Nevoa issuu

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Névoa



NĂŠvoa

Alice Von Amerling


Copyright © Alice Von Amerling Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma e por qualquer meio mecânico ou eletrônico, inclusive através de fotocópias e de gravações, sem a expressa permissão do autor. Todo o conteúdo desta obra é de inteira responsabilidade do autor. Editora Schoba Rua Melvin Jones, 223 - Vila Roma - Salto - São Paulo - Brasil CEP 13321-441 Fone/Fax: +55 (11) 4029.0326 | 4021.9545 E-mail: atendimento@editoraschoba.com.br www.editoraschoba.com.br

CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ A535n Amerling, Alice Von Névoa / Alice Von Amerling. - Salto, SP : Schoba, 2013. 612 p. : 23 cm ISBN 978-85-8013-248-9 1. Ficção brasileira. I. Título. 13-1893. CDD: 869.93 CDU: 869.134.3(81)-3 25.03.13 27.03.13

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Para minhas inspirações, especialmente, Garbo, Bette Davis, Catherine Deneuve, Romy Schneider, Louise Brooks, Marlene Dietrich, Katherine Hepburn, Lauren Bacall, Lillian Gish, Hitchcock, Alain Delon e Anthony Hopkins, porque se eles não existissem, de certo modo, este livro não existiria, pois descobri que a escrita demanda inspiração. Também para o filme “Entrevista com o vampiro”, que vi aos oito anos, e foi a primeira vez que ouvi a palavra “vampiro”. Definitivamente, para os cinéfilos, que, como Truffaut disse certa vez, são pessoas doentes.



“Sempre! Que palavra horrível! Estremeço só de ouvi-la. As mulheres gostam muito de empregá-la. Estragam todo e qualquer romance tentando fazer com que dure para sempre. É também uma palavra sem sentido. A única diferença entre um capricho e uma paixão eterna é que o capricho dura um pouco mais.” (Oscar Wilde) “A alma é uma terrível realidade: pode-se comprá-la, vendê-la, trocá -la; pode-se envenená-la ou aperfeiçoá-la.” (Oscar Wilde) “Se eu pudesse voltar à juventude, cometeria todos aqueles erros de novo. Só que mais cedo.” (Tallulah Bankhead) “Sou louco porque vivo em um mundo que não merece minha lucidez”. (Bob Marley) “O melhor de ser solteiro é que você pode entrar na cama pelo lado que quiser.” ( James Dean) “Estamos habituados a julgar os outros por nós próprios, e se os absolvemos complacentemente dos nossos defeitos, condenamo-los com severidade por não terem as nossas qualidades.” (Honoré de Balzac) “A existência precede a essência.” ( Jean-Paul Sartre)


“A noite passada sonhei que voltava à Manderley novamente. Estava em pé, diante do portão de ferro, no início da estrada. Ainda assim não conseguia entrar porque o caminho estava fechado para mim. Então, como em todos os sonhos, fui possuída por uma força sobrenatural e atravessei como um espírito através da barreira... Jamais poderemos voltar a Manderley novamente. Isto é certo.” (Rebecca, a mulher inesquecível) — citação extraída do filme dirigido por Alfred Hitchcock baseado no romance de Daphne du Maurier.

“O som aniquila a grande beleza do silêncio.” (Charlie Chaplin) “A arte é o mais intenso tipo de individualismo que o mundo já conheceu.” (Oscar Wilde) “O cinema não tem fronteiras nem limites. É um fluxo constante de sonho.” (Orson Welles) “A coerência é a virtude dos imbecis.” (Oscar Wilde) “É uma infâmia nascer para morrer não se sabe quando nem onde.” (Clarice Lispector) “O segredo do demagogo é se fazer passar por tão estúpido quanto sua plateia, para que esta se imagine ser tão esperta quanto ele.” (Karl Kraus)


Sumário

Prólogo........................................................................................... 11 The hunger (Fome de viver)........................................................ 14 Supernatural (Sobrenatural).................................................... 40 “Little Bastard” (Pequeno Bastardo)....................................... 75 Smells like teen spirit (Cheira a espírito jovem)................... 95 L’Arrivée d’un train em gare de La Ciotat (A chegada de um trem à estação)........................................... 115 The mysterious lady (A dama misteriosa).............................. 142 Nosferatu: Eine smyphonie des grauens (Nosferatu).......... 207 Pillow talk (Confidências à meia-noite)............................... 243 I’m only sleeping (Estou apenas dormindo)............................ 274 I may never go home anymore (Talvez eu nunca mais volte para casa).................................. 288 “Promise me one thing: don’t take me home until I’m drunk — very drunk indeed.” (Prometa-me uma coisa: não me leve para casa até eu ficar bêbada — muito bêbada mesmo)....... 313


Roadhouse blues (Blues da hospedaria)................................. 337 I confess (A tortura do silêncio)............................................. 347 Danse macabre (Dança macabra)............................................. 369 Was Nützt Die Liebe in Gedanken (Para que serve o amor só em pensamentos)........................... 392 Citizen Kane (Cidadão Kane)................................................... 426 You really got me (Você realmente me pegou)..................... 436 Die Büchse der Pandora (A caixa de Pandora)...................... 452 La Barbe Bleue (O Barba Azul)................................................ 502 Die Leiden des Jungen Werthers (Os sofrimentos do jovem Werther)....................................... 534 Time (Tempo)................................................................................ 565 Réquiem (Descanso).................................................................... 578


Prólogo

Era dezembro. A lua já repousava sobre o céu de um cinza escuro impenetrável, nevava, e por causa da névoa ficava difícil enxergar. Num dia como esse, há mais tempo do que tenho coragem de confessar, foi o início de um fim, ou o fim do início, pode escolher se isso o deixar mais confortável. A certeza era de que iria acabar. As crises existenciais estavam me matando, metaforicamente, e o suicídio não era uma tarefa muito simples. Se ele não desse um fim ao meu sofrimento, eu iria acabar matando mais pessoas, mesmo que esta não tenha sido a razão de estar lá. Se eu me importo? Não, deixei de me importar há muito. O modo como morri, ninguém merece morrer daquele jeito, não era de longe a forma natural, ao mesmo tempo eu não chamaria de acidente. Talvez só estivesse no lugar errado, na hora errada, ao mesmo tempo em que poderia ser totalmente o oposto. O último mês estava muito calmo, deveria ter desconfiado. Só não estava queimando viva naquele momento porque não havia sol. Desconfiava que para este mundo eu era suficientemente pura para queimar, não me pergunte o porquê, pois já cansei de fazer a mim mesma essa pergunta. Onde estava, tudo era calmo e desprovido de luz, e o silêncio era inquietantemente paciente. Poderia sentir o medo dele, pois sabia que eu era capaz de fazer qualquer coisa, no entanto, aparentava que não fosse. Da mesma forma que séculos atrás, alguém iria me matar, des13


sa vez realmente morreria, deixaria pessoas de que gostava, mas vivi muito tempo, suficiente para não me importar mais, não é como se ainda tivesse dezoito anos. Comecei a sentir uma paz, a mesma que havia perdido na noite em que minha família morreu, tempos atrás. Uma memória bem destorcida, não conseguia mais nem imaginá-los, as feições eram difíceis de ser lembradas, no entanto, as de Victor ainda eram muito claras. Na primeira vez a dor deixou o corpo tórpido. Tornou a respiração desnecessária enquanto mergulhava num sono profundo e atordoante, que aos poucos enfraquecia até que nada mais restasse, como se minha alma estivesse se desprendendo do meu corpo, se é que algum dia possui uma. Parece estúpido ao ser dito desse jeito, mas é o único que consigo descrever. Agora, estava quase imune à dor, era dependente dela, em especiais ocasiões, ela também dependia de mim. Era o modo, o único modo, de me sentir humana, precisava, era meu zênite. Aquele sangue circulando pelo meu corpo estava me queimando por dentro, como na primeira vez, meu corpo começou a formigar, e depois, a qualquer momento, ele iria me matar, finalmente abraçaria a morte, senti alívio. A liberdade que tanto procurava, só agora, entendia que a teria quando morresse. — Eu já me sinto morta — disse a ele, que me observava como se estivesse tentando me ler. — Matei um dos seus, nada mais justo — não estava usando psicologia inversa. Ele me ignorou, e foi até o outro lado do sepulcro, onde se encontravam as cartas deterioradas pelo tempo. Estava errada, como sempre nunca entendi como os vampiros pensam, é irônico. A morte é convidativa, como um velho amigo, depois de tanto tempo. Pude viver mais do que esperava, mais do que qualquer um espera. Vi coisas que pessoas que aparentemente possuem minha idade nunca sonharam ver fora das páginas dos livros. Presencie 14


Napoleão Bonaparte voltar vitorioso do exílio em que fora colocado na ilha de Elba, e do mesmo modo, ouvi rebuliços do fracasso, após perder a Batalha de Waterloo. Estive na França em meados do Governo de Cem Dias. O tempo molda tudo. Minha roupa estava toda suja e com um cheiro horrível, graças ao belo e repugnante lugar em que me encontrava. O casaqueto azul do tailleur que anteriormente usava estava agora no chão, sujo e encharcado de sangue. Parecia uma cena irônica de um giallo, filmes italianos de violência extrema com assassinatos em série, cujo o culpado costuma ser revelado nas cenas finais. Fechei os olhos, por alguns segundos, que pareciam uma eternidade, tudo que fiz passou pelos meus olhos, todas as lembranças boas e ruins eram fotografias que desvaneciam muito rápido para prestar atenção, como num filme de ação. O tempo é algo engraçado, quando se pensa que o possuiu, ele acaba exatamente naquele sublime segundo em que se compreende o sentido de estar aqui. Duzentos e trinta e sete anos é de uma admirável lentidão. E não há sentido nenhum, por que, mesmo que se tenha agido como se a vida fosse um manual de instruções, e tivesse seguido todas as regras, algo que dificilmente faria, no fim você estará morto. Tudo na minha vida aconteceu ao acaso, simplesmente aconteceu, não há como explicar o inexplicável. Sempre! É antes de tudo uma palavra traiçoeira, tão relativa e peculiar quanto as pessoas que as pronunciam.

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The hunger (Fome de viver)

Fugia intencionalmente da minha realidade para os filmes, transportava-me para eles quando o que estava vivendo era tedioso. Funcionava para mim como uma casa abandonada, uma espécie de refúgio, normalmente pensava neles como imagens oníricas e distorcidas. Como nos antigos filmes, de Luis Buñuel a Nouvelle Vague, passando pelo Noir, minha vida era uma espécie de sonho, é até hoje difícil de explicar a razão de estar aqui. Além disso, cometo muitas digressões, mas ninguém é perfeito. Quanto a ser uma dádiva ou uma maldição, tal como o resto, é subjetivo. Era agosto, precisamente dia 8. Estava muita ansiosa pelo primeiro dia de aula no terceiro ano do ensino médio, havia muito tempo que não estudava. Por muitos anos pensei que me esconder do mundo, deixar de viver seria uma boa forma de acabar com qualquer tipo de perigo que poderia representar para qualquer um. Mas estava cansada disso, de não ter problemas, pois problemas eram tudo que não tinha, já que não os procurava há décadas. Vivi mais de um século sem me importar com qualquer pessoa, de certo modo gostaria que eu voltasse a ser assim. Decidi que era hora de parar de me preocupar com os outros, ou com o perigo que representava a eles para começar a viver, havia conseguido isso no passado, por que não agora? Queria viver como as 16


pessoas de minha idade viviam, ou melhor, viver como a maioria das pessoas da idade que aparentava ter vivia. Era necessário esquecer o que havia acontecido com minha família, como Tom sempre me encorajou a fazer. Havia mais de dois séculos, deveria esquecer. Entendi que não era minha culpa, nada podia fazer. Quem eu era de verdade não existia mais por causa das limitações humanas, era só uma lembrança que pedia para ser esquecida. Não sabia por que, apenas me veio à cabeça uma música dos Beatles, “Yesterday” (Ontem). Era assim que me sentia? Hoje estava mais nervosa que o usual. O tempo podia diminuir a dor, aconteceu comigo, afinal ela é causada por lembranças que as pessoas possuem a tendência de superestimar. Quando o dia acabasse, iria juntá-lo à lista dos meus dias sem sentido. Ir para a escola não iria mudar nada, na realidade, iria piorar. Meus amigos tinham certeza de que seria uma distração, mas essa não se enquadrava na minha definição de distrações. Para mim, distração seria aumentar o número de livros e obras de arte de minha coleção fazendo compras em Paris, Berna, Salzburgo, Viena, ou mesmo em Estocolmo, mas se isso não fosse possível, matar alguém sempre ajudava a controlar meu temperamento excessivo, e por vezes, evasivo, sentia uma paz interior depois de matar alguém, era como se o mundo espontaneamente fosse melhor, mas isso foi há muito tempo. Que pena que meus amigos eram contra essa última opção. De certo modo, não queria desapontá-los, não sei o porquê disso, é um tipo de emoção, e há muito deixei de entendê-las. A escola era coeducacional, começava às cinco da tarde, e terminava às nove e quarenta da noite, então coloquei o despertador com o desenho de uma pin-up dos anos 1940 para três e quarenta, até que meus amigos chegassem, deveria estar entardecendo, de um modo ou de outro só havia uma pequena janela, e ela ficava do outro lado do quarto. Comprei o despertador há menos de um mês, e já estava ar17


ranhado graças ao meu modo descuidado de ser. Se o sol ainda não estivesse se pondo no horizonte até o horário que tivesse que sair, teria uma desculpa para faltar o primeiro tempo. Morava um pouco longe da escola, preferia manter segredo sobre meu passado. Para todos os efeitos, tinha dezessete anos, transferi-me de uma escola em Liverpool, e vivia sozinha porque meus pais tinham morrido num acidente de carro, não tinha nenhum outro parente, tinha condições financeiras de me sustentar por causa da herança de meus pais. Parecia convincente essa desculpa, pelo menos funcionava na maioria dos filmes. A escola era em Londres, precisamente, em Westminster. Gostava de lá, ao ser descrito em algumas estórias, o lugar parecia mágico, como as de James Matthew Barrie. Para quem não é familiarizado com o nome, ele foi o escritor de “Peter Pan, or The boy who wouldn’t grow” (Peter Pan, ou o garoto que não queria crescer), que foi o título dado para a adaptação nos teatros no início do século XX. Mesmo assim, prefiro Neverland (Terra do nunca); é mágica, fantasiosa, e lá poderia sempre achar Peter Pan. Mas Peter não existe, nem nunca existirá, é infelizmente um faz de conta, eu gostaria de ser uma criança para que pudesse acreditar neles, talvez seja em alguns aspectos. Não é tão difícil acreditar em fadas, do mesmo modo que os sonhos não podem de modo algum acabar. A Terra do Nunca talvez fosse minha ideia de mundo ideal, mas sei que não existe esse tipo de coisa. Voltei para Londres há dois anos, e, nas palavras de Tom, por eu não ser socializável, não conhecia ninguém, com exceção dos meus seletos e diferentes amigos. Ninguém humano que havia me conhecido há quatro ou mais décadas morava lá, esse era o ponto principal. Uma das coisas mais difíceis para indivíduos como eu são as mudanças, não há como se fixar a um lugar ou a pessoas, pois tudo é passageiro quando 18


sou obrigada a desempenhar um papel. A maioria dos personagens não mudam a aparência tal como vampiros. Algumas vezes meus amigos iam me visitar, não eram raras. Tentavam me distrair, fazer esquecer o que aconteceu no passado. Concordava que fazia muito tempo, que devia esquecer, mas falar em esquecer e realmente esquecer são coisas completamente diferentes. Como gostaria de apagar da memória minha própria condição, contudo esquecer aquela noite não era possível, poderia dizer que aquela noite era uma parte de mim. Como deve ter percebido, possuo certo talento para a dramatização, qualquer história, verdadeira ou imaginada, necessita de um pouco dela. A mansão em que morava era isolada, quase escondida. Havia uma rodovia em frente, e uma entrada do lado direito, como um desvio, por isso a comprei. A arquitetura era em estilo vitoriano, a construção datava da primeira metade do século XIX. Atrás da casa havia um lago, mesmo não sendo muito grande, um adulto de porte médio poderia facilmente se afogar, devido à profundidade. Tinha um prado imenso na parte de trás, como em Manderley, a mansão do filme Rebecca (Rebecca, a mulher inesquecível), de 1940, com Joan Fontaine e Laurence Olivier, dirigido por Alfred Hitchcock, foi, aliás, o primeiro filme que ele dirigiu nos Estados Unidos. Ele filmaria uma versão de Titanic, no entanto, o produtor David O. Selznick havia comprado os direitos de “Rebecca”, história escrita por Daphne Du Maurier. O final é surpreendente. Ambos os atores conseguiram interpretar majestosamente os papéis de segunda Sra. De Winter e Maximiliam de Winter. Não só eles como Judith Anderson, que fez o papel da governanta. Não sou uma crítica de cinemas nem desejo ser. Essa é só minha respeitável opinião. O lugar em que morava lembrava muito a época em que vivia com Tom, trazia recordações de anos em que eu realmente era feliz, 19


e não precisava me importar com nada porque ele estava perto para me apoiar. Tom era só um antigo amigo. Realmente não preciso me importar com o dia seguinte, mas apreciava a companhia dele. O que realmente determinou a compra da casa foram as lembranças dos bons tempos. Morei numa casa que possuía a mesma arquitetura, a diferença era que a anterior tinha sete cômodos. Esperava o despertador tocar, hoje estava impaciente, impaciente para ir para a escola. Ninguém deve compartilhar minha opinião, de qualquer modo, não sou igual a ninguém. Assim que me levantei, fui ao banheiro que ficava no quarto. A iluminação era escura, havia uma banheira de cor preta, um chuveiro com porta de vidro fosco, a bancada da pia era quadrada, da mesma cor da banheira. E uma privada, que era mais decorativa. Se vampiros precisam dela? Bem, se eu responder estragaria... Francamente, por que pergunta, se sabe a resposta? Está bem, está bem, direi. Sim, digamos que me alimente de algo que não deveria, como uma pizza, passaria muito mal, teria que expelir o alimento. Essa é uma situação em que a privada torna-se útil, não acredito que haja outras, se houver, não consigo pensar nelas no momento. Sei que sabia disso. Enfim, tomei banho e escovei os dentes, sujos ou não, nunca teria uma cárie, eles sempre ficariam perfeitos. O veneno proporcionava essas facilidades, mas de um jeito ou de outro ia conviver com humanos e precisava me acostumar a agir igual a eles. Ser vampiro! Até hoje penso no estranho nome dado à minha espécie, Vlad Tepes era só um homem ruim como qualquer outro, mas não bebia sangue, pelo menos não para continuar vivo. Quanto ao ato de beber sangue, não era só ele. No século XV, o Papa Inocêncio VIII perto da morte foi aconselhado pelo médico a fazer uma transfusão. Assim sendo, bebeu o sangue de três crianças, pois acreditava, na época, que um sangue novo garantiria o rejuvenescimento. No fim, as crianças morreram, tal como ele. 20


O quarto em que ficava não era o único, era o maior, mas por só haver uma pequena abertura do outro lado, ele adquirira um ar lúgubre. Aprecio o quanto as casas podem parecer imponentes. Havia ao todo trinta e seis cômodos. Assim que a porta da mansão era aberta, visualizava-se um grande hall em estilo Tudor, de pé-direito alto apainelado de carvalho negro, à direita havia uma grande porta que levava ao salão. Se seguisse em frente, depois virasse à esquerda no fim do corredor, e descesse algumas escadas que levavam a uma porta antiga, teria acesso ao porão, se subisse as escadas, chegaria aos quartos. Vinte metros após a porta da frente, ao lado direito, tinha uma entrada que levaria à cozinha, a qual poderia ser acessada também pela porta dos fundos. Havia uma piscina um pouco menor que uma olímpica no jardim, este estava devidamente podado. Em frente a ela havia um piso de madeira com algumas cadeiras para piscinas, Tom as comprou antes de fazer aquela viagem que começara na Irlanda e parecia não ter fim. Raramente a usava, não queria ficar bronzeada. Para o salão, tinha comprado persianas de painel brancas. Não é que o dia tivesse a capacidade de matar, mas o contato direto da minha pele com a luz solar causará estragos, arderá como uma insolação nos primeiros minutos, e dentro de duas horas carbonizar, em seis poderei dizer adeus a este mundo. É realmente muito mais demorado do que alguns filmes mostram, nós não entramos simplesmente em combustão. No entanto, filmes possuem entre duas a quatro horas, por isso não têm tempo para mostrar alguém queimando vivo por seis, isso seria maçante para a plateia, mesmo que esse fosse o verdadeiro tempo em média para alguém como eu morrer por causa da luz do sol. É doloroso. Menos que isso não é letal, irá carbonizar, mas até isso é totalmente recuperável. Eu iria morrer algum dia, mas não hoje, espero que não. O que sou torna todos os sentidos mais apurado, e qualquer comi21


da com cheiro de podre. No que diz respeito às bebidas, principalmente, as destiladas, sinto um gosto inacreditavelmente melhor. Por isso as aprecio. O melhor de tudo é que não consigo ficar bêbada. Tentei uma vez com cinco garrafas de vodca. O que posso dizer em defesa? Não foi uma das minhas melhores fases. Quanto ao cigarro, gosto de perceber o quanto ele acrescenta a uma cena nos filmes antigos. Por volta de 1940, era dito que os cigarros possuíam filtros que ajudavam a respirar melhor, até Papai Noel vinha estampado nas pequenas caixas, Em pensar a imagem que ele possui atualmente. Os tempos mudaram, e eu não. Não pude ao menos tentar. Era uma maldição não envelhecer, percebo a ironia. Na parte lateral direita do salão havia um bar, com várias bebidas, como Jack Daniels, Jose Cuervo, Jim Beam e Johnnie Walker. Não que eu fosse beber, mas poderia. Se recebesse visitas, que tipo de anfitriã seria se não tivesse nada para oferecer? Não estava planejando baile algum, e nunca fui de fazer festas, no entanto, com Thomas era diferente. Além do salão, havia um lugar próprio para assistir a filmes, que poderia ser acessado a partir do meu quarto. Não precisava puxar um livro numa estante empoeirada para que fosse revelada uma passagem secreta, como nos antigos filmes, na verdade, era um interruptor, que abriria uma parede falsa, e por ela eu chegaria a sala com um projetor apontado para uma tela monstruosa, de tamanho similar ao diâmetro das arenas dos antigos anfiteatros romanos, acredite quando digo que não cometo um exagero. Era possível ver os filmes numa televisão, mas a tela teria minha total atenção, pois até os mínimos detalhes são intensificados. Além do que, quando se trata de filmes sonoros, ou dos silents (mudos), com música e efeitos sonoros sincronizados, a acústica das salas de cinema é incomparável. Ao desligar as luzes principais, as quatro laterais se acendiam emitindo um brilho incandescente e fraco. 22


Não havia janelas, ou qualquer outra fenda pela qual pudesse entrar luz solar. Havia um ar-condicionado central, o chão era revestido por carpete cinza escuro, e alguns metros à frente da tela de projeção estavam dispostas doze fileiras com dez poltronas cada, de couro marrom envelhecido. Ao estar reclinada numa daquelas poltronas, o teto aparentemente era infinito, como a abóbada celeste. Coloquei uma calça jeans skinny, da Burberry, preta, com bolsos laterais, uma blusa de cetim cor creme, um cinco preto marcando a cintura, que havia comprado na Net-a-Porter, e um tênis All Star branco, de cano baixo, que eu comprei porque o vendedor disse que era o tipo de tênis que muitos adolescentes usavam, então pensei que iria ajudar a camuflar, e o perfume era Chanel nº 5. Coloquei um batom malva, e um pó compacto um pouco mais escuro que minha pele, o que não era muito difícil, minha pele estava entre o branco e o moreno claro. A maquiagem ajudava muito quando não me alimentava direito, pois sempre que isso ocorria, minha pele ficava clara de modo anormal. Logo após de me vestir fui à cozinha me alimentar. Pelo menos no primeiro mês precisava dobrar a dose de sangue para que não acontecesse nenhum tipo de acidente, não me perdoaria. Não por matar alguém, mas por decepcionar meus amigos. Os amigos mais próximos que tenho são como eu, conheci-os quando estava com Tom, depois de uma das raras vezes que costumava sair. Preferia o sangue do banco sanguíneo ou, quando este faltava, bebia o de animais, que só para constar tinha um cheiro desprezível e não alimentava, uma vez foi o suficiente para perceber que não há como viver de sangue de animais, e sinceramente se tiver que escolher entre matar um animal ou um humano, o último tem um gosto melhor, e tenho pena de matar animais, eles sempre foram melhores que humanos, até os ratos. No entanto, matar pessoas não era uma alternativa, pelo 23


menos não nas últimas quatro décadas. Não queria parecer com quem me transformou, ele já havia me influenciado o suficiente. Poderia ser só uma desculpa para não aceitar o que ocorrido, mesmo assim quem se importa? Qualquer sangue do banco conseguiria saciar minha sede. Ah! Quase me esqueci, além deles, há Peter. Como poderia esquecê-lo? Foi entre esses pensamentos que ouvi o barulho de carro batendo nos pedregulhos da estrada perto da minha casa, deveriam ser meus amigos. Então, peguei minha mochila de couro preta que estava em cima do sofá da sala de estar, saí e tranquei a porta. À primeira vista, pensei em como Dieter e Eve estavam iguais, intactos pelo tempo, tantos anos e não havia uma mínima mudança, a não ser o corte de cabelo, o resto em nada havia mudado. Depois, ao chegar mais perto, percebi alterações que só pessoas como eu veriam, porque aos olhos humanos que são fracos e se desgastam com o tempo, não haveria diferenças. Não tinha machucados, pois nos curamos rápido. Nós três bebíamos sangue humano, mesmo que fosse essa coisa horrível e gelada ao qual tento me acostumar, e que simplesmente não consegue ser tão nutritivo quanto o da fonte. Por isso, aparento estar constantemente fraca, como se não dormisse há dias. E antes de perguntar, o gosto não melhora se tentar esquentá-lo, por isso não pense bobagens. Tentei, mas é claro que eu sabia que não daria em nada. De qualquer modo, custou-me um micro-ondas. Só o havia comprado, pois ele fazia parte do meu projeto de manter as aparências, não me importei quando espirou sangue para todos os lados, e a cozinha ficou parecendo com a cena de um crime, cujo assassino já havia se livrado do corpo. Não me importava se havia quebrado alguma peça interna dele. Tenho certeza de que não possuo capacidade para cozinhar. Quando era humana havia muitos empregados que preparavam minhas refeições, por isso nunca precisei aprender, mas admito que não saber regular o tempo 24


correto de aquecimento num micro-ondas se deve à minha aversão por qualquer tecnologia do século XX; em minha defesa, estou tentando mudar. Até porque quem iria me querer se eu não sei nem cozinhar? Eve estava usando um vestido floral justo. Os cabelos lisos e loiros estavam cortados um pouco abaixo do ombro, os olhos castanhos claros estavam brilhando contra a fraca luz ao entardecer, que se esgueirava no horizonte num dia de agosto. Eles saíram do carro para me cumprimentar, e eu sorri. Mudanças me deixavam atormentada, não estudava numa escola há muito tempo, e a última vez não saiu como esperado. Um plano, por mais certo e prático que pareça, quando executado, sempre sai errado, por isso tento a todo custo não planejar meu dia. E aquele provavelmente seria um belo e grande erro, por isso não faço planos. Afinal, estes estarão suscetíveis ao acaso. — Anna! Nem adianta mudar de opinião no caminho, porque não fiquei esses últimos meses tentando te convencer, e agora já está aqui. Então, preparada para conhecer gente nova e sair dessa monotonia? — Dieter olhou de esguelha para a fachada da casa, que estava a mais de vinte metros de distância, enquanto me dava um daqueles abraços de urso. — Sério, você precisa aproveitar mais sua eternidade, já que a possui. — Dieter, nós iremos à escola ou visitar o James Bond? — dizia olhando perplexa para o belo carro que estava estacionado na calçada, o exterior era preto metálico e o interior de couro, cor creme. — Aston Martin Rapide, o primeiro com quatro portas, de 0 a 100 km em 5,3 segundos, 477 cv de potência. O interior do carro parece o de um jatinho particular, e eu estou bem — ele dizia se gabando e muito feliz apresentando o novo carro, não conseguia esconder o orgulho, ninguém conseguiria com um carro como aquele. — Quando o comprei, estava em dúvida entre ele e o Lamborghini Estoque, eu só 25


não levei os dois por que não saberia qual escolher, e teria pena do que ficasse na garagem. O que acha Anna? Assim é Dieter, felicidade para ele é muitas vezes ligada a poder aquisitivo, tendo um carro como esse, qualquer um ficaria animado, mas nem por isso ele é supérfluo. Na realidade, é o melhor amigo que tenho, é aquele que ajuda a qualquer hora, assim também é Eve. No passado, ele me ajudou muito, de um jeito que nunca pensara que fosse possível. Chamava atenção pelos olhos verdes escuros, que eram muito expressivos. Impressionantemente sempre estava com o cabelo arrumado, mesmo que dissesse que não dava importância a isso. Fazia o tipo esportivo, adorava fazer atividades radicais, como pular de asa delta. Amava carros, por causa da velocidade. Já eu preferia os antigos, principalmente os clássicos, quando conversíveis, melhor ainda. — Acho que está tentando me persuadir a comprá-lo! — Brinquei ao colocar a palma da minha mão esquerda sobre os olhos, uma improvisada proteção ao calor ameno — Ele parece muito bom, mas eu realmente não entendo muito sobre carros — conhecia poucas marcas e modelos de carros, Porsche é o meu predileto, mas com exceção de modelos de carros, não sabia muita coisa. Sem motivo aparente, isso me fez pensar em como se portar na frente de humanos, quase não sabia sobre gírias atuais ou coisas parecidas. Provavelmente ficaria muito envergonhada se utilizasse gírias de cinquenta anos atrás. Quero dizer, se tivesse um encontro, não deveria classificá-lo como formidável. Só o que sabia era que estava muito feliz por vê-los, talvez a ideia da escola fosse realmente boa, iria mudar minha rotina, pensando melhor, ficar em casa não é o que pessoas comuns classificariam como rotina. — Ele não parece uma criança quando se trata de carros? — Eve perguntou rindo, enquanto o abraçava. Ela estava do jeito que sempre fora, do jeito que me recordava. Sempre ajudando todos, era uma ótima 26


amiga. É casada com Dieter, mesmo que só eu e Tom saibamos. É raro dois adolescentes de aparentemente dezessete anos casados. Assim que entrei no carro aceleramos para a escola. Dieter dirigia, éramos amigos há quase setenta anos, se isso não fosse amizade não poderia classificar algumas das minhas relações com humanos. Estava mais que provado, seríamos amigos para sempre. — Que música é essa? — perguntei. Era bem alta e estava saindo do carro, começava como uma canção de ninar, se estivesse em casa, no meu quarto, ainda poderia ouvi-la. Leve em consideração que vampiros podem escutar algo que ocorra há quadras de distância, sobre isso há muito havia adquirido controle, só ouvia se quisesse. — “Nightmare” (Pesadelo), do Avenged Sevenfold — Eve me respondeu. — E, por sinal, essa música é incrível. — Precisa ser tão alto? Não havia razão para perguntar isso, sabia a resposta, eu mesma não ouço nada de outro modo, faz parte da fuga da realidade. — Anna, nós somos adolescentes incompreendidos, querendo que o mundo exploda em pedaços. A vida é uma droga, precisamos descontar em algo — disse Dieter rindo e tirando a mão esquerda do volante e a colocando no coração, como se estivesse a ponto de uma crise existencial. — Ah, se for assim, tudo bem, é um bom argumento. Se for para não ter uma crise, rock é a melhor escolha — comentei, como se fosse entendida do assunto. — Então, Tom ainda está na Irlanda? — Eve perguntou. Tom foi o primeiro que conheci desde minha nova vida, nova vida porque tentei mudar, se obtive êxito ou não, é diferente. Conheci-o em 1911, foi reconfortante encontrá-lo, pois comecei a pensar que vampiros não conseguiam se reconhecer ou que talvez fosse a única, o que 27


seria impossível, dadas as circunstâncias do que é necessário para se transformar. Eu estava na França, havia decidido deixar a Inglaterra algumas décadas antes. Havia vários motivos para isso, de todos, o mais crítico foi o medo que tinha que alguém descobrisse sobre mim. Tom e eu já estudamos juntos, mas foi há muito tempo, na década de 1920. Tantas lembranças voltavam, tantas imagens que se aglomeravam em minha mente como fotos danificadas. Aconteceram tantas coisas, coisas que eram impossíveis de esquecer, eram muito importantes, às vezes, não acredito que já tenha passado. — É, ainda está lá — eu disse a Eve. — Há alguns dias recebi uma carta com um postal de Dublin. Você sabe como ele gosta de lá, e, além disso, voltar a estudar não é uma opção para ele. Ele ganhou bastante dinheiro no final dos anos 80 com aquelas ações da Microsoft®, desde então ele decidiu tirar férias. Além disso, não poderia passar por aluno de ensino médio. Se, por outro lado, fosse uma faculdade, seria mais fácil convencê-lo. Mas não conseguiria persuadir ninguém a vir a um lugar como esse. É uma perda de tempo — eu respondi a Dieter, inclinando a cabeça em tom provocativo. — Uma carta? — Dieter perguntou num tom surpreso. — Não é muito comum para conversas hoje em dia. Ele ainda não sabe usar o Facebook? Celular? iPhone? iPad? — perguntou, sabendo que as opções estavam se esgotando. — O celular ele sabe, pelo menos isso. Já o Facebook, acredito que não, duvido que ele saiba que existe. E o iPhone, é quase o mesmo que o celular. E o que é iPad? — perguntei, enquanto endireitava o cinto da blusa, que estava caído para o lado direito. — É uma espécie de computador de mão da Apple®. — Anna, eu tomei a liberdade pegar seu horário escolar, a propósito, seu primeiro tempo é de Física, com o Sr. Spencer. Já que você 28


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