Retrato de Mulher

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Copyright © Edna Bezerra Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma e por qualquer meio mecânico ou eletrônico, inclusive através de fotocópias e de gravações, sem a expressa permissão do autor. Todo o conteúdo desta obra é de inteira responsabilidade do autor. Editor Responsável: Thiago da Cruz Schoba Coordenador Editorial: João Lucas da Cruz Schoba Capa: Editora Schoba / Francis Manolio Diagramação: Editora Schoba /Júnia Noronha Revisão: Edna Bezerra Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Bezerra, Edna Retrato de mulher / Edna Bezerra. -- Salto, SP: Editora Schoba, 2011. ISBN 978-85-8013-045-4 1. Ficção brasileira I. Título.

11-00579

CDD-869.93

Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura brasileira 869.93

Editora Schoba Ltda Rua Melvin Jones, 223 - Vila Roma - Salto - São Paulo CEP 13321-441 Fone/Fax: (11) 4029.0326 E-mail: atendimento@editoraschoba.com.br www.editoraschoba.com.br


Dedico esta obra Ă s mulheres em geral, meus pais, Antonio (in memorian) e Antonia, meus filhos Diogo e Jasmynni e principalmente ao meu marido Raimundo (Bina), maior incentivador deste trabalho.



SUMÁRIO

I. Reviver é preciso....................................................................11 II. O Início..................................................................................34 III. Aprendendo a voar................................................................55 IV. Encarando novos desafios.......................................................75 V. Alçando voos mais altos..........................................................91 VI. Uma festa em família...........................................................111 VII.Desafiando o medo.............................................................132 VIII. O encontro.......................................................................143 IX. O retorno............................................................................155 X. Decedir é necessário..............................................................175 XI. Desconstrução.....................................................................183 XII. Joana..................................................................................192 XII. Asas da Liberdade...............................................................199 XIV André................................................................................217 XV. Uma vida em comum.........................................................223



PREFÁCIO

Escrever para muitas pessoas é trabalho chato, mas ai de nós sem os escritores. O Brasil é um país rico em criatividade e, consequentemente rico de excelentes literatos, o que acaba dificultando o surgimento de outros, que na maioria das vezes nem se atrevem a mostrar seus trabalhos. Eu faço parte desse grupo. Já escrevi muita coisa desde os meus dezesseis anos, mas nunca publiquei meus escritos por não acreditar que eles pudessem ser valorizados. Hoje, aos quarenta e cinco, muita coisa mudou no meu modo de pensar, afetando a minha opinião de escritora. Agora penso que sempre vale a pena tentar e que se as minhas obras forem lidas por apenas uma pessoa e fizerem alguma diferença na sua vida, já valeu a pena tê-las escrito. Foi pensando assim que resolvi lançar meu primeiro romance sem me preocupar demais em agradar a maioria. Iniciado em março de 2009, narra a trajetória de uma mulher em busca da felicidade. Marta, a personagem principal é uma pessoa sofrida cujo sofrimento não prejudicou sua sensibilidade. No decorrer da narrativa vamos conhecer a transformação de uma menina marcada pela opressão do marido


em uma mulher forte e desapegada, capaz de ações nobres que geram transformações nas vidas das pessoas que a rodeiam. Passando por muitas provações, não degenera o caráter nem se entrega aos apelos do corpo. Acredita na fidelidade e lealdade, a ponto de reprimir seus desejos mais íntimos para não trair esses valores. Busca na lembrança da mãe um exemplo e um modelo a ser seguido. Esta pequena obra nos faz refletir sobre a nossa condição de seres humanos e no que podemos fazer para melhorar a vida de alguém que necessite do nosso auxílio. Remete-nos a uma reflexão sobre a nossa omissão mas exalta a força interior que cada pessoa possui para superar seus medos. Além de tudo isso, retrata a condição da mulher, que vista como sexo frágil torna-se vítima de todo tipo de sofrimento e humilhação, tornando-se alvo fácil para a afirmação da masculinidade de homens arrogantes e inescrupulosos, mas mostra que a vida nos apresenta muitos caminhos diferentes, cabendo a nós escolher aqueles que nos levarão á verdadeira superação. A autora


CAPÍTULO I

REVIVER É PRECISO

O trem varava a noite escura e meu pensamento voava como se acompanhasse o movimento do veículo. Aquela viagem poderia ser a primeira e a última na busca da minha liberdade. Essa palavra, naquele tempo soava aos meus ouvidos como algo estranho. Com certeza devido à condição de prisioneira em que me encontrava e a falta de esperança de que um dia me libertasse daquela prisão. Muitas vezes, nos últimos dias me questionei a respeito da facilidade de adaptação que o homem possui. A sua vontade de viver é tão grande que não importa como viva, o que realmente faz sentido, é viver. Essa era a minha condição. Submissão foi a palavra que subtraiu a liberdade do meu vocabulário e a substituiu, literalmente. O sono, apesar da noite alta e do silêncio, não vinha, já que os pensamentos giravam em torno da minha vida sofrida. Como estaria se sentindo o meu opressor? Como teria desco13


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berto a minha fuga e o roubo das suas economias? Devia estar se remoendo de ódio por ter perdido o seu brinquedo mais divertido. Por mais que eu tentasse, não conseguiria entender a minha predisposição para o sofrimento e a minha falta de visão de futuro. Assumir que se pode viver tantos anos oprimido não é fácil para ninguém, pois dá a idéia de que somos realmente fracos e desprovidos de discernimento. Ficava horas remoendo esses pensamentos, desde o dia em que fui levada a repensar a minha condição de ser humano, digno de respeito e consideração. Apesar da distância em que me encontrava, o medo não conseguia me abandonar. Ou seria o contrário? Será que depois de oito anos de opressão eu o tinha adotado por companheiro? Não duvido de nada. Não é à toa que mesmo sentindo aquela sensação de liberdade, não conseguia me sentir feliz. Liberdade para mim era quimera; amor por mim mesma, apenas um sonho distante; auto-estima era palavra desconhecida no meu dicionário; vaidade? Ah, a vaidade! Esta vivia adormecida na alma de uma mulher desprovida de qualquer prazer fora da satisfação do amado, que não podia ser chamado de amante. Cresci ao lado de uma mãe submissa e feliz que fazia todas as vontades de um homem que, em nada deixava a desejar no seu papel de marido. Enquanto ela convertia o pouco que tínhamos em algo sempre especial, ele corria atrás, para não deixar faltar esse pouco que , segundo ela, com Deus tornavase muito. Acredito que estivesse coberta de razão, pois o amor com que aquele nada era transformado em tudo, era simplesmente transcendente. Nossa casinha tão pequena e humilde, nas suas mãos virara um palácio onde a rainha vivia feliz por ter o amor do seu pobre mas dedicado rei.

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Marta de Maria. Esse é o meu nome. Nasci numa manhã de verão de 1968 em uma humilde casinha de taipa numa rua meio afastada do centro da minha pequena cidade. Mesmo com toda a pobreza que me cercava, fui crescendo alegremente, vivendo num mundo de felicidade grandiosa, até porque todas as pessoas da vizinhança dispunham das mesmas condições financeiras que nós, não deixando espaços para a cobiça de coisas que não podíamos ter. Para as crianças daquele bairro, a vida se compunha apenas da comida, da dormida e das brincadeiras inventadas ou aprendidas dos nossos pais. As crianças com quem me relacionava não eram muitas, mas o suficiente para eu não sentir falta dos irmãos que não tinha. Vivíamos apenas meu pai, minha mãe e eu. Apesar da humildade da nossa casinha, não passávamos fome pois além da família ser pequena, meu pai, homem de baixa estatura, era o que se podia chamar de pequeno grande homem: trabalhava de sol a sol para garantir que tivéssemos o suficiente para viver dignamente. Fazia um pouco de tudo: era carpinteiro, lavrador, pescador, barbeiro e até enfermeiro, caso fosse necessário aplicar injeção em alguém doente. Não sei onde nem como aprendeu essa arte, mas o certo é que nunca machucou ninguém. Minha mãe era uma artista. Como só vivia para cuidar da casa, o fazia com esmero: tricotava, fazia crochê, bordava, plantava, de modo que em cada cantinho do nosso ninho de amor, havia um enfeite. Nossa casinha parecia uma casa de bonecas de tão enfeitada. As paredes eram muito lisas, pois meu pai era caprichoso e minha mãe exigia viver na limpeza. Dizia que não se importava de ser pobre, mas fazia questão de não confundir pobreza com desleixo. Lembro-me que assim que comecei a me entender por 15


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gente fui logo aprendendo pequenas lições. Todas as manhãs e tardes quando Dona Sara, minha mãe, ia molhar as plantas me levava junto. Punha água no pequeno regador que meu pai comprara ao me ver carregando água na lata e machucando as mãozinhas, e me levava consigo para regar e conversar com as plantinhas que ganhavam nomes na medida que iam ficando bonitas. Dizia que elas eram seres vivos como nós e que precisavam ser respeitadas e amadas. Eram verdadeiras aulas de ciências os nossos passeios pelo jardim da minha mãe. Eu ficava encantada de ver aquela mulher de menos de um metro e meio, no meio do verde que ela espalhara ao redor da nossa casa e me sentia orgulhosa de vê-la sempre limpa e penteada. O corpinho esguio ficava bem em qualquer roupa que vestisse. Para mim ela era uma rainha e para o meu pai também. Lembro-me dos abraços que eles trocavam todas as vezes que meu pai saia ou voltava para casa. Lembro-me também da nossa rotina diária: Meu pau saia cedo e minha mãe, após limpar a casa e molhar as plantas tomava banho com a água que ele já deixava no balde e me banhava também; vestia-se e penteava-se cuidadosamente, fazendo o mesmo comigo. Depois sentava-se na sua velha máquina de costura. Todo retalho de pano, na sua mão virava roupa. Ela me vestia como uma boneca, com modelos que ela mesma inventava e costurava com o maior prazer. A manhã era dividida entre a costura e a feitura do almoço e tornava-se curta para eu vê-la sentando-se e levantando-se para inspecionar as panelas que por serem pequenas precisavam ser olhadas de vez em quando. Essa rotina só era quebrada no dia da lavagem da roupa. Nesse dia nos mudávamos para a beira do rio e tudo era só diversão para mim. Éramos 16


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acompanhadas por várias vizinhas e consequentemente muitas crianças. A lavagem da roupa era feita em bancos de madeira e nós nos encarregávamos de sujar a água ao redor dos bancos. De vez em quando éramos ameaçados e até escorraçados mas de nada adiantava, a festa era realmente nossa. As tardes eram divididas entre a soneca do meio dia e os trabalhos manuais, feitos no terreiro, sentada entre as plantas. Eu adorava aquelas tardes. As vizinhas vinham fazer companhia para minha mãe e traziam as crianças. Brincar era a nossa grande alegria. Além de não termos água encanada, não tínhamos luz elétrica. À noite tínhamos que dormir cedo para economizar o querosene das lamparinas. Isso não nos incomodava já que acordávamos sempre muito cedo. Meus pais não eram religiosos praticantes mas nunca esqueciam das suas orações diárias nas quais eu era envolvida. Aprendi a rezar muito cedo, a pedir a Deus o que precisava e agradecer por tudo que recebia. Assim fui crescendo. Só aos oito anos freqüentei a primeira escola. Era uma escolinha particular que meu pai pagava com muita dificuldade. Eu, sinceramente odiava sair da minha casinha feliz para ir para aquele lugar frio e sem carinho, onde eu só podia falar se fosse perguntada e tinha que decorar tantas letras e números. Comecei a odiar a escola. A rua onde nós morávamos, agora já estava dentro da cidade. A cada dia chegava um morador novo e as distâncias ficavam menores. Na medida em que eu ia crescendo as responsabilidades iam aumentando e eu ficando mais indignada de não poder mais ser aquela menina que só vivia para brincar. Minha mãe agora exigia bastante de mim, principalmente no que se referia à escola, mas parece que quanto mais me pressionava, menos eu conseguia aprender. Minha professora era 17


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fria e arrogante, além de só viver com uma velha palmatória na mão, causando medo nas “crianças mais danadas que ela já tinha visto” (palavras dela). À tarde eu aprendia croché, tricô e bordado e ouvia os conselhos da minha mãe, que tentava de qualquer maneira me transformar numa mulher para ser dona de casa igual a ela. Confesso que eu queria sim, ser tão feliz quanto ela, mas não queria ter todo aquele trabalho que me era imposto. Via como meu pai a olhava: o amor dele saltava aos olhos; e como eu a achava linda! Acreditava que ele só a olhava daquele jeito porque ela era bonita. Nunca pensei que além do corpo e do rosto, o amor exigisse mais. Assim as exigências da minha pobre mãe para comigo, iam caindo no descaso. Aos doze anos eu ainda estava na terceira série, não sabia ler e pouco tinha aprendido do que minha mãe tentou me ensinar. Meu pai arranjou um serviço de carpinteiro em uma cidadezinha próxima com a esperança de receber o dinheiro todo de uma só vez para arrumar um pouco nossa casa que estava muito velhinha. Minha mãe escondeu sua tristeza e o deixou ir, mas sempre dizendo que não era o que seu coração estava pedindo. Seu coração estava apenas lhe avisando da tragédia. Uma semana depois da ida, meu pobre pai voltou morto. Escorregou do teto da casa e bateu com a cabeça em um pedaço de madeira. Nesse dia minha mãe também começou a morrer. Inicialmente acreditei que se me dedicasse ao estudo e às coisas que ela me ensinava, talvez conseguisse fazê-la se interessar por outra coisa que não fosse a lembrança dele, mas foi inútil. Fui esquecida por completo. Era como se não mais fizesse parte do seu mundo. As lições que ela me dava mesmo em poucas palavras deixaram de existir. Eu sentia uma dor 18


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terrível pela morte do meu querido pai, seu Joãozinho, mas a dor maior era saber que minha mãe não me via mais, não me reconhecia como filha, não me amou o bastante para superar aquela perda que para ela foi o fim de tudo. Dois anos se passaram. Vivemos pela misericórdia de Deus e dos vizinhos que nos alimentavam. Minha madrinha, irmã do meu falecido pai, em vez de me ajudar a ajudar minha mãe, só vivia dizendo que sabia que aquele amor exagerado de João por Sara iria dar nisso. Que sempre viu que ele fazia o impossível pra que ela tivesse tudo. “Isso é que dá querer ter o que não se pode.” Tive que crescer mesmo antes da hora para ajudar minha mãe no seu infinito sofrimento. Não podia sair de casa para trabalhar mas cuidava dela dia e noite. Agora eu era sua mãe. Com o pouco que nós ganhávamos das outras pessoas, eu nos alimentava. Ela se recusava a comer quase tudo que eu preparava, mas com muita paciência acabava por fazê-la engolir alguma coisa. Eu também sofria demais: a perda do pai, a dependência total de desconhecidos, as palavras cortantes da madrinha e tia que deveria me ajudar, o sofrimento da minha mãe, a falta de quase tudo... Por mais que me esforçasse, não conseguia sentir alegria. Deixei a escola, afastei-me dos poucos amigos ou eles se afastaram de mim, não sei, perdi as fantasias da infância. Certo dia, D. Sara amanheceu cantando uma música que sempre cantava à tardinha, enquanto arrumava a casa para a chegada do meu pai. Fiquei feliz. Preparei uma comidinha bem gostosa que ela comeu como há muito não fazia. Conversou comigo e me deu conselhos sobre como ser feliz em um casamento. Após o almoço, deitou-se para o descanso e eu, toda esperançosa, fui limpar a cozinha. Ao terminar o serviço, 19


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entrei no quarto e deparei com ela estirada na velha cama, com um sorriso no rosto. Estranhei, já que ela costumava dormir de lado. Ao chegar perto, descobri que estava morta. A dor foi profunda. Apesar de tudo, consegui participar de todas as providências que foram tomadas, sem me desesperar. Parecia que eu estava completamente preparada para mais aquela perda. Sofri muito, mas conservei no fundo do meu coração a esperança de viver um amor como aquele dos meus pais, que, infelizmente tão cedo se acabou, mas que só a morte foi capaz de apagar. Pena que para mim, o sonho era utopia e virou pesadelo. O que via e sentia na minha mãe, jamais existiu em mim. Aos poucos fui perdendo o brilho e o brio. Minha vida transfigurou-se numa escuridão tão densa que eu não conseguia vislumbrar nem um pontinho de luz, por mais distante que fosse. Tudo isto, até conhecer aquela pessoa que me mostrou que a única coisa certa na vida, é a que produz felicidade. Daí em diante, parece que uma luz começou a brilhar dentro de mim. O meu passado veio à tona como se fosse uma enxurrada, de sofrimento, é claro! Eu precisava ouvir as palavras daquela mulher sábia, que sem perceber, me ensinara a refletir, usando poucas frases. ••• No frio vagão do trem, enquanto o sono não vinha me vi relembrando aquele momento, em que, desesperada, saí sem rumo pelas ruas da minha pequena cidade. Estava tão cansada e infeliz! Peguei minha velha companheira, veiculo muito usado pelos habitantes do meu amado torrão e saí pedalando, 20


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