Albertine
DĂŠcio Gomes
Albertine
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Gomes, Décio Albertine / Décio Gomes. -- São Paulo : Schoba, 2012. 328 p. ISBN 978-85-8013-132-1 1. Ficção 2. Romance gótico 3. Suspense 4. Terror I. Título 12-0058
CDU 82-312.4 CDD 823
Dedico este livro a um amigo que partiu antes que pudesse vê-lo pronto — o grande responsåvel por ter plantado em minha mente a semente que germinou e gerou Albertine.
“Tetos tão sombrios, Morada tão branca e vazia, Ecoando os nossos risos. Era a Morte que lá existia”
Prólogo
Escuridão A noite mais uma vez se abatia por todo o céu manchado pelo crepúsculo avermelhado, cobrindo toda sua cor com uma capa negra e intransponível. Pouco a pouco a escuridão foi invadindo a floresta, os muros e o jardim, até que tudo estivesse completamente mergulhado em trevas. A lua há muito não surgia ali; parecia se recusar a sair de trás das camadas de nuvens que preenchiam o céu noturno e triste. Não havia movimento que não fosse o do vento levando as folhas mortas do chão e do estalar de galhos partindose das árvores sem vida que ocupavam todo aquele largo espaço. Logo após os portões surgia um caminho de tijolos, encoberto pela grama por anos não cortada. Ele levava exatamente à grande porta de entrada de uma imensa e lúgubre construção: uma mansão, majestosa e imponente, que se estendia de canto a canto do espaçoso terreno. As inúmeras vidraças da grande casa tremulavam à vontade do vento, e não fosse por uma minúscula porção de luz que se derramava por uma delas, no andar de cima, seria possível dizer que aquele pequeno pedaço de mundo, um dia, fora condenado à eterna escuridão. A luz surgia de uma pequena lamparina, quente e alaranjada, descansada sobre um pequeno móvel de três pernas. Era uma sala não muito grande, repleta de quadros espalhados por cada uma das 11
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paredes — essencialmente imagens de rostos pálidos, exibindo-se à meia luz. Frente a uma destas paredes havia uma velha poltrona, macia e confortável. Uma figura humana, magra e esguia descansava sobre ela, os braços estendidos sobre os do assento encardido, as costas rigidamente eretas acompanhando a direção do encosto. O pescoço virado para trás induzia o rosto inexpressivo a fixar-se no teto que, para outro que o visse, parecia prestes a despencar. Era um homem muito magro, de pele muito branca e rosto descorado; seus cabelos lisos muito bem penteados cobriam parcialmente as orelhas, quase se misturando com a barba escura e malfeita. Seus dedos indicadores, posicionados horizontalmente sobre o comprimento dos braços macios da poltrona estavam inquietos, movimentando-se para cima e para baixo numa mistura de impaciência e a tentativa de imitar o ritmo de um pulsante coração. Vagarosamente, ele se curvou sobre si mesmo e lentamente retirou a pequena e suja tampa de metal da lamparina. Com um leve assopro extinguiu o último e único resquício de luz existente nos arredores da vasta floresta onde a casa se escondia. O homem solitário se chamava Jeremy Ridell. Estava ali, entregue ao próprio destino, gastando cada uma das horas de sua vida apenas em silêncio. Nada além das trevas devorando-lhe por completo era capaz de dar a ele um singelo momento de calmaria, um simples momento em que não sentisse arder as entranhas com aquelas lembranças; lembranças de uma vida que nem ele mesmo sabia se vivera, ou se agora tudo era apenas um fruto de sua mente atormentada. Tudo dentro dele eram apenas turbilhões de dúvidas e medo, não da morte, mas de continuar vivendo − medo de ser eternamente perseguido por aqueles fragmentos de vida, retalhos de alma, pelos destroços de um amor que se deteriorava através do tempo e lentamente desmoronava junto das paredes da escura mansão. Não era o fim, ele sabia. Era apenas mais um terrível e indesejado recomeço. 12
Capítulo i
Dois Corações O tempo pairava em algum ano qualquer do século XIX. Era uma bela e agradável tarde de verão, algo que dificilmente ocorria na região onde a pequena vila existia solitária. Frente a uma construção discreta, de paredes brancas e bem cuidadas, estavam duas crianças. Uma delas era um menino de pele branca e cabelos negros, trajando roupas escuras e rígidas, o que lhe conferia uma aparência ligeiramente triste. A outra era uma menina igualmente branca, porém de cabelos muito louros, elegantemente vestida como uma pequena dama. Brincavam em um pequeno jardim; corriam em curvas, de um lado a outro, e de forma rítmica largavam-se na grama ou na areia, dando largos sorrisos de mais pura felicidade. Aparentavam nove ou dez anos de idade cada um. A menina, repleta de vida, tinha bochechas coradas como pêssegos recém-colhidos, e o menino, por sua vez, exibia uma aparência frágil e franzina em seu rosto pálido como porcelana branca. — Jeremy! — disse a menina correndo em sua direção com as mãos juntas formando uma concha — Veja o que encontrei! — Livre-se disto, Albertine, é nojento! — gritou o garoto ao visualizar um pequeno caracol de jardim nas mãos da companheira.
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Albertine pareceu desconsertada e, mostrando-se insatisfeita, largou o caracol junto a algumas flores amarelas próximas a seus pés. — Albertine! — ouviu-se logo atrás deles uma voz feminina e suave. — Vamos embora! — Não, mamãe! Deixe-me ficar mais um pouco! — Seus olhos verdes cintilaram de esperança em permanecer ali com seu amigo, correndo e sujando de terra molhada seu lindo vestido cor de creme. O menino lançou o mesmo olhar à mulher que se prostrara diante deles vestindo delicadas luvas de seda verde-musgo, que combinavam perfeitamente com o vestido de mesma cor, mas ela instantaneamente negou o pedido apontando ao céu, na direção de grandes nuvens escuras que rapidamente engoliam o azul que imperava até alguns momentos atrás. — Não quer ficar aqui e acabar encharcada como um animal selvagem quer? — caçoou de maneira divertida a mãe da menina, a senhora Georgia Grahanfield, enquanto livrava os cabelos da menina de algumas pétalas amarelas que haviam se emaranhado em seus cabelos. — Amanhã você pode brincar novamente com Jeremy. Despediram-se sem ânimo e, sem nenhuma delonga, o menino correu o mais rápido que pôde já na tentativa inútil de desvencilhar-se dos grossos pingos de chuva que despontaram do céu, agora quase completamente fechado pelas camadas de nuvens negras. Correu até chegar à frente de uma grande casa branca, abrindo com pressa o grande portão, que gemeu e estalou ao ser novamente fechado, e logo estava diante da porta de entrada. Suas roupas já pingavam, e os cabelos escuros já estavam grudados à testa. Entrou e esgueirou-se de um lado a outro, aparentemente espreitando a presença de alguém no recinto, mas não havia ninguém. Saiu em disparada escada acima antes que Rosa o encontrasse molhado, sujo de lama, pisoteando o mármore impecavelmente limpo, a ca14
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minho de seu quarto. Tirou as roupas molhadas e num instante já se encontrava no banheiro enchendo a banheira branca de água fria, algo que detestava, mas não podia entregar-se a Rosa pedindo-lhe para aquecer água, permitindo, assim, que visse o estado de imundície em que se encontrava. Rosa era a governanta da casa de Jeremy, embora gostasse muito de fazer os serviços que não lhe cabiam, como preparar o jantar, passar as roupas e organizar os quartos, essencialmente o dele. Uma mulher que estava com seus quarenta e poucos anos, mas que possuía a disposição de três com metade de sua idade. Não era de lá, ele sabia pelo charmoso sotaque que tornava suas frases tão melodiosas quanto a estrofe de uma música qualquer. Jeremy ficava fascinado com as histórias que ela lhe contava sobre sua terra natal, uma cidade grande repleta de charretes e carruagens por todos os lados; comerciantes gritando os anúncios de seus produtos, muitas mães de mãos dadas a seus filhos, caminhando a passeio ou a caminho da escola, algo que Jeremy nunca saberia descrever após ter sido condenado a receber aulas particulares até que ficasse moço, em idade de assumir as rédeas da Ridell, a companhia imobiliária de seu pai. Falar nele era uma coisa que Jeremy fazia muito pouco, talvez ainda menos do que as raras vezes que costumava vê-lo presente em casa. Rosa era, além de Albertine, a única pessoa a quem Jeremy costumava entregar-se em conversa, mesmo quando ela estava ocupada a ponto de mal respondê-lo; mesmo assim ele escutava as breves respostas e observava atento tudo que ela fazia. Gostava particularmente de vê-la organizar a biblioteca, talvez devido ao fato de que houvesse sido claramente proibido de entrar lá sozinho. Necessariamente nunca sentira interesse em examinar os livros ou qualquer outra coisa na biblioteca, nem mesmo aquele estranho e antigo armário de mogno no recanto, um pouco afastado das prateleiras repletas de livros. Dele, já havia visto muitas vezes Rosa retirar alguns papéis, conferi-los e 15
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novamente depositá-los no armário, em seguida fechando-o com uma chave grande e rústica, chave esta que sempre era guardada em um dos fundos bolsos de seu uniforme de governanta. Era a Rosa que Jeremy devia satisfações por suas peripécias de criança, era ela quem o aprumava à mesa quando se recusava a almoçar, quem preparava a cama para mantê-lo aquecido durante a noite. Rosa era, indiscutivelmente, o mesmo que uma mãe ao garoto. Ao que ele sabia, pelo que Rosa o contava, sua mãe definhara perante uma repentina e incontrolável doença que a enfraqueceu até a morte, falecendo ao desbocar de uma noite chuvosa. O menino nascera a salvo embora demonstrasse, igual sua mãe, que não conseguiria sobreviver. Seu corpo frágil tremia e parecia não ter sangue pulsando nas veias aparentes por baixo da fina camada de pele, muito branca e sem vida. Porém, milagrosamente, recuperouse e em poucos dias já se via rosado e vívido, como todo bebê saudável deveria ser, embora ainda um pouco fraco a ponto de não chorar demasiadamente alto. O pai, como de costume, não se encontrava por perto na noite do nascimento do único filho — algo que não causou comoção a nenhuma das criadas que assistiram o doloroso parto. A verdadeira comoção ocorreu quando Joseph voltou de uma de suas longas viagens de negócios, com marcas no pescoço e olheiras profundas causadas por noites não dormidas. A notícia da morte da esposa não pareceu surtir efeito algum nas emoções daquele homem. Nem mesmo quis pousar os olhos sobre o filho, o primeiro filho, aquele frágil e inocente bebê que emitia grunhidos quase inaudíveis, tentando chorar, mas sem forças para fazê-lo. Jeremy, então, cresceu aos olhos da governanta, e embora tivesse um pai sob o mesmo teto, jamais compartilhara com ele qualquer tipo de relação além de monetária. Joseph contratava sempre os mais respeitáveis professores para educar seu filho em casa, como era tradição na família Ridell, uma família formada 16
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essencialmente por homens e mulheres bem-sucedidos. Quanto a isso, Joseph podia ter total segurança: o menino era brilhante. Absorvia todas as lições com maestria e não precisava estudar realmente para alcançar excelentes notas nos exames, embora por várias vezes escapulisse sem ser visto, correndo ao encontro da amiga Albertine ao vê-la pela janela passando com sua mãe. O que mais agradava ao pai de Jeremy era o indiscutível talento que o filho tinha com números; dissecava os cálculos em segundos, até das mais complicadas equações. Ele seria um perfeito substituto ao encarregado das tarefas administrativas do escritório. A cada ano que se passava, Rosa sabia que se tornava cada vez mais iminente o dia em que Jeremy seria um moço, pronto para assumir responsabilidades acima das quais realmente deveria. Não era por falta de experiências próprias que ela pressentia o que o menino sofreria quando chegasse o infeliz tempo de trabalhar no escritório, e obviamente isto não demorou a acontecer. E lá estavam eles, Jeremy, Rosa, Albertine e uma meia dúzia de criados mais chegados, ao redor de uma mesa. No centro dela, um bolo coberto de glacê branco, adornado por cerejas frescas e dezesseis velinhas compridas. Cantavam um animado ‘parabéns a você’ em coro, enquanto Jeremy sorria envergonhado, transferindo o olhar rapidamente a cada um dos presentes, mesmo que Albertine estivesse em vantagem se estes olhares fossem contados. Ele não podia deixar de perceber o quanto ela estava bonita, nem como até um simples movimento de suas mãos se tornava gracioso e encantador. Jeremy também se tornava, aos poucos, um belo homem alto, de cabelos afrontosamente lisos caídos por cima das orelhas; exibia um maxilar afilado e perfeitamente angulado às belas feições de seu rosto. De fato, um casal de indescritível beleza. Ao fim da discreta festa, saborearam o bolo feito pelas mãos mágicas da governanta, e logo após isto todos os serviçais retiraram-se levando consigo os pratos e copos sujos, enquanto Jeremy 17
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e Albertine dirigiam-se à sala de estar da majestosa casa, vendo-se refletidos no mármore acinzentado do piso. — Sei que não é muito, mas trouxe isto pra você — ela falou quase sussurrando enquanto procurava algo na bolsinha de mão que carregava. Jeremy olhava atento e a viu retirar com cuidado uma fina corrente prateada, com um medalhão oval, bem pequeno, preso a ela. Albertine entregou-lhe a corrente, que se encaixou em espiral na palma da mão de Jeremy. O medalhão prateado reluziu o brilho das luzes do castiçal acima dos dois, e ele notou um grande ‘A’ em relevo na superfície do delicado objeto. — Vire-se, deixe-me colocá-lo em você — ela sibilou suavemente enquanto recuperava a corrente. Jeremy num instante deulhe as costas e sentiu os braços de Albertine cruzarem-se acima de sua cabeça, fechando-se em seguida em arco ao redor de seu pescoço. Por um momento, a temperatura de seu corpo se elevou e suas bochechas coraram, enquanto um coração incontrolável batia freneticamente dentro dele. — Pronto, terminei. Jeremy virou-se e a viu sorrindo, os cabelos caídos sobre os ombros estreitos, os olhos verdes mais claros do que nunca. Poderia pedir que ficasse ali, como estava, para que fosse pintada; aquela imagem angelical eternizada em uma gigantesca pintura. Olhou ao seu próprio peito e viu o medalhão pender da fina corrente, o ‘A’ ainda brilhando. O silêncio que se apoderou daquele instante era, ao mesmo tempo, apavorante e maravilhoso. Os olhos parados um no outro, os corações pulsando no mesmo ritmo e os pensamentos rumando na mesma direção. — Já está muito tarde, preciso ir antes que papai venha até aqui me buscar — ela disse sem vontade. — C-claro... seus pais já devem estar esperando. Nos vemos amanhã, então. Talvez mais por impulso que por cavalheirismo, ele estendeu 18
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o braço direito e segurou as pontas dos dedos de Albertine, levando sua mão até bem perto de seus lábios, encostando-os na delicada luva que usava, com um terno beijo de boa noite. O presente de aniversário do pai só foi recebido mais tarde naquela noite, após Joseph chegar de mais uma viagem, daquela vez um pouco menos embriagado. Jeremy não soube o que dizer, nem se deveria agradecer pelo incomum presente: uma sala só para ele no escritório da Ridell. O prédio não ficava muito longe da casa onde moravam; cerca de cinco minutos de caminhada eram o suficiente. Ao entrar na sala pela primeira vez, o jovem mostrou-se um tanto surpreso com a grande quantidade de prateleiras repletas de livros — em sua grande maioria sobre Administração — e com todos aqueles armários de portas de vidro, completamente preenchidos de envelopes e fichas. Embora já viesse sendo treinado em casa por um dos professores de Administração, que já havia trabalhado na Ridell por dois ou três anos, Jeremy precisou da ajuda de Ellie, a secretária, para aprender os sistemas de organização do setor que ficaria sob seu encargo a partir de então. Ele seria responsável por tudo que envolvesse aluguel de imóveis, desde o atendimento de clientes interessados até a quitação ou renovação de contratos expirados. Não era realmente um trabalho complicado, e por várias vezes ele se questionava se todos aqueles anos fritando os neurônios para aprender cálculos e fórmulas serviriam de alguma forma. Ellie foi bastante paciente e prestativa, e não se gastaram muitos dias até que Jeremy já dominasse todas as técnicas e já tivesse em memória cada padrão de organização nos armários com as fichas dos inquilinos. Só havia um único armário que Ellie não se importara em explorar, o mais velho e mais preenchido de todos; de acordo com ela, eram apenas documentos de dezenas de imóveis abandonados ou condenados pelo tempo, não serviam para absolutamente mais nada além de acumular mofo. De alguma maneira 19
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Jeremy achou que fosse muito similar ao armário que já vira tantas vezes ser revistado por Rosa, na biblioteca de sua casa; talvez fosse a cor da tinta aplicada ao mogno. A partir de então, seus encontros com Albertine tornavam-se cada vez mais escassos. Durante o dia Jeremy permanecia atado aos montes de papéis e documentos no escritório, e durante a noite Albertine frequentava uma escola de música muito conceituada que ficava na cidade vizinha ao pequenino vilarejo. Jeremy sentia ligeiras pontadas de inveja de alguns dos dons com que Albertine fora abençoada; era uma exímia pianista, escrevia belíssimas poesias, pintava magníficas imagens em tela e até arriscava-se a desenhar alguns dos próprios vestidos. Além disso, algo que ele admirava tanto quanto desejava ter era uma família como a dela. Era muito unida a seus pais, e estes, por sua vez, nutriam profundo orgulho daquela moça tão boa em tudo que tentasse fazer. Os dois amigos passaram a se ver apenas aos domingos durante a missa, muito rapidamente, ou quando Albertine acompanhava o pai ao escritório para fazer o pagamento do aluguel, duas vezes ao mês. Os meses foram logo passando rápidos, mas a ausência jamais conseguiu separar os dois jovens, mesmo que só pudessem ver um ao outro através dos pensamentos. Foi em um dia comum do mês de maio que os funcionários da Ridell notaram, ao chegar de manhã bem cedo, que o escritório havia sido invadido na calada da noite. Muito surpresos, verificaram cada milímetro até perceberem que nada, absolutamente nada, fora levado. Cada objeto e cada documento estavam em seu devido lugar. Após esse acontecimento singular, uma empresa de segurança foi contratada em função de substituir todas as trancas. Era a primeira vez em mais de trinta anos que não se ouvia qualquer notícia sobre roubos ou arrombamentos no vilarejo; era improvável até que algum ladrão tivesse a vontade de atravessar a vasta floresta que se estendia ao redor da vila, de árvores muito 20
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altas e finas. Entretanto, sem dúvida alguma, a parte mais estranha de toda esta inquietação se devia ao curioso fato de não terem encontrado sinal algum de arrombamento. A porta da frente estava aberta como que pela chave principal. A possibilidade de ter sido esquecida aberta ao fim do expediente da noite anterior estava completamente descartada — Jeremy sempre a conferia duas ou três vezes antes de ir embora, e apenas ele possuía o molho com todas as chaves do escritório. Foi difícil manter a calma dos funcionários durante todo aquele dia. Alguns alegavam sentir falta de algum objeto, outros garantiam ter encontrado documentos fora do lugar e assim por diante. Jeremy caminhava para casa após certificar-se duplamente que o escritório estava em segurança, enquanto lançava olhares rápidos ao jornal do dia, mas não encontrou manchete alguma que lhe prendesse a atenção. Ergueu os olhos e mais uma vez notou uma grossa camada de nuvens acinzentadas se aproximando; algo que estava tornando-se costumeiro eram aquelas sessões de chuva de três a quatro vezes por semana. Apressou-se a chegar em casa antes que de fato começassem a cair os pingos frios como sempre eram, e ao longe viu Albertine pronta para sua aula de música, prestes a acomodar-se na carruagem parada na frente de sua casa. Acenou para ela, que correspondeu com um singelo chacoalhar de mãos, prevenindo-se de derrubar ao chão os três livros que carregava junto ao corpo como se fossem um bebê. Era um comum hábito de Albertine carregar livros onde quer que fosse. Apesar de não gostar muito do tipo de leitura que agradava a ela, Jeremy escutava com plena atenção os resumos dos capítulos que ela narrava com tamanha excitação. Ela representava as vozes de cada personagem quando passagens importantes eram necessárias e até atuava em mil expressões faciais as ações que os personagens tomavam. Ao pensar nisto, ele lembrou-se que tinha de devolver-lhe um exemplar de Drácula, que havia tomado emprestado algumas 21
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semanas atrás, mas não tivera paciência de finalizar. Amor e morte eram algo que ela jamais conseguiria colocar numa mesma página. Ao entrar em casa, sentiu o delicioso cheiro do jantar que vinha da cozinha. Seguiu ao seu quarto para lavar-se, em seguida ceou, recusou a sobremesa e voltou ao seu recinto de descanso. Estendeu-se na cama cuidadosamente arrumada por Rosa e fechou os olhos, enquanto segurava e apertava com muita força o medalhão em seu pescoço. Sentia-se feliz em ter tão perto do coração algo que viera das delicadas mãos de Albertine. Pensou no rosto dela, no cheiro, na voz. De fato, pensava mais nela do que em qualquer outra coisa durante todos os dias, e sonhava com ela quase todas as noites. Tinha esperança de que pudesse voltar a vêla com a mesma frequência de antes, mas receava que por estarem ficando mais velhos não pudessem mais andar tão juntos; um rapaz e uma moça não deveriam ser amigos como crianças, não à vista do mundo. No fundo, porém, ele realmente entendia o que sentia; ele não queria mais tê-la como aquela amiga que brincava no jardim. Em certo momento, misturada aos bons pensamentos, Jeremy notou como estavam fortes as dores que vinha sentindo em seus ossos nas últimas semanas, um incômodo incessante que parecia remoer-lhe as articulações. Estes sintomas eram comuns à aproximação do inverno, ele de fato sabia. Tornava-se quase inútil ao longo de dias muito frios, fraquejando pelas dores que mal o permitiam ficar em pé. Tentou esquecer-se delas por uns instantes, fechando a mente e logo se entregando ao sono e ao cansaço do longo dia de trabalho. Jeremy estava perdido em meio a um sonho que não conseguia entender — estava em uma floresta escura e fria, a névoa subindo quase a seus joelhos. Estava parado e via, um pouco à frente, dois ou três vultos de forma humana, em silhuetas indefinidas, misturadas à escuridão. Ele segurava algo em uma das mãos, que reluziu de forma vívida a um relâmpago prateado que acendeu 22
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por poucos instantes toda aquela floresta sombria. Ele permanecia lá, parado, observando o que quer que fosse ir embora, até que o sonho esvaía-se repentinamente, e certamente incompleto. Desta vez o que o acordou foram batidas muito rápidas na porta de seu quarto, em ritmo apressado e descontrolado, denunciando a pressa de quem quer que estivesse do outro lado. — Sim? — ele guinchou desinteressado. — Senhor Jeremy, por favor, venha, venha rápido! — respondeu uma voz feminina esganiçada. Jeremy levantou-se em um só salto, calçou os sapatos e vestiuse com um longo sobretudo caramelo que estava dobrado e descansado acima da penteadeira. Abriu a porta e viu uma das criadas, muito pálida, de olhos arregalados, parada diante dele, enquanto outras duas saíam em disparada no corredor. — O que aconteceu? Qual o motivo deste alvoroço? Ela hesitou por alguns poucos segundos, como se estivesse procurando as palavras certas em sua mente. — V-venha... lá fora... a casa dos Grahanfield! — O que aconteceu lá? Diga! — Jeremy gritou, mas a pobre criada desabou-se em choro e não conseguiu responder. Ele seguiu o último empregado que viu correndo pelo largo corredor e desceu as escadas da sala principal tão rápido como nunca fizera antes. A gigantesca porta estava escancarada, e por ela passaram duas empregadas com muita pressa, carregando baldes cheios d’água, e o mesmo faziam os empregados. Jeremy correu, correu com todo o fôlego que tinha e ao dobrar a esquina sentiu o estômago congelar junto com suas entranhas. A casa dos Grahanfield estava tomada por colossais labaredas vermelhas, ardendo dos degraus de entrada até a mais alta ripa do teto. As chamas dançavam impiedosamente por dentro e para fora das janelas, o telhado estalava e uma monstruosa camada de fumaça negra erguia-se no céu, cobrindo as poucas estrelas que se exibiam timidamente ao 23
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escapar das nuvens quase tão escuras quanto a fumaça. Um grande tumulto se formou ao redor do incêndio, enquanto algumas pessoas em vãs tentativas de diminuir o fogo derramavam água de baldes e bacias para dentro da casa. O clarão avermelhado estendia-se até onde a vista pudesse alcançar. — Meu Deus! Não! — guinchou Jeremy em desespero, já parado junto aos outros à frente da terrível desgraça. Por um segundo, ele não ouviu nada além do silêncio ao imaginar que Albertine estivesse ali, no meio daquelas chamas, carbonizando ou já completamente carbonizada. Sua mente girou como se tivesse recebido um soco muito forte, enquanto grossas lágrimas já escorriam pela face pálida e assustada. — ALBERTINE! ALBERTINE! O aglomerado de pessoas desesperadas, ou ao menos curiosas, crescia a cada instante. Nem mesmo Jeremy sabia que viviam tantas pessoas naquela vila. — Eles saíram? Algum deles saiu da casa? — Não sabemos! — respondeu um homem de pijama ao lado do rapaz. — Quando chegamos aqui, a casa já estava tomada pelas chamas; não vimos ninguém sair. Jeremy fraquejou ao som daquelas palavras. Não, não aceitaria. Albertine não estava lá, não estava em casa. Era isso o que ele mais desejava. Nem se lembrava dos pais dela, apenas queria a moça viva, já, bem do seu lado. Levou as mãos suadas ao rosto e despencou em lágrimas, sentindo o calor do fogo à sua frente. Perdeu a respiração por várias vezes, os olhos marejados, embaçados. Ajoelhou-se no chão, sem perceber que a multidão atrás dele se abria, deixando livre um espaço por onde atravessou uma carruagem branca, muito grande, puxada por dois cavalos muito fortes que se demonstraram receosos em aproximar-se mais do fogo. Antes mesmo que parasse por completo, de dentro saltou uma garota assustada, sem cor, os olhos verdes refletindo o vermelho infernal. — Deixem-me passar! Deixem-me passar! — ela gritava en24
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quanto abria caminho pelas camadas de curiosos. Jeremy não tinha certeza, mas levantou-se bruscamente ao achar ter ouvido a voz desesperada de Albertine. Virou-se e a viu lá, paralisada, com o rosto lavado de lágrimas e a boca aberta, o queixo movimentando-se, tentando dizer alguma coisa. Todo o seu pesar diminuiu abruptamente naquele momento. Afinal, ela estava ali, viva, diante dele. — Jeremy! M-meu Deus! Por favor, me diga que estão bem! Me diga que estão aqui fora! — a voz de Albertine saiu quase inaudível em meio ao zumbido de dezenas de outras vozes. Jeremy não respondeu a pergunta e ela sentiu que tudo estava perdido. Desabou em lágrimas, o choro misturando-se a soluços. Agarrouse a Jeremy e juntos viram o que restava da casa ser completamente engolido pelas gigantescas chamas.
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Capítulo ii
Chuva Os últimos resquícios de brasa nos destroços da casa foram sutilmente apagados por uma fina chuva que tornou a cair antes do amanhecer. Não havia mais ninguém observando a total destruição, como também ninguém ousou falar a respeito durante todo o dia, pelo menos não na casa de Jeremy, onde Albertine fora acolhida a passar a noite. Não dormiram, não conversaram. Era terrível demais. Ela permaneceu sentada, perfeitamente ereta, em uma das poltronas macias da sala de estar, com Jeremy ao seu lado apoiando-lhe em silêncio. Estava quieta e imóvel a ponto de quase confundir-se a uma escultura de cerâmica, com olhos vidrados em um ponto fixo onde nada existia. Atravessou o dia inteiro em tal estado, sem comer um grão ou beber um gole d’água. As pontas de suas luvas, agora largadas sobre um criado-mudo ao lado de um abajur vermelho-sangue, exibiam focos de cinzas misturados às linhas desfiadas, assim como seu vestido e sapatos. Jeremy tentava ler sua mente, queria saber o que pensava para tentar ajudá-la, mas entendeu que nada além de silêncio seria capaz de trazer algum conforto. Dia após dia, Albertine foi se acostumando à ideia de que, num estalar de dedos da morte, havia se tornado órfã. Uma ado-
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