Copyright © Thiago Cruz Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma e por qualquer meio mecânico ou eletrônico, inclusive através de fotocópias e de gravações, sem a expressa permissão do autor. Todo o conteúdo desta obra é de inteira responsabilidade do autor. Editora Schoba Rua Melvin Jones, 223 - Vila Roma - Salto - São Paulo - Brasil CEP: 13.321-441 Fone/Fax: +55 (11) 4029.0326 E-mail: atendimento@editoraschoba.com.br www.editoraschoba.com.br
CIP-Brasil. Catalogação na Publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ C964e Cruz, Thiago de Paula, 1985Encontros angelicais / Thiago de Paula Cruz. - 1. ed. - Salto, SP : Schoba, 2013. 140 p. ; 21 cm. ISBN 978-85-8013-290-8 1. Romance brasileiro. I. Título. 13-03894 CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3
A P R E S E N TA Ç Ã O
Este livro é o registro da entrevista mais estranha que já coletei em toda a minha vida acadêmica. Somente o fato de se tratar de algo advindo de uma única pessoa que se convidou a participar da pesquisa já a tornaria bizarra por si só. No que se refere à estrutura, a autora disse que me contaria seis histórias e que eu deveria ouvir e gravar com atenção e cuidado cada uma delas. A única coisa que fiz em todo o processo foi transformar sua fala em texto escrito e submeter a um concurso literário após seu aval. Somente o fiz para que tamanha esquisitice possa ser lida por outras pessoas além de mim mesmo. Principalmente porque nada do que ela disse tinha a ver com o meu doutorado. Deve ficar claro que o jeito com que ela contava tudo
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era poético. Podia ver seus olhos brilhando a cada cena descrita, mesmo que tenha me fitado poucas vezes. Era como se estivesse dando o seu melhor para relatar, como se o fizesse a alguém que só possuísse a audição. Mesmo eu tendo o trabalho de formatar o relato em um padrão textual com parágrafos e tudo mais, não alterei nada estética, nem estilisticamente neles. Para que não vejam isto como um mero apanhado aleatório, mantive as conversas ao final de cada um dos contos. Assim, comprovarão a unidade e a independência mútua entre os textos.
Espero que tenham uma perturbadora ou, ao menos, reflexiva leitura. Aleph Mattityahu.
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MASHBIR
Vou contar a história de uma garotinha.
Naquela noite quente, ela se sentia fria e podia perceber seu coração batendo forte por debaixo de seu pijama. Tamanha era a sensação que, ao olhar para baixo, podia jurar que, junto ao ainda diminuto seio esquerdo, alguma coisa pulava. Havia decidido, há poucos instantes, que não gostaria de morrer, mas que, ao mesmo tempo, queria conhecer a morte. Agarrando-se a um Novo Testamento que encontrara num banco de madeira esquecido em seu condomínio, tentou deitar-se no sofá da sala para dormir. Já era de madrugada e, mesmo que a hora mais escura ainda não tivesse chegado, o céu estava negro, pontuado por estrelas que, de tão brilhantes, podiam ser vistas por 13
além da cortina tóxica de fumaça que recobria integralmente sua cidade. Faziam companhia a estas luzes celestes, outras terrenas oriundas de prédios e casas vizinhas. Além de dois grandes holofotes ao longe que, provavelmente, eram parte da entrada de uma grande festa. Tendo o breu da sala como amigo, percebeu-se sozinha. Seus pais haviam viajado e, por mais que fosse uma pré-adolescente corajosa, sabia que o salto para lhe mostrar o que aconteceria após a vida era ousado demais. Mesmo para ela. Não odiava sua vida, mas há muito pensava em suicídio. Até conversava sobre isso de vez em quando com algumas pessoas. Destas, poucas a ouviam com atenção, mas de que adiantaria perguntar sobre a morte para quem busca evitá-la a todo custo, incluindo, também, a sua própria? Por isso, meditava por si mesma, pesando as opções e, a cada instante, decidindo sempre por viver.
Com tudo isso em mente e alma, agarrou-se facilmente ao primeiro livro sagrado que tocara em sua vida. Jamais havia lido uma linha sequer da Bíblia, de cuja coleção de livros só conhecia esse nome genérico aplicado a outras compilações em vários gêneros. Mesmo sendo o livro mais vendido do mundo, jamais havia tido uma cópia dele dentro de sua casa.
Não tivera qualquer educação religiosa. Seus colégios, amigos e pais eram cem por cento laicos, como o Estado declarava ser. E todos eles pareciam estar muito confortáveis com a ideia de que a vida é um processo biológico iniciado e que chega, inevitavelmente, ao seu fim, ao nada. 14
Esta proposição, que trazia paz a muitos, não trazia refrigério algum à sua mente sempre ativa. Afinal, sob tal ponto de vista, a vida era mero acidente e sem sentido algum, já que terminaria de vez, num súbito e inesperado lance. Chegou a comparar esta forma de viver com uma festa num romance policial em que os convidados, um a um, iam morrendo em silêncio e o divertimento prosseguia com novos convidados chegando e cobrindo a ausência dos mortos. Terminava por sentir que, de algum modo, somente morrendo desvendaria tais mistérios. E de fato havia considerado seriamente a possibilidade de matar-se. Todavia, optava sempre por viver. Ali, deitada e de olhos fechados esforçando-se para dormir, esquecerase do assunto por alguns poucos segundos. Até que, mesmo sem ter sonhado pesadelo algum ou visto vultos noturnos ameaçadores, foi sendo tomada por intenso terror que fluiu de seu peito até os pés e os cabelos amassados. E abriu os olhos com o susto.
Viu que, além das cortinas semicerradas, outro semblante impedia que olhasse através da grande janela à sua frente. Este, porém, lembrava realmente um humano. Com pavor e receio de que aquilo fosse real, levantou-se, escalando o encosto do sofá sem tirar os olhos da sombria aparição diante dela. Sentia seus dedos gelados neste recuo e, tanto quanto evitava piscar, esquivava-se de olhar, até mesmo com sua visão periférica, outros pontos da sala. Somente piscou, forte, após suas órbitas ressecadas
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clamarem por lágrimas, turvando seu sentido. Nesse ínterim, já estava do outro lado do móvel que desafiara, na porção mais escura do cômodo, torcendo para que aquela pretensa ilusão tivesse sumido. Notou, então, que ainda segurava, firme, o mesmo livro de antes. Todavia, ainda que pudesse se lembrar sobre o que ele tratava, sua circulação cessou, gelando seu coração. Empalideceu e perdeu o calor que se sente no peito ao ouvir uma voz mansa e suave que lhe chamava pelo nome.
Sabendo que teria que fazer alguma coisa e rápido, antes que sua parada cardíaca fosse fatal, optou pelo choque direto. Levantou-se num pulo e correu até o interruptor de luz que estava junto à porta de entrada de seu apartamento. Tão logo o acionou, virou-se em direção ao sofá, seguindo os tacos de madeira no chão. Depois, em um só movimento, voltou os olhos em direção à janela.
Não viu mais um vulto. Estava ali, parado diante dela, um homem jovem, bem apessoado, com um terno preto risca de giz adequado à sua estatura e ao seu porte físico. Ela não sabia se gritava ou se saía correndo; sequer pôde suspirar de alívio com a mudança do que via e temia. Sem ação, agachou-se aos poucos, esgueirando-se na porta, abrindo sua boca em surpresa. O homem, então, sem tirar a mão do bolso direito de sua calça, deu um único passo para frente, desaparecendo no leve espaço em que os olhos ficam fechados ao piscar e ressurgindo logo depois, a meio metro da menina acuada. 16
Ele então se abaixou sobre um de seus joelhos, tirou a mão do bolso e, colocando o dedo indicador sob o queixo da garota, fechou-lhe lentamente a mandíbula sem forçá -la, dizendo com a mesma voz que usara antes e com um sorriso no canto dos lábios: – Ainda não, minha jovem. Ainda não.
Ela, para evitar contrariar aquela pessoa que jamais havia contemplado em toda sua vida, manteve a boca cerrada. Mas seu peito ainda arfava de temor. Entendendo-a, o homem levantou-se, deu alguns passos para longe dela e disse, ainda de costas:
– Eu sei que minha aparência causa isso em você, mas não se incomode. Ou melhor, tente não se incomodar com isso. Obviamente que, diante de tamanha absurdidade, a menina não pôde se acalmar. Atordoada, na mesma posição, desejava tanto que aquilo fosse um sonho ruim, quanto que estivesse tendo alucinações, ou que seus pais chegassem de surpresa e fizessem aquela figura humana desaparecer. Ignorando os pensamentos que lhe surgiam no coração, o homem manteve-se distante e, sem ousar virar-se mais uma vez para ela, disse-lhe com a voz tranquila:
– Eu vim para levá-la. E saciar parte de sua curiosidade. Ela demorou algum tempo depois de ouvir esta última fala até conseguir perguntar-se, em silêncio: “Mas que
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curiosidade?...”. Não sabia se havia entendido certo o que ele havia lhe dito e nem mesmo se haviam se passado vários minutos ou poucos segundos; só tinha certeza de que suas correntes sanguíneas e nervosas trabalhavam rápido, dando-lhe a impressão de que tudo ao seu redor acontecia em um ritmo lento e entediante. Percebeu então, finalmente, o que ele queria dizer com aquilo e inspirou fundo, arqueando-se para frente como se fosse falar algo. Todavia, alguma coisa ou tampava-lhe a garganta, ou cerrava-lhe os lábios.
Pacientemente, o homem bem apanhado esperou um pouco para que ela indicasse com alguma palavra solta no ar se entendera sobre o que falara. Gaguejando a primeira letra um pouco, ela, por fim, afirmou interrogativa e hesitantemente: – Morte?...
Ele então emitiu um leve sorriso, virou-se para ela com a outra mão no bolso da calça e gentilmente respondeu:
– Sim – seguiu-se uma pausa na qual, encostandose mais uma vez na porta, perguntava-se se ele estaria ali para matá-la, já que para ela este seria o único modo de resolver seus questionamentos. Contudo, ele mesmo tranquilizou-a um pouco ao prosseguir. – Não vim aqui para matá-la ou levá-la a outro mundo. Estou aqui para que veja com seus próprios olhos quem e o que é a morte. Aquilo ficou ainda mais confuso para a pré-adolescente: “Como posso conhecer a morte sem morrer?”. Um tanto quanto desafiadora e com a intenção de provar que 18
tudo aquilo era uma loucura sem tamanho, levantou-se, apoiando ambas as mãos na porta atrás de si. Deu dois passos em direção àquele misterioso interlocutor e, mordendo o canto direito do lábio inferior enquanto inspirava fundo, apontou-lhe com o dedo indicador e ousou: – Então você, alguém que nem conheço, vai me levar para aprender o que vem a ser a morte? Balançando a cabeça e sem mudar sua posição, ele respondeu: – Sim. Creio que seja mais ou menos isso.
– Mais ou menos? – repetiu jocosamente. Prosseguiu, após um instante de silêncio e um giro irritado de trezentos e sessenta graus em torno de si mesma, correndo com a mão direita sobre a face. – Então vai me levar para ver gente morrendo em hospitais e coisas assim? – Bem... – começou ele, que foi interrompido por ela.
– Se for, se for isso, você não sabe nada sobre minhas curiosidades em relação à morte. Subitamente, ela percebeu que estava alterada. Jamais agira dessa forma antes. E então, mudando do absinto para um suco doce e gelado com hortelã, ignorou aquele com quem discutia e sentou-se no sofá em que outrora estivera deitada.
Enquanto contemplava o nada, fitando coisa alguma à sua frente, ela pareceu ter ouvido um passo daquele homem. Temeu que ele surgisse de novo bem à frente dela. 19
Fechou os olhos e, com os cotovelos apoiados nos joelhos, usou a palma das mãos para ajudar na cegueira que queria e ficou esperando ansiosa. Entretanto, com esta sua desejada privação, aguçou seus ouvidos e outros sentidos. Acalmou-se gradativamente conforme ia ouvindo os toques lentos e ritmados de sapatos sobre o assoalho. Com o tato, pôde perceber que, ao término dos ruídos, ele se sentara silenciosamente ao seu lado.
Aguardou um pouco mais, mesmo sem estar tensa com o susto semelhante ao que tivera antes. Notando que suas coxas começavam a denunciar cãibras e que não ouvia, nem sentia nada vindo daquele ao seu lado, foi-se recostando aos poucos no sofá.
Primeiro, abriu os olhos contemplando os poucos feixes de luz que vazavam por entre seus dedos. Em seguida, ergueu os braços dos joelhos até encostar um pouco tortamente com as costas no sofá. E só então abaixou as mãos, pousando-as ao lado de seu quadril e usando-as de apoio para endireitar-se. Daí, olhou para a sua direita e viu que ele estava com o rosto para frente e que só virou ao notar que ela o fitava.
E ficaram encarando-se com os olhos plácidos. Decidida a tanto sanar suas dúvidas, como enfrentar o afeto ambíguo de temor e despreocupação que ele lhe causava, aceitou enfim: – Tudo bem... – diante da ausência de uma resposta, pensou que talvez não a tivesse entendido e continuou, 20
voltando os olhos de novo para ele. – Eu vou com você...
Como o estava fitando, viu-o sorrir e balançar a cabeça em aprovação. Logo depois, ele levantou-se e convidou-a a dar-lhe a mão. A princípio, ela ergueu a direita sem receio. Todavia, recuou um pouco, a meio centímetro da pele daquele estranho. Ele, por sua vez, nada fez, permanecendo com a mão imóvel para que a iniciativa da verdadeira aceitação viesse dela e não dele.
Neste movimento, ela mantinha a mão elevada e olhou-o no rosto uma vez mais. A escuridão da sala impedia-lhe o vislumbre de detalhes, mas decidiu enfrentar o receio, lançando-se num salto ao abismo. “É quase como um suicídio”, pensou ela, rindo, antes de agarrar a mão que lhe era oferecida bem forte e cerrar os olhos com vigor.
Pela claridade, mal abriu os olhos nesta primeira tentativa, optando pelo vermelho de suas pálpebras que a luz que a ofuscava. Somente depois de ter se acostumado, pôde tentar perscrutar as redondezas e descobrir que lugar diferente seria aquele. Ao abri-los, estavam nas mesmas posições, mas não mais em seu apartamento. Estava mais claro e era um lugar bem diferente de todos que conhecia. Aquele homem que estava ao seu lado, e que num instante a levara ali, onde quer que fosse, segurava sua mão com firmeza evitando tanto que se machucasse, como que vagasse por ali, sem rumo, em terra estrangeira. Olhando ao redor e sem querer soltar seu guardião, a jovem garota percebeu que estavam em uma rua estreita 21
e eminentemente residencial. Eram casas pequenas com espaços apertados para carros. Não havia asfalto, somente pedras semelhantes a paralelepípedos. Ninguém andava por ali e, portanto, não sabia se eram notados por outrem e muito menos se estavam ali realmente.
Estava tudo muito quieto. Tão silencioso que ela até tentara controlar o volume de sua respiração: inspirava e expirava com tamanha lentidão que quase a sufocava pela carência de oxigênio e excesso de gás carbônico. Por isso, desistiu após dolorosos segundos. Entretanto, o baixo som do ar preenchendo-a e escapando-lhe dos pulmões não a impediu de ouvir um ruído de uma lata de lixo que caía. Instantaneamente, virou-se para lá e viu-a rolando a alguns metros além do espaço em que encontrara o chão. Então, viu dois pequenos olhos saírem dali, farejando o solo com afinco. – Ah, é um cachorro! – exclamou ela.
Sentindo que ela mais falara para si mesma que para qualquer outro, seu acompanhante manteve-se em silêncio. A menina, por sua vez, não tirava os olhos daquele pequeno animal e não tardou a notar que ele andava com uma de suas patas traseiras levemente erguidas. – Ah... – suspirou tristemente. – Ele está ferido.
Abriu, então, a mão de leve, para soltar-se do homem que a levara ali e, num impulso, ir até o cachorro. Porém, ela ainda estava sendo firmemente segurada. Virou-se então para ele e pediu, com os olhos, que lhe permitisse ir 22
até lá e acariciá-lo um pouco. A este apelo pouco silencioso, ele respondeu: – Estamos aqui para que você somente observe.
De alguma maneira, ele ainda a amedrontava, mas não foi por medo que não questionou. Aquele era seu guia e quem a ajudaria a entender os segredos da morte. Não iria e nem queria perder seu tempo com discussões e praguejamentos sem sentido. Pousou então mais uma vez os olhos e a mente sobre o animal.
Ele tinha pelos sujos e mal aparados em um tom caramelo escuro junto à pele e que ia clareando conforme se distanciava dele. Seus olhos escuros combinavam tanto com sua cor geral, como contrastavam com seu focinho, mais claro que o restante, sendo de um branco somente não muito alvo pela sujeira. Não era profunda conhecedora de animais e, por isso, não sabia precisar de qual raça ele seria. Seu andar não era muito desajeitado e a menina pensou somente que aquilo era uma das coisas que mais admirava neles: “Não precisam de veterinários para tudo... Se fosse humano, talvez tivesse engessado a perna inteira e ficado sem fazer nada... Ou pouca coisa...”. De qualquer forma, ele farejava procurando por alguma coisa para comer; acostumado que devia estar com a vida na rua, o barulho da queda da lata de lixo não pareceu assustá-lo. Focalizando um pouco mais na pata ferida, percebeu que poderia não ser somente um osso quebrado como pensara. Havia uma pequena quantidade de sangue res23
secado que cobria os pelos daquele local, logo acima da pata. Aparentemente, devia ter sido recente, já que, nas poucas vezes em que tocava no chão com ela, já a erguia e tentava mantê-la imóvel como podia.
A certa altura, depois de tanto farejar, encontrou, no meio das coisas plásticas que caíram do lixo, um punhado de arroz branco cozido e algo que parecia à menina, distante, um filé de peixe. Pelo tom rosado, chegou até a pensar que talvez fosse salmão.
Essa sua refeição, talvez ansiada há muito tempo, estava antes embolada e enrolada em um pequeno saco de papel cuja frágil barreira de celulose foi depressa vencida por sua fome voraz. “Devia mesmo estar com fome...”, pensou a garota após tê-lo visto consumir aquilo tudo em poucas dentadas e deglutições. O próprio filé só não desapareceu de uma só vez porque, ao tentar fazê-lo, parte dele soltou-se e caiu no chão. Enquanto ele cheirava uma vez mais as redondezas, com a fome já saciada, aquela que o observava com carinho e afeto parou de súbito e começou a pensar em uma coisa. Este fugaz pensamento fugiu-lhe tão depressa quanto veio ao perceber que, agora, ele lambia da água que vertia, numa corrente razoavelmente forte, pelo limiar estreito entre a calçada e a rua de pedras. “Ah, estava com sede também”. E esqueceu a emoção que lhe sobreveio e que a assombrou por um momento. Admirando-o por mais um tempo, cansou-se de ficar
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em pé e resolveu sentar-se na calçada. O homem, que ainda a segurava, não teve outra escolha senão acompanhá-la. Após, finalmente, ter saciado sua sede, o animal ficou rodeando pelo lugar em que estava como que procurando algo com os olhos e não pelo olfato.
Curiosa, a menina se perguntava o que ele tanto procurava. Só teve sua resposta quando, num rápido movimento, ele atravessou a rua vazia em direção ao lugar em que ela estava. Quando o cachorro subiu na calçada, somente um pouco mais distante do que o alcance máximo de seu braço estendido, cogitou tocá-lo. Esquecera-se por um momento do aviso que, em voz doce e gentil, seu guia lhe transmitira. Ele, porém, percebendo seu intento, conteve-a ao dizer, sempre no mesmo sedutor tom de voz: – Apenas observe e veja o que ele está procurando.
A garota, então, deu um suspiro curto e levou o braço que o tocaria para junto do peito. E então, para poder continuar o vendo, usou a mão livre, apoiando-se no solo da calçada, virando-se um pouco para trás. E então, percebeu o que ele procurava. O sol estava bem alto e o que ele queria era uma sombra qualquer para descansar um pouco. Ele rodou em torno de si mesmo junto a uma parede que lhe daria alguma proteção do sol e algum refrigério. Aconchegado junto a esta edificação e em si mesmo, o cachorro fechou os olhos, aproveitando o silêncio que ali reinava. Sua observadora atenta mal conseguia desviar o olhar 25
daquele animal repousando tão docemente. E, nesta ternura visual, o pensamento que antes tivera retornou com a mesma intensidade. Tal sentimento, porém, durou mais tempo, fazendo-a notar que seu peito pulsava e, sem saber o que fazer com certo desconforto, ergueu-se depressa. Respirando rápido, tentou se acalmar um pouco e então, fitando com olhos faiscantes seu guia ainda sentado, viu que olhava para ela sem se mover e disparou: – Ele vai morrer, não vai?
Como se estivesse esperando por tal pergunta, perturbadora a alguém pego de surpresa ou não, ele respondeu solenemente: – Sim, vai.
Ambiguamente chocada e tranquila por ser essa resposta que esperava, mas sobre a qual depositara a esperança de que estivesse errada, a menina encharcou os olhos ao voltar-se para ele que parecia dormir calmamente sob a pouca sombra. Não era aquela morte impessoal da qual se lê em jornais ou se ouve falar: era a morte de um ser vivo e que vivia através de seus olhos, mente e coração.
– Mas... Mas... – balbuciou ela, ainda olhando para o animal. Sem conseguir conter as lágrimas por mais tempo, deixou o fluido salino escorrer pelos cantos das órbitas até as bochechas e o queixo, pingando até o chão. Isso lhe fazia desagradáveis cócegas. Virou-se, então, para o homem de novo e perguntou-lhe, agora já sem esperança: – Mas... Por quê?...
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Diante de tal indignada e compreensível pergunta, ele limitou-se a se levantar e olhar nos olhos daquele que orientava e lhe respondeu: – Tudo que é vivo, morre. Da mesma maneira que se entra nesse mundo, se sai dele.
– Mas... Mas... – interrompeu-o por um instante. Contudo, ela própria impediu-se de continuar com seus soluços e choros. Ela sentia na pele, no peito, um desejo quase incontrolável, beirando o insuportável de ir até lá, abraçá-lo e confortá-lo. Mas, de alguma forma, sabia que não poderia fazê-lo de maneira alguma. Seria outro que o tomaria nos braços. E disse num desabafo: – Parece que ninguém tem mesmo o controle sobre a morte...
– Existe alguém que obliterou o efeito de minha amarga bebida, voltando dos mortos.
As lágrimas cessaram seu fluxo. A garota voltou-se para ele, espantada. Sem se prender aos detalhes daquilo que falara, perguntou com ira na voz, nas pupilas e na íris: – Então você é a morte! – e depois de um curto silêncio, prosseguiu – Você é quem vai matá-lo!
Diante de tal acusação, esperava-se, e a jovem viajante esperou, que ele ficasse furioso e que, se fosse a morte mesmo, a fulminasse ali mesmo com sua foice aguda. Ela disse o que disse esperando o pior; foi inconsequente, mas não impensado. Ficou surpresa quando a única resposta 27
que obteve foi o silêncio. O mesmo homem que a levara até ali, que a convencera sem persuadi-la com doces argumentos como pensara que faria e que, mesmo incutindo-lhe certo pavor, jamais usou dessa emoção para que escolhesse por ela o que fazer. Aquele era um estranho encontro em uma estranha noite. Ele somente disse, depois de um tempo, apontando o animal com o dedo indicador: – Veja.
E olhou para ele que estava de olhos abertos e se ergueu depois de um longo bocejo. A garota voltou-se ao seu derredor, como se buscasse alguma coisa, e somente percebeu algumas mulheres que andavam pela rua com sacolas de compras nas mãos. Focalizando-as por algum tempo, reparou alguns traços que a fizeram pensar: “Japonesas?...”. Elas passaram a seu lado, permitindo-lhe confirmar esta sua hipótese ao não entender uma única sílaba do que diziam. Além disso, também comprovou que não era percebida por ninguém: ignoraram-na e a seu guia completamente, como se fossem não só invisíveis, mas também inaudíveis, intocáveis e inodoros.
Com um leve aperto em sua mão presa, seu acompanhante chamou novamente a atenção àquilo que era o interesse daquela viagem. Antes de olhar para o cachorro, a menina olhou para aquele que a chamara. Sem fitá-la e com um tom que lhe pareceu mais sério e compenetrado do que antes exibia, colocara sua outra mão no bolso de sua calça bem cortada. Com os olhos pousando agora 28
sobre o animal, via que, de seu jeito meio desengonçado, afastava-se das senhoras que passaram. Imóvel, ela não queria andar, pois sabia em seu âmago o que veria. Foi somente quando aquele a seu lado deu alguns passos que ela ousou segui-lo com uma coragem misteriosamente reunida.
O cachorro parava em alguns postes e urinava da maneira que conseguia. “Fazendo suas últimas marcações de território...”, pensava a menina com pesar e melancolia. Após certo tempo caminhando por ruas pequenas e casas muito parecidas entre si, alcançaram uma grande avenida com um fluxo intenso de veículos em alta velocidade. Havia um semáforo em um dos pontos da via. E era ali que o animal, junto com outros que podiam enxergarse entre si, estava. A garota, neste momento, mal os percebeu: os visíveis eram, para ela, o que ela própria era para eles. O cachorro estava na beirada da calçada e quando um carro passava na faixa junto a ele, se assustava e recuava um pouco.
E então, quando um lapso entre os carros mostrou-se um pouco maior a seus olhos caninos, ele acreditou que não havia perigo e aventurou-se a cruzar a avenida larga, de quatro faixas de rolamento, com seus pequenos saltos. Quando estava na segunda faixa de seu caminho, um carro vindo assustou-o e ele recuou à primeira. O suspiro de alívio da garota que observava o que era inevitável diante de seus olhos durou pouco, pois foi justamente neste novo 29
lugar que um pequeno caminhão acertou-o. Em cheio.
Foi o único momento em que o guia soltou-lhe a mão. Mesmo não tendo fechado os olhos em momento algum, suas mãos, agora ambas livres, somente alcançaram o chão quando se ajoelhou numa queda rápida de modo que a pancada que o animal sofrera foi a sonoplastia para sua reação. Levando-as ambas à boca, estarrecida, logo depois, via o acidente acontecer ao mesmo tempo em que passava novamente em sua mente em câmera lenta em uma confusa e amarga projeção dupla.
Após ter sido atingido pelo caminhão num golpe seco de aço com osso, ouviu-o ganir alto, sofrendo o impacto em sua pele que irradiou até seu coração. Depois, o mesmo veículo passou sobre ele. Ainda que nenhuma roda o tivesse atingido, ouvia como em uma marcha macabra, cada nota musical rebatida entre o asfalto, o assoalho do caminhão e seus pulmões. Não fora arrastado e era como se não houvesse saído do lugar. A diferença era que, em meio a uma poça de sangue, não conseguia mais se erguer. Chorava desoladamente, clamando por alguma coisa que nenhum ser humano, e muito menos aqueles sem sentidos da calçada, poderiam saber o que era. Seu choro só não era mais alto por conta das buzinas e dos passos dos pedestres que, a largo, fingiam ignorar o ocorrido. Era como se somente a menina o ouvisse chamar; a única que nada podia fazer a não ser olhar e se lamentar diante do que via. 30
O semáforo fechara e seu guia pediu que o acompanhasse uma vez mais, sem que exigisse o toque de sua mão dessa vez. Aproximou-se do animal que sofria perceptivelmente de dores excruciantes e impossíveis de serem sentidas ou até imaginadas por qualquer outra pessoa. Estava torto, com cortes por toda a face e dorso. Suas patas todas estavam, agora, evidentemente quebradas. Deitado de lado, da mesma maneira com que caíra pela última vez sobre a rua, sobre sua própria cama de sangue que ainda era preenchida com jatos suave de sua fonte.
A menina não sabia o que fazer e somente tornou a ajoelhar-se ao seu lado, convencida e decidida a não mover um único músculo, evitando até esquivar-se dos carros que passariam ali. Sentia uma vontade forte de passar a mão em sua cabeça, outrora caramelo, agora rubra. Implorou com os olhos, em um segundo, que seu guia a deixasse fazer isso. Ele consentiu solenemente com um leve movimento de cabeça. Surpreendeu-se por ter conseguido tocar atrás de sua orelha e por ter-lhe chamado a atenção. Seus ganidos haviam parado, mas ainda tentava respirar com dificuldade.
Seu acompanhante tirara do bolso interno de seu paletó um pequeno frasco amarelado. Percebeu então que os olhos do cachorro fitavam-no, que estava ao seu lado como se o pudesse ver. “E talvez o veja, como também sentiu minha mão...”, falou para si mesma e aguardou. O homem, a quem chamara de morte, retirou a 31
tampa do frasco. E, então, percebeu claramente que os olhos do animal pareciam arregalados e a sua boca estava mais aberta, como se estivesse com medo e só não corresse por não ter como fazê-lo.
Com um conta-gotas, tirou um pouco do líquido daquele frasco e depositou na boca daquele que desfalecia que, num curto soluço, pareceu engoli-lo enquanto inspirava seu último ar. E então, logo depois, exalou o seu último suspiro. De sua boca, saiu uma fumaça branca disforme e que, semelhante a um cachorro, subiu a certa altura no céu e deixou de ser vista por ela, desaparecendo. O guia tocou-lhe a mão agarrando-a uma vez mais e disse: – Vamos.
E essa foi a sua passagem de volta. Em um piscar de olhos, não estavam mais naquela avenida de sangue invisível que incomodava. Estavam mais uma vez em sua sala, banhada ainda pela escuridão da noite, como se somente algumas horas, quiçá minutos, houvessem passado.
Ainda abalada por tudo que vira, e sem ficar se preocupando se aquilo teria sido ou não um sonho, seu acompanhante pegou-a suavemente no colo e deitou-a no sofá, dando-lhe aquele mesmo livro que, sonolenta, abraçava antes de tudo aquilo acontecer. Ajeitou-se da mesma forma que estava naquele momento. Seus olhos estavam pesados e seus ouvidos quase surdos ao que estava ao seu redor, mas ainda pôde ouvir a mesma voz 32
gentil que lhe dizia, do mesmo lugar em que vislumbrara o vulto pela primeira vez: – Até o nosso próximo encontro. E dormiu.
Quando acordou, não se lembrava de coisa alguma, tendo até mesmo estranhado o livro que trazia em suas mãos, deixando-o sobre o sofá enquanto espreguiçavase e saudava a manhã. * * * – Hum… Bem… Muito interessante essa sua história, a relação da menina com o cachorro e tudo mais, mas ela não tem muito a ver com o tema da minha pesquisa... – Você não disse que me ouviria? Ainda tenho mais cinco para contar.
– Tudo bem... O gravador ainda está ligado... Pode prosseguir com a sua segunda história quando quiser...
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AF