OS MEIAS-CARAS africanos livres em são paulo no século xix
Enidelce Bertin
OS MEIAS-CARAS africanos livres em são paulo no século xix
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CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ B461m Bertin, Enidelce, 1966Os meias-caras : africanos livres em São Paulo no século XIX / Enidelce Bertin. - 1. ed. - Salto, SP : Schoba, 2013. 288 p. : il. ; 23 cm Inclui bibliografia ISBN 978-85-8013-230-4 1. Africanos - São Paulo (SP) - História 2. Negros - São Paulo (SP) I. Título. 13-0615. CDD: 981.61 CDU: 94(815.6) 29.01.13
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Aos meus pais, Ivo Bertin (in memorian) e Maria Jos茅 Tomazella Bertin, e ao meu filho Lorenzo, elos de minha hist贸ria.
Agradecimentos
Este livro é uma versão revisada de minha tese de doutoramento defendida em dezembro de 2006 na Universidade de São Paulo. Minha gratidão aos membros da banca examinadora, professores Maria Odila Leite da Silva Dias, Maria Cristina Wissenbach, Robert Slenes e Flávio dos Santos Gomes. Meu especial agradecimento à minha orientadora, Profa. Dra. Maria Helena Pereira Toledo Machado. Marcada pelo rigor com a qualidade e pela liberdade de escolhas, sua orientação foi também o espaço da construção de uma forte relação de confiança e amizade, o que se mostrou fundamental para a boa conclusão deste trabalho. Ao Prof. Dr. John Monteiro, pelo interesse demonstrado em iluminar caminhos quando tudo parecia muito obscuro. Ao Prof. Dr. José Flávio Motta, que, além do incentivo e do acolhimento no seu curso sobre Demografia Histórica, me ofereceu ajuda para elucidar rumos. Aos colegas da Linha de Pesquisa em História Atlântica agradeço igualmente pelos comentários e pelas críticas apresentadas a este trabalho. À Regiane Augusto de Mattos, colega de Arquivo e vizinha no objeto de estudo, pela generosidade em partilhar comigo os dados de sua pesquisa. Aos alunos da disciplina História do Cotidiano, segundo semestre de 2005, porque com eles pude experimentar a docência no ensino superior, por ocasião do estágio realizado como integrante do Programa de Aperfeiçoamento do Ensino (PAE). Aos funcionários do Arquivo do Estado de São Paulo, em especial à Elisabete dos Santos Bernardo, pela sua gentileza e solicitude. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo financiamento concedido entre 2004 e 2006. Minha gratidão, ainda, ao Eucledson, por ter acompanhado desde o começo a pesquisa, solidarizando-se comigo nas dúvidas e nas dificuldades, e por ter me ajudado enormemente com o nosso pequeno.
Viver a experiência da maternidade me permitiu outra compreensão da vida e um questionamento da tamanha dedicação exigida pelo trabalho da pesquisa. Aprender a conciliar os diferentes tempos do rebento com o tempo do estudo foi sem dúvida a parte mais difícil deste trabalho. Agradeço, portanto, ao Lorenzo por ter me permitido insistir e, principalmente, por ter tornado muito mais alegres e ricos os meus dias.
Prefácio
Os meias-caras. Africanos Livres em São Paulo do Século XIX é certamente um livro de grande interesse para a área da história social do tráfico, da escravidão e do período pós-emancipação no Brasil. Em primeiro lugar, este livro é resultado de uma vasta pesquisa em documentação original sobre um tema inédito relativo à Província de São Paulo. De fato, até poucos anos atrás, praticamente nada se sabia a respeito destes africanos que haviam sido apreendidos em alto-mar e trazidos aos cuidados da Comissão Mista Brasil-Inglaterra montada no Rio de Janeiro, desde 1817, como produto dos acordos firmados por Portugal e depois pelo Brasil independente para reprimir o tráfico atlântico de africanos. Atualmente, estudos diversos vêm mostrando a importância do tema que tanto permite que se insira o Brasil no âmbito de uma história atlântica mais ampla, quanto possibilita uma avaliação em época precoce e de forma aprofundada das estratégias emancipacionistas adotadas pelo estado brasileiro com relação à escravidão e à emancipação gradual em geral. De fato, os tratados e procedimentos adotados pelo Brasil no tratamento dos africanos apreendidos em tráfico ilegal só se tornam compreensíveis quando analisados à luz do amplo leque de iniciativas adotadas, principalmente, pela Inglaterra, Estados Unidos e Espanha com relação ao africano e seus descendentes emancipados. Assim, a análise amplificada dos procedimentos das diferentes sociedades americanas em relação à emancipação e destino dos africanos nessas sociedades, recoloca o problema dos africanos livres no Brasil em um contexto atlântico. Como mostra Enidelce Bertin em seu primeiro capítulo, o problema da inclusão dos africanos livres no Brasil se inseria em uma discussão hemisférica a respeito do lugar dos africanos e afrodescendentes emancipados nas sociedades americanas escravistas e pós -escravistas, que passavam a discutir, desde as primeiras décadas do século XIX, questões como a aprendizagem, contratos de trabalho obrigatórios e a expatriação de afrodescendentes para diferentes regiões da África. Neste
espírito foram fundadas, pela Inglaterra, Serra Leoa, em 1787, e a Libéria, pelos Estados Unidos, em 1822. Além disso, desde os anos de 1840 até os finais da Guerra Civil, os Estados Unidos, em diferentes ocasiões, tentaram implementar projetos de expatriação dos seus afrodescendentes para diferentes locais da América Central e do Sul. Embora todos estes projetos – com exceção da Île à Vache no Haiti, na metade do século XIX – jamais tenham saído do papel, eles documentam a descrença de norte-americanos – nortistas e sulistas – a respeito das possibilidades de convivência de negros livres na sociedade pós-emancipação. Em segundo lugar, sublinho que a análise dos procedimentos brasileiros adotados com relação aos africanos livres, que se baseava na tutela e no trabalho obrigatório, política que postergava ao máximo a efetiva liberdade do ironicamente denominado africano livre, foi certamente um importante balão de ensaio da política emancipacionista adotada pelo Estado brasileiro ao longo da segunda metade do XIX. Tendo servido de laboratório para o desenvolvimento de uma política emancipacionista e gradualista, o processo de libertação dos africanos livres pretendeu-se como uma estratégia para inculcar nos “libertandos” uma disciplina do trabalho compatível com a subserviência que deles se esperava. Ao estabelecer a obrigatoriedade de prestação de 14 anos de serviços aos africanos livres, o Estado brasileiro indicava que considerava o africano como um ser que, ao invés de integrado, deveria ser tutelado. Claro que o Estado brasileiro nunca havia sido particularmente generoso nem com africanos nem com os libertos nascidos no Brasil. Ambos foram alvos de restrições pelo Estado nacional brasileiro. Assim, por exemplo, o africano, mesmo quando liberto, permanecia como estrangeiro. Já a constituição de 1824, embora reconhecesse o crioulo liberto como brasileiro, o proibia de votar, oferecendo-lhe uma cidadania apenas restrita. O africano livre, porém, ficava particularmente marcado pelo domínio do Estado, pois, mesmo após anos de trabalho, quando emancipado, não ficava livre do controle do próprio Estado, que matinha o direito de determinar onde ele deveria morar e trabalhar, tutela esta que sinalizava o interesse do Estado em enraizar relações baseadas na dependência pessoal do africano e de seus descendentes. De fato, o acompanhar da política de postergação para a concessão das cartas de liberdade dos africanos apreendidos em tráfico ilegal, política esta estabelecida desde 1818 e depois ratificada, em 1831, pelo Estado Nacional e, mais tarde, a política de tutela, comprova que a estratégia adotada no tratamento da questão dos africanos livres foi o primeiro ensaio
do gradualismo, que implementado nas décadas a seguir, sob a rubrica de emancipacionismo, conduziu a questão escrava no Brasil. O livro de Enidelce Bertin enfoca todas estas questões, trazendo para frente da cena o africano livre alocado em estabelecimentos públicos da cidade de São Paulo, complementando seu quadro com informações sobre aqueles transferidos a particulares. Em sua análise, a autora analisa, com muita acuidade historiográfica, as questões acima mencionadas. Ela, porém, não se satisfaz com a visão de um Estado tutelar onipresente, que tudo definiria, tornando os africanos livres seres dependentes e sem iniciativa. Muito pelo contrário, em seu trabalho, Eni buscou decididamente as vozes dos africanos em suas lutas para serem reconhecidos como livres de fato, como eles próprios sabiam que eram, e autônomos em suas estratégias de vida, casamento, relações sociais e de trabalho. Para tal, Eni dissecou uma ampla e variada documentação que permitiu que ela tanto reconstruísse o dia a dia dos africanos livres em diferentes estabelecimentos de São Paulo – Jardim da Luz, Santa Casa de Misericórdia, Casa de Correção, por exemplo – como também acompanhasse os inauditos esforços que estes homens e mulheres fizeram para serem emancipados. Por meio destes documentos, Eni mergulha, por exemplo, no contexto da vida da africana livre, Maria, que foi descrita por Candido Caetano Moreira, diretor do Seminário de Santa Ana, no qual ela havia sido designada para servir. Em1851, o diretor em questão, expondo ideias depreciativas a respeito do trabalho dos africanos livres, as quais eram compartilhadas por grande número de administradores públicos de São Paulo, se referia a Maria, que insistia em cuidar dos filhos pequenos e que em consonância com os nascentes saberes médicos que passavam a indicar o lar e a maternidade como o lugar natural das mulheres, reivindicava o papel de mãe, em detrimento do trabalho insalubre a que estava alocada, como: “má negra na extensão da palavra, atrevida, de má língua, possuída da liberdade, um precipício, [...] eu não necessito dela para cousa alguma, com três africanos que cá estão servindo vindo contente com eles, e me parece, que eles andam comigo, porque cumprem seus deveres e são negros de vergonha e sem maus vícios presentemente, a africana nada quer fazer, só o que quer é comer o feito e estar com o filho nos braços e se apertar por ela alguma coisa fazer, foge, ela já está bem conhecida e por isso ninguém quer arrematar seus serviços, acha-se grávida de seis para sete meses, que é para o que, segundo me parece tem serventia, daqui a dois ou três meses deve esperar-se por mais este aborrecimento, incômodo, despesa e estorvo.” Historiadora interessada no amplo processo do “tornar-se livre”, Eni-
delce Bertin já nos ofereceu um estudo pioneiro sobre as alforrias na cidade de São Paulo (Alforrias na São Paulo do Século XIX: Liberdade e Dominação), estudo baseado em ampla documentação e que permitiu que ela qualificasse o processo de libertação por meio de alforrias, ocorrido na cidade ao longo do XIX, como tortuoso, restritivo e incompleto. Apesar do caráter oficial da alforria, a historiadora com sensibilidade social pôde discriminar na vacuidade dos termos utilizados por senhores e senhoras, dados a grandiloquência e autoindulgência, os rastros da agência dos escravos na obtenção de uma carta de alforria que, ainda que exigisse dos libertandos mil empenhos e perseverança para tornar-se realidade e, embora muitas vezes apenas limitada, ainda assim surgia como uma porta para a vida livre. Nesta ocasião que a historiadora nos oferta seu segundo livro – Os meiascaras. Africanos Livres em São Paulo no Século XIX, Eni mostra seus dotes analíticos, apresentando um trabalho que se torna, a partir de agora, referência para os estudos, não apenas do passado escravista de nossa cidade, mas também no amplo leque de estudos sobre a emancipação e o lugar social dos africanos e seus descendentes na sociedade brasileira da escravidão e da abolição. Maria Helena Pereira Toledo Machado Professora Titular Departamento de História Universidade de São Paulo – USP
Sumário
Introdução. . .......................................................... 15 Capítulo 1: Os africanos livres no contexto político-econômico do Império................................. 23 Momentos do combate ao tráfico de escravos........................23 A escravidão em São Paulo .........................................................35 Introduzindo o tema dos africanos livres..............................42 Capítulo 2: Cotidiano dos africanos livres em São Paulo......................................................... 51 Africanos livres em mãos de particulares...............................51 Africanos livres a serviço de estabelecimentos públicos ����58 Estabelecimentos públicos urbanos...........................................71 Intercâmbio entre estabelecimentos......................................102 Capítulo 3: Os africanos livres no espaço urbano......105 Apropriações e ressignificações de identidades....................105 Sociabilidade nas ruas da cidade.............................................118 Capítulo 4: Estado, tutela e resistência. . ..................133 Em busca da proteção do Estado.............................................135 Uma história de resistência: o caso de Maria.......................142 Fugas, reivindicações e disciplina............................................154 Capítulo 5: A luta pela liberdade.............................181 No caminho da emancipação.....................................................183 Casamento: recurso para a emancipação ou para o controle disciplinar?.....................................................205 A vez dos africanos livres de estabelecimentos públicos: o decreto de 1864........................................................................218 Pós-emancipação: fim da tutela?..............................................231
Considerações finais.............................................249 ANEXOS.................................................................253 I. Alvará, decretos e leis............................................................253 II. Relação de Juízes, advogados, solicitadores e outros.....266 FONTES DOCUMENTAIS...............................................269 Manuscritas.................................................................................269 Impressas.......................................................................................270 Bibliografia.. ........................................................271 Livros e teses...............................................................................271 Periódicos.....................................................................................281 CD-ROM......................................................................................284 Almanaques..................................................................................284
Introdução
... declarando, por ser perguntado, que não é liberto e que foi sempre livre.1 Chamei-os e perguntei a eles como são tratados, declararam-me de não ter queixa contra o patrão da lancha, porém que querem ser tratados como gentes livres, não querem morrer de fome, não querem comer como porcos, em um cocho e querem receber fumo como se usava dantes.2 Nossa investigação anterior sobre a prática das alforrias em São Paulo nos revelou uma cidade marcada pelo domínio escravista, cuja fisionomia foi delineada pela disseminada presença escrava por todos os segmentos daquela sociedade.3 Mais do que registrar a manumissão, o documento da alforria reforçava o domínio por vieses nem sempre diretos, como pôde ser constatado nas declarações paternalistas dos proprietários, as quais serviam à reafirmação das relações escravistas. Nesse contexto, as alforrias condicionais foram amplamente utilizadas como instrumento de postergação da liberdade, na medida em que atrelavam o liberto às relações de trabalho e obediência nos moldes escravistas. Contudo, ainda que as libertações fossem parciais, os escravos mostraram-se atuantes no sentido de conquistar a alforria, fosse forjando arranjos para a obtenção do pecúlio com o que pagariam seus proprietários, fosse acatando os termos que condicionavam sua liberdade à prestação de serviços, quase sempre por longos anos. Embora a alforria apontasse para um horizonte de liberdade, não con1. AESP – Autos crimes, Rolo 35, ref. 508. Agapito, 1862.
2. AESP – CO 1227 “Diário da Administração da Estrada do Cubatão por Carlos Rath desde 12 até 21 de julho de 1856.”
3. BERTIN, Enidelce. Alforrias em São Paulo do séc. XIX: liberdade e dominação. São Paulo: Humanitas, 2004.
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seguia, contudo, apagar a experiência da escravidão, uma vez que termos como “ex-escravo” e “liberto” traziam a informação do inconteste passado escravo. Interessados na ampliação do entendimento sobre o viver de escravos e libertos na cidade de São Paulo, deparamo-nos com muitos africanos livres trabalhando em obras públicas, prestando serviços a particulares e circulando pela cidade. Diante da singularidade da condição social daquele grupo, expressada na identificação como “africanos livres”, centramos nossos esforços para obter o máximo de informações sobre sua presença na capital, durante o século XIX. Este trabalho é o resultado desse esforço, que, esperamos, possa contribuir para o alargamento da compreensão da presença negra em São Paulo, bem como para a ampliação dos significados e dos limites da liberdade. Observando os excertos colocados na epígrafe acima, ambos partes de falas de africanos livres, podemos notar a reafirmação enfática da condição de livre. O primeiro deles foi retirado do interrogatório de Agapito, feito pela polícia em 1862. O segundo é uma fração das reclamações dos africanos livres que trabalhavam na construção da estrada ligando Santos e São Paulo e que foram descritas pelo engenheiro Carlos Rath em seu diário, poucos dias depois de assumir a administração das obras daquela estrada, em 1856. Embora fossem africanos livres e soubessem da peculiaridade da sua situação, o tratamento por eles recebido os aproximava da condição escrava, por isso tentaram de diferentes maneiras negar um passado escravo e, ao mesmo tempo, mostrar que deveriam ser tratados, efetivamente, como livres. Assim, os africanos livres estiveram atentos a todas as possibilidades de reivindicação de um tratamento diferenciado, seja porque ansiavam por mais autonomia, seja porque desejavam sinais dessa diferenciação – como a forma de comer, por exemplo –, seja porque explicitavam o anseio por uma emancipação completa e definitiva. Entretanto, por que emancipação? Aliás, antes disso, por que africanos livres? A categoria dos africanos livres estava prevista desde o Tratado de 1815, assinado entre Portugal e Grã-Bretanha e ratificado pela Convenção Adicional de 1817, na qual Portugal aceitava encerrar o tráfico de escravos africanos no Atlântico Norte e em participar das comissões mistas para emancipação dos traficados. O artigo 12 da Convenção Adicional de 1817 trazia anexadas as regulamentações para as comissões mistas do Rio de Janeiro e de Freetown (Serra Leoa), entre elas a determinação de que, em caso 18
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de condenação de embarcações, os escravos receberiam um certificado de emancipação e seriam encaminhados ao governo do território da Comissão para serem empregados “como serventes ou trabalhadores livres”.4 Em 1826, o já independente governo brasileiro assinava um tratado com a Inglaterra ratificando os acordos do Tratado de 1815 e da Convenção de 1817. Finalmente, em 1831, foi assinada a lei que estabelecia a extinção do tráfico de escravos e dava continuidade às atividades de apreensão executadas pela comissão mista sediada no Rio de Janeiro. Os africanos ilegalmente importados apreendidos e “emancipados” passaram a ser chamados de “africanos livres” ou, vulgarmente, de “meias-caras”. Recolhidos à Casa de Correção da Corte para que fossem protegidos da escravização, deveriam servir por um período mínimo de quatorze anos “como libertos” tanto em serviço público quanto a particulares, até que adquirissem capacidade para a autonomia. Ou seja, originalmente, os africanos livres eram africanos transportados como escravos ou que seriam vendidos como tais, mas que haviam sido apreendidos e emancipados. A expressão “meia-cara” apenas despontou na documentação de forma rarefeita; no entanto, revelou, de forma clara e instigante, a singularidade da condição daqueles africanos que não eram totalmente livres, nem escravos, nem libertos. Tampouco a situação de emancipado revelou-se efetiva, uma vez que a submissão à tutela do Estado e, portanto, a ausência de autonomia não permitiam que os africanos esquecessem que eram livres apenas muito parcialmente. Com a justificativa de que os africanos livres necessitavam de uma adaptação para a liberdade, eles foram submetidos ao trabalho compulsório, uma vez que este era considerado o meio para a obtenção da capacidade para a autonomia e para a “civilização”. Nesse sentido, foram entregues à arrematação de seus serviços, com a condição de que recebessem cuidados, vestimentas e alimentação. Contudo, diante dos custos para a manutenção dos recolhidos na Corte, o governo imperial estendeu às províncias o consentimento para o uso do trabalho dos meias-caras. Em consequência disso, não apenas os arrematantes particulares foram beneficiados, senão os próprios governos provinciais, que utilizaram amplamente, nos estabelecimentos públicos, a mão de obra daqueles serventes. Assim, a ideologia da escravidão perpassava as questões referentes aos africanos livres, seja porque a tutela reafirmava a incapacidade deles 4. Article the Twelfth. N.3. Additional convention to the treaty... http.www.pdavis.nl\treaty\ Portugal.htm. Consultado em 03 de novembro de 2008.
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para a autonomia, seja porque a coação ao trabalho vinculava-se à ideia de que este teria efeito regenerador sobre aqueles homens e mulheres africanos. Originalmente concebido como tese de doutoramento, este trabalho sofreu apenas algumas pequenas alterações, de modo a contemplar os comentários recebidos da banca examinadora. Nosso objeto de análise são os africanos livres que estiveram sob custódia do Estado prestando serviços em estabelecimentos públicos da Província de São Paulo. As relações cotidianas nos estabelecimentos públicos nos revelaram que, apesar das leis emancipacionistas, o Estado Imperial era escravista. Em consequência disso, as inúmeras tentativas de enquadramento dos africanos livres na ordem e na submissão tinham vistas à preservação do domínio escravista. Em outras palavras, para o Estado, os africanos livres não eram livres, por isso estavam sujeitos ao controle por meio da tutela. Embora os africanos livres estivessem inseridos no contexto do fim do tráfico africano, sua experiência cotidiana guardava estreita relação com a escravidão praticada na cidade, não apenas porque os lugares de trabalho e sociabilidade muitas vezes eram comuns a escravos e libertos, mas também porque, não raramente, não eram vistos como possuidores sequer de uma porção de liberdade pelos administradores públicos e pelos arrematantes particulares. Desse modo, pretendemos analisar as vicissitudes das relações entre africanos livres e Estado, percebendo os diferentes significados da tutela para ambas as partes. Sendo conhecedores da singularidade de sua condição, os africanos livres colocaram-se diante das autoridades como indivíduos livres, o que se chocava frontalmente com a prática dos seus tutores. Para os administradores públicos, os africanos livres não deveriam estar à parte da lógica escravista, por isso toda a “proteção” que a tutela guardava relacionava-se com uma perspectiva de manutenção da escravidão. Procuramos perscrutar a resistência cotidiana dos africanos livres ao domínio representado pela custódia, bem como a incessante busca pela liberdade efetiva, ainda que fosse através da simples ênfase de que não eram escravos, tampouco libertos, tal como acentuou Agapito. Na realização dessa tarefa pudemos desvendar intensos laços de solidariedade mantidos entre eles, bem como a preservação da memória de uma experiência histórica comum, muitas vezes alinhavada desde a travessia atlântica. Portanto, nossa abordagem está centrada no entendimento dos africanos livres como sujeitos históricos, inseridos nas relações escravistas e atuantes no sentido da resistência à escravização latente. Porque desconfiamos que a presença deles 20
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na sociedade escravista do oitocentos foi mais ativa e efetiva do que apontava o discurso dominante, nosso desafio concentrou-se na reconstituição da experiência vivida por eles. Ao focalizar essa população, portanto, objetivase uma análise de suas estratégias de sobrevivência, de seus modos de vida e de seu posicionamento diante da tutela, de modo a perceber uma identidade específica que os distinguia dos cativos. Tais pretensões encontram eco na defesa de Maria Odila da Silva Dias de uma hermenêutica do cotidiano, segundo a qual o foco nos papéis informais, através do desvendamento do omitido nos documentos produzidos pela ideologia dominante, permite que se entreveja o “abismo entre as normas e os costumes”, ou seja, a interpretação das diferenças e das especificidades.5 Nesse sentido, o estudo do cotidiano dos africanos livres busca a historicidade da resistência ou da acomodação, sem desconsiderar as ambiguidades guardadas em tais conceitos. Para uma delimitação temporal, consideramos os anos limites de 1831 e 1864. O primeiro, por se tratar da aprovação da primeira lei nacional de extinção do tráfico e que, a despeito de não ter sido efetivamente aplicada, contribuiu para o aumento do número de africanos livres no Brasil; o segundo, por ter sido o ano da emancipação definitiva de todos os africanos livres do território nacional. A pesquisa pautou-se na documentação produzida pelos administradores públicos da Província de São Paulo, composta pelos ofícios, isto é, a comunicação escrita mantida entre diretores de estabelecimentos, delegados de polícia e juízes de órfãos com a Presidência da Província. Embora avulsos e sem uma organização seriada, os ofícios conformaram a base desta pesquisa porque neles os estabelecimentos foram retratados na sua movimentação cotidiana, da qual fizeram parte os africanos livres. A documentação mostrou-se diversificada, tanto porque as autoridades emissoras eram muitas, como porque os assuntos eram múltiplos, tendo em comum o tutelado. Assim, um documento podia conter as dúvidas de um diretor sobre as despesas com as vestes dos serventes, enquanto que em outro havia o pedido de esclarecimentos sobre emancipações, ou ainda o relato de fugas e insubordinações de africanos livres. Além dos ofícios dos variados órgãos provinciais, utilizamos a documentação do Juízo de Órfãos, que foi fundamental para a elaboração desta tese, principalmente porque nela constam os processos de justificação para emancipação dos africanos livres. Completam 5. DIAS, Maria Odila L da S. Hermenêutica do cotidiano na historiografia contemporânea. Projeto História, SP (17) nov.1998, pp. 223-258.
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o corpus documental alguns processos criminais e os livros de registro das correspondências mantidas pela Presidência da Província com as demais autoridades, órgãos públicos e seus administradores. Considerando a intrínseca ligação dos africanos livres à questão do combate ao tráfico de escravos africanos, o primeiro capítulo, “Os africanos livres no contexto político-econômico do Império”, destaca os principais momentos do debate sobre o encerramento do tráfico, desde o tratado anglo-português de 1810 até a extinção definitiva em 1850. Centrando atenção nos africanos livres, apresentamos também os dispositivos legais que conferiram especificidades àquele grupo no contexto da política emancipacionista. Ainda nesse capítulo realizamos uma breve contextualização da escravidão na cidade de São Paulo, de modo a subsidiar a análise da utilização do trabalho dos tutelados nos estabelecimentos públicos, que é o tema da seção seguinte. Dedicado à apresentação de cada um dos estabelecimentos públicos, o capítulo segundo, “Cotidiano dos africanos livres em São Paulo”, tem por objetivo justamente o olhar sobre o cotidiano de trabalho dos serventes e a localização, na fala dos administradores, da posição do Estado diante deles. Embora o foco deste trabalho sejam os africanos livres serventes em postos públicos, também estabelecemos algumas considerações sobre a atitude dos arrematantes particulares de São Paulo diante dos ilegalmente importados. Mantendo a perspectiva de reconstrução da experiência dos africanos livres em São Paulo, no capítulo “Os africanos livres no espaço urbano” buscamos a percepção deles no âmbito cidade – dentro das possibilidades colocadas pela documentação –, acompanhando sua movimentação pelas ruas, a construção de sociabilidades e a realização das práticas culturais e religiosas. A partir de listas nominais de serventes, nas quais constam os grupos de procedência africanos, procuramos também localizar possíveis ressignificações identitárias daqueles homens e mulheres. Os capítulos seguintes tratam mais especificamente das relações entre os africanos livres e o Estado e foram construídos com a utilização de retalhos de histórias de vida. Em “Estado, tutela e resistência”, discutimos como a tutela era entendida pelos próprios africanos livres, uma vez que nos deparamos com tutelados procurando, junto do Estado, uma proteção contra a escravização ou contra arbitrariedades das autoridades. Contudo, a confiança naquela proteção encontrava limites na constante preocupação dos administradores públicos com a manutenção da ordem e com o controle social, o que nos direcionou para uma análise da resistência dos africanos 22
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livres ao domínio encerrado na tutela. Finalizando este trabalho, apresentamos, em “A luta pela liberdade”, o intenso processo de busca da efetivação da liberdade. Longe da resignação ou da passividade, os africanos livres nos apresentam sua ânsia para encerrar o domínio a que estavam submetidos. Assim, analisando as emancipações, procuramos recuperar os caminhos percorridos por aqueles homens e mulheres desde o desembarque no Brasil, os esforços, as redes de solidariedade e os mecanismos para a concretizar o sonho da autonomia, enfim, sua experiência histórica. Para concluir, realizamos um exercício de observação da efetividade da emancipação e dos limites da tutela, acompanhando a trajetória de alguns africanos livres no período posterior à emancipação.
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