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Humberto Mouco, Barroso, 2020



Alexandre Silva, Lisboa, 2009




Manna pode traduzir-se como alimento espiritual. No espaço de Sara Sá e Hélder Miranda nutre-se o corpo, a mente e a alma com as opções vegan e orgânicas da carta e da loja, os livros e revistas independentes e as aulas de yoga. Sara, praticante há anos, assume o Yoga como forma de estar na vida. Esta visão holística do bem estar é a fundação do Manna. ¶ Sara cozinha e faz pão como algo que lhe é natural, como se lhe estivesse destinado. Não era esse o objetivo inicial mas o Universo (e a pandemia) levou-a para a cozinha. Acredita que a energia de quem faz influencia o resultado final e a experiência de quem come, tal como o espaço físico do Manna, que diz ter uma energia que a apaixonou da primeira vez que lá entrou. Hélder abre-nos a porta para que o Manna de Sara nos possa nutrir a alma. × «Manna» – Sara Sá por Tiago Lessa, fevereiro 2021


editorial

Fundada em 1989 por António Esteves inter magazine

A olhar o Algarve Estende-se até ao mar, cheio de fronteiras e definições, no entanto o País só lhe parece ver uma: iluminada praia solarenga para as férias. Injustiça. Também na Páscoa o Algarve se quer. Mas não, é uma terra de enorme história e cultura, com um território diverso, suspenso pelo crescimento de um turismo de comércio e não de reconhecimento dos valores característicos. ¶ O distinto Sul, que nas bordas e ao meio, é como o Alentejo e ao menos na fronteira, espelha a Espanha. Terra de um rio que inicia ali, em Vila Real de Santo António, a subir o País, até que Alcoutim acabe. Dali até ao Atlântico, estando Aljezur na outra ponta, duas serras e o Alentejo por cima. De Aljezur a Sagres, o grande Atlântico que banha a costa ocidental do continente. De Sagres até Vila Real de Santo António, a Ria de Alvor e a Ria Formosa, a interromper o areal enorme. Por cima desta linha, para norte, por vezes a uns poucos quilómetros, o Barrocal. ¶ A cada mudança, um pouco de diferença, um pouco mais de identidade, mais Algarve, mais Portugal. Com gente todo o ano e muito mais no Verão. Com passado a rimar com potência. Cheio de futuro. Não enquanto isto dure – que nada é bom enquanto isto dure – mas depois. O País precisa de mais Algarve. O Algarve de mais olhos do País. × paulo amado

Director: Paulo Amado Chefe de redacção: Sónia Alcaso Gestora do projecto: Andreia Gomes Fotografia: Humberto Mouco Fotografia capa: Humberto Mouco Design gráfico: RPVP Designers colaboram nesta edição Alexandre Silva, Catarina Amado, Cristiana Morais, Dave Palethorpe, Destroy Trash, Jaques Ribeiro, Júlia da Costa, Luís Antunes, Mariana Correia de Barros, Olavo Silva Rosa, Ricardo Dias Felner, Theo Gould, Tiago Lessa, Virgílio Nogueiro Gomes e Vital Lordelo Propriedade: Paulo Amado Rua Diogo do Couto, n.º 1, 1.º Esquerdo 1100-194 Lisboa, Portugal Nif. 182 809 110 contactos eg@egosto.pt www.egosto.pt +351 218 822 993 publicidade comercial@egosto.pt +351 218 822 993 venda por assinatura assinaturas@egosto.pt +351 218 822 992 Publicação trimestral Tiragem: 4000 exemplares Impressão Acabamento: Grafivedras Artes Gráficas Lda. design@grafivedras.pt Estrada Nacional 247, Km 36, n.º11, Escravilheira, 2560-191 S. Pedro da Cadeira, Torres Vedras venda por assinaturas mj/sg/nrocs n.º113499 depósito legal: 21.947/88, issn: 0873-53 lx Membro aind — Associação Portuguesa de Imprensa redacção e edição Edições do Gosto Publicações, Unip, Lda npc: 505 957 221 Registo na Conservatória Comercial n.º 10787 Capital social: 100.000 euros Rua Pereira Henriques, 1, Espaço 11H 1950-242 Lisboa, Portugal +351 218 822 992 consultar estatuto editorial em: http://www.egosto.pt/ estatuto-editorial-inter-magazine/ edições do gosto Ana Gouveia, Andreia Gomes, Catarina Amado, Paulo Amado, Rita Cupido, Sílvia Alves, Sónia Alcaso, Susana Hurtado. Com Humberto Mouco, Mário Batista, Vânia Rodrigues e Vítor Paulino. interdita a reprodução de textos e imagens sem o devido consentimento



12 A celebração da última Gala do Guia Michelin España & Portugal deixou chefes e cozinheiros portugueses ao rubro. Veja, aqui, as impressões que tal evento causou também no jornalista e crítico gastronómico Ricardo Dias Felner.

54 Maria Manuel Valagão, investigadora em alimentação e ambiente, é uma das vozes portuguesas que melhor reflecte sobre a gastronomia enquanto elemento cultural e símbolo de identidade de uma região. Não perca esta entrevista dada à INTER magazine.

20 Muito se fala e escreve sobre ele. Mas quem melhor do que aqueles que trabalharam com o chefe jugoslavo, bem de perto, para lhe traçarem o perfil? Ljubomir e os chefes portugueses que passaram pelas suas brigadas, numa reportagem cheia de surpresas e desabafos.

destaques


64 Há boas referências da gastronomia algarvia! José Pinheiro, com a sua cozinha genuinamente regional, baseada nos produtos locais, é, em Vila do Bispo, um exemplo. O restaurante Eira do Mel é local de passagem obrigatória.

74 Aos 25 anos, Filipa Carmo aterrou no mundo da cozinha e mudou as voltas ao destino. Hoje é chefe de pastelaria do restaurante Gusto, no hotel Conrad Algarve, e dedica-se a criar sobremesas «equilibradas» nos sabores e inspiradas nos produtos locais.

78 Leandro Araújo nasceu e cresceu em Goiás, Brasil, mas é o Algarve que habita agora no seu coração. Em Loulé, o seu restaurante Cafézique, que abriu portas em Janeiro de 2020, faz já a diferença pela cozinha de partilha, feita a partir de produtos regionais.


destaque texto ricardo dias felner

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A celebração da última Gala do Guia Michelin España & Portugal deixou chefes e cozinheiros portugueses em brasa. O jornalista e crítico gastronómico Ricardo Dias Felner analisou à lupa o evento no Youtube e acabou por juntar-se à sublevação.

É quase todos os anos assim. Mal a Michelin anuncia os novos restaurantes com estrelas em Espanha e Portugal, ouve-se um coro de protestos para cá de Olivença. ¶ Chefes, gastrónomos e jornalistas portugueses juram uma nova Aljubarrota e conspiram um boicote que nunca acontece. Nas catacumbas das suas casas de comer, nos bastidores das redes sociais, gritam baixinho contra o inimigo eterno e vão desfiando injustiças. ¶ Sou dos que têm reagido com prudência à indignação lusa contra a Michelin. Portugal teve durante muito tempo poucos restaurantes de fine dining de jaqueta e quenelle; e continua a haver uma desconfiança ancestral relativamente a nuestros hermanos, de que não partilho. ¶Dito isto, só assisto à entrega dos galardões por obrigação profissional. A Michelin pode ser boa a fazer pneus e a inspecionar o beurre blanc, mas é um desastre a fazer galas. São sempre um aborrecimento, um espectáculo sabujo e protocolar. ¶ Desta vez, contudo, movido por mensagens sofridas de pessoas sensatas, quis esmiuçar a cerimónia que aconteceu dia 14 de Dezembro. Sem preconceitos. Sem conclusões apressadas. Apenas pegando nos números, nos discursos e nos protagonistas. Uma espécie de estatística cruzada com análise de conteúdo, cruzada com antropologia. ¶ Grande parte das críticas que ouvira centravam-se no curto número de estrelas atribuídas este ano a restaurantes portugueses. Mas era também importante analisar a Gala Digital do Guia Michelin Espanha & Portugal por si, enquanto celebração ibérica da gastronomia.

a portugueses, apenas dois: Duarte Calvão, co-autor do blogue Mesa Marcada; e uma jovem anónima, sem direito a oráculo. ¶ Num vídeo com 385 segundos de duração, os dois portugueses juntos falaram menos de quatro segundos, sem indicarem preferências nem territórios. «Obrigado por estes momentos, obrigado chefes», atirou Duarte Calvão, o mais prolixo do duo. ¶ Bem diferente foi o tom usado pela campeã de natação sincronizada espanhola, logo a seguir. Ona Carbonell disse – e a Michelin editou – que «Espanha tem os melhores chefes do mundo, os melhores restaurantes, os melhores bares». ¶ Terminado o filme, contagem decrescente para a emissão ao vivo. ¶ Comecei pela transmissão para português. A tradução simultânea tinha os problemas do costume das traduções simultâneas, perras e inexactas. E tinha os problemas do costume de um espanhol quando fala estrangeiro. Acresce que a mesma tradutora fazia todas as vozes que subiam ao palco montado na Casa de Correos de Madrid, mais as das vídeoconferências. ¶ Mas se o português falado não era brilhante, o escrito foi pior. Logo a abrir, surgiu no ecrã um esclarecimento sobre os cuidados anti-Covid seguidos pelos participantes (alguns, não cumpridos, diga-se). Eram oito frases simples. E em oito frases simples havia três erros ortográficos de português. As frases espanholas estavam correctíssimas. ¶ Picuinhices. ¶ A festa iniciou-se, por fim. Dois apresentadores, ambos espanhóis. Ela actriz e jornalista, ele só actor. Apesar dos dotes, a prestação foi um ronhónhó de alegria e suspense encenados pelo texto do teleponto. ¶ Começou por vir ao palco o «director Então, vamos lá. ¶ Tendo falhado a transmissão em directo, de Sales & Marketing, Food and Travel», da Michelin fiz search no YouTube. Na página oficial do Guia Michelin Espanha. Miguel Pereda, também responsável pela gala, encontrei duas transmissões: uma com tradução instantânea agradeceu a quem pagou o espectáculo e saiu. Depois veio para português; outra totalmente falada em espanhol. ¶ a presidente da Michelin ibérica, Mari Paz Robina. Falou Antes da emissão ao vivo – sem público – surgiu um filme, em espanhol mas teve a lucidez de fazer uma saudação de em jeito de intróito à gala. Chamava-se «Gracias, chefs». «boas noites». Mari Paz mostrou-se ainda honrada por Nele, jornalistas e personalidades públicas iam deixando «representar os mais de 7000 empregados da Michelin a sua homenagem aos cozinheiros, vítimas maiores da de Espanha e Portugal». Desses funcionários de Portugal, pandemia, em curtas declarações encomiásticas. ¶ quantos estariam ali presentes? Veríamos. ¶ Por fim, foi a Intervieram 32 espanhóis, entre eles figuras muito vez do director-geral dos Guias Michelin a nível mundial, populares como o campeão de ralis Carlos Sainz. Quanto Guendall Poullenec. Não estava presente, mas arranjou-se

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destaque Não viu a Michelin, nem viu o recentemente contratado inspector português uma única casa de comer nacional que honrasse os apertados princípios de sustentabilidade porque se pauta a Michelin. Chefes Portugueses? Todos uns gastadores, todos uns esbanjadores. Nem cozinha local, nem sazonal, nem reciclagem, nem «farm to table». Sustentabilidade é em Espanha.

um estratagema virtual em que Poullenec aparecia numa porta com um feixe de luz por trás, como se saísse de uma nave espacial de uma série de televisão dos anos 1980. ¶ Aos quadros da Michelin espanhóis seguiram-se os políticos espanhóis. O secretário de Estado do Turismo, Fernando Valdés Verelst, falou a partir do seu gabinete ministerial, bandeira nacional ao lado. Esteve 6,16 minutos a vender Espanha como se fosse funcionário de uma agência de turismo. Até os apresentadores pareciam constrangidos. ¶ Quem não adormeceu, pôde ainda ver o alcaide de Madrid e a presidente de La Comunidad de Madrid a vender Madrid. E os patrocinadores, como Peter Gries, responsável da Makro, marca muito presente em Portugal, a agradecer e garantir que «vamos pôr a gastronomia espanhola de novo no mundo». Ferran Adrià deve ter mandado uma gargalhada. ¶ Com cerca de uma hora de emissão, a Gala era isto. Pessoas espanholas numa Gala Digital do Guia Michelin Espanha & Portugal a dizerem como Espanha era incrível. Como Madrid era o máximo. Espanhóis a bajular espanhóis. Uma festinha caseira em que um dos supostos anfitriões ficara à porta. ¶ Falaram as pessoas que subsidiaram os oráculos com erros ortográficos e o filme das «gracias» aos chefes. Falou quem pagou a leitura do teleponto da actriz-jornalista e do seu parceiro. Falou quem financiou a tradutora de portunhol que dizia «estrellas» em vez de «estrelas». ¶ Restava a outra metade do evento. E aí os protagonistas seriam os chefes e os restaurantes vencedores da noite. Uma selecção feita por «inspectores», normalmente reconhecidos pelos seus altos estudos em hotelaria na Suíça e pelo currículo na gestão de food and beverage. ¶ Este ano, havia uma novidade: as primeiras estrelas verdes para a Ibéria, referentes a restaurantes sustentáveis. Não foram poucas. Os inspectores independentes e apátridas encontraram 21 chefes que honraram os princípios da defesa do ambiente ao longo de 2020. ¶ Para ilustrar, mostrou-se um mapa com a localização de cada premiado. As estrelas ocupavam uma vasta região que ia das Baleares à Galiza. Nesse quadro, projectado num ecrã gigante no palco, notava-se contudo uma área vazia: naquele rectangulozinho mais ocidental

da Europa, nada. Naquele pedaço de terra entalado entre a civilização europeia e o Atlântico, naquele bastião de lusitanos habituados a servir espanhóis nas férias e nos fins-de-semana prolongados; no segundo país que os espanhóis preferem para viajar e comer (logo a seguir a França) –, nem uma estrelinha. ¶ Não viu a Michelin, nem viu o recentemente contratado inspector português uma única casa de comer nacional que honrasse os apertados princípios de sustentabilidade porque se pauta a Michelin. Chefes Portugueses? Todos uns gastadores, todos uns esbanjadores. Nem cozinha local, nem sazonal, nem reciclagem, nem «farm to table». Sustentabilidade é em Espanha. ¶ Em declarações à agência Lusa, uma fonte oficial, não identificada, da Michelin adiantou que esta ausência de estrelas verdes se deveu ao facto de nenhum estabelecimento português ter comunicado à empresa as suas preocupações ambientais. O que deixa a interrogação: foi tudo uma falha de comunicação com o «inspector», supostamente anónimo, que visita os restaurantes? Ou com os escritórios em Espanha? O que é suposto fazer-se para o ano, para se ter uma estrelita? Será preciso contratar uma agência? ¶ Mais recentemente, o chefe e proprietário Christian Francesco Puglisi, reconhecido pelo seu compromisso com produtores sustentáveis, contou nas suas redes sociais que, de acordo com o relato de um colega seu que recebeu a estrela da sustentabilidade, a Michelin se limitou a telefonar-lhe e a fazer-lhe algumas perguntas. ¶ Nisto, chegaram os Bib Gourmands. O prémio que galardoa restaurantes com boa relação qualidade-preço foi concedido a cinco restaurantes portugueses. Espanhóis? 48. Ou seja, nem no campeonato das mesas mais baratuchas a coisa se equilibrou. ¶ Foram sendo depois chamados, um a um, os chefes e restaurantes que ganharam uma estrela Michelin. Apesar de ter sido um ano pouco dado a investimentos, Cayetana Guillén Cuervo e Miguel Ángel anunciaram 21 restaurantes merecedores de uma nova estrela Michelin. ¶ Desses, apenas dois eram em Portugal: o 100 Maneiras, de Ljubomir Stanisic, chefe natural da antiga Jugoslávia; e o Eneko, do chefe Eneko Ataxa, natural de Espanha. ¶ Avançou-se então para os novos duas estrelas. Três novidades. Onde? Adivinharam.

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estatística da gala

População portuguesa 10,28 milhões de pessoas × População espanhola 46, 94 milhões de pessoas × Ratio 1/5 • Visualizações da transmissão da Gala com dobragem em português, no YouTube 7 300 × Em espanhol 39 000 × Ratio 1/5 • Restaurantes em Portugal que ganharam uma estrela Michelin 2 × Em Espanha 19 × Ratio 1/10 • Restaurantes em Portugal que ganharam um Bib Gourmand 5 × Em Espanha 48 × Ratio 1/10 • Chefs portugueses que participaram ao vivo na gala 0 Chefs espanhóis 20 • Participantes portugueses ao vivo na gala, sem serem chefs 0 Espanhóis 12 • Participantes portugueses no filme de apresentação da gala 2 Espanhóis 32 • Restaurantes portugueses que ganharam uma estrela verde 0 × Espanhóis 21 15


destaque Vexames como o que se passou este ano deviam merecer resposta à altura. Não uma resposta legal, não política. Uma resposta de todos os que fazem cozinha e usufruem dos restaurantes. Uma resposta que soe para lá dos Pirinéus e que ponha a nu esta encenação anual de Iberismo harmonioso.

A produção da gala decidiu fazer uma surpresa aos chefes espanhóis galardoados, pondo-os no ar, através de videoconferência. Haveria de repetir esse contacto com os chefes com três estrelas Michelin (todos também espanhóis), e com sete chefes residentes em Madrid, estes ao vivo e a cores. ¶ Portugueses? Zero. ¶ Nem uma alminha a falar a língua de Camões apareceu na Gala Digital do Guia Michelin Espanha & Portugal. E as duas únicas vezes em que alguém se dirigiu aos chefes portugueses foi quando Jesús Sanchez, chef do Cenador de Amós, saudou «os irmãos e irmãs cozinheiros de Portugal»; e quando Eneko agradeceu à «família de Lisboa», que lhe cozinhou a estrela em Alfama e a endereçou para a sua residência, na Biscaia.

do guia francês sempre assentou – e continua a assentar – numa estética hoteleira, na herança de Bocuse e Robuchon, na cozinha de brigada e num serviço de relógio e academia suíço. ¶ Mas também aqui as coisas mudaram. Há 15 anos, quando Portugal era um sítio triste que o mundo desconsiderava, poder-se-ia alegar falta de qualidade. Hoje, isso mudou. Portugal tornou-se trendy. Lisboa e Porto batem-se com Madrid e Barcelona em número de visitantes, em presença nas grandes revistas internacionais, em número de prémios e distinções no turismo. ¶ O turismo em Portugal deu dinheiro à indústria e a indústria reinvestiu em serviço, em espaço, em formação. Hoje, os melhores portugueses comparam com a restauração das grandes capitais da Europa. ¶ Não parece ser essa a Porque é que isto aconteceu? Porquê este desprezo? Porquê opinião dos inspectores. Estão no seu direito. É o que este desaire da restauração portuguesa, comparando com é, vale o que vale. Do que não duvido é que esta gala foi a espanhola? Será por causa da dimensão de Espanha? ¶ tendenciosa e uma desconsideração. O que há aqui é Feita a estatística, cruzei os resultados com a proporção uma pata em cima e desrespeito. O que há aqui é quem da população portuguesa e espanhola. É um argumento deixe que essa pata lhes caia em cima. Nomeadamente, antigo: Espanha tem mais estrelas, Espanha tem mais peso os chefes e restauradores portugueses. ¶ É complexa a no Guia, porque Espanha é maior. ¶ Tomando a medida relação da indústria portuguesa com a Michelin. Num dia, de que Espanha tem cinco vezes mais pessoas do que os sussurram que a Michelin está vendida, que os critérios portugueses (nem tanto, mas só para facilitar), fica claro que estão ultrapassados. No outro, quando um investidor decide todos os resultados têm ratios bem maiores. ¶ O ratio do que é preciso ganhar a estrela para ter mais clientes, têm de número de intervenientes no vídeo de apresentação da gala se calar e começam logo a reduzir o jus, a importar o foie é de 1 português para 16 espanhóis. ¶ O ratio do número de e a encomendar o carabineiro. ¶ Vexames como o que se intervenientes na própria gala é ainda pior: 0 portugueses passou este ano deviam merecer resposta à altura. Não uma para 32 espanhóis. ¶ Já o ratio do número de prémios Bib resposta legal, não política. Uma resposta de todos os que Gourmand é de 1 para 10. ¶ E em matéria de novas estrelas fazem cozinha e usufruem dos restaurantes. Uma resposta verdes no Guia de 2021, Espanha dá 21 a 0. ¶ E por aí fora. ¶ que soe para lá dos Pirinéus e que ponha a nu esta encenação Uma tareia de criar bicho. Uma espécie de Alemanha contra anual de Iberismo harmonioso. ¶ Guias há muitos, críticos Andorra em futebol, em andebol. Sendo que nem Espanha de restaurantes idem. Uns são mais falíveis, impreparados e é a Alemanha, nem Portugal é Andorra. ¶ Dizem coniventes do que outros. Com os seus defeitos, os guias da os mercantilistas – e dizem bem – que quem põe dinheiro Michelin são dos mais fiáveis para restaurantes-afinadinhosé quem manda – e Espanha tem mais dinheiro. De resto, -com-boa-comida-de-joalharia. E nós também temos disso. a Michelin é uma entidade privada e faz o que quer. ¶ ¶ O problema é que, todos os anos, estas galas parecem Outro argumento usado para defender a Michelin nesta dar razão aos ressabiados e aos xenófobos anti-Espanha. história é que Espanha tem mais restaurantes de fine dining E também eu começo a achar que não é só Olivença que à imagem do padrão europeu definido pela Michelin. ¶ é nossa. Há muitas estrelas na galáxia franco-espanhola que O restaurante-tipo amado pelos «inspectores» europeus também o seriam. ×

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DÊ VIDA ÀS SUAS IDEIAS MAIS FRESCAS COM PRODUTOS LOCAIS DIRETAMENTE DA COSTA ALGARVIA.


Jaques Ribeiro, «Les belles Gourn’Anciennes», Paris, Setembro 2018



especial

brigada

Na

texto mariana correia de barros fotos humberto mouco

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de Ljubomir 21


especial Seis chefes portugueses com projectos bem estabelecidos passaram, em alguma fase das suas vidas, pela cozinha do 100 Maneiras. De Cascais ao Bairro Alto, o que têm para contar sobre esses duros/loucos/rigorosos − riscar à medidaque for lendo − anos.

«Procuro guerreiros. E que sejam também um pouco doidos.» A frase de Ljubomir Stanisic sai disparada – como é seu apanágio – assim que começamos a trocar ideias sobre alguns dos chefes que passaram pelas suas brigadas e com quem falámos para este artigo. Nos últimos 15 anos, a cozinha do chefe jugoslavo pode ter conhecido diferentes poisos e nuances, mas manteve-se sempre fiel ao espírito do seu timoneiro: rigorosa e irreverente. «Sem medos» dirão quase todos aqueles que, em algum momento das suas vidas, vestiram a jaleca de subchefe da casa e hoje estão à frente de outros projectos. Dos tempos do 100 Maneiras Cascais aos restaurantes do Bairro Alto, traçamos, em linha cronológica, um retrato daquilo que é secundar o chefe ‘Ljubo’. O que se vive, o que se aprende, o que se leva. ¶ E arrancamos em 2005, logo com uma excepção: Vítor Claro não foi subchefe do 100 Maneiras. Passou cerca de três meses na cozinha do 100 Maneiras de Cascais, em preparação para um restaurante futuro (negócio que nunca chegou a acontecer) no qual Ljubomir iria ser consultor e ele o chefe residente. «É diferente do registo de fazer brigada», ressalva. «Ele é um grande cozinheiro. Na altura fazia uma cozinha muito diferente da que tem hoje, vinha da Fortaleza do Guincho, era uma matriz francesa clássica, com bons produtos, familiar. Foi quando ele publicou um livro, o 100 Maneiras Cascais, uma coisa hoje muito datada», relembra. Há que contextualizar. Por essa altura vivia-se a revolução El Bulli, a ascensão da gastronomia espanhola, a internacionalização de conceitos. «Muda tudo.» Portugal idem. «Admiro o Ljubomir pela força que ele teve de ter fechado o restaurante e reaberto em Lisboa, tipo fénix

renascida. É um tipo inteligente, um sobrevivente que sabe onde tem de se agarrar», descreve Vítor Claro. O cozinheiro que, depois de alguns projectos em nome próprio decidiu arrumar de vez as facas e os aventais e dedicar-se a 100% aos vinhos Dominó. «Foi uma escolha de um estilo de vida mais calmo.» ¶ Quanto aos tempos do restaurante de Cascais diz que a maior memória que fica é a capacidade de Ljubomir meter «a sério e bem» as mãos na massa – «o que nem sempre é uma necessidade absoluta para um chefe», comenta. «Há uma regra que tenho que é de avaliar a qualidade da comida do pessoal – dá logo para perceber se quem a faz é bom cozinheiro ou não. Lembro-me de ele fazer umas almôndegas incríveis, meio caramelizadas, meio assadas, mas também panadas, era uma receita bósnia», remata. ¶ Passamos a palavra a Ljubomir. «O Vítor é um génio da cozinha, um génio dos vinhos, é uma pena ter deixado de cozinhar», diz, a pedido de um (sound)bite sobre cada um dos chefes com quem trabalhou. «Sempre gostei de formar pessoas. Hoje em dia tenho quem faça isso por mim [Manuel Maldonado], mas durante anos era eu que procurava e formava os chefes. A escola não é fácil, lidar com o Ljubo também não. Muito rigor, muita maluqueira», conta. Voltamos a Vítor Claro só mais um instante: «Ele era exigente, gostava de mandar gritos quando estava de mal com a vida.» ¶ João Sá, o nome que se segue nesta história contada de forma cronológica, corrobora de certa forma este lado mais duro. «É um gajo seco, com os homens tem uma postura firme. É resultado do percurso de vida que teve. Compreendo-o: quando tens armas em casa aos 10 anos, tornas-te uma pessoa diferente. Ele é um lutador», resume.

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«A cozinha é rigor. É tropa, pá. Não há cozinha mansa. Hoje em dia sou mais calmo, mas como trabalhamos com muitos miúdos é importante impor-lhes regras e respeito.» ljubomir


«Admiro o Ljubomir pela força que ele teve de ter fechado o restaurante e reaberto em Lisboa, tipo fénix renascida. É um tipo inteligente, um sobrevivente que sabe onde tem de se agarrar.» vítor claro


«O Ljubo prova muito bem. Gosta de comida e de comer bem. Seja o ‘zé das bifanas’, seja o Estrela Michelin. Foi uma coisa que aprendi com ele: o gesto mais bonito de um cozinheiro é o de levar uma colher à boca.» joão sá


«Eu era novo quando passei pelo 100 Maneiras, tinha 25 anos quando entrei, mas aprendi muitas técnicas. Lembro-me particularmente da do ‘estendal do bairro’, que demorava horas a ser feito. Lembro-me do burek que a mãe dele fazia.» joão simões


«[O Ljubomir] Não tem medo de cair. Se cair, caiu. Já caiu muito e já se levantou. E quem trabalha com ele acaba por percebê-lo. Talvez sejamos todos um pouco malucos.» manuel bóia


especial João passou pelo restaurante de Cascais nos anos de 2006 e 2007, antes de se aventurar pelo disruptivo (e extinto) G-Spot, em Sintra. Fala, tal como Vítor Claro, da linha francesa que orientava o 100 Maneiras de então, com uma brigada composta por diversos chefes que vinham da Fortaleza do Guincho, onde a criatividade de Ljubomir já começava a despontar. «Já se notavam algumas influências Ljubo. Mas aquilo era um fine dining sério. Em Lisboa não havia ninguém a fazer um menu de 14 pratos, a setenta e tal euros. E gastávamos tudo do bom e do melhor para trabalhar bem. Salmonetes, caviar, tudo. Depois quando ele foi para Lisboa teve de se democratizar», refere. ¶ Já nesses tempos vinha ao de cima o lado inventivo de Ljubomir. «Discutíamos muito os dois, eu apresentava-lhe ideias. Tudo o que era de interesse, depois podia avançar.» Ao longo do tempo em que lá esteve, diz, o lado francês foi seguindo em paralelo com outras coisas mais excêntricas. «Cérebro de porco», por exemplo. «O Ljubo prova muito bem. Gosta de comida e de comer bem. Seja o ‘zé das bifanas’, seja o Estrela Michelin. Foi uma coisa que aprendi com ele: o gesto mais bonito de um cozinheiro é o de levar uma colher à boca.» ¶ Sobre a aura de mauzão criada à volta do chefe, João reconhece-lhe a formalidade. «Na altura quando saí fiquei chateado porque ele não me pagou [o 100 Maneiras faliu em 2008] e houve umas conversas por aí… mas fomos beber um café, mandámos umas bocas e acabou por ficar tudo bem. Ele é terra a terra. Era exigente comigo quando fui subchefe dele, mas também o metia a lavar a loiça quando era preciso. Se não tínhamos copeiro, ele tinha de o fazer…» ¶ Quando Ljubomir conheceu João Sá, recorda o jugoslavo,

«ele era um puto e na altura tornou-se um filho. É um belo cozinheiro.» Inquirido sobre as declarações do maior ensinamento que o actual chefe do Sála levou do 100 Maneiras, explica que acredita que as bases da cozinha se aprendem «a comer, comer, comer. Ter sempre uma colher no bolso. As técnicas vêm depois.» Por isso mesmo, nunca teve receio de dar às equipas os melhores produtos. «Hoje em dia planto muita coisa. Caço, pesco, tenho a minha horta em Santa Margarida da Serra [Grândola], e já saem daqui muitas coisas para os restaurantes. Em dois anos espero que saia tudo.» Produtos que, claro está, as suas brigadas trabalham e provam. ¶ Corta para 2011. Aos dois restaurantes, 100 Maneiras e Bistro 100 Maneiras, Ljubomir junta o Nacional 100 Maneiras. João Simões, hoje à frente do seu Casta 85, em Alenquer, entra na equipa para fazer a abertura do restaurante na Rua de São Bento e fica na equipa cerca de três anos. «Estive como chefe executivo na altura em que o Ljubomir fez a viagem pela Europa. Foi uma fase criativa muito grande. Havia muita liberdade», diz. Tudo com aprovação de Ljubomir que, à distância, trocava ideias com a equipa e afinava o que era necessário. «Nessa altura fizemos coisas espectaculares: desde comprar o maior atum da época e fazer o desmanche em conjunto com o chefe Tomo a montar a Pekaria, que na altura foi muito interessante. Foi ainda na minha fase que se começou a falar do projecto do actual 100 Maneiras», refere Simões. ¶ João saiu da empresa para trabalhar com José Cordeiro (com quem já tinha cozinhado no Altis Belém) na abertura do restaurante da Praça do Comércio e, no final de 2014, abriu o restaurante de Alenquer, sua terra-natal, onde faz cozinha

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de autor num espaço decorado também pelo próprio, com velharias e peças reaproveitadas. «Eu era novo quando passei pelo 100 Maneiras, tinha 25 anos quando entrei, mas aprendi muitas técnicas. Lembro-me particularmente da do ‘estendal do bairro’, que demorava horas a ser feito. Lembro-me do burek que a mãe dele fazia.» ¶ Para Ljubomir, João Simões é, citamos, «um puto reguila, mas um grande cozinheiro. E por quem tenho muito respeito.» Mais um dos guerreiros que passou pela sua equipa. «A cozinha é rigor. É tropa, pá. Não há cozinha mansa. Hoje em dia sou mais calmo, mas como trabalhamos com muitos miúdos é importante impor-lhes regras e respeito.» Rigor e sabor, note-se. A sua história tem sido feita de uma mistura de influências de viagens e episódios que viveu. «É sabor, é não ter medo de ‘espancar’ o cliente com esse sabor», conta Ljubomir. E é isso que ensina a quem passa pela sua casa. «Fico feliz que vão à vida deles. Houve uma altura em que eles [chefes] diziam ‘quem sai do 100, sai sempre bem’.» ¶ A fazer equipa com João Simões, Manuel Bóia entra – aliás a convite do chefe de Alenquer – no 100 Maneiras em Dezembro de 2011, onde se mantém até Outubro de 2013, quando sai depois de receber uma proposta para a Bica do Sapato. «Estava no Bistro, mas ao mesmo tempo ligado ao 100 Maneiras e ao Nacional. Tenho orgulho em ter trabalhado com o Ljubomir. Acabei por aprender muita coisa, desde a cultura à forma de organização da cozinha. Foi um cozinheiro que sendo estrangeiro fez uma viagem de absorção dos produtos portugueses muito grande e reflectiu-a numa experiência de fusão», conta o actual chefe do Palácio Chiado, onde faz uma cozinha de raiz portuguesa. ¶ Guarda

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esses anos de serviço como tempos de muito rasgo, a trabalhar à imagem do que o chefe Ljubomir, mesmo que em certas alturas à distância, idealizara para os restaurantes. «É um bocado como ele é: insatisfeito. Então estava sempre a arriscar. Não tem medo de cair. Se cair, caiu. Já caiu muito e já se levantou. E quem trabalha com ele acaba por percebê-lo. Talvez sejamos todos um pouco malucos», brinca. «Ele sabe bem o que quer e sempre senti que tinha muita liberdade para o fazer. Não é muito mais velho que eu, mas é muito vivido [Manuel tem 38 anos, Ljubomir 42]. E isso nota-se na forma de pensar», diz, no final da conversa. ¶ «O Manuel é boa gente. Um puto teimoso, nortenho que fazia boa comida de tacho», descreve Ljubomir em segundos. Entre os cozinheiros que gosta de formar, «gajos com salero, com vida, cozinheiros com atitude, de quem sinta que consigo tirar alguma coisa», fala também do momento em que os sente preparados para sair. «Às vezes impulsiono as saídas». «Eles têm que criar o seu próprio estilo. Aconteceu isso com o Adão». ¶ Não fossem os diferentes sotaques e, em vários momentos da conversa com o chefe flaviense, poderíamos pensar que a conversa estava a acontecer com Ljubomir Stanisic. Junta-se à família 100 Maneiras no dia em que faz 25 anos, no Six Senses Douro Valley, no início de 2016. «Passados seis meses vim para Lisboa, para ser chefe executivo do grupo. Foi duro. Trabalhar 16 horas por dia, num sítio onde não conhecia ninguém.» Sem tecto para dormir nos primeiros tempos na capital, Ljubomir abriu-lhe a porta de casa. «Chegávamos do serviço e ficávamos duas horas a beber copos e a conversar. Quando o conheci percebi logo que éramos muito


«Uma cozinha é uma panela de pressão. Nem sempre ganha o mais talentoso, mas sim o mais consistente. Quando entras a gerir uma cozinha, tens de entrar a matar. O Ljubo chamava-me o snipper.» vítor adão


«O menu do 100 Maneiras é uma viagem à história do Ljubo, mas há muita liberdade de apresentar ideias.» manuel maldonado


especial idênticos. Irrequietos por natureza.» ¶ A primeira fase de trabalho de Vítor em Lisboa coincidiu com as gravações do Pesadelo na Cozinha e, face às ausências de Ljubomir, era ele quem assegurava a navegação do barco. «Foi uma altura muito interessante. Tinha de gerir muitas frentes. Acho que a grande lição que tirei desses anos foi mais de gestão do que propriamente de cozinha. Estava sempre a formar gajos – e nenhum menino. Os meninos ali não aguentam. É duro. São duas horas e meia a ouvir debitar 150 pedidos e o cozinheiro tem de estar ali e responder.» Tudo para que, por mais problemas pessoais que os cozinheiros tenham, o cliente não se aperceba. «Estive lá sempre a 100%, em gás total. Uma cozinha é uma panela de pressão. Nem sempre ganha o mais talentoso, mas sim o mais consistente. Quando entras a gerir uma cozinha, tens de entrar a matar. O Ljubo chamava-me o snipper», ri. ¶ Em Agosto de 2018 trocou o 100 Maneiras por um cargo de chefe consultor da Quinta do Arneiro, teve o popular pop up Izakaya, no Bairro Alto, com Lucas Azevedo e, no Verão de 2019, abriu o Plano, na Graça, onde se dedica uma cozinha portuguesa autêntica. «Eu olho para a cozinha como uma orquestra. O mais talentoso é o tipo da batuta, os outros têm de reproduzir. E vão reproduzindo tão bem que um dia se tornam os tipos da batuta. Mas só se consegue lá chegar com duas coisas: 80% de trabalho, 20% de criatividade (ou rasgo, ou genialidade).» Serve a analogia para explicar também aquilo que já todos desconfiamos: grandes chefes fazem-se com grandes equipas. «Crescemos todos em conjunto. É se é verdade que levamos sempre coisas dos sítios onde passamos, também deixamos as nossas marcas.» ¶ Chame-se Ljubomir à conversa. «Após dois ou três anos, quero que eles saiam. Senão crio escravos. E quero criar gaivotas. É a história do Fernão Capelo Gaivota», diz, puxando à mesa o romance de Richard Bach. Quanto a Vítor Adão, não hesita em chamar-lhe de filho. «Quando senti que o Adão estava a ficar demasiado Ljubomir disse-lhe mesmo ‘baza’».

¶ E terminamos novamente com uma excepção: Manuel Maldonado não pertence à história passada do 100 Maneiras. Ele é parte do presente, um braço direito. «Não o deixo ir embora. Tornou-se meu irmão», diz Ljubomir, sobre o chefe à frente do 100 Maneiras e também responsável pela procura de novos chefes para se juntarem à equipa. Estudou e trabalhou vários anos fora, apesar de algumas passagens por Lisboa – nas cozinhas do Eleven e Belcanto, por exemplo – e foi num dos jantares Sangue na Guelra, no Bistro, que conheceu Ljubomir. «Fui muito bem tratado, houve direito a champanhe e tudo.» Tempos depois, pela altura da consultoria que Ljubomir prestou no Sublime, da Comporta, surgiu o convite para o food club, o restaurante exterior do hotel, numa cozinha de fogo, que Manuel conhece bem. «E depois acabou por me puxar para o 100 Maneiras de Lisboa.» ¶ Entre 2017 e 2019, além de ter ocupado um estilo de função semelhante ao de um «mestre de obras», ri, «dava uma ajuda na cozinha com o Adão.» E com a abertura do 100 Maneiras, os planos que tinha de abrir um restaurante próprio ficaram em stand by. «Fui muito bem recebido. Somos os dois parecidos: gostamos de comer bem e beber bem.» Ressalva que já chegou ao 100 Maneiras um cozinheiro feito, vindo de uma escola completamente diferente. «E isso acabou por equilibrar muito as coisas. Gosto de cozinhar com fogo, o meu avô tinha uma padaria com forno de lenha. A minha visão da cozinha passa muito por aí», apesar de ainda não a conseguir fazer cá como imaginou. Conta também que já fez pratos «por telefone» com Ljubomir, «cada um a dar a sua ideia» e que um dos momentos mais interessantes foi a ida à Bósnia com a equipa – «muito muito o caminho do 100 Maneiras –, e onde encontrou uma cozinha ainda muito assente no fogo. «O menu do 100 Maneiras é uma viagem à história do Ljubo, mas há muita liberdade de apresentar ideias.» E há sobretudo irreverência. ¶ Mas isso não é novidade para nenhum leitor, certo? ×

inter magazine



Cristiana Morais, Chelas, 2020




crónica texto olavo silva rosa ilustração júlia da costa vital lordelo

As massas

Na sua primeira edição, a tal de Maio de 1989, a Inter Magazine entrevistou o diretor de uma fábrica de leveduras, cujos produtos obtiveram notório sucesso na indústria da panificação. No excerto que passo a citar, o entrevistado gaba a qualidade do seu produto (levedura industrial), face a um outro, hoje muito querido entre a comunidade gastronómica: «O panificador português, até então a fermentar irregularmente as suas massas com “isco” (restos de massa velha), não só melhorou a qualidade do pão, o seu valor nutricional e a higiene das suas massas, como tornou o trabalho muito menos penoso – os padeiros, ao tempo, tinham de viver junto das padarias para poderem acompanhar a irregular levedação das massas.» Se há trinta anos a utilização de doses carregadíssimas de levedura industrial atestavam a qualidade do pão que consumíamos, hoje, são justamente as padarias que se gabam de fazer pão com apenas água, farinha e sal, as que captam a atenção da mídia especializada. O isco (massa-mãe), passou de besta a bestial em 30 anos, e os novos padeiros, não só fazem questão de morar perto do local de trabalho (o que me parece bem mais ajuizado do que passar duas horas no trânsito) como até retiram um certo prazer contemplativo na apreciação morosa no crescimento da massa. São uma espécie de budas do pão, estes novos vendedores do corpo de cristo. ¶ Quando parecíamos estar prestes a abrir uma guerra contra pão e o glúten, surgiram, como resistência, pequenas padarias que procuraram recuperar a artesanalidade do pão usando, cereais locais, moagem grossa, água, sal e tempo. Sem corantes nem conservantes… É de tal maneira indiscutível a qualidade destes pães (diz-nos o gosto, e confirmam-nos as pesquisas), que a guerra contra o glúten foi, não digo que totalmente interrompida mas, parcialmente, moderada. Os cidadãos tiraram os farináceos da mira das bazucas, e adotaram um modelo «guerra fria», em que se divide os pães entre bons e maus mas não chega a haver tiroteio. Do lado de lá da cortina de ferro ficaram os pães do Continente, do Pingo Doce, e sucedâneos; porque não basta serem feitos em padarias pequenas com um ar muito nórdico, é preciso que sejam «escuros»

(eufemismo em voga na indústria da panificação para dizer «queimados»), fotogénicos, e que não usem leveduras industriais. Importa mencionar que os «pães-do-bem» fazem um estrago enorme na carteira, ao passo que os «pães-do-mal» são meiguinhos na hora da conta. Nos últimos anos deixei de ter problemas em fazer apologia dos ricos. Não é que ser pobre seja feio, mas também não é bonito. «Nem só de pão vive o homem» – diz a sabedoria popular, e eu concordo –, contudo, pode haver duas possibilidades face a este ditado: uma é abrir o pão ao meio e pôr-lhe manteiga, a outra é começar a comer um pão melhor. Vou dedicar o próximo parágrafo a um pão que custa quase 4 euros, sem qualquer tipo de remorsos. Se isto vos causar irritações de alguma espécie sugiro que parem de ler a partir daqui. ¶ Em 2018, Claúdia Bicho abriu uma (micro) padaria, cujo pão tem a virtude de não ser queimado, ter um formato retangular (nada fotogénico mas muito prático para fatiar), e ainda assim ser de fermentação natural. Merece, sem dúvida, o prémio Aljubarrota 20/21, por ter conseguido juntar, num só pão, três características aparentemente irreconciliáveis. A Claúdia esclareceu-nos todas as dúvidas a respeito da parte microbiológica da levedação das massas, não fosse ela cientista de formação. ¶ Depois de devidamente esclarecidos, decidimos saltar da microbiologia do pão para a sociologia do pão. Fomos até à biblioteca nacional à procura de bibliografia especializada, e demos com um livro chamado «A rebelião das massas» de um tal José Ortega y Gasset. Ao fim do terceiro capítulo, apercebemo-nos que estas massas não se tratavam de farinha e água, mas sim de gente de carne e osso. Muita gente junta. O Gasset é afinal um grande filósofo espanhol, e não um especialista em fermentações selvagens, como o título poderia sugerir. Achámos a filosofia do Gasset tão interessante que decidimos abandonar a temática do pão e dedicar-nos a certos aspetos da sua prosa. Por razões práticas, continuamos a chamar este episódio de «Episódio do Pão». Por razões práticas, continuamos a dizer que estamos a produzir uma série sobre comida. Não estamos… os que lerem este texto até ao fim já ficam avisados. × Olavo Silva Rosa e o Tiago Antunes estão a produzir uma série com o apoio da INTER magazine.

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Nasceu em 1965, em Lisboa. Trabalhou na indústria gráfica até que a crise o deixou desempregado. Em 2006 viu um anúncio no jornal e ofereceu-se para copeiro do restaurante Tavares Rico, onde José Avillez iniciava funções. Apesar da sua total inexperiência no sector, Avillez apostou nele e disse-lho. Leonel passou depois pelo Cantinho e abriu o Belcanto, onde ainda hoje permanece. Nos bastidores é a força silenciosa que organiza toda a loiça, desde a cozinha até à sala, ouvindo e prevendo a necessidade de cada cozinheiro, a quantidade e variedade de loiça para cada serviço, o copo especial, o prato específico. Lavar, organizar, planear, prever, arrumar, localizar, resolver problemas. E, no dia seguinte, tudo começa outra vez. texto luís antunes fotos theo gould

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entrevistas mundanas

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O trabalho de um copeiro num restaurante de alta gastronomia é lavar e polir os copos? É mais complicado. Copos, pratos, talheres, mas também toda a loiça da cozinha. Tudo tem de estar disponível para o serviço, seja na cozinha seja na sala. E tem de estar disponível para quem precisa dele quando precisa dele, sem concessões. O serviço é muito complexo, há muitos pratos diferentes, muitos vinhos diferentes, cada cozinheiro, cada prato precisa de loiça específica, e tudo tem de estar no sítio no momento exacto. O nosso trabalho é esse. Garantir isso. Sei que começa o trabalho antes da hora marcada. Já fez contas ao total de tempo que já dedicou a isso? Qual a principal vantagem e o principal inconveniente dessa hora mágica que tem só para si? Contando 15 anos a 300 dias por ano, uma hora a mais por dia são 4500 horas, ou seja, mais ou menos 6 meses inteiros. A vantagem é que trabalho à vontade sem alguém sempre a chamar por mim, quando o pessoal entra à hora certa já está tudo organizado. Detesto desorganização. O inconveniente é que numa equipa de quatro não consegui passar esta ideia a mais ninguém. Nas minhas férias eles vão pondo as coisas para ali e depois logo se vê… Qual foi o seu pior dia de trabalho em termos de «lodo»? O que aconteceu de especial? Os piores dias são aqueles em que há vários chefes de cozinha convidados a cozinhar ao mesmo tempo. Um quer isto, outro quer aquilo, e o planeamento usual não funciona. Eles não estão habituados ao espaço e não sabem sequer movimentar-se. Depois, trazem loiças deles, é impossível fixar de quem é o quê. Diga-me a coisa mais estranha que lhe apareceu num prato vindo da sala de jantar. Não me lembro realmente de nada de especial. O que mais gosta de fazer nos dias de folga? E num dia de trabalho, como descontrai nas horas de lazer entre serviços? Adoro caminhar, ir a museus e sou coleccionador de coisas antigas. Em particular loiças, porcelanas, ficou-me do trabalho. Mesmo nos intervalos, agarro-me ao telemóvel, pesquiso, procuro, compro, vendo. É um hobby que me dá muito prazer. Fui aprendendo aos poucos, já tenho os meus contactos, e uma colecção de loiças muito interessante. Conte-nos o melhor truque ou prato que apreendeu na cozinha do chefe Avillez e que faz em sua casa para a família. Nada, não dá, é tudo demasiado elaborado para mim, até porque estou sempre muito absorvido no serviço, tenho que ter ouvidos em todo o lado para antecipar e resolver os problemas mal aparecem. Experimentei o Pudim do Abade de Priscos e também o arroz de polvo, que me saíram bem. Mas o trabalho é tão stressante que não dá para prestar muita atenção. Alguma vez aconteceu uma catástrofe em termos de loiça? Terramoto, tudo partido, ou serviço fora de portas onde se extraviaram caixas imprescindíveis? Nunca. Uma vez um colega meu deixou cair um cesto de copos que se partiram todos, fora isso há muita organização. O chefe David Jesus ensinou-me bem, escola clássica francesa, foi duro mas valeu a pena, que planeamos tudo para que nada falhe nunca. Qual foi o melhor e qual foi o pior momento que passou no seu ofício? Tem a ver com estrelas Michelin? Elas realmente contam? As estrelas contam, trazem uma enorme responsabilidade. O conjunto do restaurante tem de funcionar, um problema pode não vir da copa, mas todos temos de estar com atenção a tudo, a responsabilidade é de todos. Os melhores momentos são realmente quando conquistamos mais uma estrela ou um prémio, como o de melhor cozinheiro. Sentimos que toda a equipa é premiada. Não há um pior momento, o trabalho só se complica quando há falta de pessoal na copa. ×

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D U K E inter magazine


During your previous life your position of HR Officer was called “chief happiness officer”. Now that you are a sommelier, how would you call what you do? Amateur Bottle Opener Tell me what your favorite movie is? And your favorite wine/food movie? Yakitate!! A Japanese comic book turned into a show. It is so good! What kind of sport do you enjoy playing ? What about watching? And in TV? Then, tell me of a sport you could never figure out. I used to play basketball and baseball competitively for school until I was 16. After that I lost interest in all sports, but I would love to have the experience of going to a Portuguese football game some day! What’s the best and the worst thing about living in Portugal? Best thing would be the access to nature. So many hikes, secluded beaches, abandoned structures to explore. Worst thing: the overly complicated and impossible to understand bureaucratic processes. Dealing with wine customers, what was the most awkward request you had to attend? And what is the most common thing you cannot bear to repeat once again? I’m actually very fortunate with my customer experience. My product is so unique, so I don’t get any weird requests. People who visit/buy from me do so with purpose and therefore it’s always a pleasant interaction. I do sometimes have to educate customers on the biggest differences between conventional wine and natural wine, but I do so with pleasure! Tell us of a childhood memory that you could never have lived in Lisbon I was a beauty pageant queen starting at 5 years old and would have to represent my crown while riding in parades around the state where I grew up. I can’t say it was a favorite memory, but it is definitely something unique to where I grew up! Did you fall for wine in much the same way that you later fell for natural wine? Please explain what was similar and what was different. Actually, no, not at all. I tried to drink conventional wine starting in my early 20s, but it made me very sick due to the heavy use of chemicals used to make it. So for most of my life, I didn’t drink wine at all, until I discovered natural wine in my mid-30s. When I tried it and didn’t get sick and the taste was so pure, I became obsessed and started learning as much as I could and eventually changed my career focus to work in the wine industry. ×

Jenifer Duke was born in Columbia, Alabama in 1982. She dropped out of high school in 10th grade, and is proud to have been a high school dropout and still make it to executive level and now a business owner. Jeni worked for 19 years in human resources across several industries including investment banking at Lehman Brothers and JP Morgan, and technology in Yelp, Google, GitHub, etc. Her last job was a software startup based in Berlin. In 2015 Jeni discovered natural wine, and her life changed. She moved to Lisbon and opened her own wine business, a wine import and distribution company. She also has a little bottle shop in Estrela and will soon open a wine bar/ restaurant in Madragoa. Jenifer is also the founder of a project called Triple F: The Future of Food is Female. 43




Carla Madeira nasceu em Lisboa, em 1970. Estudou economia e especializou-se em economia latino-americana, com mestrado em Londres. Fez investigação em relações internacionais durante 10 anos. Depois, durante 5 anos, teve um emprego tão detestável que nem me quis explicar o que fazia. Aos 45 anos descobriu o teatro como hobby. Ficou entusiasmada e dedicou-se a ganhar experiência e fazer formação. Fez vários workshops e masterclasses, e está já na fase de tese do mestrado em artes performativas. Entretanto, tem vários projectos em cinema, televisão, teatro, performance, aulas com crianças, e faz ainda fotografia e vídeo.

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M A D E I R A

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Descreve o pequeno-almoço perfeito. Tem de incluir fruta. O resto não importa muito. Se não tiver fruta começo a ficar stressada. Frutos tropicais, manga, uvas, pêssegos, melão. Em geral na minha alimentação preciso de fruta e legumes. Parece que o meu corpo tem preferência por coisas saudáveis. Croissant com sementes. Ah, e café, o meu grande vício. Por vezes na ficção alguma personagem diz com ar ansioso «preciso de uma bebida». O que quer isso dizer? Já te aconteceu? A fazer ficção ou na vida real? Conta. Qual é a tua bebida? Já. Em dois casos e com muita frequência. Duas bebidas: uma é café e a outra vinho. Ainda ontem tive uma tarde com montes de merdas, carro a chumbar na inspecção, levei uma pessoa a uma consulta, eram 3h da tarde não tinha almoçado, cheguei a casa e abri uma garrafa de vinho, para afogar as pressas e as mágoas. A outra é café, tem mais a ver com trabalho, para estar com o cérebro aceso. Já me aconteceu a meio de um ensaio ou filmagens, «preciso de um café.» Às vezes ficam todos a olhar para mim… Sei que gostas de vinho, algum tipo especial? Região? Cor? Estilo? És esquisita com os copos, temperaturas, combinações com comida? Vinho é conforto, prazer. Sempre tinto. Gosto de vinhos encorpados, é uma coisa mais física. Não penso muito em regiões, mas olhando para o que bebo, mais Alentejo e Lisboa/Tejo. Detesto vinho tinto frio. Não tenho grandes esquisitices, prefiro beber num bom copo, mas sem stress. O que mais gostas de comer e o que mais gostas de cozinhar? Conta-nos uma receita ou truque secreto da tua família. Gosto muito de legumes e fruta, as minhas receitas preferidas têm de incluir isso. Por exemplo ratatouille, mas onde eu possa inventar. Costumo saltear os legumes separadamente, para ficarem com textura crocante, e misturo à posteriori. Gosto muito de queijo e cozinhar com queijo, aí gosto de todos os queijos. Sou mais esquisita com carnes, gosto se for boa, mas é mais fácil no norte do país. Truque secreto? Olhar para o que está na dispensa e arriscar, mesmo pareça que não há nada, fazer combinações com coisas incombináveis, por muito improváveis que pareçam. Muitas vezes resultam coisas fantásticas e eu fico feliz. O truque é experimentar o menos óbvio. Ainda há dias misturei molho de coentros, salsa, pimenta, mostarda, mel e café para servir sobre as costeletas de vitelão. Qual é o teu alimento/combinação irresistível e qual é aquele tão abjecto que nem consegues provar? Irresistível: queijo e vinho tinto. Chocolate negro e vinho tinto. Abjecto: Pão branco, a começar pelas carcaças. Diz-nos o teu restaurante preferido e outro secreto que tenhas descoberto e adores. Não tenho assim um, vou mais pelos tipos de comida, gosto de asiáticos (Vietname, Tailândia, Nepalesa), gosto do restaurante Annapurna. Também gosto de comida marroquina, há um bom no Bairro Alto. Mas tem mais a ver com o momento ou a companhia. Quando vou a restaurantes mais caros e sofisticados, apanho muitas vezes desilusões, gasto um dinheirão e podia comer melhor… Queres comemorar uma vitória pessoal ou profissional (imagina, ganhaste um Óscar). Podes escolher a refeição dos teus sonhos, onde quiseres, com quem quiseres, o que quiseres comer e beber. O que escolhes? Escolho uma casa na Noruega, em frente a um fiorde, convido o Bergman e o Tarkovsky e comemos costeletas de borrego. Para beber vinho tinto, claro, Papa Figos, é o que me vem à cabeça. ×

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algarve

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Para onde se olhe, vê-se o azul do mar e do céu, o castanho e o verde da serra, o branco das casas. Os encantos da paisagem da região mais a sul do País, entre o Alentejo e o Atlântico, emergem por todo o lado. A vastidão da orla litoral, com as suas praias, cercadas por falésias alaranjadas, grutas e desfiladeiros tem, no sol, o seu aliado. As terras seduzem os olhos de quem as pisa. Vilas e cidades de casas caiadas, com platibandas coloridas, chaminés mouriscas, campanários de igrejas, museus. Museus que exibem a passagem dos antepassados das gentes algarvias – é o caminhar por séculos de tradição que o tempo não apaga. ¶ Descobrir a herança cultural do Algarve, os seus ancestrais valores onde se cruzaram as influências de muitos povos, é mergulhar também no seu artesanato, enquanto fio condutor que nos liga ao início de uma história, a nossa, e que se dissemina pelas gerações posteriores. Somos todos gerações sem idade, portadores dessas técnicas antiquíssimas de olaria, cerâmica, azulejaria, peças em madeira, cobre, ferro forjado e rendas decorativas. ¶ E a gastronomia algarvia? As colinas, sarapintadas por figueiras, nespereiras, oliveiras, alfarrobeiras, amendoeiras, romãzeiras e laranjeiras, dão-nos a resposta. As terras do Algarve, de clima ameno, estão repletas de legumes, frutas e frutos de casca rija, aos quais o sol sublima os sabores. Os vinhos, na orla marítima, e o gado e o mel na serra. ¶ A terra junta-se ao mar. O mar sempre tão perto. De lá chegam-nos peixes e mariscos, fresquíssimos. O mar assumido como um recurso estratégico para a região algarvia com um potencial tremendo. O mar que sempre auxiliou a história económica do Algarve a reinventar-se e readaptar-se ao longo dos séculos. O mesmo mar que, agora, diante das recentes fragilidades económicas, poderá ajudar a manter a esperança no futuro. Olhos no mar e esforços unidos para salvar o músculo empresarial algarvio. ×

texto sónia alcaso foto theo gould

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entrevista

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texto sónia alcaso fotos humberto mouco

Nasceu em São Brás de Alportel, no ano de 1946. A escola primária foi feita no Nordeste Algarvio, nas aldeias de Cachopo e Martinlongo. As memórias da infância e educação do gosto que adquiriu estão entranhadas nessas aldeias serranas, inspiradas nas suas comidas a fumegar, feitas em lume de chão. «As cozinhas tinham o chão em xisto. A intensidade do fumo e toda aquela envolvência de se fazerem muitos pratos à base de sopas de pão e, por vezes no Inverno e Primavera, com ervas silvestres – cardos, catacuzes, acelgas, etc. – foi uma experiência fabulosa que me marcou imenso», confidencia-nos Maria Manuel. A refeição intimava à comunhão; era o ponto de união de família e tudo o que vinha para a mesa tinha o seu valor, como recorda Maria Manuel: «Naqueles tempos, as pessoas viviam numa parcimónia extrema, a frugalidade e os valores de «aproveitamento de tudo» eram o normal da vida». E, acrescenta, «era-se feliz». ¶ Por outro lado, a vida nómada que Maria Manuel teve – ensino primário nas aldeias da Serra do Caldeirão, ensino secundário no Liceu de Faro, Universidade em Lisboa, pós-graduação em França, atividades profissionais em Roma, África, entre outros lugares do mundo – influenciou a sua curiosidade, sentido de descoberta e sensibilidade pelas diferentes práticas alimentares. Contudo, a investigadora nunca descurou as suas raízes que sempre procurou manter vivas e às quais sempre dá continuidade. Por mais mundo que conhecesse, «acabava sempre por fazer o contraponto com o Barrocal Algarvio. Com o meu São Brás natal. Neste momento estou no processo de regressar às origens e aqui fundear também as memórias de outras paragens».

relativamente às outras sub-regiões. Entre Sagres e Alcoutim há tradições e especificidades muito próprias e diferentes entre si. A alimentação em Portugal Continental é resultado dos recursos alimentares, da terra, do mar, dos rios e da sua cultura. A partir destes fatores naturais estruturam-se as diferentes culturas alimentares, com uma marcada dicotomia Norte/Sul. Resumidamente, que diferenças apontaria? Para perceber as diferenças, comecemos pelos recursos da terra. Orlando Ribeiro, na sua magistral obra Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, diferenciava os solos do nosso território em «Portugal do xisto», «Portugal do granito« e «Portugal do calcário». Esta variedade traduz-se nas potencialidades agrícolas dos solos e dos recursos alimentares, sendo que uns e outros, ao longo dos tempos, têm afirmado a coexistência e convivência de uma identidade atlântica com a identidade mediterrânica, dualidade esta que é muito visível nas práticas alimentares. Resumidamente, no Norte são característicos o pão de milho, os pratos à base de feijão, de batata, bem como uma grande diversidade de hortícolas de folha e menor consumo de peixe fresco. A Sul, o pão de trigo, os pratos à base de grão de bico e a predominância das ervas aromáticas como condimento de excelência. Sobretudo no Algarve, o consumo de peixe fresco – do que se destaca o atum – estruturam a cozinha tradicional. Contudo, a característica nacional de solos agrícolas pobres, de chuvas irregulares, determina que, em Portugal Continental, um território banhado pelo Atlântico e crestado pelos frios e pelos sóis, a frugalidade tenha imperado durante séculos. As suas diversas micro-regiões, cada uma com as suas especificidades alimentares são impossíveis de elencar neste tipo de Tem artigos e livros publicados, com prémios atribuídos, resposta. ¶ Se o consumo de bacalhau faz parte da que referem a sua íntima relação com a gastronomia e a identidade alimentar nacional, historicamente identifica cozinha mais a sul do país, homenageando-a e divulgandomuito mais o reportório culinário tradicional das regiões do -a. Acha que o país conhece a gastronomia do Algarve? No Norte do que as do Sul. Com efeito, se este peixe que é meu entender o país conhece o que lhe é dado a conhecer: pescado longinquamente nos mares do Norte e designado cataplanas, xarém, peixe grelhado, salada montanheira, popularmente por «fiel amigo», consome-se em todo o salada de cenouras, carapaus alimados… O país sabe que é território nacional, depois de salgado e seco ao sol. Importa uma cozinha saudável, com muitos caldos e «água» lembrar que os portugueses são os maiores consumidores incorporada no processo culinário, mas concretamente mundiais de bacalhau na sua forma já conservada pelo sal e desconhece os ditos «pratos caldosos». A singularidade das secagem. A conservação através do sol e do sal – tradições algarvias é muito localizada, e por vezes difere de predominantemente no Sul – é outra das características família para família o que dificulta a sua generalização e mediterrânicas que identifica as práticas alimentares de divulgação. Dentro do próprio Algarve há um certo Portugal com as de outros países mediterrânicos. Como é desconhecimento da diversidade de práticas alimentares que tem sido preservada (e passada ao longo das gerações)

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entrevista De todas as épocas do ano são as sopas (com o pão ensopado) e os «jantares», um dos pratos que melhor identifica a cozinha familiar algarvia. A sua atractividade reside talvez na extrema simplicidade do procedimento culinário, na utilização de produtos sazonais e num processo de cozedura lenta.

essa identidade mediterrânica da gastronomia do Algarve? Como sempre, neste tipo de cozinhas, a sua identidade mantém-se através dos testemunhos passados oralmente de geração em geração. Através desta transmissão tem-se assegurado a sua continuidade conferindo-lhe as características de Património Imaterial. Quais são os produtos que destacaria como sendo responsáveis por essa influência mediterrânica que torna a cozinha do Algarve tão singular? Bem, não podemos falar isoladamente dos «produtos como sendo responsáveis por essa influência mediterrânica» como diz. Para compreender os produtos e a cozinha temos que enquadrar no seu contexto geográfico, cultural, histórico, etc. A singularidade mediterrânica do Algarve resulta, além do seu determinismo geográfico, da movimentação de culturas, civilizações, e costumes através do comércio e das migrações que ao longo dos séculos configuraram o Mediterrâneo em geral e o sul da Península Ibérica, como um mar sintetizador de experiências e fenómenos civilizatórios: conjugando os legados fenícios, romanos, berberes e árabes. Por outro lado, a sua especificidade mediterrânica manifesta-se também na modelação da sua paisagem agrícola, nos contornos do olival, dos pomares de citrinos e de tantos outros frutos, nomeadamente os figos, as amêndoas e as alfarrobas, que, no seu conjunto, formam o tão característico pomar de sequeiro algarvio. Enquadrado com as figueiras, amendoeiras e alfarrobeiras intercalam-se as culturas de sequeiro de cereais e leguminosas, como as favas, ervilhas e grão-de-bico. Nas proximidades das habitações ou dos pontos de água, emergem na paisagem pequenas hortas e hortejos. Isto sobretudo no barrocal, enquanto que nas zonas serranas o sobreiral, com a sua tão característica flora espontânea e os recursos cinegéticos configura e reforça essa identidade mediterrânica. ¶ São os produtos provenientes destas paisagens agrícolas e das paisagens marítimas que estruturam a conhecida alimentação algarvia tão identificada com o regime alimentar mediterrânico. As proximidades da orla marítima, da ria e das salinas, constituem factores determinantes da identidade da cozinha algarvia, que incorpora peixes, moluscos, bivalves, peixe seco (muxama de atum, polvo, litão, carapau seco…), de um modo distinto das cozinhas de outras regiões do país. ¶ Talvez o que melhor identifique a cozinha algarvia é a facilidade com que se

combinam produtos da terra com produtos do mar. Uma cozinha de fusão da terra com o mar. Mantendo as características de uma cozinha de cariz essencialmente rural, que evidencia uma complementaridade com os produtos do mar. Mesmo quando se trata de comunidades piscatórias, o cariz rural está presente. Obviamente com maior abundância de peixe e bivalves do que no Interior. Trata-se de uma cozinha de grande simplicidade, que traduz uma sábia adaptação às condições naturais. São sobretudo os produtos provenientes da pequena agricultura, ou esporadicamente os recursos silvestres, utilizados essencialmente em época própria, que se combinam com os recursos do mar. Que valores estão também inerentes a essa dieta mediterrânica? Práticas de sociabilidade? Mais outra questão que é um mundo… fala-me em práticas de sociabilidade inerentes ao conceito de Dieta Mediterrânica (DM). Sim, claro. Mas não só! Tenho que recuar para lembrar o conceito de diaïta que está na génese da DM enquanto Património Imaterial da Humanidade. Ou seja, nesta classificação, o significado de Dieta apoia-se na derivação grega diaïta, a qual significa estilo de vida, relação entre espírito, corpo e meio ambiente, englobando ainda a produção, comercialização, comensalidade, ritual e simbologia alimentar (Unesco, 2010). Depreende-se facilmente que se trata de um modelo cultural que é também reconhecido como um modelo de sustentabilidade social e ambiental. Regressar a práticas agrícolas de proximidade, às variedades autóctones e a tudo o que lhes está inerente, obviamente que promove uma maior harmonia entre práticas de produção e práticas de consumo, com os necessários benefícios para a «saúde individual e para saúde social e ambiental». Podemos falar de uma grande versatilidade culinária no Algarve? Absolutamente! Se por um lado, existe uma grande diversidade de recursos da terra e do mar, por outro, estes recursos sempre foram escassos. Diversidade não significa abundância. O que conduziu necessariamente a uma capacidade de improvisação extraordinária. Já falámos antes da fusão dos recursos de terra e do mar. Basta pensar na geografia das diferentes zonas algarvias. As Serras – do Caldeirão, de Monchique, de Espinhaço de Cão – a costa marítima, as duas Rias, a Formosa e a de Alvor, para imaginarmos os seus produtos e como eles, através de técnicas culinárias de grande simplicidade, dão origem

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entrevista No meu entender, a primeira coisa a fazer (para assegurar a diversidade dos saberes e das identidades gastronómicas portuguesas) é olhá-las de perto, percebê-las, identificá-las. E sobretudo praticá-las. Não as deixar morrer.

à diversidade regional de pratos. A matriz desta extraordinária criatividade tem a sua origem na necessidade de sobreviver, como já falei. Criar a partir do que se tem disponível, «daquilo que há» é o mote. Esta frase traduz essa versatilidade e está sempre presente nos testemunhos que ao longo de anos recolhi: «fazia-se com o que havia». Imagina uma «lagosta com xarém»? Pois, recentemente numa praia de Costa Vicentina foi o testemunho que me foi transmitido por uma família de pescadores, como tendo sido o seu jantar do dia anterior. Dessa diversidade de pratos regionais, poderia apontar-me alguns que simbolizem a gastronomia no Algarve? Se a diversidade varia muitas vezes de família para família, como já disse, a variabilidade é sobretudo determinada pelas estações do ano. Os pratos tradicionais necessariamente refletem a época das produções sazonais. De forma sucinta, diria que no Inverno é a época dos hortícolas de folha, como as couves e o nabo, que são a base dos emblemáticos «jantares de inverno», também conhecidos por «cozidos». São pratos à base de carne de porco, feijão, repolho, como o «cozido de feijão com repolho»; o «cozido de couve» etc., etc. que utilizam as carnes de porco conservadas no sal e posteriormente demolhadas. Pratos de Inverno são ainda os conhecidos «comeres de azeite», ou seja, as «comidas de abstinência», que tal como o nome indica são pratos consumidos em dias de abstinência na Quaresma e não incluem elementos cárneos na sua preparação. ¶ Na Primavera, em termos culinários, todo o maravilhoso fulgor desta estação se exprime, mais uma vez nos pratos confeccionados com produtos da época, as favas e as ervilhas (no Algarve rural ainda designadas por «griséus»), o borrego, o cabrito… As favas e as ervilhas são estufadas em azeite e banha com a «boneca de cheiros» (coentros, hortelã, rama de alho e/ou rama de cebola) e dentes de alho. Também característicos da primavera são as «papas com griséus», ou a «panela podre» que são as «papas com grãos»; «batatinhas novas com molho frio e orégãos»; «griséus com safio»; «favas com choco» etc., etc. Destacam-se igualmente os pratos festivos à base de «borreguinho ou cabrito com griséus»…, e os

folares da Páscoa. ¶ No Verão, os cozidos e os jantares são mais frescos. Da sua composição fazem parte menos leguminosas e mais legumes: feijão-verde, abóbora,… ou «peras rijas» (pouco maduras, em substituição de cenoura); São características as «vinagradas», «arjamolhos», «gaspachos», ou ainda as saladas preparadas com os mesmos ingredientes do gaspacho «cortados miudinho», a conhecida «salada montanheira». Peixes grelhados, nomeadamente as espécies conhecidas localmente por «peixe-azul»: sardinha, cavala, sarda, anchova, «barriga de atum»… ¶ No Outono, continuam a consumir-se os jantares e os cozidos com abóbora e batata-doce. Inicia-se o ciclo da colheita e consumo da azeitona nova com as «azeitonas britadas». É o tempo do rábano para acompanhar os pratos de peixe grelhado. Também é no Outono que é tradicional acompanhar o peixe grelhado com batata-doce. Aliás a época da batata-doce é muito celebrada com pratos que combinam o doce com o salgado. Isto constitui uma prática mediterrânica identificadora da cozinha algarvia: «carapaus-alimados com batata-doce»; «choco com batata-doce»;… Igualmente característicos são os pratos à base de bivalves: conquilhas, berbigão, amêijoas, que tradicionalmente só eram consumidos nos meses com «r». Também do Outono são características as conhecidas tibornas. ¶ De todas as épocas do ano são as sopas (com o pão ensopado) e os «jantares», um dos pratos que melhor identifica a cozinha familiar algarvia. A sua atractividade reside talvez na extrema simplicidade do procedimento culinário, na utilização de produtos sazonais e, num processo de cozedura lenta. Este é o seu «segredo»! A sua composição integra sempre uma leguminosa (grão ou feijão) e um «legume adocicado» (batata-doce e/ou abóbora e/ou cenouras e/ou peras rijas). Os produtos de origem animal são em quantidades reduzidas: carne de porco ou de borrego, toucinho e/ou enchidos. É um prato classificado na tipologia dos «cozidos». ¶ Identificadores ainda da cozinha do Algarve temos os «petiscos», cuja variedade e importância não se esgotam no enumerar dos «pratos e pratinhos» que servem de pretexto para um momento de

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Temos que ser optimistas e acreditar que, tal como em todos os períodos de pós-crise, passaremos a viver uma vida mais entusiasmada e consciente. Talvez mais responsável. E em termos gastronómicos também.

convívio, o que localmente se designa «ir fazer um petisco». Importa evidenciar o quanto o seu conceito alia a arte tão mediterrânica de «obter grandes efeitos a partir de parcos recursos» à da convivialidade que também é considerada uma atitude muito mediterrânica. Umas lasquinhas de moxama, ou de ovas de polvo secas, uma salada de estupeta de atum, o polvo seco assado, caracóis no seu tempo, tantos são os petiscos no Algarve que afirmam a singularidade desta região, na fruição do convívio através das comidas. Na sua opinião, o que se deve fazer para assegurar a diversidade dos saberes e das identidades gastronómicas portuguesas? Quando olhamos para o país no seu todo, a boa notícia é que os Municípios têm feito um trabalho notável. Com as suas «agendas tradicionalizantes» onde se incluem a valorização das especificidades gastronómicas, observa-se um trabalho extraordinário no sentido de identificar e divulgar o que têm de específico, de diferente. Feiras, festivais, publicações… são tudo iniciativas que valorizam a memória colectiva, sobretudo na área das identidades alimentares que é o que nos interessa agora. No meu entender, a primeira coisa a fazer é olhá-las de perto, percebê-las, identificá-las. E sobretudo praticá-las. Não as deixar morrer. Os saberes caem no esquecimento por falta de serem praticados. Para já não falar que, muitas vezes, desaparecem com aqueles que são os seus detentores e que não tiveram oportunidade de passar o testemunho. Observar, escutar, divulgar e por aí adiante. Isto requer muita paciência, muita paixão, muito tempo e sobretudo humildade. Tudo coisas que sabemos. E há sempre ao nível local quem tenha essa vocação e o orgulho de dar este contributo. A pandemia do coronavírus está a ter um impacto substancial na economia portuguesa e mundial. Que efeitos poderá ter no setor gastronómico? Temos que ser optimistas e acreditar que, tal como em todos os períodos de pós-crise, passaremos a viver uma vida mais entusiasmada e consciente. Talvez mais responsável. E em termos gastronómicos também. Os chefes vão inevitavelmente reinventar-se. O ênfase nas questões de saúde associadas ao prazer de comer, irão acentuar-se. Estas tendências, já em curso desde os finais dos anos noventa,

serão reforçadas. É inevitável. Dedicar-se-á ainda uma mais atenção aos modos de produção dos produtos e à sua origem, com o necessário reforço de consumos de proximidade e, obviamente, da sustentabilidade ambiental e social que lhe estão inerentes. Os alimentos religam-nos à Terra e ao Mar donde provêm e essa consciência responsabiliza-nos conduzindo a práticas mais conscientes e coerentes. Quero acreditar que sim. Muitos de nós sairemos mais exigentes relativamente a todas estas questões o que terá um nítido reflexo no sector gastronómico. Para que sobrevivam é fundamental que as cozinhas, as gastronomias, se recentrem no(s) território(s). A gastronomia portuguesa não pode ser vista isoladamente, mas sim em conjunto com a natureza e o turismo. Como é que, em tempos tão difíceis para o turismo, sobretudo no Algarve, a gastronomia poderá se reinventar? Todo este doloroso interregno propicia naturalmente uma vontade incontida de evasão, de descoberta de territórios e de cozinhas longínquas e diferentes. E também o ímpeto de reencontrar o que já conhecemos. É nesta coexistência do longe e do perto que a gastronomia se reinventará. Porque as tendências «glocais», isto é, que conjugam práticas do mundo global com práticas locais, se irão acentuar. E os decisores sabem disso. Os chefes também. Os futuros consumidores de viagens e da gastronomia algarvia, bem como de todas as gastronomias, sairão desta crise com um conhecimento mais global a todos os níveis, e simultaneamente mais sequiosos de descobrir o que lhes está próximo, «aqui na aldeia». Por outro lado, sabe-se que a revitalização do processo turístico depende da reconstrução das economias internacionais. Por sua vez, o desenvolvimento do sector gastronómico depende do turismo. Assim sendo, teremos de esperar que esta conjuntura passe. E será na coexistência do longe e do perto, como disse, que a gastronomia se reinventará. Contudo, neste preciso momento em que está a decorrer a entrevista, penso que a reinvenção de que fala, depende muito da capacidade e da iniciativa individuais para continuar a estudar, a praticar, a sonhar, a confiar… para não sucumbir. Há que estar disponível e acreditar que «o melhor está por vir». ×

Maria Manuel Valagão é doutorada em Ciências do Ambiente pela Universidade Nova de Lisboa (UNL). Foi investigadora em Sociologia da Alimentação e Ambiente (Instituto Nacional de Investigação Agrária), consultora da Divisão de Políticas de Alimentação e Nutrição da FAO/ONU, perita no Comité Scientifique des Appellations d’Origine, Indications Geographiques et Attestations de Specificité Alimentaire da CE, Bruxelas, e professora convidada no ISCTE. Atualmente, é investigadora do IELT (Instituto de Estudos de Literatura e Tradição – Patrimónios, Artes e Culturas) da UNL.

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Theo Gould, «Vindimas», Morgado do Quintão, Silves, Algarve, 2018





cozinhas algarvias

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O mar e a terra são os elementos presentes na vida de José Pinheiro. É da sua cúmplice reciprocidade que se gera a cozinha que o chefe faz.

Nasceu e cresceu junto ao mar, com os campos ao lado, em Sagres, Porto de Pesca da Baleeira. José Pinheiro sempre foi, já desde pequeno, um «espírito livre» – como ele próprio se define. Podemos imaginá-lo, em menino, a correr com os seus amigos para a Baleeira para ver e ajudar a descarregar o peixe dos barcos que regressavam da faina diária da pesca. O mar atraía-o, assim como os campos. «Aos fins-de-semana, religiosamente, ia para a horta com o meu saudoso Tio António Avelino. Nessa altura, era (e ainda é) habitual as famílias de pescadores terem a sua própria horta para ajudar no equilíbrio da economia familiar», afirma José. Era um regime de sustentabilidade implementado de uma forma sã e natural. As escolhas alimentares estavam relacionadas às possibilidades de alimentos disponibilizados pelo meio. ¶ José Pinheiro acabou por ser um privilegiado, treinando o palato desde cedo, com o melhor peixe e marisco do mundo. São muitas as memórias afectivas que guarda desses tempos. «Recordo-me das caldeiradas da minha Tia Maria dos Santos. O meu tio António convidava a família e os amigos para apanhar as batatas (as mesmas que eu, muitas vezes, reguei com a água do tanque… até caí lá dentro uma vez!) e, nesse dia, a minha tia preparava uma caldeirada que era cozinhada no fogo a lenha de esteva, fogo de chão. Na caldeirada, usavam-se as batatas que ficavam cortadas pela enxada no acto da apanha, um verdadeiro deleite!». A comida articulava-se sempre com o trabalho de todos, quer fosse no mar ou na terra. «Quando o mar não permitia termos peixe, a minha tia preparava uma tachada de coelhos que criávamos lá em casa. Eu, todos os dias quando regressava da escola, apanhava ervas (serralhas, leitugas, folhas tenras de cana) para eles. Esta tachada de coelhos era acompanhada com batatinhas bem pequenas (como berlindes) acabadas de apanhar e cozidas com a pele no fogo de lenha», conta José. «No final da jornada, havia quase sempre uma caracolada com caracoletas apanhadas

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pelo meu tio António, na zona do Farol do Cabo de São Vicente; caracolada bem regada com vinho que o meu tio produzia todos os anos com uvas da nossa cerca». José nunca esqueceu também a época de ano em que se fazia a «apanha da uva», guardando na memória os cheiros, as rotinas e o convívio divertido que então se gerava. «Todos os verões adorava e ansiava por participar naquela labuta da pisa das uvas, ver e cheirar o início da fermentação. Adoro o trabalho da adega!». ¶ Os anos passaram e, em 1987, José entrou para a Escola de Hotelaria do Algarve, em Faro. «Adorei o meu curso, fiz bons amigos entre os meus colegas, muitos permanecem até hoje». Iniciou o contacto com a alta cozinha no Hotel Viking, um 5 Estrelas, na Senhora da Rocha, onde hoje se localiza o Vila Vita. Depois, trabalhou na Côte d’Azur, em Nice, e no Hotel Negresco. Em 1990, regressou a Portugal e foi trabalhar para a Quinta do Paraíso, um Aldeamento de Luxo no Carvoeiro. Seguiram-se o Hotel Atlantis Vilamoura (5 Estrelas) e a Quinta do Paraíso. Contudo, o sonho de abrir o seu próprio restaurante foi ganhando força e, em1992, nasceu o restaurante Eira do Mel. ¶ Desde que abriu portas, no caminho para a praia do Castelejo, ao sair de Vila do Bispo, o Eira do Mel fez-se logo notar. Não só se insinua por estar junto à estrada, numa antiga casa agrícola, de paredes caiadas, debruadas a azul, mas também chama a atenção no seu interior, com uma sala ampla e acolhedora, decorada com artefactos rurais. Mas é, sobretudo, a cozinha regional, baseada nos produtos frescos e locais, que fica para sempre na memória de quem o visita. ¶ José Pinheiro confessa-nos que, apesar de ser um defensor da cozinha tradicional, também gosta de «ir mais além». «Em determinados eventos ou datas especiais, elaboro menus livres e despojados de regras contemporâneas; sirvo pratos da minha autoria onde a matriz algarvia está muito presente. A minha cozinha vem de dentro – não me importo muito com a forma, o conteúdo sempre é,


cozinhas algarvias «Nós, os cozinheiros e empresários da restauração, temos o dever de dinamizar as economias dos locais onde estamos inseridos, contribuindo, desta forma, para a sustentabilidade».

e foi, mais interessante». ¶ A ementa conjuga produtos que chegam da horta com outros que vêm do mar. Arroz de polvo, os ovos com biqueirão, xarém, feijoada de polvo, cozido ou perceves são algumas das suas especialidades. E, claro, é das mãos de José Pinheiro que saem algumas das mais afamadas cataplanas do Algarve. O chefe fala de todas com igual paixão. «A mais representativa, na minha opinião, é a cataplana de amêijoas, uma verdadeira delícia se se utilizarem os ingredientes correctos; a de peixe, também é uma maravilha! A de perdizes com amêijoas, que estou a afinar e a renovar, também promete e a de polvo com batata-doce de Aljezur, que nasceu pelas minhas mãos, aqui no Eira do Mel, faz muito sucesso!». E ainda há outra, que ocupa um lugar especial no seu coração, e José não quer deixar de partilhar connosco a receita – a cataplana de coelho. «O método vem dos tempos do meu avô. É um prato que nós, caçadores, apreciamos! Primeiro, abre-se uma cova na terra com cerca de 50 cm de diâmetro e 20 cm de profundidade; coloca-se aí boa lenha a arder até criar borralho; esfolam-se e partem-se os primeiros coelhos da caçada (2 ou 3); unta-se a base da cataplana com bom azeite, adiciona-se o alho esmagado, os coelhos, a cebola laminada, o louro, o colorau, a salsa, o vinho e o sal; fecha-se a cataplana hermeticamente com massa de pão ou com barro amassado no local e coloca-se no buraco, cobrindo-se com o borralho e tapando-se com terra. À hora da refeição, é só servirmo-nos!». ¶ É assim que José Pinheiro gosta de cozinhar, exaltando a terra e o mar, numa plena consciencialização dos seus laços com os seus familiares e com a natureza. «Actualmente, temos mais e melhor cozinha algarvia nos nossos restaurantes», refere com orgulho, explicando que «todos os intervenientes estão mais atentos e percebem que o cliente valoriza cada vez mais o que é genuíno e autêntico». Mas como podem os restaurantes reinventar-se agora, perante esta crise sanitária? Para José Pereira parte da solução encontra-se numa palavra:

sustentabilidade. «Nós, os cozinheiros e empresários da restauração, temos o dever de dinamizar as economias dos locais onde estamos inseridos, contribuindo, desta forma, para a sustentabilidade. Esta é uma questão que está presente no meu dia a dia como indivíduo e com a qual me preocupo; é pela sustentabilidade que passa o bem estar do próximo». ¶ As consequências do surto pandémico na economia do Algarve, devido à queda a pique do turismo, serão dramáticas. O chefe sabe isso, mas defende que se deve olhar para os próximos meses com optimismo. «Direi que o Algarve se encontra bem e pronto para enfrentar o futuro. Obviamente que sei que vai ser duro para muitos profissionais desta área, bem como para as entidades patronais». José apela, por isso, a uma maior atenção do governo face a estas situações: «Espero que o governo olhe também para os sócios-gerentes como trabalhadores que o são. Muitos dos restaurantes são pequenas sociedades onde marido, mulher e filhos são sócios-gerentes e não estão a ser protegidos. Estas pessoas, ao longo das suas vidas, entregam milhares de milhões de euros em impostos à economia portuguesa e, para mim, é triste, muito triste, que sejam mal tratadas pelos governantes do seu próprio país». ¶ Durante este período de isolamento social, José Pinheiro aconselha a que se mantenha o corpo e o espírito sãos. «Para conseguirmos minimizar este e outros sofrimentos inerentes a esta crise sugiro que nos tentemos manter saudáveis e seguros: praticar algum exercício diariamente, quase sem excepção, como caminhadas, bicicleta, passeios pela natureza, yoga, meditação, entre muitas outras formas de manutenção física e relaxamento espiritual. Os cozinheiros devem cozinhar todos os dias, comprar produtos frescos na praça e tentar colocar a manutenção de casa e do restaurante em dia. Todos temos de ter esperança no futuro, tratarmo-nos bem a nós próprios para conseguirmos cuidar do próximo - em suma, vivermos a vida sem esquecer de respirar e apreciar a beleza do planeta Terra que é azul». ×

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A Fábrica de Enchidos Fátima Varela, na Serra de Monchique, é uma das mais conhecidas da região. Apaixonada pela tradição e apostando na promoção desta especificidade local, Fátima Varela tem projectado a fama destes enchidos tradicionais pelo mundo fora. Aos 58 anos, Fátima Varela é um nome incontornável por detrás dos Enchidos de Monchique. Nasceu e cresceu na Serra de Monchique e os enchidos, desde sempre, fizeram parte da sua vida. As técnicas e segredos para fabricar os melhores produtos não se aprendem na escola ou nos livros e Fátima não esconde o orgulho por este ser um negócio familiar e tradicional. «Desde pequenina, já a minha família matava porcos e fazia os enchidos, aprendendo assim, com a minha avó e mãe», revela-nos a produtora. Mais tarde, Fátima conheceu o homem que viria a ser o seu marido e também ele fazia criação de porcos. O caminho de ambos já estava traçado. «Pouco tempo depois de casarmos, comecei a fazer os meus enchidos da maneira mais tradicional que me foi ensinado pelos meus, trazendo como consequência o início da minha ida às feiras, aqui em Monchique (Feira do Presunto e Feira dos Enchidos)». De ano para ano, é nestas feiras que os produtores locais dão a experimentar a milhares de visitantes o verdadeiro gosto da tradição. Porém, o negócio ganhou novos contornos em 2005 quando, juntamente com o marido e já com os filhos, Fátima Varela abre a sua Fábrica. Hoje, a Fábrica Fátima Varela emprega oito pessoas e é um exemplo dos Enchidos da Serra de Monchique e de Portugal para o mundo. «Vendemos por todo o País e, inclusive, para o estrangeiro». ¶ Feitos a partir da carne dos animais de criação própria, a empresária realça a qualidade dos produtos que constituem os enchidos. «É essencial que a carne seja de qualidade e, de preferência, de porco preto, com uma alimentação à base

do cereal e, claro, os temperos nas medidas certas». ¶ Da sua fábrica, aberta ao público, saem uma vasta gama de produtos tradicionais. São eles: Chouriça de carne com e sem picante, feita com carne de porco, pimentão doce, sal, vinagre, vinho, massa de pimento, massa de alho, entre outros ingredientes. «É muito tradicional na zona e usa-se muito em comida, como os grãos com massa, assada e mesmo em sandes», explica a responsável; Morcela de sangue, feita com carne de porco, sangue do mesmo, cominhos, massa de alho, sal, entre outros, muito utilizada para os cozidos e as favas à Monchique; Molho de arroz, feito com carne de porco, sangue do mesmo, arroz, sal e cominhos, muito usado também nos cozidos com couve e feijoadas; Farinheira, feita com carne de porco, sangue do mesmo, farinha de milho, sal, cominhos, entre outros. «Esta farinheira pode encontrar-se nos cozidos; é frita na frigideira com banha de porco e presunto, feito com a perna de porco e sal, utilizado para fazer sandes e como entrada», revela Fátima. ¶ O avanço da Covid-19 pelo mundo fez também com que as empresas da indústria de alimentos, como a Fábrica Fátima Varela, tivessem que se adaptar a uma nova realidade. Para já, a produtora mostra-se optimista: «Continuamos de portas abertas, a trabalhar e a tentar dar o melhor de nós aos nossos clientes». Os receios que a pandemia tem gerado na população levou, contudo, a uma queda no número de compradores. «Reparamos que as pessoas têm medo e evitam sair de casa e procurar-nos com tanta frequência. Mas acredito que melhores dias virão». ×

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Fábrica de enchidos Fátima Varela 69


produtores

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A Alcagoita é uma microempresa de agricultura tradicional que defende e assegura, enquanto instrumento fundamental do espaço rural, um modo de consumo sustentável.

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Alcagoita de António Rosa Em Aljezur, António Rosa levanta-se com o sol. Todos os dias, às 7 horas da manhã, sai da cama e dirige-se para os campos, sempre disposto a fazer aquilo que gosta: trabalhar na lavoura. Após as tarefas quotidianas que distribui também pelos seus três funcionários fixos, dedica-se à expedição das encomendas em carteira. As tardes são mais calmas, usadas para programar os dias seguintes. É esta a rotina do proprietário da Alcagoita Produção e Distribuição de Agricultura Biológica. ¶ Natural de Maria Vinagre, com 52 anos, António Rosa tem uma microempresa de agricultura tradicional extensiva, que privilegia o modo de produção biológico e a distribuição de produtos da agricultura local (Aljezur). A sua missão, segundo António, é «ajudar a salvaguardar todo o seu sistema fundiário, em toda a sua essência, tais como os produtos autóctones e as suas técnicas agrárias ancestrais». A união entre as boas práticas de sustentabilidade (bom uso dos recursos) com a agricultura, respeitando o equilíbrio entre a natureza e a produção, é fundamental para a Algacoita. «Nós pegamos naquilo que já existia – e que é de uma riqueza extrema, - não embarcando em ‘modernices’ de produções exóticas megalómanas, desajustadas aos dias de hoje, e sem nenhuma sustentabilidade de futuro», explica o responsável. Este cuidado com a tradição, ao plantar as suas terras naturalmente, faz com que as suas produções «se diferenciem no mercado pela qualidade e não pela quantidade, sempre numa relação de grande proximidade com o consumidor final», refere António. ¶ A Alcagoita trabalha com várias culturas rústicas, tais como batata-doce, amendoim (que transformam em amendoim torrado e manteiga de amendoim), feijão carito (tipo frade),

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milho regional e, também, vinho de consumo próprio – um branco mono-casta moscatel e um palhete com mistura de castas locais. Os produtos são distribuídos, essencialmente, por pequenos supermercados biológicos, chefes de cozinha e mercados locais. ¶ Quando pensa sobre os desafios que o setor agrícola da região atravessa, António mostra a sua indignação. «Ver os sistemas fundiários, muito sustentáveis, que herdámos e que levaram séculos e séculos a construir, a serem agora devastados com a cumplicidade do Ministério da Agricultura, sem nenhum rigor científico, é revoltante», critica o empresário, salientando também as medidas que beneficiam clara e descaradamente a grande propriedade que explora de forma intensiva a terra. «O Ministério do Ambiente fala da sustentabilidade dos nosso recursos hídricos e o Ministério da Agricultura aprova projetos megalómanos de agricultura super intensiva, destruindo todo ecossistema riquíssimo e de grande consumo hídrico». É o caso, afirma António, de todo o pomar de sequeiro algarvio. ¶ São, portanto, muitas as dificuldades que os pequenos agricultores têm enfrentado ao longo dos últimos anos, devido a vários constrangimentos naturais, económicos e políticos. «Neste País, sobreviver como pequeno agricultor em que lhe é imposto as mesmas regras com se fosse uma multinacional é viver sempre em pandemia!», desabafa António Rosa. ¶ Do que não há dúvidas é de que a região algarvia tem, nas suas terras, um potencial enorme para o desenvolvimento do sector agrícola e, apesar das intempéries, os pequenos agricultores, como António, não baixam os braços. «A Alcagoita é, e quer continuar a ser, uma micro empresa simplesmente sustentável, porque encara a sua actividade como um modo de vida.» ×


algarve

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João Marreiros

A sua infância foi passada entre Monchique, onde nasceu e cresceu a comer comida de tacho com sabor a fumo e Aljezur, vila junto ao mar. Desde cedo, João experienciou um Algarve diferente da ideia que parte dos seus visitantes possa ter, um Algarve fora das rotas turísticas e gastronómicas. ¶ Apesar das suas vivências, em jovem não ambicionava ser cozinheiro ainda que os seus primeiros empregos tenham sido na área e de ter passado parte da infância dentro do um restaurante, uma vez que a sua mãe era pasteleira. «O número de horas de trabalho nunca me seduziu», justifica. Por isso mesmo, durante três anos, seguiu uma carreira militar e até concluiu uma missão no Afeganistão. Quando voltou para Portugal pensou no que se poderia seguir. Gostou do stress, da adrenalina e da disciplina que a sua passagem pelos comandos lhe proporcionou. «A cozinha era o que mais se aproximava disso, por isso decidi tirar um curso de cozinha e pastelaria e apaixonei-me pela restauração e desde então nunca mais parei de trabalhar nesta área», explica João que se considera ainda um «um obcecado por gastronomia» e um amante de literatura na área. Na verdade, agora que pensa, a sua primeira memória está relacionada com comida no tempo em que ir espreitar o tacho da casa do vizinho era algo comum. «Existia partilha, todos cultivavam e tinham o próprio produto, tanto em Monchique como em Aljezur. Isto é uma cultura que não associamos imediatamente ao Algarve mas existe», refere. Ainda antes de adivinhar a sua paixão pela arte de cozinha, já observava, atentamente, gente «humilde e trabalhadora» a confeccionar produtos de raiz, «com alma, amor e tradição». ¶ Apaixonado pela

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natureza e inspirado por essa cultura de partilha, após algumas experiências profissionais nacionais e internacionais, decidiu aplicar a cozinha com a qual cresceu e em 2019 abriu o restaurante Loki, em Portimão, com uma cozinha feita com recurso a produtos de raiz, de origem orgânica e local, com um toque moderno no prato. Através de um menu de degustação, os clientes são convidados a entrar nas memórias do chefe e a conhecer sabores «muitas vezes esquecidos». O menu é rotativo pois é a única maneira que o cozinheiro tem de conseguir um desperdício perto de zero e a dita sustentabilidade que «apesar de ser um tema já muito falado, não deve ser esquecido». Na sua visão, o facto de trabalhar com produtos algarvios oferece somente vantagens pois além de ter um maior controle sobre o produto, o cozinheiro consegue conhecer a história do produto e do produtor e contá-la ao cliente, à mesa. E nas suas palavras, «isso é tão importante como cozinhar». Marreiros defende que a diversidade da cozinha algarvia é a sua maior força e que dar a conhecer os produtores e seus produtos ao número máximo de pessoas é essencial para o crescimento da região. Na sua opinião, a mais «simples» cozinha algarvia é capaz de desmistificar até os maiores cépticos da diversidade que aquela região pode oferecer. «Há um terroir característico (no Algarve). Numa região tão pequena temos diversidade de produtos, algo que eu adoro. E, felizmente, acredito que o nosso país partilha desta mesma diversidade. Simplesmente estou mais familiarizado com a do Algarve. Posso dizer que nunca comi fora do Algarve uma fruta, legume ou peixe que me soubessem tão bem», diz João. E nós acreditamos. ×


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Natural de Faro, Filipa Carmo parecia ter o seu caminho profissional traçado, na área da Comunicação, mas a curiosidade que a cozinha lhe aguçava fez com que repensasse o futuro. Aos 25 anos, decide inscrever-se na Escola de Hotelaria e Turismo do Algarve no curso de gestão e produção de cozinha e é sem surpresa que no decorrer dos primeiros dias da experiência percebe que só aquele poderia ser o caminho. Finda a formação parte por Portugal afora numa viagem de um mês na procura de um maior conhecimento da cozinha portuguesa, ingredientes e receitas. É no regresso que recebe a chamada que moldaria os seguintes anos profissionais com um convite de Leonel Pereira para estagiar no seu novo projecto, o São Gabriel, em Almancil. O que eram para ser apenas três meses, passaram a nove meses e, depois, a seis anos, até Novembro de 2019, data em que o restaurante encerrou de forma definitiva, já com uma estrela Michelin conquistada. Filipa entrou como cozinheira e saiu como pasteleira muito por culpa do seu mestre. «Como qualquer estagiário rodei pelas várias secções e a pastelaria fascinou-me logo. No início foi difícil mas rapidamente ganhei interesse e passei a estudar cada vez mais sobre o assunto», explica. Quando chegou a hora de trocar novamente de secção, Filipa pediu ao chefe para ficar mais umas semanas, algo que ele rapidamente acedeu. Mais uma vez, a profissional viria a conquistar o seu lugar, ocupando o cargo de responsável de pastelaria do restaurante. «Agradeço a confiança do chefe no meu trabalho enquanto pasteleira. Cresci muito, mudei completamente a minha mentalidade e postura na cozinha», afirma. ¶ Já em 2020, surgiu a oportunidade de integrar a equipa do Gusto, no hotel Conrad Algarve, como chefe de pastelaria do restaurante com uma estrela Michelin. Afinal,

o seu perfil encaixava naquilo que o espaço procurava: uma profissional conhecedora de produtos locais aliada à experiência em restaurantes Michelin. No início, foi desafiante encaixar-se na estrutura do chefe executivo Heinz Beck, por este ter uma linha bastante definida daquilo que pretendia oferecer. Tendo como guia o chefe de pastelaria do La Pergola, restaurante em Roma, com três estrelas Michelin do qual Beck é também o seu chefe executivo, Filipa é responsável por aplicar as ideias do chefe alemão mas também tem liberdade para criar. O resultado são sobremesas «equilibradas» nos sabores que apresentam. Parte dessas criações resultam da inspiração de produtos da temporada e locais. «Só assim faz sentido. Troco facilmente baunilha de Madagáscar por amêndoas algarvias. É um orgulho poder mostrar aos nossos clientes que chegam de todo o mundo um pouco das nossas raízes», diz Filipa que confessa ainda apreciar o trabalho recentemente desenvolvido pelos colegas pasteleiros Carlos Fernandes e Márcio Baltazar na região do Algarve. «Admiro o facto de darem palco a produtos algarvios. Cada vez mais se dá destaque ao que o Algarve oferece.» Na sua opinião, o Algarve é uma região privilegiada, onde se consegue concentrar «toda a magia da cozinha litoral com a da serra». Ainda que seja «bastante difícil» descolar a etiqueta de turismo balnear associada a esse território, a pasteleira acredita que se devia de investir mais fortemente na promoção do interior algarvio, onde não faltam outras preciosidades. «É preciso divulgar com mais intensidade o turismo rural. Num dia é possível comer numa praia o melhor peixe do mundo e no outro a seguir, subir à serra de Monchique e apreciar cozidos fantásticos.» ×

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Filipe Martins

É orgulhoso da terra onde nasceu, Olhão, e talvez por isso tenha investido desde cedo num negócio na cidade. Filipe Martins começou jovem a trabalhar nas áreas da pastelaria e padaria e consolidou os seus conhecimentos técnicos quando se formou na Escola de Hotelaria e Turismo do Algarve. Aos 25 anos abriu a sua primeira pastelaria, a Kubidoce, e o sucesso foi imediato, o que lhe ofereceu a possibilidade de abrir mais dois espaços. À época, o seu folar de Olhão, fazia filas, sobretudo na altura da época pascal. No entanto, em 2018, o pasteleiro sentiu que precisava de uma pausa. Pensou que gostaria de aprender mais, ganhar mais conhecimentos e desafiar-se. Decidiu fechar os espaços que detinha e viajou rumo a Espanha, Bélgica e Itália. Fez sobretudo formações na área da pastelaria saudável, tema que seguia com interesse. Na verdade, o chefe pasteleiro nem pensava voltar ao negócio da hotelaria. «Estava cansado de fazer sempre o mesmo. Tinha a ideia de apenas continuar a ser formador e aprender mais a nível profissional», afirma. Assim que chegou a Olhão, começou a praticar aquilo que aprendera: fez pães de massa mãe, croissants e doces sem qualquer tipo de gorduras hidrogenadas e açúcares brancos – algo que passou a abolir de vez em tudo o que faz. O público fiel da Kubidoce começou a cobrar Filipe, a fazer encomendas à porta de sua casa, de pão e de bolos mais naturais e saudáveis e o olhanense lá decidiu que era hora de reabrir a sua Kubidoce, algo que acabou por acontecer no verão de 2019, numa nova localização. No entanto, o pasteleiro queria fazer diferente e a única coisa que a nova loja herdou da antiga foi mesmo o nome, uma vez que o conceito seria fazer uma pastelaria mais natural e saudável. Por ser uma

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novidade na cidade, nem todos receberam a boa nova da mesma forma. «Fomos muito criticados mas conseguimos que os clientes percebessem o que queríamos fazer ali e o porquê. Fazemos uma pastelaria que muitos nunca tinham provado, com matérias-primas sem glúten e lactose», explica. A juntar a esse conceito distinto, não ajudou à aceitação o facto de o espaço não ter refrigerantes (apenas sumos e chá naturais) e de não usar corantes artificiais mas sim apenas manteiga e azeite. «Após provarem, as pessoas perceberam que realmente aqueles novos produtos eram diferentes e melhores.» Um desses renovados produtos foi o folar de Olhão, produto-estrela que saiu a ganhar com os novos ajustes. «No fim, alcançámos um bom produto e que dignifica a cidade de Olhão», afirma orgulhoso. E para Filipe trabalhar com bom produto significa também usar os «melhores produtos locais, como a amêndoa, o azeite, a alfarroba e a laranja». Esta última fruta, usa bastante, ora confitada para colocar em produtos como o bolo-rei e outras especialidades, ora na aromatização de massas. ¶ Filipe Martins acredita que conceitos como a Kubidoce podem ser o início de um modelo de restauração diferente no Algarve, no entanto lamenta ainda existir quem não aposte na qualidade daquilo que vende. «Ainda são muitos os que trabalham com mix, margarinas e farinhas de má qualidade e já melhoradas. E não é só no Algarve que isto acontece». Para o futuro, o pasteleiro deseja mais união no setor e respeito pelo produto algarvio e nacional. «Não faz sentido um visitante viajar até ao Algarve e achar que o nosso peixe, o nosso marisco e o nosso folar não são os melhores que já comeu na vida. Só lá chegaremos com qualidade.» ×


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O sotaque macio denuncia a sua origem. Leandro chegou a Portugal vindo do país irmão em 1999, com 12 anos. Nasceu e cresceu em Goiás, Brasil e essa é uma parte inegável da pessoa que é. Mas Leandro tem o Algarve no coração e na alma, afinal foi nessa região que se tornou adulto e descobriu na cozinha o seu futuro. Pelo meio, ficou uma carreira como bartender. «Quando era jovem não gostava de lidar directamente com o cliente, era demasiado acanhado, e por isso à última da hora inscrevi-me em cozinha e não em bar, como inicialmente tinha pensado. Curiosamente hoje tenho de fazer esse papel junto com os clientes», começa por contar. ¶ A sua primeira experiência profissional foi no restaurante Akvavit, em Vilamoura, onde ganhou bases de cozinha regional algarvia. De lá seguiu para o País Basco onde teve uma curta mas marcante passagem pelo restaurante de Martín Berasategui e que fê-lo despertar para uma cozinha mais criativa. Volvido de Espanha regressou ao Akvavit mas acabou por não conseguir aplicar nada do que tinha aprendido. É nesse momento que surge o convite para fazer parte do novo desafio do chefe Leonel Pereira, o São Gabriel, em Almancil, no qual permaneceu sete anos, até o seu encerramento em 2019. O seu percurso no restaurante que chegou a ganhar uma estrela Michelin foi ascendente mas o fim de uma aventura foi o começo de outra quando o colega e até então escanção do São Gabriel, João Valadas, o desafiou para fazer parte de um novo restaurante a abrir em breve. «Eu já procurava algo diferente que me desse mais tempo para a minha família e acabei por aceitar», conta. O Cafézique abriu portas em Janeiro de 2020 em Loulé, cidade que tem vindo a crescer nos últimos anos a

nível cultural, turístico e económico, no entanto, segundo conta o chefe, «não existia nada idêntico a este conceito de conceito na cidade e pensámos que podíamos ser uma boa aposta». E que conceito era esse? «Uma cozinha de partilha feita a partir de produtos regionais e também nacionais com uma carta de vinho com 70 referências nacionais.» Aliás a pluralidade e a qualidade dos produtos portugueses é algo que fascina Leandro que, no Algarve, destaca no Litoral a grande oferta de peixes, moluscos e mariscos da Ria Formosa, no Barrocal os citrinos, as amendoeiras e as figueiras e na zona da Serra os medronheiros e os enchidos. Naturalmente, esta multiplicidade dá origem a várias cozinhas locais que «valem a pena conhecer e são um território por explorar». ¶ O principal desafio apontado pelo chefe passa pelas colaborações dos restaurantes com os pequenos produtores, especialmente pelas dificuldades dos mesmos em gerir entregas e a consistência dos produtos. «O cenário ouro é ter um agricultor que trabalhe ao nosso lado. Um dos nossos objectivos é ter uma parceria com um produtor local que consiga fornecer produtos da época e de qualidade.» Uma vez ultrapassada essa barreira, a gastronomia algarvia só terá a ganhar. Araújo é da opinião que ainda que a evolução nesse campo seja progressiva, tem ganho qualidade com o passar do tempo. «Surgem bons novos restaurantes mas falta ainda gente de sangue novo com vontade de arriscar. Por outro lado, penso que parte do futuro da região e de nos reerguemos perante a crise actual passa por preservar o que de bom cá temos, continuando o foco qualidade e criando mais experiências para atrair mais pessoas a visitar a região. E a voltar, claro.» ×

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Rui Sequeira

Ao contrário do que pode acontecer com alguns cozinheiros da sua idade, Rui Sequeira nunca sentiu necessidade de sair do país para crescer profissionalmente. É certo que o fez por um curto período de tempo quando estagiou no restaurante Serge Vieira, em França, mas a maior parte do seu percurso deu-se no Algarve, a sua região berço. Durante seis anos, cresceu ao lado de Hans Neuner no Ocean, em Porches, com duas estrelas Michelin. Antes de sair para se dedicar ao seu próprio projecto, chegou a subchefe de cozinha. «[O Ocean] Foi a minha grande escola. Apesar de lá ter ficado muito tempo, nunca senti que tivesse parado de crescer. E agora posso usar na minha cozinha todo o know how em termos de produtos algarvios», começa por explicar. Foi no final de 2018 que o chefe, em conjunto com a mulher, Cristina, abriu o restaurante Alameda, no coração da cidade da Faro, onde nasceu e cresceu. «Queria poder mostrar a minha identidade culinária a solo e já achava que a cidade merecia um espaço de cozinha criativa onde se pudesse enaltecer os produtos da nossa região», afirma. Para o jovem chefe seria natural que o seu restaurante tivesse como base o Algarve, só assim faria sentido a localização do seu espaço. «Acredito muito no Algarve e nos seus produtos e um dos meus principais objectivos é trabalhar para demonstrar que os nossos produtos estão a um nível igual ou superior dos produtos do estrangeiro», refere. Na carta do Alameda não faltam peixes e mariscos oriundos da Ria Formosa, a escassos metros do restaurante, bem como enchidos do litoral e azeite de Moncarapacho.

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E também alguns pratos de carne, claro, entre o leitão e o javali. Para o chefe a grande mais-valia da região é mesmo a diversidade que apresenta, tanto em produtos de mar como de terra, do litoral até à zona da Serra de Monchique. Apesar de ser uma região turística, com um maior fluxo de visitantes no verão, Rui acredita que projectos como o Alameda podem combater essa sazonalidade. A prova disso é que desde o seu início o restaurante tem sido frequentado sobretudo por locais e tem mantido a lotação ocupada. Segundo Sequeira, é a manutenção dessa relação com o cliente que vai ser essencial na abertura dos restaurantes, após o mais recente confinamento, em 2021, ter o seu fim. «Nesta recuperação, a restauração algarvia têm de continuar a fazer a sua parte e isso para mim significa continuar a trabalhar para melhorarmos a nossa oferta gastronómica e lutar pela excelência para que os nossos clientes nacionais ou estrangeiros prefiram fazer turismo no Algarve. E sejamos sinceros, o Algarve é um dos melhores sítios para se estar no mundo inteiro», acredita. No primeiro confinamento, adaptação foi a palavra de ordem para o cozinheiro que desenvolveu um serviço de take away do zero, com uma carta adaptada, com uma cozinha de conforto, uma mercearia de cabazes com produtos e uma garrafeira online. Assim que pode reabrir inaugurou um novo espaço, um lounge exterior climatizado, que lhe permitiu ter mais lugares no restaurante e criar um experiência «mais segura» para os clientes. Quando o mais recente confinamento levantar, o chefe espera voltar em força e continuar a oferecer um restaurante para todos, o ano inteiro. ×


entrevista

The Home Project Design Studio inter magazine


Álbio Nascimento e Kathi Stertzig nasceram em 1977, em Faro e Hannover respectivamente. Em 2004 fizeram uma viagem pelo Sul de Portugal à procura das artes tradicionais. Queriam perceber como desenvolver produtos no Sul, a salvo das condicionantes da indústria e da perversidade do mercado. Tinham terminado a universidade e procuravam caminhos novos dentro da prática do design. No Sul de Portugal não se falava em design, mas era bem clara uma cultura material muito particular, de materiais e modos de fazer. ¶ Álbio e Kathi percorreram o interior do Algarve e chegaram a Odemira. O seu mapa eram os artesãos que encontravam e que lhes indicavam sempre outras pessoas. Esses meses foram transformadores. «Concordámos num caminho comum – que não era o de seguir tendências nem modelos, mas o de aprender com os modos de fazer artesanal de diferentes culturas e lugares, abertamente. Trabalhar lado a lado com artesãos e artífices, que são quem mais sabe dos recursos locais. Foi nessa altura que começámos a delinear a filosofia de trabalho que ainda hoje nos guia», afirmam à INTER magazine. ¶ Nos anos seguintes, trilharam o seu próprio percurso. Mesmo a partir de Antuérpia ou Berlim, onde vivem, foram sempre trabalhando em Portugal. O Álbio dedicou grande parte da sua tese de mestrado ao saber-fazer algarvio. ¶O Algarve está, portanto, na origem do The Home Project Design Studio. Foi aqui que começaram as ideias que vieram a desenvolver, depois, na Catalunha, nos Açores ou em Cabo Verde.

Acham que se tem vindo a assistir ao desaparecimento da longa tradição artesanal e manufatureira no nosso país ou, pelo contrário, a um renascimento? As tradições estão vivas e por isso sempre em mutação. Não desaparecem, renovam-se, embora não necessariamente sempre da melhor maneira. Não podemos olhar para a cultura tradicional da mesma forma que olhamos para as tendências da moda ou dos eletrodomésticos, que seguem a estratégia da obsolescência programada – a negação recorrente do passado. As tradições vernaculares caracterizam-se pela permanecia e pela continuidade, não pela ruptura. São garantidas pela repetição e pela prática. Por isso estão sempre em risco e são sempre novas. ¶ Quando o Joaquim de Vasconcelos visitou o Algarve na década de 80 do séc xix já falava do fim de certos trabalhos de empreita de palma de «uma beleza surpreendente». Hoje a empreita continua a existir e continuamos a falar do seu fim. ¶ Por outro lado, o facto do mercado global estar favorável para o «feito à mão» não garante em si um «renascimento» da tradição artesanal, como muito se apregoa. Há até mais pessoas a dedicar-se à produção manual, que são maioritariamente mais jovens e formados em áreas criativas. Mais informados pela internet que pela cultura popular e o seu trabalho segue uma estética «internacional», que responde aos mercado global – produto das redes sociais e das publicações lifestyle. As formas cerâmicas ou de colheres de madeira resultantes não são diferentes das que estão a ser feitas nos Estados Unidos ou no Reino Unido. Por isso não é

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evidente que esse interesse se tenha traduzido numa renovação das práticas artesanais tradicionais, pelo menos em Portugal. Ainda falta fazer caminho estes movimentos encontrarem a sua linguagem e estética próprias. O que é certo é que se confirma um desejo nas pessoas de assumirem mais controlo sobre o mundo material, de sentirem a realização de construir algo com as mãos. De sentir que não são apenas consumidores passivos mas que têm o poder de participar activamente na sua cultura material. O que poderia, ou pode ainda, ser uma janela de oportunidade para fazer renascer essa «longa tradição artesanal». Relativamente ao Algarve, como tem sido a vossa participação no design e na produção artesanal desta região? Em 2006 iniciamos o programa de exposições DesignForFuture em Olhão com a primeira exposição de design internacional no Algarve. Anualmente e até 2009, a Galeria Municipal de Olhão expôs artistas e designers espanhóis, holandeses, brasileiros, japoneses, portugueses e outros. Foi também uma forma de mostrar que há mais liberdade para fazer as coisas na periferia, fora do eixo Lisboa-Porto. ¶ A segunda e a terceira exposições que se intitulam respectivamente Artesanato Pop (2008) e Cultura Intensiva (2009) trataram directamente as questões da criatividade e conhecimento das práticas vernaculares da região. O projecto Cultura Intensiva teve particularmente a intenção de provocar discussão sobre a contemporaneidade e utilidade da cultura artesanal dos territórios a Sul. Em 2010-11 desenhamos e implementámos o Projecto TASA, um trabalho de fundo, estruturante e transversal, para transformar as artes tradicionais num sector estratégico para a região. Acho que conseguimos tornar evidente o valor, capacidade produtiva e actualidade da

produção artesanal – reabilitar o seu estatuto cultural e comercial. O Projecto TASA continua activo e sendo um exemplo modelar de desenvolvimento regional, ou melhor, envolvimento regional. ¶ Para além destes projectos com organizações e entidades públicas, ainda hoje continuamos a colaborar com todas estas artesãs e artesãos que fomos conhecendo, especialmente na pesquisa de materiais e técnicas e no desenvolvimento de produto. Como definiria o estado em que se encontra o artesanato no Algarve? Enfrenta as mesmas oportunidades e os desafios que outras regiões. Mas tem motivos para estar mais preparada que outras regiões, no que toca à preservação e conhecimento das práticas. Já há um historial de acções e projectos, onde se incluem os que descrevemos anteriormente, que deixam muito trabalho feito e propostas concretas. ¶ Os artesãos e artesãs também estão despertos para o valor do seu trabalho, comercial e cultural. Perceberam o que outras disciplinas, como o design, lhes podem trazer de benéfico, mas também os limites da prometida «inovação». Pode dizer-se que é esta resiliência de que continua um ofício que mantém o conhecimento vernacular intacto e evolutivo, mais que as campanhas conservadoras e nostálgicas de algumas instituições. ¶ Isto para dizer que há um certo grau de maturidade nestas áreas no Algarve. Ou pelo menos não há desculpa para não haver. Mais ainda, a aprendizagem que se tem feito no Algarve podia informar outros territórios. O Projecto TASA, gerido pela Proactivetur, conseguiu formar e contratar artesãos. É um exemplo do caminho certo e um caso de estudo muito interessante. Como é que se pode continuar a elevar o artesanato do Algarve? Abandonar o termo «artesanato» já era um

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início (risos). Podemos seguir essa ideia. «Artesanato» é o que define aquilo que não é realmente útil para o quotidiano. Ora, o caminho da valorização destas artes está no reconhecimento da sua utilidade, pelas pessoas, a começar neste caso, pelos algarvios. Está nas mãos das comunidades que reclamam estas artes como a sua tradição, o seu património e identidade, de darem o exemplo na prática. Dar o próximo passo – elevar – é usar os produtos artesanais locais no seu dia-a-dia, com naturalidade. Sem preciosismos ou nostalgia, mas pelo valor real que têm. Passar a usar em nossas casas os produtos feitos artesanalmente e localmente. Como diz Octavio Paz «Feitos pelas mãos e para as mãos». ¶ Ao mesmo tempo é preciso exigir mais no modo como se apresenta a cultura regional. Entramos em lojas de «artesanato regional» que não têm um único produto do Algarve. Isto diz muito de como valorizamos aquilo que temos e fazemos. E não podemos esperar que os visitantes respeitem a cultura local quando os locais não se reconhecem nela. Que projectos tem nas mãos, neste momento, o The Home Project Design Studio? Estamos a lançar uma iniciativa própria para as artes tradicionais. Recentemente redigimos, a pedido do Ministério da Cultura, a Estratégia Nacional para as Artes e Ofícios tradicionais – Saber-Fazer Portugal. Este desafio envolveu uma reflexão profunda sobre o estado da(s) arte(s) e o que é preciso ser feito para o seu reconhecimento e legitimação. Foi uma forma de revisitarmos o nosso percurso, o trabalho de campo, o que vimos e ouvimos de tantos artesãos e artesãs. As questões sobre a comercialização justa e comunicação eficaz, que deve contribuir para uma preservação focada na prática e na utilização mais corrente dos produtos

artesanais. Isso levou a uma conversa mais alargada com pessoas com quem colaborámos ao longo do tempo e decidimos constituir uma associação para lançar o projecto Origem Comum, uma iniciativa dedicada às práticas situadas (origemcomum.com). ¶ Para além de desenvolver os próprios projectos e colaborar com entidades públicas e privadas, tem também o desígnio de tornar acessíveis muitos produtos e conhecimento que estão fora de alcance ou não encontram lugar nas plataformas existentes. Pelo que a loja online está para muito em breve. ¶ Estamos também a criar uma coleção de produtos para hotelaria e chefes, a Table Basics – que começará por ser só B2B. Consiste num stock de utensílios de mesa e de cozinha da nossa seleção, feita um pouco por todo o país, em manufaturas e oficinas de artesãos que conhecemos. Alguns são já propostas nossas mas a maioria são coisas existentes. A ideia é dar a conhecer, especialmente aos chefes, utensílios para servir e degustar feitos com materiais como barro vermelho ou preto, a ardósia, madeiras de oliveira ou esteva, cortiça, sal-gema, etc. Para além de serem bonitos e agradáveis de manusear há muito por explorar nas caraterísticas destes materiais que pode levar a experiências gastronómicas diferentes. Já vimos isso a acontecer e queremos proporcionar mais possibilidades. ¶ São produtos e materiais naturais feitos manualmente ou em pequena escala. É outra coisa cozinhar e comer nestes materiais e nas formas feitas uma a uma. ¶ O que queremos é levar de novo esta cultura material à mesa e à cozinha e ser inspirados com isso. Com a relação próxima que temos com tantos artesãos, temos muita facilidade em desenvolver produtos novos. Pequenas séries, formas complexas, experiências – são as vantagens de produção manual. ×

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crónica texto virgílio nogueiro gomes

Algarve…

Algarb, o termo com o qual os que os árabes designavam o ocidente ou poente, e na versão de outros seria a terra plana e fértil que hoje chamamos Algarve. Mas, mais importante do que o termo, é a herança deixada pelos magrebinos que aqui viviam e deixaram tradições. ¶ A identidade culinária e gastronómica deste território ainda é evidenciada pelas razões da Natureza, mas, especialmente, pelos seus habitantes. E não é só na doçaria onde essa herança é mais visível, apesar da onda de modernidade fácil que o turismo precipitou em alguns locais. ¶ E os doces, essa tentação permanente, manifestam-se pelo trabalho da amêndoa com o açúcar e que levou o que D. João I, em 1404, iniciasse a plantação de cana de açúcar por um genovês, atividade sem sucesso. Essa busca por açúcar, produto raro que os árabes já dispunham e comercializaram, foi um propósito continuado e, D. Afonso V, em 1452 autoriza a primeira fábrica de açúcar na Madeira. ¶ Mas o Algarve não se faz só de doces, e é pena que alguns não subam o território provocando mais prazeres. Ninguém como o Algarve para a exaltação do massapão! E todos os seus docinhos que, à mesa, parecem poesia visual para o corpo e para a alma. Alguns convento do Alentejo também aprenderam, mas raramente o massapão é uma base. ¶

Para além da riqueza piscícola algarvia, e o melhor é cozinhar o menos possível, exceto para gloriosas caldeiradas, há marcas que dividem o Algarve em várias cozinhas, esquecendo-nos muitas vezes das suas cozinhas montanheiras, de S. Brás de Alportel ou Monchique. Para além do peixe, o polvo inigualável e as lulas cheias, para além do marisco. ¶ E vejamos alguns produtos diferenciadores em relação às confeções tradicionais como no cozido no qual o grão de bico e a abóbora são evidentes. O milho, em pouco pão, mas gloriosamente em papas ou xerém, ou ainda do afamado «Jantar». E as variadas pernas de cordeiro no tacho? O Algarve é, possivelmente, a região portuguesa onde se come menos carne de porco, evidência do território onde ao árabes se mantiveram por mais tempo. E, não deixa de ser atual, a discussão sobre a origem da «Carne de porco com amêijoas», em disputa com o Alentejo. ¶ Temos sido muito redutores em relação do conhecimento e consumo das cozinhas regionais do Algarve. Caminhemos para essa descoberta tendo em conta, também, que muitos restaurantes de cozinha contemporânea apostam nos produtos locais. ¶ Vamos à descoberta destas cozinhas e teremos surpresas agradáveis e de muito prazer. ×

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«The Fig Bang Theory» de Dave Palethorpe, Humberto Mouco, Cinco Lounge, Lisboa, 2021




Concursos de cozinha, pastelaria sala e bar

Fórum “Que gastronomia para o futuro de Po�tugal?”

#JOVEMTALENTODAGASTRONOMIA

InscriÇÕEs a partir do dia 26 de Abril www.jovemtalentodagastronomia.pt






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I N T E R M A G A Z I N E #interfoodanddrinks #271 / 2021 trimestral janeiro — março director Paulo Amado pvp continente € 7,5 issn 0873-531x


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