Nas marés do Amazonas

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Nas MarĂŠs

do

Amazonas



Iramel Lima

Nas MarĂŠs do Amazonas


Copyright © Iramel Lima Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma e por qualquer meio mecânico ou eletrônico, inclusive através de fotocópias e de gravações, sem a expressa permissão do autor. Todo o conteúdo desta obra é de inteira responsabilidade do autor. Editora Schoba Rua Melvin Jones, 223 - Vila Roma - Salto - São Paulo - Brasil CEP 13321-441 Fone/Fax: +55 (11) 4029.0326 | 4021.9545 E-mail: atendimento@editoraschoba.com.br www.editoraschoba.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Lima, Iramel Nas marés do Amazonas/ Iramel Lima. São Paulo : Schoba, 2012. 180 p. ISBN 978-85-8013-136-9 1. Ficção brasileira 2. Literatura regional I. Título 12-0069 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção brasileira 2. Literatura regional

CDU 82-3 CDD 869.3


Ao meu av么, Higino Pena Amanaj谩s. (Em mem贸ria)



Sumário Agradecimentos.............................................................. 9 Apresentação................................................................. 11 Retorno ao Bailique.................................................... 13 Histeria Coletiva......................................................... 19 Reencontro................................................................... 23 Alexandre e Dona Florência...................................... 29 Gurijuba......................................................................... 34 Lembranças.................................................................... 39 Fugindo para casar....................................................... 44 Casamento de Olavo..................................................... 49 Os outros....................................................................... 52 Nova pista...................................................................... 55 Sucuriju.......................................................................... 61 Curandeira.................................................................... 64 Tempos de terror no Bailique..................................... 67 Uma palavra de esperança........................................... 69 Novas histórias............................................................. 71

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Retorno ao mar............................................................ 77 O marinheiro................................................................. 81 Médico alemão............................................................. 89 Contrato de convivência............................................ 93 Angustura...................................................................... 98 Meu Ã........................................................................... 106 O Reino dos Botos...................................................... 121 Paixão e fuga............................................................... 127 Caçador....................................................................... 135 Traição......................................................................... 150 A mula-sem-cabeça...................................................... 158 A sucuri e o menino.................................................... 162 A origem da mandioca............................................... 169 O Tratamento.............................................................. 172

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Agradecimentos À energia geradora de todas as coisas. A minha mãe, Mimorina Lima Maciel. Aos amigos e colaboradores que foram indispensáveis na concretização deste projeto: sra. Rosa Santana Amanajás, sr. Manoel Queiroz Barbosa, Júlio Santana Amanajás, Dinai Amanajás, Sebastião Amanajás, Rodrigo, Zé Mourão, sra. Terezinha, sr. Cides, Rosicleia do Socorro, (da família Amanajás Pereira), Rosângela Amanajás, Getúlio Barreto, Adjaci Uchoa e Suellen Belizário.

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Apresentação

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sta obra surgiu do desejo de conhecer os caminhos das viagens empreendidas pelo meu avô, narrador e protagonista desta narrativa, nas terras do Arquipélago do Bailique, situado cerca de 185 km de Macapá, formado por 42 comunidades e oito ilhas. Desde criança, eu ouvia os fatos, dramas e humores contados por ele. A riqueza de detalhes de suas narrativas despertava fantasias e curiosidades em minha mente. O mundo revelado por ele traduzia o imaginário popular, mesclando a vida de mistério e constantes revelações entre o homem e a natureza. Para produzir esta obra, iniciei, no final de 2009, uma série de entrevistas com parentes e amigos que tinham lembranças da vida do meu avô no Arquipélago do Bailique. Só tive a oportunidade de conhecer aquele mundo aos 47 anos, em 2010, após a morte do meu avô, que faleceu em 2003. Naquele ano, eu estava estudando fora do Brasil e não pude vê-lo em seus últimos dias. Somente em fevereiro de

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2010 consegui ser transferida de Macapá ao Bailique para trabalhar como professora no Ensino Fundamental e Médio e pude vivenciar o cotidiano do povo bailiquiense. As pessoas que entrevistei, como a sra. Rosa Santana Amanajás, o sr. Manoel Queiroz Barbosa, o sr. Júlio Santana Amanajás, a sra. Terezinha Amoras Amanajás e sua filha Rosicleia do Socorro, colaboraram para o enriquecimento desta obra. Os meus primos e primas da Comunidade do Igarapé Grande do Curuá me acolheram com carinho naquele lugar. Todas essas pessoas entenderam a importância deste projeto e, de coração aberto, colaboraram compartilhando suas vivências e memórias. A viagem de Macapá ao Bailique é feita pelo rio Amazonas, com muita maresia, até chegar em seus afluentes, onde se localizam as comunidades ribeirinhas. Caso as embarcações atrasem a saída, correm o risco de encalhar. As marés determinam o ritmo de vida dos bailiquienses.

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Retorno ao Bailique

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ssa gente, como me refiro a eles, tem muitas histórias para contar. Sempre recebi meus amigos e parentes com uma atenção especial, mas agora tenho outro propósito. Além de rever meus amigos, irei em busca de uma planta raríssima, de folhas miúdas, que existe em algum lugar das oito ilhas que compõem o Arquipélago do Bailique e que poderá me curar. Há 20 anos sofri uma doença que paralisou minha perna direita. Na primeira tentativa de curar-me, logo no primeiro mês que minha perna paralisou, procurei uma benzedeira. Acompanhado de minha esposa, fui até uma comunidade chamada Açaizeiro. O tratamento eliminou as dores, mas não fez com que os movimentos retornassem. Depois de um mês ali, minha esposa contraiu malária e faleceu. Em pouco tempo, tornei-me paralítico e viúvo. Meus filhos passaram a ser cuidados pela minha irmã mais velha e, mais tarde, a filha mais velha passou a cuidar dos três menores.

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Nessa viagem seguirei uma rota diferente daquela que fazia normalmente, pois pretendo rever velhos conhecidos e parentes que vivem em outras regiões do Bailique e que poderão me dar pistas de onde encontrar essa planta tão rara. Um curandeiro bastante conhecido e experiente que encontrei casualmente em Macapá viu a minha situação e garantiu a cura através do tratamento com essa planta. Durante toda minha vida vivi no Igarapé Grande do Curuá. Ali nasci, fui criado, casei e criei meus três filhos. Quando fiquei viúvo, já paralítico de uma perna, deixei que meus filhos fossem morar com parentes em Macapá. Minha mente traça novos caminhos pelas águas do Bailique. Agora, meu olhar é o de um ser ausente em corpo, mas presente em memória. Em cada lugar que chegava, dava meu grito de saudação, agudo e longo; é o nosso jeito de dizer “Cheguei!”. Estou mergulhado nas lembranças bailiquienses, como o velho costume de recontar os peixes para vender mais adiante, parando em cada comunidade, vendendo e contando casos e piadas. Ser pescador tem seus mistérios e talentos. Os sinais do rio indicam onde há peixes, e os frutos nas margens também sinalizam as espécies que podemos encontrar. Quando perdemos a noção do tempo real, vivemos mergulhados nas memórias. Às vezes fico assim, entre uma realidade e outra. Para retornar ao convívio dos meus, quero dizer, dessa gente, tomei um barco no porto do Perpétuo Socorro. Logo armei a rede e me acomodei para esperar a saída. A brisa da tarde alivia o calor na beira. Esse porto melhorou desde aquele tempo, mas, agora que já estou velho, algo me preocupa: a grande quantidade de óleo na margem e a sujeira.

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Para os moleques que brincam entre os barcos nada importa. Nem as garrafas, nem os plásticos, nem as latas. Os barcos se movimentam lentamente por causa da quantidade de embarcações neste porto. A maré está alta e é hora de partir, seguindo o ciclo do rio Amazonas. A maré leva mais ou menos seis horas para encher. Agora são 18h15 e o barco está partindo. Às cinco da manhã estaremos em Vila Progresso, se tudo correr bem, como se diz por aqui. Lá reencontrarei uns conhecidos e pretendo ficar na casa um deles por alguns dias. O piloto faz muitas manobras para sair. A embarcação faz uma curva radical e tomba para um lado, assustando aqueles que não estão acostumados. Cada minuto que passa torna mais distante o Trapiche Eliezer Levy, e Macapá vai ficando para trás. Vou lhes dizer, que beleza é o pôr-do-sol observado desta embarcação! Minha rede balança como roupa no varal. No impacto com a maresia, levei água no rosto. Depois de uma noite conturbada, cheguei em Vila Progresso. Por duas vezes o barco encalhou em bancos de areia, que são uma característica dos rios de maré. Como choveu muito, fiquei esperando a chuva passar em outro barco que estava ancorado. Essa gente ficará surpresa com o meu retorno, depois desse período em Macapá. Lembro que minha maior diversão era contar piadas para os conhecidos e parentes. Certa vez, contei a eles que um fazendeiro só oferecia caldo de carne com farinha para seus empregados. Com o passar do tempo, os empregados foram ficando gordos; e o patrão, magro. Ele não sabia que a “sustância” estava no caldo, e não na carne. Eu tinha um ditado: só precisava de dois pares de roupa quando um está no corpo e o outro está no varal secando. E sempre digo: tem o dia da fartura e o dia

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da famitura. Meu primeiro encontro em Vila Progresso foi com dona Maria. Seus cabelos brancos e sua paz de espírito refletiam o profundo amor que sentia pelas pessoas e sua plena realização na vida, tendo gerado e educado nove filhos. — Tudo bem dona Maria? O que aconteceu nos últimos anos? — Bom, a vida está mudando aos pouquinhos. Tem pontes novas que foram construídas nos últimos cinco anos. Muita gente já foi embora e outras estão retornando para a nossa vila. O posto de saúde foi melhorado, mas ainda falta profissional de saúde para morar aqui. — Eu acho que a vila Progresso cresceu muito. Parece que as pessoas gostam mesmo de morar perto da agitação. Antigamente as famílias procuravam morar bem longe para ter espaço pra plantar e criar animais. Agora compram tudo no comércio. Eu se pudesse, ainda moraria bem longe de vizinhos para ter mais sossego. Infelizmente essa doença na minha perna não permitiu que eu tivesse condições de morar mais tempo no interior. — Seu Higino, eu já mudei de casa umas três vezes nessa vila. E sempre procuro um lugar tranquilo para morar. Mas a vizinhança vai chegando e trazendo barulho. Muita gente compra aquelas caixas de som bem grandes e qualquer dia da semana coloca música bem alta. E eu não me acostumo com esse jeito novo do povo. Agora a pesca é controlada pelo Ibama, não podemos pescar como antigamente. Está proibido pescar e vender nossos peixes cumaru, curupeté, pacu, ferro, aruanã, sardinha, mapará, matrinxã, branquinha, anujá, piranha, Piratininga, tambaqui, apaiari, tamuatá, traíra, pacu, jeju, curimatã, piau e aracu. Tem semana que

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falta peixe na vila. A vida está ficando mais difícil. Viajávamos em barco a vela por vários dias. Agora existem muitos barcos que transportam passageiros e cargas até Macapá, mas, dependendo do tamanho, às vezes ele pode balançar muito. Durante a minha viagem, nossa embarcação parou em uma comunidade e dois passageiros desembarcaram para retirar duas dúzias de madeira e colocar em outra embarcação menor. Aí, no momento de ligar o motor e se afastar do porto, o barquinho virou com a maresia! O piloto da pequena embarcação teve o pé machucado; os demais tripulantes tentaram resgatar as mercadorias e até uma televisão foi pro fundo. Foi necessário levar o piloto às pressas à Vila Progresso para tratamento. — Os fatos mais curiosos podem acontecer por aqui. O senhor soube da criança que ficou perdida na mata? — Não, conte. — Certa vez, vários homens estavam trabalhando na construção de uma escola, quando um deles recebeu o aviso que seu filho tinha desaparecido. Alguns homens saíram para procurá-lo e depois de cinco dias o encontraram cheio de espinhos pelo corpo e com picadas de carapanã. Depois de ter sido bem tratado, foi resistindo e ficou curado. — Dona, Maria, esse lugar é aconchegante! Os bemte-vis no final da tarde fazem um show e os siriris, com o peito amarelo, estão sempre comendo e são muito valentes. Eles enfrentam até gavião! O igarapé faz a volta nesse ponto da sua casa. As árvores grandes e os pés de macaxeira dão uma visão especial. As crianças brincando no igarapé e esse chuvisco, com o pipilo das papagaios, dão mais vida e beleza nesse momento de recordações. — É, Seu Higino, aqui eu realmente estou tranquila.

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Na casa antiga tinha muito ruído, barulho de festa e brigas durante a madrugada. — Eu lembro, eu me lembro das festas de antigamente, que duravam três dias! A banda dos filhos do delegado Jesuíno sempre ia tocar. Algumas músicas eram instrumentais; e outras, inventadas, que nem fazem os repentistas. Eu lembro que o velho amigo Aladim escrevia sobre os momentos de valentia nessas festas.

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