudo, o jovem combalido adquiriu uma fisionomia aguerrida quando se aproximou de Negro João. Erguer os olhos parecia fazer com que despendesse uma energia que não possuía mais, porém, ainda assim cerrou os dentes numa expressão selvagem. — ¡Negro, diablo brasileño! — grunhiu, e depois repetiu em guarani: — Cambá aña1! Negro João reconheceu uma pequena adaga presa na mão do moribundo. Também viu quando o brilho do metal cruzou o ar em sua direção. Tomado pela raiva, aquele jovem ainda conseguia exalar algum resquício de vida. Num gesto frio, Negro João ergueu o braço pesado e apontou 1. Diabo negro, em guarani
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a pistola na direção do jovem. O tiro certeiro abateu o guarani quando este atingiu o primeiro degrau. O impacto lançou seu corpo macilento para trás, e, por fim, tombou imóvel, morto sobre o campo, com os olhos estalados na direção do céu. Negro João reconheceu a calça como peça do uniforme do exército paraguaio. “Ele está melhor morto do que vivo”, ponderou, agachando-se e tirando do pescoço do corpo imóvel um crucifixo talhado em madeira e preso por um cordão preto. Nunca entendeu o Deus de que tanto sua mãe falava. O mesmo Deus do dono das terras em que nasceu e viveu, assim como sua mãe. O mesmo Deus que parecia ser mais gentil com os brancos do que com as pessoas como ele, mas que, ainda assim, era venerado pelo seu povo. Com delicadeza, Negro João fechou os olhos do jovem morto e lançou o crucifixo para longe. Nisso, ouviu os passos apressados atrás de si. Havia alguém parado, imóvel, rente à porta. A menina tinha a respiração ofegante e os olhos amendoados marejados. Já vira tantos do seu povo morrer e, ainda assim, conseguia chorar quando alguém morria. Negro João invejou a paraguaiazinha, porque ele próprio já havia se esquecido de como chorar. Colocou a enorme mão nas costas da menina e, delicadamente, de um modo quase paternal, conduziu-a para o interior da casa. Se ele estava certo e o jovem paraguaio — que jazia imóvel sobre o campo da planície que cercava a propriedade — era realmente um soldado sobrevivente ou desertor, logo mais eles chegariam, e, se isso ocorresse, Negro João e a indiazinha corriam perigo. Guardou o sabre na bainha e arrumou-se para partir. Desde que assistira à morte do jovem soldado, a menina havia se fechado num mundinho só dela. Ficara encolhida num canto da 15
enorme sala aristocrática, com o rosto metido entre as perninhas finas. Negro João deduzia o quão sofrido deveria ser para uma criança viver num país que agora era formado por cadáveres. Certamente a indiazinha não tinha mais ninguém neste mundo, nenhum parente com quem pudesse contar. Todos estavam mortos. Ainda assim, tinha que arrancar forças daquele corpinho malnutrido e incentivar a menina a caminhar com ele rumo a Assunção. Afinal, ele prometeu que deixaria a menina em segurança na capital paraguaia, agora tomada e infestada de brasileiros e argentinos. Se fosse preciso, carregaria a guria em parte do caminho quando suas pernas curtas cansassem. Dirigiu-se até o canto em que a menina estava encolhida e tocou suavemente seu braço esquelético. Como ela estava sem reação, repetiu o gesto. Desta vez, a menina ergueu a cabeça e voltou para Negro João aqueles olhos imensos que pareciam falar mil vezes mais do que qualquer coisa que saísse de sua boca. Negro João reconheceu o olhar assustado e estendeu sua enorme mão para a menina. Relutante, a garota levantou-se, negando-se, contudo, a aceitar a ajuda do homenzarrão à sua frente. Como se ciente do que deveria fazer, caminhou de modo desleixado até a porta por onde entravam, sem cerimônia, os raios fortes do sol. A chuva se fora e, agora, um calor úmido e abafado tomava conta do ambiente. Apesar de ser agosto e o inverno ainda não ter se despedido, os dias no interior daquele país miserável costumavam ser quentes, ainda que a temperatura caísse bastante à noite. Negro João respeitou o silêncio de sua jovem protegida, e, sozinho, decidiu explorar o casarão. Entrou nos dois quartos do piso inferior, depois revirou a despensa da cozinha atrás de algum alimento. Porém, não encontrou nem mesmo um pedaço de pão mofado. Se havia algum alimento naquela casa, certamente 16
teria sido saqueado pelos exércitos ou por bandidos. Depois, subiu a escada sinuosa e imponente, símbolo da aristocracia protegida por Solano López. A escada terminava num corredor escuro. Assim como no andar inferior, o linóleo do piso estava gasto. Nas paredes, estavam apenas marcas claras onde, um dia, houvera quadros pendurados. Os candelabros presos às paredes também haviam sido arrancados. Negro João entrou no primeiro quarto, cuja mobília indicava ser um tipo de escritório. As estantes estavam vazias e os poucos livros que não foram levados encontravam-se atirados ao chão. Muitos tiveram as páginas arrancadas. Deixou o cômodo e entrou no seguinte, cuja porta estava trancada. Era um quarto de casal com uma cama grande localizada bem no centro do cômodo. As gavetas estavam abertas, mas não havia uma única peça de roupa. Possivelmente, o casarão havia sido saqueado. Isso era algo comum. Aquilo que as famílias aristocratas não conseguiram colocar na bagagem e levar na fuga acabava sendo alvo de pilhagem dos soldados aliados. O terceiro quarto visitado por Negro João era de criança. Duas camas menores e um guarda-roupa imponente, mas igualmente vazio. Um cavalo de madeira que servia como balanço estava só no meio do cômodo. A família que vivia naquele casarão certamente teve tempo de fugir e levar o que pôde, deduziu. O próximo quarto era pequeno e localizava-se no final do corredor. Negro João julgou ser o dormitório de algum empregado da fazenda, já que era menor e bem menos cuidado que os demais. O cômodo era minúsculo e sua mobília consistia de uma cama com colchão de palha bem velho e uma cômoda. Ele abriu gaveta por gaveta e ficou feliz ao encontrar duas camisas brancas. Contudo, logo verificou que o dono tinha pelo menos metade de seu físico e que, certamente, as roupas não serviriam nele. Ainda 17
assim, pensou na menina e decidiu levar as peças. Restava ainda um quarto, localizado imediatamente à frente dos aposentos do empregado. A porta estava fechada e, quando Negro João tentou abri-la, constatou que a fechadura estava emperrada. Jogou o forte ombro contra a porta e esta cedeu sem resistência. Era um cômodo igualmente pequeno, porém, decorado com delicadeza. A caminha era envolta num mosquiteiro, e o guarda-roupa era pintado de branco e um tom claro de rosa. Um quarto de menina, certamente. Revirou as gavetas e olhou sob a cama. Nada. Empurrou o guarda-roupa e retirou todas as gavetas, mas não encontrou uma única peça de roupa. Foi então que notou uma boneca de pano, vestida com uma saia azul-clara, jogada atrás da porta. Um brinquedo deixado para trás na fuga. Apanhou a boneca e prendeu-a ao cinturão. Jogou as duas camisas sobre o ombro e desceu a escadaria. A menina ainda estava ali, imóvel, junto à porta. Olhava de modo perdido para o horizonte, como se perguntasse para onde havia ido o país que conhecera ao nascer. O país dos seus pais, de seus avós. O país que um dia venerou El Mariscal2 a ponto de imergir numa guerra insana e dar sua vida por ele. Negro João aproximou-se vagarosamente da indiazinha, que, notando sua presença, limitou-se a virar parcialmente o pescoço. Ela sabia o que significava aquele soldado alto, negro e forte caminhando em sua direção. Eles tinham que partir. Antes, porém, Negro João entregou a boneca de pano para a menina. Seus olhos amendoados brilharam ao encontrar o brinquedo, porém, ela não se mexeu. Simulando indiferença, cami2. El Mariscal era um dos títulos pelos quais Francisco Solano López era conhecido no Paraguai.
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nhou para fora do casarão. Negro João soltou um suspiro e achou graça na indiazinha, que partia à sua frente para a vasta planície. Prendeu novamente a boneca no cinturão e decidiu: era hora de partir.
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Capítulo 2 22 de agosto de 1869. Acampamento brasileiro nas imediações de San Bernardino
O cabo Filipe Reis apalpou o lado esquerdo do rosto. Conferiu o considerável volume de ataduras onde, antes, estava sua orelha. A dor lacerante e aguda da lâmina decepando pedaços de sua carne ainda era viva em cada célula e poro de seu corpo. Uma quantidade ainda maior de curativos envolvia parte de sua mão esquerda, da qual os dedos mindinho e anular haviam sido arrancados. Podia estar ficando louco, mas ainda sentia claramente a presença de seus dois dedos ali. Era uma sensação torpe tão forte que o cabo Reis ainda duvidava se tudo não passava de um sonho ruim. Então, constatou que estava mesmo acordado, sentado sobre cobertores dobrados de forma a servirem de cama improvisada, relativamente confortável. Os doentes e feridos de guerra raramente sobreviviam, e, por isso, não era lógico que muitos recursos fossem gastos com eles em detrimento dos soldados sadios, mas famintos e cansados. Contudo, o cabo Reis não se julgava um moribundo. Sentia a vida pulsar dentro de si, ainda que seu corpo estivesse mutilado.
Tornou a descansar o corpo sobre a cama improvisada e fixou os olhos no tecido da barraca, que se movia sobre sua cabeça. Uma brisa quente, como um ar abafado, sibilava lá fora. A figura esguia e extremamente magra do doutor Florêncio Fontes, assistente do chefe médico do destacamento que lutara em Caacupé e San Bernardino3, apareceu na entrada da tenda que servia de quarto de hospital para o cabo Reis. Doutor Fontes era um jovem médico pernambucano, filho de família abastada de Olinda, que se voluntariara para viajar e prestar serviços médicos no Paraguai. Sua fama incluía a de ser hábil cirurgião e de ter uma paciência interminável com seus pacientes, mesmo em situações extremas. Algumas de suas destezas corriam à boca pequena entre as tropas. Entre elas, feitos quase impossíveis, como salvar membros mutilados ou mesmo executar pequenas e bem-sucedidas cirurgias de risco em pleno campo de batalha — algo arriscado num cenário em que infecções causadas pela falta de higiene e de condições acépticas mínimas eram comuns. Talvez os anos que ainda lhe restavam na medicina e as cruezas da profissão tratassem de endurecer aquele coração jovial. Mas, até lá, doutor Fontes dedicava uma atenção ímpar a cada mutilado e agonizante ferido no campo de batalha. Ao notar cabo Reis refeito, o doutor Fontes abriu um sorriso agradável. — Fico feliz em ver que estás melhor, cabo — disse o jovem médico. Cabo Reis nada respondeu. Limitou-se a olhar para a mão esquerda enfaixada. — Certamente já percebeste que não pode3. Caacupé e San Bernardino são cidades tradicionais do Paraguai, hoje localizadas no Departamento (estado) de Cordilheiras. Caacupé é a capital religiosa paraguaia, famosa por sua basílica, e consagrou-se por ter recebido a visita do Papa João Paulo II em 1988. Já San Bernardino possui hoje forte influência germânica, e é considerada uma estância de clima fresco e agradável.
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rás usar essa mão como antes. Mas a boa notícia é que a direita está intacta, e, portanto, em nada serão prejudicados os estimados serviços que vosmecê presta ao exército imperial. Cabo Reis deu um riso irônico, mas rapidamente se recompôs ao perceber a figura austera do major Cândido Mascarenhas surgir atrás do jovem médico trajando o uniforme imperial azul impecavelmente arrumado. Com algum esforço, colocou-se de pé. Era a primeira vez que levantava em seis dias de convalescença. Bateu continência e observou o major entrar em sua barraca, puxar um pequeno banco rústico de madeira e sentar. O militar acenou para que o cabo Reis dispensasse as formalidades e soltou um suspiro cansado. — Como se sente, cabo? — perguntou o major, com voz forte, dissimulando o abatimento. — Estou bem, senhor. Praticamente novo — disse cabo Reis, ainda em pé, mantendo o corpo ereto e firme como um tronco. — Que bom, que bom... — o major acariciou a barba longa e parcialmente grisalha. Depois, continuou: — Assim que estiver recomposto, apresente-se às barracas dos oficiais, cabo. Sua Excelência, o conde, deseja lhe falar. Cabo Reis sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. — Sua Excelência, senhor? — murmurou. — Isso mesmo, cabo. Acho que fui claro — o major Cândido Mascarenhas apoiou as mãos sobre os joelhos e ergueu-se com visível esforço. — Sua Excelência, o conde d’Eu, deseja ter contigo assim que estiver recomposto. Acho que não preciso detalhar o que essa honra significa, não é, cabo? Cabo Reis mexeu a cabeça, agitado. — Não. Não senhor — lançou um olhar furtivo ao doutor Fontes e, depois, tornou a focar seu superior, em pé à sua frente. — Colocarei meu uniforme e me apresentarei a Sua Excelência o mais rápido possível, senhor. Como vê, estou perfeitamente bem. 23
— Excelente, excelente! — disse o major, agachando-se preparado para deixar a barraca. — E tome um banho. Este lugar está cheirando à morte e carniça. O oficial deixou o doutor Fontes e o cabo Reis a sós. O jovem médico ainda sorria de modo simpático. — Arrume-se, cabo. Fico feliz de ver que estás perfeitamente bem e saudável. Uma boa alimentação e um pouco mais de descanso o farão novo. Cabo Reis agradeceu com um leve aceno. O doutor saiu e, agora, ele estava sozinho novamente. Seus ouvidos ainda não acreditavam no que tinham ouvido. O chefe das tropas do Império em pessoa queria ter com ele. Era uma honra sem precedentes, mesmo para alguém que, como ele, vinha de uma linhagem tradicional de fidalgos portugueses que haviam fundado estâncias na província do Rio Grande do Sul. Repentinamente sua vista tornou-se turva, e, por pouco, ele não sucumbiu. Ainda estava fraco, perdera muito sangue. Sentou-se no banco rústico que, segundos antes, fora usado pelo major Cândido Mascarenhas. Usando os dentes e a mão direita, arrancou a atadura que envolvia parte de sua mão esquerda. As faixas e gazes acumularam-se no chão, aos seus pés. Quando olhou para a mão mutilada, da qual lhe tinham sido arrancados dois dedos, sentiu um nó na garganta. Teve vontade de chorar. Mas não daria esse prazer àquele negro maldito e traidor. Ao contrário; um dia, certamente teria seu corpo enorme tombado diante de si. Reuniu as forças que ainda tinha e preparou-se para o encontro, que certamente seria o mais importante de sua vida.
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Negro João não tinha muitas alternativas senão procurar seguir, com a maior fidelidade possível, a rota que fizera com sua tropa quando deixara Assunção e partira com o destacamento para o interior do Paraguai, à caça de Solano López. Eram poucas as estradas no interior do país e, as que existiam, eram bastante precárias, usadas basicamente para o tráfego rural. Ele e a menina caminhavam há horas por um caminho de terra úmida de cor alaranjada. O cheiro de mato e madeira era forte, e, à medida que a chuva caía de forma intermitente, o odor se intensificava. Haviam comido frutas colhidas das árvores durante todo o trajeto, e o imenso corpo de Negro João já carecia de mais energia. Também reparou que os passos da indiazinha tornaram-se mais lentos. Não foram poucas as vezes em que a menina ficara para trás e tivera que ser carregada sobre os ombros do enorme homem negro. Nas primeiras vezes em que Negro João tentou carregar a menina, ela relutou. Chegou a morder seu braço e, como consequência da malcriação, foi arremessada ao solo com um safanão. Negro João ergueu-a pelo braço e colocou-a sobre os ombros. Nas vezes seguintes em que a menina demonstrara cansaço, ele conseguiu carregá-la sem que houvesse resistência. Havia ficado claro, mesmo sem ter sido pronunciada uma única palavra, quem era o mais forte dos dois. A chuva cessara e a temperatura caía rapidamente. O sol já havia atingido a linha do horizonte e adquiria uma cor alaranjada. Negro João ficou alguns segundos admirando aquela maravilha enquanto sua pequena companheira corria pelo mato colhendo frutas. Logo, a indiazinha correu para o lado do homem grandalhão trazendo um cacho de bananas quase passadas. Sua pequena boca traçava um arco que exibia um sorriso que Negro João ain25