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Humberto Mouco, Trรกs-os-Montes, 2019



Alexandre Silva, «Cinema Paris», Lisboa, 2008




Há lutas que se travam com calma e com tempo. ¶ Não é do dia para a noite que um espaço queer se torna um membro querido de um meio envelhecido. ¶ A Mafalda Pando abriu o Mafalda’s em 2013. Um espaço para chás, bolos, almoços e lanches tranquilos. Em 2015, a irmã Inês Pando veio ajudar e mais tarde trouxe a Vera e o Miguel. Há muito tempo parte integrante e ativa do tecido queer do Porto, através da Groove Ball (uma festa que celebra o orgulho gay com a invocação da estética ballroom nova iorquina, com drags e concursos de voguing), este trio abriu ainda um atelier do seu coletivo artístico no Mercado de Matosinhos. O atelier Sem Título 2018 foi um dos vencedores do prémio Novo Banco Revelação em 2018 o que os levou a expôr em Serralves. As cores do seu orgulho e da sua arte foram, cada vez mais, tingindo o dia-a-dia do mercado e o menu do Mafalda’s. Este espaço é agora também sinónimo de diversidade cultural, de opções e de sabores. ¶ Hoje, há um bonito arco íris no Mercado de Matosinhos. × Tiago Lessa «Mafalda’s – A Guerrilha Queer do Mercado», novembro 2020


editorial

Fundada em 1989 por António Esteves inter magazine

Nós As Pessoas O terceiro trimestre de 2020 trouxe aprofundamentos duros. À medida que os números aumentaram, as medidas de contenção da movimentação humana apertaram. Foi decretado o Estado de Emergência, a restauração saiu à rua num sinal sem par e, à data em que vos escrevo, há manifestações já realizadas e outras agendadas em diferentes partes do país. Continua a faltar coordenação e uma voz comum. Não se sabe do desfecho, mas sabe-se que há muito sofrimento e restaurantes a fechar. ¶ Toca-nos a todos, sem excepção, a crise sanitária e o perigo de vida, a crise económica em construção e o perigo de não existirem as nossas empresas, os nossos postos de trabalho. Sendo este mundo da gastronomia já tão intenso, o Covid 19 veio adensar tudo. A pressão sobre as pessoas é enorme e por isso nasce o Compromisso Nós As Pessoas que foi tema do Congresso dos Cozinheiros. ¶ É preciso destacar as pessoas, ajudar à reestruturação dos modelos de relacionamento e liderança, é preciso apoio concreto e individual. E são estas as bases do trabalho em curso ao qual a INTER magazine se associa. × paulo amado

Director: Paulo Amado Chefe de redacção: Sónia Alcaso Fotografia: Humberto Mouco Fotografia capa: Theo Gould Design gráfico: RPVP Designers colaboram nesta edição Catarina Amado, Cristiana Morais, Dave Palethorpe, Destroy Trash, Luís Antunes, Ricardo Dias Felner, Thays Peric, Theo Gould e Virgílio Nogueiro Gomes. Propriedade: Paulo Amado Rua Diogo do Couto, n.º 1, 1.º Esquerdo 1100-194 Lisboa, Portugal Nif. 182 809 110 contactos eg@egosto.pt www.egosto.pt +351 218 822 993 publicidade comercial@egosto.pt +351 218 822 993 venda por assinatura assinaturas@egosto.pt +351 218 822 992 Publicação trimestral Tiragem: 4000 exemplares Impressão Acabamento: Grafivedras Artes Gráficas Lda. design@grafivedras.pt Estrada Nacional 247, Km 36, n.º11, Escravilheira, 2560-191 S. Pedro da Cadeira, Torres Vedras venda por assinaturas mj/sg/nrocs n.º113499 depósito legal: 21.947/88, issn: 0873-53 lx Membro aind — Associação Portuguesa de Imprensa redacção e edição Edições do Gosto Publicações, Unip, Lda npc: 505 957 221 Registo na Conservatória Comercial n.º 10787 Capital social: 100.000 euros Rua Pereira Henriques, 1, Espaço 11H 1950-242 Lisboa, Portugal +351 218 822 992 consultar estatuto editorial em: http://www.egosto.pt/ estatuto-editorial-inter-magazine/ edições do gosto Ana Gouveia, Andreia Gomes, Catarina Amado, Paulo Amado, Rita Cupido, Sílvia Alves, Sónia Alcaso, Susana Hurtado. Com Humberto Mouco, Mário Batista, Vânia Rodrigues e Vítor Paulino. interdita a reprodução de textos e imagens sem o devido consentimento



destaques

29 O casal Bruno Caseiro e Filipa Gonçalves já tem também uma Cavalariça em Lisboa. O novo espaço já está a seduzir o palato de mais portugueses, à semelhança do que tem feito a irmã mais velha, uma antiga cavalariça convertida em espaço de refeições na Comporta.

27 A inauguração do 9b, de Guilherme Spalk, tem agitado a Graça. O restaurante fine dining, no primeiro andar do Via Graça, tem praticamente tudo: comida sofisticada, ambiente intimista e uma vista extraordinária para o rio Tejo.

22 A pandemia atrasou a chegada do Cura a Lisboa, mas ele já está cá! O restaurante de fine dining de Pedro Pena Bastos foi pensado ao detalhe, em linha com o tipo de cozinha que o chefe portuense defende: simplista e em harmonia com tudo o que está à sua volta. inter magazine


33 Luís Barradas, em Dezembro de 2019, tornou-se chefe executivo do restaurante Okah. Luís Antunes apanhou-o e lançou-lhe as suas perguntas para uma Entrevista Mundana. Veja se o chefe setubalense se saiu tão bem como a tratar do pescado e marisco portugueses!

48 No ano em que celebra o seu 15.º aniversário, o Congresso realizou-se de 10 a 12 de Novembro, em Oeiras. Quem não assistiu online, pode ver agora, nesta edição, o Especial CNC. Debates, conversas, reflexões, entrevistas e muitas fotografias que retratam as emoções que se viveram!


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Retrato de dois

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olhares a azul e branco pelos Aรงores 13


destaque A INTER magazine voltou aos Açores desta vez para conhecer as propostas gastronómicas do Santa Bárbara Eco-Beach Resort e do White Exclusive Suites & Villas. Pelo meio, parou por algumas dais mais belas e escondidas pérolas açorianas. Eis o relato de uma viagem a cores por São Miguel.

O avião pousa suavemente no pavimento. Lá fora, céu limpo, o azul e o verde característicos. Estamos em São Miguel, nos Açores. A vista de há pouco mostrava uma paisagem montanhosa que de perto é uma beleza aos olhos. Respiramos fundo – ainda que por detrás de uma máscara agora necessária – e seguimos caminho. Primeira paragem: Santa Bárbara Eco-Beach Resort. É um projecto que nasceu em 2015, pelas mãos do casal de empresários João e Catarina Reis, com um total de 30 villas e studios. «Ter tempo é um conceito de luxo», diz-nos João ao jantar no dia seguinte, frase que parece resumir bem a essência do hotel, perante uma paisagem imperativa e um mar de ondas revoltadas, em contraste com um areal negro. Sinal do tempo. E do vento – que viria a marcar os dias seguintes da visita. ¶ Manuel Dias, director de comidas e bebidas do hotel, é quem nos bem recebe na chegada. Manuel não é filho da terra mas é como se fosse e jura saber de cor os caminhos que circundam as cascatas mais exclusivas dos Açores. Chegou há mais de um ano para chefiar a cozinha do irmão mais novo do Santa Bárbara, o hotel White Exclusive Suites & Villas, mas depressa ascendeu de posição. Antes dos Açores, era chefe e proprietário do restaurante Raízes, nas Caldas da Rainha, de onde é natural. Manuel é da natureza, do surf, do mergulho, da pesca submarina e de todas as actividades aquáticas existentes e, por isso mesmo, não demorou até se apaixonar por São Miguel. É ele quem nos acompanha numa primeira vista à horta do Santa Bárbara, construída durante o confinamento no início desde ano. Ao seu lado, está Pedro Pacheco, o homem da parte agrícola e responsável pela Quinta da Paródia que fornece o hotel com alguma sua criação de animais. Pacheco fita a asa do parapente e afiança que é pessoa de conhecer os ventos. Os mesmos que subindo a encosta, tocam com mar as papaias.

Manuel acredita que tapando as protege, ele não sabe. Encontraram um no outro o parceiro ideal. ¶ «Queria muito testar esta terra, perceber que sabores ganhava. Cresce muita coisa aqui com muita facilidade mas também há muitas coisas que queimam devido à proximidade com o mar», explica Dias, apontando para o horizonte. Abóbora, meloa, alface, manjericão (verde, roxo, lima), curgetes, pepinos, couve-galega e ervas aromáticas são algumas das coisas que ali nascem e são utilizadas nos restaurantes do Santa Barbara e do White. «Vamos buscar a produtores locais ingredientes como batatas e cebolas. Mas cerca de 70% do que utilizamos nos nossos espaços de restauração já vêm desta horta.» O propósito do projecto é fazer nascer aquilo que «não arranjamos cá em termos de hortaliças e vegetais». Na horta é utilizado o método de cultivo no dig que usa a matéria orgânica como adubo natural directamente na superfície do solo sem o escavar, com uma cobertura pelo menos 5-15 centímetros de altura separada por uma camada de cartão que ajuda na prevenção de ervas daninhas, explica-nos Pedro. ¶ Com a chegada da noite, estamos agora pousados nos sofás que medeiam o espaço entre a recepção do Santa Bárbara e o restaurante. O imenso Atlântico, entra pelas janelas grandes, de onde estamos, ligeiramente subidos, maior é o céu. Hoje há nuvens e dois casais sentam-se nas espreguiçadeiras. Setembro de vento e quase que chove. Amanhã talvez. ¶ O Benjamim Luís é o bartender. Pousa o seu cocktail. Apresenta-o com xarope de baunilha e rum negro. Levanta um copo que tapa uns paus de canela fogueados. Entre fumo e um sorriso, sai de cena dizendo: cheers. Ao Pedro que antes já tinha dito que o seu porco vietnamita era um pet, perguntamos se é assim. Ele diz que sim e discorre sobre o tema, da proximidade ao Canadá e aos Estados Unidos

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Manuel Dias




AndrĂŠ Santos e Marta Milagres


AndrĂŠ Fragoeiro


destaque e daí que na linguagem corrente os inglesismos são comuns. ¶ Já na mesa do Santa Barbara Restaurante, Dias apresenta-nos André Santos e Maria Milagres – um casal de chefes, ele cozinheiro, ela pasteleira – vindos do Penha Longa Resort para a nova fase do restaurante de vertente oriental que ali antes existia. «Aterrámos no primeiro dia do ano de 2020 e apaixonámo-nos logo por este sítio, pelos seus produtos», começa por dizer André, que até então só tinha visitado os Açores uma única vez. ¶ Nesta nova fase, os chefes têm mais mão no produto, com a utilização somente de peixe local («estamos rodeados de mar, conseguimos trabalhar com produto espectacular») na carta agora mais direccionada ao lado oriental. «O anterior menu era mais uma mistura de conceitos, não se percebia bem a identidade. Com a minha vinda, retiramos isso e ao sushi, acrescentámos uma vertente de pratos quentes», refere Santos. Yakitori (asinha de frango com molho teriyaki), okonomiyaki (panqueca japonesa de vegetais), baos (vaca, peixe e vegetariano), gunkans, nigiris, sushi e sashimi, pla neung (peixe local ao vapor com gengibre, soja, vegetais e puré de batata doce), caril vede com camarão e butajaga (bochecha de porco, mandioca, puré de cenoura e gengibre) são alguns das iguarias presentes na carta. Nas sobremesas, a pasteleira Maria privilegia o uso do produto local como a banana e o ananás mas em breve espera introduzir sabores «mais orientais». White, o branco do azul dos Açores A referência foi feita em cima e na viagem da INTER de quatro dias pelos Açores, o White Exclusive Suites & Villa foi o nosso segundo ponto de visita. A conexão com o projecto irmão é óbvio – partilham o mesmo sentido de exclusividade – mas no White esta só aumenta. Desta vez, quem nos acompanha pelo espaço do hotel, inaugurado em 2017, é João Almeida, guest relations da propriedade e o principal guia dos hóspedes pelas maravilhas do Açores. «No final do dia, queremos que os hóspedes saíam do hotel

e sintam que tiveram em casa de amigos», diz-nos ao mesmo tempo que oferece o seu abraço invisível (porque os tempos assim o exigem), que só a hospitalidade consegue presentear. ¶ Ao contrário do Santa Barbara, o White alberga apenas nove suites e villas. O edifício está construído sob uma rocha que permite encarar de frente o atlântico. João e Catarina inspiraram-se numa viagem a Santorini, na Grécia, para criar a ideia para o hotel. Na chefia do pequeno restaurante do White, de nome Cardume, está André Fragoeiro, que viajou directamente do 100 Maneiras, em Lisboa, para abraçar a experiência, a convite de Manuel Dias. «Estava a trabalhar demasiado e queria acalmar um bocadinho, ter mais tempo para mim. A minha vida aqui permite-me ter isso», começa por dizer André. Nos primeiros meses, confessa que foi desafiante «interiorizar» o ritmo calmo da ilha e do restaurante. «No início era eu e o Manuel Dias na cozinha. Passados seis meses, ele assume a direcção de comidas e bebidas dos dois hotéis e passei a ser só eu, um cozinheiro e uma copeira. Eu estava habituado a equipas grandes e a dar 160 jantares por dia. Aqui damos 10 ou 15», explica. A cozinha do Cardume é experimental e feita dia a dia, sem planos – os menus de 4 ou 8 pratos são sempre surpresa. O único limite é o produto de temporada. É um autêntico playground que André leva a sério e que lhe abre caminhos para explorar. «Vou muitas vezes a bosques e a matos apanhar cogumelos, ervas. Depois faço testes como fermentações e xaropes. Tenho também uma máquina de maturação que permite trabalhar peças de carne e fazer outras coisas derivadas como presunto ou cecina», refere com um claro entusiasmo. Os cadernos onde Fragoeiro aponta todas as suas receitas desde que chegou à ilha já formam uma pilha, sinal da inspiração diária que os Açores oferecem. «Poder aplicar ideias novas todos os dias faz com que não esmoreças. Além de que tens sempre cobaias», sorri. Os clientes, diz, aceitam bem os pratos do chefe e, muitas vezes, até repetem a experiência por vários dias seguidos, o que lhe deixa agradavelmente satisfeito. ×

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destaque

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A vinda do portuense Pedro Pena Bastos para Lisboa, com a abertura do intimista Ceia, deu a conhecer a sua cozinha à cidade. Antes disso, ainda mais jovem, brilhou no Alentejo, no restaurante Esporão, em Reguengos de Monsaraz. O seu segundo projecto na capital, Cura, resulta de uma parceria com o Ritz Lisboa, icónico hotel da capital com 61 de história que já há muito pretendia apostar num segundo restaurante de fine dining para se juntar ao emblemático Varanda. Apesar da associação a uma grande estrutura, o Cura é um restaurante bastante independente, garante o chefe, que refere que a sua (cura)doria está presente desde o início do trabalho que se iniciou há pouco mais de um ano. Com os atrasos que a pandemia provocou, o Cura inaugurou apenas recentemente mas foi-se consolidando através de pequenas «afinações» essenciais, conta o responsável. Ao entrar pelas portas do novo espaço, a arquitectura de Miguel Câncio Martins

não nos deixa esquecer que estamos no clássico Ritz, apesar do contraste evidente com a cozinha jovem de Pedro, com 30 anos, e da sua equipa composta por alguns talentos da casa-mãe, como o pasteleiro Diogo Lopes e a sommelier Gabriela Marques. O Cura é um fine dining assumido onde tudo foi pensado ao detalhe, da música ambiente à textura da mesa que ali se apresenta despida. «Todos os pormenores foram pensados em linha com o tipo de cozinha em que acredito, que é cada vez mais simplista e integrada com o material onde coloco a comida», explica o chefe que garante que a sua filosofia de cozinha continua a ser a mesma de sempre, ou seja, tendo como foco os produtos de época e nacionais mas agora «com um certo arrojo em termos de técnicas e métodos». É uma nova versão de Pedro Pena Bastos que no Cura se apresenta, numa evolução de um jovem chefe que parece não parar por aqui. ×

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A nova Cura do Ritz Lisboa por Pedro Pena Bastos 23


Cristiana Morais, Panorâmico de Monsanto, Lisboa 2020


Cristiana Morais, Making of vídeo «Pray for Me», Lisboa 2020


destaque

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O Via Graça de Guilherme Spalk Quando surgiu o convite por parte do proprietário João Bandeira para chefiar o histórico Via Graça, com 32 anos de história, Guilherme Spalk não hesitou em aceitar o desafio e desde logo, entusiasmado, começou a cogitar uma nova carta para o restaurante, que aplicou de seguida. O que o jovem chefe não previa é que essa primeira mudança não caísse bem junto dos ávidos clientes da casa. «Percebi o peso que o restaurante tinha na cidade e que não podia retirar aos clientes os pratos que eles gostavam de comer. Ao mesmo tempo, em conjunto com a direcção, achámos que era importante acrescentar uma nova proposta, criar um novo espaço com uma carta mais contemporânea e é aí que surge a ideia para o restaurante 9b, no primeiro andar do Via Graça», começa por explicar o chefe. No final de 2019, as obras de remodelação do espaço tiveram início, no entanto a pandemia impediu que estas ficassem concluídas

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mais cedo. Em Setembro, com uma nova decoração mas a mesma vista privilegiada para o rio Tejo, reabriu primeiro o clássico Via Graça, um restaurante que honra a cozinha portuguesa em que agora não faltam os clássicos da casa, caso dos croquetes, dos estufados, do bacalhau, da açorda e do polvo que se juntam a uma vasta garrafeira e vinhos e a um renovado bar de cocktails. O feedback positivo da nova vida do Via Graça foi importante para a inauguração do 9b, um restaurante que se encaixa na categoria do fine dining e onde prevalecem as memórias do chefe, com uma carta de dois menus de degustação composta por pratos «mais arrojados, sabores menos prováveis e produtos sazonais». Com os olhos postos no futuro, do alto da Graça, o chefe de 30 anos prevê um restante ano desafiante, com a certeza porém de que continuará a honrar a história do mítico Via Graça através de duas diferentes vias que se complementam. ×


em foco

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Cavalariça em Lisboa

Lisboa já tem também a sua Cavalariça! Fica situada próximo da Praça de S. Paulo e do Mercado da Ribeira, e, nas mãos do casal Bruno Caseiro e Filipa Gonçalves, prepara-se para agitar os paladares de mais portugueses, à semelhança do que tem feito a irmã mais velha, uma antiga cavalariça convertida em espaço de refeições na Comporta. ¶ A lisboeta abriu portas a 24 de Novembro e, para já é uma versão «pop up», durante uns meses, enquanto aguardam a abertura – prevista para Outubro do próximo ano – de um espaço próprio já adquirido, no Largo do Camões, que se encontra em fase de licenciamento. ¶ Abrir um novo restaurante nestas circunstâncias relacionadas com a actual conjuntura foi um acto de coragem, de oportunidade e também de união. «Esta vinda agora para Lisboa surgiu não só de uma oferta que nos fizeram, mas também da necessidade de não dispensarmos ninguém que trabalhasse connosco. Não queríamos libertar a equipa que tínhamos e esta foi a forma de a manter unida. Caso contrario, teríamos de dispensar parte das pessoas; assim dividimo-las em duas equipas - uma continua na Comporta e outra veio para aqui», explica Filipa Gonçalves. O espaço, onde anteriormente existia o Optimista, estava apto a funcionar e isso facilitou todo o processo de instalação, sem grandes investimentos. ¶ A nova Cavalariça dispõe de 32 lugares em mesas pequenas, o que os fez elaborar uma carta com

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um conceito diferente do da Comporta. «Os pratos não são propriamente para partilhar, como lá; aqui é mais um estilo bistrô, a aposta é em doses individuais», conta Filipa. Contudo, os pratos que têm sido best-sellers, desde que a Cavalariça abriu na Comporta, em 2017, chegam também à capital. É o caso do Brioche Torrado, Parfait de Fígados de Galinha e Chutney de Laranja ou o Mil-Folhas de Batata. Igual mesmo, é a prioridade que dão aos produtos portugueses, sempre sazonais. ¶ Nos próximos tempos, Bruno Caseiro irá aguentar as rédeas das cozinhas de Lisboa e Comporta. A primeira Cavalariça, apesar da crise, continua a ser «um sucesso», sobretudo ao fim-de-semana. «A sazonalidade da Comporta tornou-se pouco relevante – ainda que a época baixa seja sempre mais complicada», refere Filipa, salientando ainda que, devido à pandemia, os próprios clientes mudaram. «Agora, 80% dos nossos clientes são portugueses, antes eram estrangeiros». ¶ A Cavalariça de Lisboa está aberta de terça a sexta-feira, aos almoços (há um menu fixo de almoço, em paralelo com a carta) e aos jantares. Para já, não abrirá aos fins-de-semana devido ao actual estado de emergência. O momento complicado para a restauração que se vive deixa uma apreensão generalizada em todos os empresários, mas Filipa mostra-se optimista. «A restauração tem de ser criativa, arranjar sempre formas inovadoras de se manter». ×




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Luís Barradas nasceu em Setúbal em 1976. Aí estudou turismo e comunicação social antes de ir para Londres onde estudou cozinha no Westminster College, enquanto trabalhava no sector. Interessou-se por cozinha japonesa e iniciou a sua formação com um estágio no restaurante Suntory. Foi consultor em Espanha e França, depois abriu os dois primeiros restaurantes japoneses de Marrocos. Regressou a Portugal e durante 10 anos foi o responsável pela Cominport, hoje Keta Foods, empresa que distribuía produtos e equipamento para restaurantes japoneses. Foi chefe de cozinha e gestor em vários projectos, antes de em Dezembro de 2019 se tornar o chefe executivo do restaurante Okah.

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Com que idade aprendeste a andar de bicicleta? Qual a tua maior façanha? Devia ter uns seis anos quando comecei a andar sem rodinhas. A maior façanha foi descer o «picadeiro,» uma descida vertiginosa cheia de ravinas que liga Setúbal ao Parque da Comenda pela serra, já com uns 10 anos, na minha Tip Top Vilar laranja. Diz-nos um filme que vale a pena ver mas só em casa, não vale o preço do bilhete de cinema. E outro que só se possa ver no cinema. E já agora, um filme que te recusas a ver e porquê. Adoro filmes, dos mais série C possível aos de Hollywood, sou muito boa boca em filmes, mas respondendo à primeira pergunta «O Dentista». «O Avatar» em casa não tem o mesmo impacto. «Universidade do prazer» com a Paris Hilton… acho que é óbvio. Na tua viagem mais longa, quanto tempo durou a escala mais curta? Conta. Foi quando fui ao Alasca e fiz escala em Londres, era tão curta que perdi o avião e tornou-se na mais longa, só pude sair de Londres no dia seguinte. Escolhe um sítio para viver, sem ser Portugal. Koh Tao, Tailândia. Gostas de futebol? Qual o golo mais bonito que viste? Se fosses jogador que número escolherias? Gosto, mas não sou fanático. O golo mais bonito foi o do Figo, quando marcou o primeiro golo frente à Inglaterra no campeonato da Europa em 2000. Eu vivia em Londres na altura e estava num pub cheio de ingleses e nós éramos 4 ou 5 portugueses. Mas correu tudo bem, todos nos deram os parabéns no final, quando ganhámos 3-2 depois de recuperar dos 0-2. Descreve o teu dia de folga perfeito. Mergulho na praia de manhã cedo, de preferência com botija, salmonetes no Bataréu em Setúbal ao almoço, passeio de mota depois de almoço pela Costa Vicentina, em especial São Torpes até Porto Covo, jantar no Marquês, e ver um filme até adormecer. Diz-nos uma coisa que te provoca uma irritação insuportável. Esperar por qualquer coisa, seja no trânsito ou em alguma repartição de finanças. Não podia acontecer mas aconteceu. Estás a 300km de casa quando descobres que te esqueceste do telemóvel. Hoje vai chegar aquela chamada/mensagem pela qual andas a suspirar há semanas. Que fazes? Entrego-me aos desígnios do Universo, acendo um cigarro e peço mais uma cerveja fresquinha. × 33




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Thays Peric nasceu em 1984 em São Paulo SP, no Brasil. Estudou dança contemporânea e depois fotografia na Universidade Anhembi Morumbi. Trabalhou em São Paulo durante 7 anos, como fotógrafa, professora e bailarina em várias companhias de dança contemporânea e hip hop. Veio para Portugal em Fevereiro de 2019 e tornou-se fotógrafa freelancer, fazendo entre outras coisas fotografia de colegas bailarinos. Participa no projecto de intervenção artística chamado Sonic Voyaging, experiências de improviso em cena com bailarinos e músicos.

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Qual a tua foto mais dançada? E qual a dança mais fotogénica? Minha foto mais dançada é aquela que o movimento se mistura através da imagem, propondo uma continuidade do movimento que atravessa os pensamentos. A dança mais fotogénica é aquela que transborda felicidade e amor através do movimento. Entre São Paulo e Lisboa, quais as semelhanças e quais as diferenças maiores? Nas duas a cada canto descobre-se uma paisagem nova com grupos de pessoas pertencentes aquele lugar, ou seja, que fazem daquele lugar, um lugar único. É o que me encanta nestas duas cidades, a percepção de que as «pessoas» (de origem local ou imigrantes) que viveram ou vivem nela, formam a identidade da cidade. Diferenças inúmeras, mas vou citar a área artística, a qual represento. A representatividade afro-brasileira e dos povos originários está cada dia mais ganhando força no espaço artístico. O que me orgulha muito! A variedade de danças populares brasileiras existentes e sobreviventes no país são mais de 150 tipos, passados de geração a geração e se transformando através dos jovens nesta era contemporânea. Estudadas e dançadas nos grandes teatros e ruas do Brasil com a pluralidade dos corpos existentes. Um grande avanço artístico se faz através dessas intervenções culturais e históricas. Já aqui em Lisboa ainda vejo corpos brancos, magros e jovens a dançar em companhias no teatro. A «movimentação» também permanece muito tradicional ao modelo europeu, porém vejo um «olhar» de alguns artistas em processo de desconstrução, para fugir dos padrões da «estética» dançante e ousando novos caminhos para se descobrirem como outra forma de pensar e fazer dança. Os portugueses comem sílabas e fecham as vogais. Depois de 22 meses em Portugal, que palavras ainda não consegues compreender? Algumas palavras mais antigas, porém algumas ainda reconheço, pois minha avó é portuguesa. Porém sempre estou a aprender uma palavra nova, como você usou em uma das perguntas «arrefeça», não conhecia. Que tema gostas mais de fotografar? O que procuras numa foto? Qual a foto da tua vida? É tua? Amo fotografar pessoas em seu estado natural e espontâneo. Então procuro sempre me camuflar entre o foco da lente e a imagem real, para congelar o momento e encontrar nela a simplicidade e a verdade que o presente me revela. Tenho muitas fotos preferidas, pois cada momento tem um espírito, cor, cheiro diferente que remetem muitas memórias. Mas a que mais me inspira por revelar um estado de pureza é minha própria fotografia de quando era miúda, tirada pela melhor fotógrafa intuitiva que é minha mãe. Qual o teu prato preferido e quem o faz melhor? A feijoada brasileira e nhoque italiano com a massa e molho feito em casa. Meu pai era a melhor pessoa que se reinventava na cozinha, era sempre uma festa, porque virava bagunça, brincadeira e muitas risadas. A comida era sempre mais gostosa. Quando fotografas comida e a seguir vais comer, o que te preocupa mais, que a foto fique bem, ou que a comida arrefeça e perca o ponto? A preocupação é sempre que a foto esteja à altura do sabor da comida, ou seja, perfeita nas cores e texturas. A foto deve transparecer toda a sua riqueza de sabores. Depois me preocupo em saboreá-la, afinal eu já comi com os olhos, né?! Numa coreografia, escolhe partes do corpo para colocar (micro-)câmaras e filmar. Descreve o resultado final. Depende da pesquisa que o meu corpo irá dialogar para depois se desenhar em forma coreográfica. Quando imaginamos micro câmaras em uma parte do corpo, por exemplo a orelha, muitos movimentos inimagináveis nascem a partir daquele estímulo e através disso se inicia uma dramaturgia do corpo em movimento. É mágico e revelador de como o nosso corpo é criativo e inovador. Partilha connosco um sítio secreto onde se possa ir para pensar. Parque das Nações, debaixo da ponte Vasco da Gama, acho este lugar poético, me traz a reflexão de que a arte pode estar em tudo o que vemos, mas é preciso um artista para conectá-la e transitar nela, transmutando e re-significando o modo de fazer e ver. × 37




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Do you prefer to cook or to eat? Has it happened to you that you finish cooking for someone and you can’t resist and eat it yourself? I’m not going to lie, I enjoy cooking the most when I’m cooking for myself… #selflove Explain to us your level of Portuguese language: listening, speaking. Are you one of those Brits that understands everything but doesn’t give that away and so secretly checks on us? I’m ashamed to say that my level of Portuguese is not as good as it should be but it is much better than it used to be. I would probably keep it a secret if I could speak Portuguese fluently. Tell us about your food: influences, favourite ingredients, style, techniques? What Portuguese trait influenced you the most? I draw influences from all over the place when it comes to my cooking but I do have a love of Mexican & Asian cuisine. I really love the relationship between the Portuguese and their food in particular with ingredients… The culinary culture here is strong. Are Portuguese difficult at the table? What’s the weirdest command you have ever received? Hmmmm… let’s just say they are not as bad as the French. As for weirdest command… I don’t really get too many silly requests from customers. I think they are scared of me. What’s the best wine you ever tasted? Do you have a preferred wine region, or style of wine? When I tried Vinho verde for the first time my mind was blown… I have a dirty secret, my favourite bottle costs €1.60 from Pingo Doce. Describe a food match that will never work, another that seemed to be really stupid and then worked, and another made in heaven. I don’t think I’m in the position to say something would never work… but I was surprised when I tried chocolate, mushrooms and beetroot together for the first time. If you were to make a food truck, what would you cook and where would you park and open it for service? I’m too tall for a food truck… but I would love to have a beach bar and grill someday. ×

Shay Ola was born in 1979 in London, of Nigerian descent. He defines himself as an European culinary nomad, experimental chef, creative food & drink consultant, product developer and the founder of The Rebel Dining Society, which for a decade established itself as a driving force in the conceptual dining and event scene in Europe. Shay has worked in London, Paris, Berlin, Lisbon and beyond and continues to work with brands and creative agencies across Europe and beyond to develop promotional, interactive and experiential marketing concepts, food and beverage products, innovative menus and pop-up events. He is currently based in Lisbon, and is the man behind Queimado, a hip neighbourhood restaurant and bar located in Bairro Alto. Shay’s new project STATIC, Lisbon’s first audiophile bar and lounge, opened in Sept. 41




«Salty Autumn» de Dave Palethorpe, Humberto Mouco, Cinco Lounge, Lisboa, 2020





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Congresso Nacional dos Cozinheiros 2020 Oeiras, em 2020/21 é a Capital Europeia da Cultura Gastronómica. Um orgulho para a cidade que procura assim consolidar o concelho como um centro gastronómico permanente a nível nacional e internacional. O apoio ao Congresso dos Cozinheiros, este ano, foi inevitável. «Para nós foi um gosto e uma honra receber o Congresso dos Cozinheiros», afirma Francisco Rocha Gonçalves, Vice-Presidente da Câmara Municipal de Oeiras, salientando também a importância da gastronomia na nossa cultura. «A gastronomia está ligada às nossas origens, ao que fomos comendo ao longo do tempo e a comida é sempre uma forma de juntarmos pessoas, mantermos e gerarmos tradições». ¶ Foi no Largar dos Azeites do Palácio Marquês de Pombal, em Oeiras, que decorreu a 16.ª edição do Congresso dos Cozinheiros, desta vez com transmissão online chegando, de forma gratuita, a uma audiência muito mais vasta. Segundo a organização, nos três dias contabilizaram-se 21 mil visualizações online. «O momento actual é um desafio enorme e o Congresso dos Cozinheiros continua a ser o que sempre foi: um palco para a partilha culinária e para a reflexão em torno de questões fundamentais do sector», refere Paulo Amado, das Edições do Gosto. E porque este ano nunca o futuro esteve tão cheio de incertezas, o evento centrou-se no tema «#Nós as pessoas». «Os restaurantes precisam de pessoas, do convívio, da expressão da cultura e, claro, também de negócios. São as pessoas que poderão ajudar o sector a sobreviver», explica Paulo. ¶ Os restaurantes têm sido um dos sectores mais afectados pelas restrições, mas a mensagem é de optimismo. Tanto para a economia como para a política. «Este é um tempo finito, não é o nosso contexto», refere Francisco Rocha Gonçalves. «Temos de resistir e ser resilientes; temos de ter coragem, sabedoria e inteligência ao olhar para estes acontecimentos e saber que isto vai passar. Só saímos de crises desta natureza em conjunto». ×

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Impacto actual da pandemia A pandemia está a alterar o panorama da restauração em Portugal. Por trás de cada porta de restaurante fechada e de cada decisão difícil de tomar estão pessoas a aprender a lidar com uma situação nunca antes sucedida, nem imaginada. O mundo dos restaurantes tem enfrentado «um tsunami», denominou Rui Sanches, da Plateform, um dos maiores grupos de restauração portugueses. «O primeiro impacto foi de uma violência atroz; a nossa maior preocupação centrou-se em manter as equipas. Mais do que um desafio financeiro, este é um desafio humano», acrescenta o responsável. ¶ O mundo pode estar virado do avesso, mas outros valores humanos parecem ganhar ainda mais força: a solidariedade e união. Que o diga Pedro Bandeira Abril, chefe de cozinha do Chapitô, e um dos membros do colectivo denominado New Kids on the Block. «A ideia de juntarmos cozinheiros num grupo de whatsapp deu origem a uma plataforma para discutir problemas e acabou por fomentar a comunicação e as parcerias», explica o cozinheiro. «Durante a pandemia, quase todos fechámos, mas fomos debatendo sempre novas soluções. E, a seguir, ao desconfinamento, o caminho foi gradual: uns abriram logo, outros iniciaram o processo mais devagar». ¶ Também Thomasz Bazyl, do Lagoas Park Hotel, salienta a inter-ligação maior que se gerou entre as pessoas. «É fundamental em alturas como esta darmos valor às pessoas que estão ao nosso lado». Uma opinião partilhada também pelo grupo grossista Makro. «Só há uma palavra nesta pandemia: as pessoas», refere Isabel Caeiro, da Makro. «Desde 2005, o nosso foco tem sido a hotelaria e restauração e esta pandemia afectou este sector. O nosso objectivo é dar a confiança e o apoio necessário.» × ‫‏‬ Palavras de incentivo e conforto que ajudam o sector a seguir em frente.

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Paulo Amado e Francisco Gonรงalves





José Júlio Vintém



New Kids on the Block – Leonor Godinho, Bernardo Agrela, Tiago Lima Cruz, Pedro Abril, Pedro Monteiro e JosÊ Rocha



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Sabem os portugueses como funciona um restaurante? Como é o dia-a-dia de um cozinheiro profissional? Não sabem e isso explica o desprezo do país pela crise no sector.

A minha avó era uma boa cozinheira. Tinha uma atenção absoluta no seu fogão, onde eu me empoleirava subindo numa cadeira. No tacho, lembro-me de ver borbulhar sopa de grão com toucinho, ovo cozido ralado por cima; na fritadeira, palitos louros de batata que o tio haveria de disputar à mesa, numa corrida apertada com o avô; ao lado, grandes bifes à cortador, aos quais no fim a Dona Odete sempre juntava um esguicho certeiro de vinagre, nem a mais, nem a menos. ¶ Era assim num dia ao almoço, ao jantar e nos dias seguintes mudava tudo. Era preciso planear muito bem as compras, rever receitas, testar. A avó sabia que a sua clientela era exigente, mas não tão exigente quanto ela. Se as coisas não corriam bem, se tinha de repetir um prato ao longo da semana, antecipava ela própria as críticas e assumia o falhanço. Era evidente a sua consternação no final de uma refeição fraca, automutilando-se pelo sal a mais, o refogado a menos, o frango com demasiado forno. ¶ Os desaires estragavam-lhe o resto do dia. Já não cirandava com a mesma alegria nas outras tarefas da casa, casa que foi desde sempre a sua vida e o seu local de trabalho. E ninguém lhe reconhecia o esforço, o cansaço, a vontade de servir bem. A minha avó era doméstica. Imagino o que não sentem os cozinheiros dos restaurantes.

dizia-me no outro dia um amigo professor, para justificar a sua insensibilidade face à crise no sector da restauração. Concluindo: «Calha a todos». Ora, calha a quase todos e de formas diferentes. A crise já atinge e vai atingir proporções trágicas e poucos lhe escaparão. Mas não é preciso ser um génio da macro-economia e das finanças para perceber que, num país cuja economia tem assentado no turismo, a hotelaria e a restauração serão os primeiros a cair. E serão quem cairá de mais alto. ¶ O outro argumento do meu amigo professor revela, simplesmente, ignorância. Há trabalhos mais duros? Com certeza. Mas estar numa cozinha exigente é certamente dos mais violentos. As pessoas vão muito a restaurantes, vêem muitos programas do 24 Kitchen e, por isso, julgam que sabem como funciona uma cozinha profissional. Não sabem. Como repórter, já estive em cozinhas de todo o tipo, desde a do restaurante tradicional de bairro à do El Bulli. Em todas, comprovei como é duro cozinhar bem, todos os dias, para muita gente. ¶ Em Lisboa, vi nepaleses a descascar batatas durante três horas seguidas para os bifes do lombo dos executivos da Avenida da Liberdade. No célebre restaurante da baía de Roses, na Catalunha, assisti a uma bateria de estagiários macambúzios como acartadores de cimento a tirar a gelatina de rabinhos de porcos, durante horas a fio, sob o Lembrei-me da minha avó quando regressava a casa, depois olhar felino de Ferran Adrià. Faziam o seu trabalho num de moderar um debate com os chefes André Lança Cordeiro, silêncio doloroso, as facas afiadas como guilhotinas em razias Alexandre Silva e João Rodrigues, no Congresso dos permanentes às falanges. ¶ Antes, claro, percebera com a Cozinheiros. No auto-rádio do carro falava António Costa. avó Odete que gerir uma cozinha é complicado. É preciso O primeiro-ministro reforçava as novas medidas contra a dar coisas novas aos comensais. Mas também repetir os seus pandemia, novo golpe para o já ferido sector da restauração. pratos preferidos – e fazer cara alegre mesmo quando se está ¶ Não contesto a bondade das acções do Governo. O que enjoado como uma dessas estrelas pop a quem pedem para estranho, sobretudo, é a frieza com que o país tem recebido cantar o hit pela centésima vez. ¶ Um cozinheiro profissional o drama que está a acontecer com tantos cozinheiros e precisa passar muitas horas de pé, com dores nos joelhos, restauradores. Esse desprezo tem, de alguma forma, o nas costas, nos ombros, nos pulsos. E repetir movimentos mesmo fundo da falta de reconhecimento que sempre maquinais, qual operário de linha, num ambiente pródigo houve na minha família pelo trabalho desgastante, diário, em riscos para a integridade física, de queimaduras a consecutivo, da minha avó. ¶ «Há trabalhos mais duros», tendinites. Ao fim de um serviço no lodo, um cozinheiro

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está destroçado como se tivesse sido atropelado por um camião do lixo. ¶ Às vezes, sente-se lixo. ¶ À violência física acresce a exaustão psicológica. A pressão para fazer depressa e bem requer um foco que se torna extenuante. Ninguém aguenta muitos anos o ritmo de um restaurante onde haja muita pressão – seja dos clientes, do chef ou do departamento financeiro. Há quem diga que um chef só resiste sete anos em ritmo de alta competição, dentro de uma cozinha. Depois, ou afrouxa ou tem de sair, repartir o tempo entre o escritório, a televisão e o monte no Alentejo. Alguns não têm essa sorte. Caem em desgraça. ¶ Falta ainda fazer um estudo completo que avalie as doenças psicológicas da classe e os consumos tóxicos, mas um rastreio empírico diz-nos que o recurso a benzodiazepinas, estimulantes e drogas recreativas, será muito superior à média. ¶ Não será este o caso dos chefes Alexandre Silva, André Lança Cordeiro e João Rodrigues. Mas ao ouvi-los fiquei com a sensação de que não há condições – espírito, energia, dinheiro – para mais reinvenções. Neste segundo confinamento, muitos cozinheiros chegaram ao limite. Durante o debate no Congresso – a partir do Lagar do Azeite, em Oeiras, com transmissão online – a dada altura perguntei-lhes se esta não seria uma oportunidade para pararem e criarem outros formatos para o seu negócio. Os três mostraram-se pouco entusiasmados com mais aventuras. ¶ Na minha cabeça, estava ainda a sessão anterior, que pusera o chef brasileiro João Ferraz a conversar com um neurocirurgião norte-americano e com Matt Orlando, chef e proprietário do restaurante Amass, em Copenhaga. O espírito de Matt Orlando fora bem diferente do dos chefes portugueses. ¶ O Amass é um restaurante maravilhoso nos arrabaldes da capital dinamarquesa. Há meia dúzia de anos fui lá jantar e para sempre ficou-me na cabeça o serviço distendido e os grandes janelões onde se projectavam fogueiras imensas acesas no jardim. Embora natural dos EUA, Matt Orlando goza hoje do conforto e da segurança de viver num país europeu nórdico, com um sistema social forte e riqueza para todos. Poderá, por isso, mais facilmente do que um chef português, recuperar a tese da pandemia como «uma oportunidade para se reinventar» – apagar as fogueiras e fazer lume outra vez. ¶ Em Portugal, as coisas são mais complicadas. Mesmo que isso passe ao lado dos portugueses, como sucede quando se trata de reconhecer os seus cozinheiros. É um desconhecimento muito contemporâneo o do meu amigo professor. A moderna cultura dos chefes criou a ilusão de um ofício artístico e criativo e confortável.

Os cozinheiros seriam uma espécie de pintores de sabores, seres movidos a inspiração, folgados com a sua fama e o seu dinheiro e o seu estrelato. ¶ Haverá destes, também. E precisamos deles, como eu também precisava do avô Alfredo. Apesar de a minha avó cozinhar todos os dias, era o avô Alfredo quem mais brilhava lá em casa. O avô Alfredo era também um bom cozinheiro, ainda que esporádico. Costumava entrar em cena aos fins-de-semana: Não em todos: só quando estava a sesta bem dormida; e não tinha seguros da Bonança para actualizar; e a mercearia de Santa Iria da Azóia estava aberta; e o Sporting ganhava. ¶ O avô Alfredo era craque do petisco, das amêijoas, do camarão frito, tudo sempre puxado de malagueta, muita malagueta. «Em África, comia piri-piri à dentada», contou-me uma vez, eu empoleirado ao seu colo. Recordo ainda hoje, 35 anos depois, a sensação confortável da sua barriga grande, a sua barba hirsuta como lixa grossa no fim do dia. ¶ Fazia sempre a barba muito cedo, de manhã, o avô. E fumava ao mesmo tempo, o cigarro pousado num equilíbrio precário na esquina do lavatório. Da porta entreaberta chegava à minha cama o som da telefonia e o inconfundível aroma do SG Gigante misturado com o eucalipto e mentol do creme de barbear. ¶ Suspeito que é por isso que, sendo eu ex-fumador, continuo a gostar do cheiro do tabaco, ainda hoje aparecendo-me na memória como algo matinal e tranquilo. Tal como tenho na cabeça, apesar de ser então muito criança, o ar espesso a bacalhau cozido com batatas das grandes noites de Natal, a família toda na mesa comprida ansiosa por saber como estava o gadídeo do Alfredo nesse ano. ¶ E estava sempre incrível. Umas quarenta postas de bacalhau cozidas num fogão mínimo e chegava sempre tudo no ponto de cozedura perfeito, a fumegar – ao mesmo tempo do que as couves e as batatas e o alho picado. Ainda hoje não sei como o avô Alfredo fazia aquilo, naquelas condições, mas sei que era reconhecido. Os elogios voavam durante o resto da refeição, do primo fadista que só aparecia na Consoada aos meus pais, toda a gente louvava os seus dotes e o seu esforço. ¶ A avó Odete, claro, dava sempre uma ajuda preciosa à empreitada. Era imprescindível para que tudo se sincronizasse e para que a cozinha não parecesse ter sido invadida por uma vara de javalis. A avó Odete é que era a profissional da cozinha. Mas ficava na sombra. Como tantos os que agora estão à beira do desemprego. ×

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Horários de trabalho que excedem as 12h horas por dia, semanas sem folgas para descansar, pressões psicológicas, ambiente de trabalho pouco saudável e falta de tempo para a vida pessoal e familiar estão entre as causas que podem desestabilizar a saúde mental de um profissional de qualquer área. No Congresso dos Cozinheiros, foi apresentando um projecto que quer oferecer suporte ao sector da restauração no campo da saúde psicológica. Nós As Pessoas – assim se chama – é o que Paulo Amado, director do Congresso e da INTER Magazine, chama de um «compromisso a longo prazo». O responsável explica: «Há cerca de dois anos começámos a viajar pelo país e, na nossa perspectiva humanista, queríamos dizer às pessoas que as outras pessoas existem. Antes, já nos interessava poder apresentar um empregado ou uma empregada de mesa, um chefe, um pasteleiro, e perguntar quem és tu? Com os 15 anos do Congresso dos Cozinheiros, numa altura como esta, como se poder fazer a festa? Não se pode. E é aí que surge a ideia de pegar no projecto e dar o nome ao Congresso. Mas não damos apenas o nome porque é também um compromisso». Um compromisso que se baseia em três vectores de acção: dar a conhecer as pessoas, a partir de uma série documental – a preto e branco, «como sinal de igualdade» – da autoria de Amado e Fábio Silva e fotografias de Theo Gould; partilhar ferramentas e experiências através de um plano de conteúdos delineados por parte de

profissionais; e ainda oferecer apoio bem-estar psicológico através de um programa de apoio em parceria com a Oficina de Psicologia, que será responsável por delinear um plano de 12 consultas gratuitas (e sigilosas) de psicologia para os profissionais de restauração. O site oficial do Nós As Pessoas será lançado ainda este ano. ¶ Foi com o representante da Oficina de Psicologia, Nuno Mendes Duarte, que a INTER magazine falou para melhor entender este projecto e qual a sua importância perante o panorama actual. De que forma uma boa saúde psicológica pode influenciar o trabalho de uma cozinha? Quando falamos de saúde psicológica uma das primeiras influências tem que ver com a capacidade de foco. Uma boa saúde psicológica permite-nos sentir que a nossa cabeça não está a ser captada para preocupações persistentes ou para divagações sobre como eu devia ter feito ou resolvido aquilo ontem – é aquilo que nós chamamos de ruminação sobre acontecimentos passados. A boa saúde psicológica previne a capacidade de permanecer o mais próximo possível do presente. Em segundo lugar, permite uma maior capacidade analítica do ponto de vista de tomada de decisão, da resolução de problemas e da criatividade. Isto é, existe uma maior capacidade e um maior potencial para resolver problemas e para ser mais criativo quando temos equilíbrio e estabilidade. Uma das coisas que acontece de imediato quando dormimos mal ou quando estamos sob stress é que a nossa capacidade analítica fica brutalmente

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Nuno Mendes Duarte

Theo Gould

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especial cnc’20 «A adesão que tem havido no projecto Nós A Pessoas tem sido uma questão fundamental porque nós lançámos um tema e se ninguém aderisse quereria dizer que estaríamos descolados da realidade mas não foi isso que aconteceu.»

diminuída assim como os nossos tempos de reacção. Em terceiro lugar destacaria a capacidade de comunicação. Quando não estamos saudáveis, tornamo-nos mais intolerantes àquilo que está a acontecer fora de nós. Temos uma reacção mais impulsiva, intolerante e impaciente. E essa impaciência quase sempre resulta em agressividade. Do ponto de vista do entendimento do outro, do estar disponível para criar relação com o outro, tudo isso fica diminuído. Em larga medida, a ausência de saúde psicológica leva-nos para uma espécie de bolha – uma bolha má em que estamos a navegar em coisas, sensações e sentimentos maus. Estamos virados sobre nós próprios e com dificuldades de nos ligarmos ao mundo. No fundo, respondendo à pergunta, uma boa saúde psicológica é sinónimo de uma boa ligação ao mundo e aos outros. A seu ver, o projecto Nós as Pessoas pode ser uma pequena mudança para que se venha a fomentar novas formas entre os profissionais de restauração de agir perante eles mesmos e os outros? Sim. Quando olhamos para um sistema podemos identificar aquilo que não está a correr bem. Tipicamente vão surgindo novos sistemas. Há a oportunidade, com algumas das coisas que correram menos bem, de dizer que essa aprendizagem conduz-nos a pessoas que estejam interessadas em novos sistemas e que eventualmente aprenderam daquela forma mas têm interesse em aprender outras formas de estar. Da mesma forma que se testaram outras formas de cozinhar, também se testam outras formas de relacionamento com as equipas. Os chefes de cozinha têm interesse em criar modelos de liderança com equipas que se sintam bem. ¶ O que nós temos não é necessariamente uma mudança total de paradigma mas sim uma introdução de um novo que pode crescer o suficiente para mostrar ao antigo que existem outras formas de agir, de comunicar com o outro. Isto parece-me ser a linha possível. As mudanças surgem porque vão aparecendo sistemas alternativos que depois vão modelando os anteriores. A saúde mental ainda é um tema tabu. O Congresso dos Cozinheiros com o compromisso

Nós As Pessoas vem levantar todas essas questões na cozinha e dá, de certa forma, uma abertura a que se fale sobre o assunto. Sim, e eu penso que essa abertura tem muito a ver com temas que são sistémicos. Há uns tempos, por exemplo, não se falava de levar saúde psicológica às empresas. Era uma coisa que não fazia sentido e que hoje em dia faz porque é inevitável essa necessidade e idenficamo-la. Antigamente o que acontecia é que não se identificava isso, não era possível dizer que era uma necessidade. A adesão que tem havido no projecto Nós As Pessoas tem sido uma questão fundamental porque nós lançámos um tema e se ninguém aderisse quereria dizer que estaríamos descolados da realidade mas não foi isso que aconteceu. Nós apenas estamos a sublinhar uma realidade existente, a dar-lhe espaço para que tenha expressão e noção de como é possível agir sobre ela. O que torna determinante o impacto mediático que estamos a ter é haver um conjunto de pessoas sensíveis a essa mudança. Há pessoas que já estavam nos sistemas onde isto ia funcionando e mal e há pessoas que vêm dos novos sistemas e que estão interessadas em implementar ideias e saber como é possível fazer as coisas de outra forma. Que pequenas mudanças são essas que a Oficina de Psicologia vai oferecer aos profissionais de cozinha para tentar melhorar o seu trabalho e condição de saúde? Por exemplo, as pessoas podem estar perante uma situação de exaustão ou stress, ou sentir que estão a caminhar nesse sentido, e pode existir uma dimensão tão simples como explicar-lhes como funciona o stress crónico – há ainda muito desconhecimento do que é o stress e a ansiedade – quais as suas fases e sinais. Depois é poder identificar e gerar novos comportamentos que permitam que as pessoas se sintam melhores. ¶ A ideia do projecto é criar conteúdos, ideias e momentos a que as pessoas possam recorrer. A vida é uma aprendizagem e as pessoas lidam como podem. Há momentos em que a aprendizagem deixa de ser suficiente e aí entram as consultas – quando surge um conflito que não está a ser resolvido. A consulta serve para identificar o problema e modificá-lo. ×

O compromisso «Nós As Pessoas» tem o apoio de um conjunto de empresas do sector da hotelaria e restauração e outros que conseguem assim garantir uma parte da empreitada das Edições do Gosto. A saber, a Câmara Municipal de Oeiras, Makro, Icel, Bom Sucesso, Bonduelle, Estrella Damm, Lava, Gresilva, MicroGreens, NxHotelaria, Diogo Vaz, Rosinox, S. Pellegrino & Acqua Panna, Prochef, Alug’Aqui, Oficina de Psicologia, Flavors & Senses, Portuguese Mask, Rede-T e a Sara HACCP Digital.

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João Ricardo Alves

António Galapito

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O mundo vegetal

O mundo vegetal, no actual contexto, gera grande interesse por parte da restauração e dos seus clientes. São cada vez mais os portugueses interessados em adoptar padrões alimentares com quantidades elevadas de vegetais ou exclusivamente vegetarianos, quer seja por filosofia de vida ou de saúde. «Antes do fenómeno de vegetarianismo estar na ordem do dia, já tínhamos pratos de vegetais no nosso receituário», frisou André Magalhães, moderador do debate sobre o mundo vegetal que decorreu no Congresso dos Cozinheiros 2020, e que juntou numa conversa o chefe de cozinha João Ricardo Alves, do Arkhe, António Galapito, do Prado, e João Baldaia, da Bonduelle, indústria líder mundial no ramo de processamento de vegetais. ¶ Cerca de 9% da população portuguesa já adopta, actualmente, uma alimentação tendo como base os vegetais. Esta é uma das conclusões do primeiro estudo sobre a realidade nacional veggie, desenvolvido pela consultora de inovação espanhola Lantern e mencionado por João Baldaia. «É uma realidade que o consumo vegetal está a aumentar», refere o responsável. João Ricardo Alves tem dado um bom contributo para isso. Os vegetais têm ganho cada vez mais destaque com o aparecimento de restaurantes como o Arkhe, que defende uma alimentação mais saudável e a sustentabilidade ambiental na produção e no consumo de alimentos. «Nós, no Arkhe, trabalhamos exclusivamente com vegetais utilizando sempre os produtos da estação,

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no seu auge de sabor e qualidade». E como se processa o equilíbrio do prato? «É um processo criativo muito complexo e desafiante», refere o chefe de cozinha, para quem equilibrar, em termos nutricionais, é uma das prioridades. ¶ No Prado, os vegetais também estão na ordem do dia. Apesar de ser um restaurante generalista, «o menu tem sempre 60% a 70% de vegetal», afirma António Galapito. Muitas vezes, o vegetal é usado para «equilibrar a proteína, domesticá-la, potenciando-a», explica o chefe. Já João Baldaia contesta este papel de «complemento». «Eu penso que os vegetais têm de ter o seu espaço próprio dentro da gastronomia e da cozinha e serem valorizados por si só. Não devem ser mais uma adição pobre e, muitas vezes, mal tratada. Eles são uma riqueza que existe no mundo!», refere João, salientando ainda o papel da indústria que representa. «Nós não pretendemos lutar contra as outras categorias de produto. Nós temos interesse e estamos altamente motivados em que os vegetais façam cada vez mais parte da alimentação de todos os portugueses. A indústria não é um inimigo dos cozinheiros; é um aliado». Indústria e cozinheiros de mãos dadas é o que se pretende, pois é em profissionais de cozinha que a indústria aposta para dar mais credibilidade aos seus produtos. Todos acreditam, convictamente, que a comida é o mais importante e que comer vegetais é essencial. ×




Ordem da Cabidela - André Magalhães e Luís Antunes





André Magalhães, Francisco Gonçalves, Luís Patrão e Paulo Amado



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Teresa Vivas

Vitor AdĂŁo

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A rede de Tabernas do Alto Tâmega nasceu em 2004, com 12 tabernas fundadoras, por parte da Associação de Desenvolvimento da Região do Alto do Tâmega. Estas tabernas são casas de pessoas que transformam as suas salas de jantar num restaurante com produção própria, plantada na terra, ao lado de casa. O foco é a comida ancestral, a cozinha de conforto onde figuram pratos como o cozido Barrosão, a bola de carne, o cabrito no forno e o borrego assado. ¶ À necessidade de criar novas dinâmicas, através de um concurso do Turismo de Portugal, a agência especializada em gastronomia, A Mesa – Cultura Gastronómica, pegou no projecto Tabernas do Alto Tâmega a fim de dar a valorização que merecia. Teresa Vivas, em conjunto com o chefe Vítor Adão, começaram a trabalhar há dois anos no renascimento desse movimento que abrange seis conselhos entre o Gerês e o nordeste transmontano (Boticas, Chaves, Montalegre, Ribeira da Pena, Valpaços e Vila Pouca de Aguiar) oferecendo, sobretudo a sua experiência e conhecimento. «Queremos criar raízes de forma a que algumas coisas, preceitos, produtos, atitudes e hábitos não desapareçam. No fundo, visitar aquele território é ir ao imaginário ancestral do que já fomos e que não se esgota na mesa», explica a responsável pelo projecto. ¶ A INTER magazine falou com Teresa Vivas para melhor compreender em que se baseia este projecto e quais as suas implicações para o interior de Portugal. De que forma é que

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o projecto chegou a ti? Quando saí da Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) já tinha feito uma proposta para este projecto, financiado pelo Turismo de Portugal. Quanto eu e o Miguel Santos fundamos A Mesa – Cultura Gastronómica já tínhamos esta ideia de promoção da gastronomia mais ligada a cultura. E esta promoção não se trata só de puxar a gastronomia para trás, mas sim de criar raízes de forma a que algumas coisas, preceitos, produtos, atitudes e hábitos humanos não desapareçam. A Mesa serve para olhar para o território, para os produtos, para as pessoas, para o receituário. Qual era a vossa proposta? Tínhamos três áreas muito importantes que achámos que era preciso trabalhar. Primeiro, a capacitação das pessoas que estão lá, dos empresários de restauração. Depois, precisávamos da criação ou revitalização da marca anterior e, por último, construir as redes sociais, tudo o que tem a ver com a comunicação institucional que não estava feita, bem como o reconhecimento de território a nível de fotografias. O que são efectivamente as Tabernas do Alto Tâmega? O projecto nasceu em 2004 com a Associação do Desenvolvimento Local que permitiu criar infraestruturas ligadas à restauração. No Alto Tâmega, por isolamento geográfico das grandes montanhas que cercam a região, alguns agricultores já faziam em casa algumas refeições com produtos que produziam. A Associação de Desenvolvimento da Região do Alto Tâmega (ADRAT) achou interessante


especial cnc’20 «Ir ao Alto Tâmega, visitar todo aquele território que é o imaginário ancestral do que já fomos, não se esgota na mesa mas passa pela mesa.»

conseguir fornecer apoio a essas pessoas que queriam fazer cozinhas que estivessem certificadas e que pudesse dar refeições e apoiar a criação desses agricultores que quisessem ter essas casas. ¶ A grande parte das tabernas é dentro de casa. São casas espalhadas por território, em aldeias remotas onde as pessoas mantêm muito a cultura e fazem uma cozinha ancestral, muito enraizada naquilo que sempre fizeram. Entretanto, passamos a admitir também restaurantes que entrem nessa linha do respeito pelo receituário e o produto local. Isto porque dessas 15 casas de partida há pessoas que entretanto envelheceram ou morreram e houve essa necessidade. Como surgiu esse movimento de cozinhar para os outros dentro das suas próprias casas? Cada um deles tem uma história diferente de como começaram. Há um, que é a Casa do Pedro, em Boticas, que nasceu após a rodagem do filme ‘Cinco Dias, Cinco Noites’ porque a equipa de filmagem ia lá comer e eles pensaram que poderiam abrir as portas de sua casa a outros visitantes. É uma casa com 300 anos de habitação, parte dela foi recuperada para ser uma sala de restaurante. É uma daquelas casas que só abrem ao fins-de-semana e com reserva e que os proprietários produzem tudo, desde hortícolas, a porco e vacas Barrosãs. Das viagens que foste fazendo nos últimos dois anos, o que podes partilhar? Por defeito profissional procurava sempre uma gastronomia intocada em termos de qualidade e exigências que vamos adquirindo ao longo da vida. Com essas viagens passei a vê-la de uma maneira diferente. A gastronomia para mim passou a ser um meio de conhecer as pessoas e não a finalidade de eu chegar aquele sítio. Ir ao Alto Tâmega, visitar todo aquele território que é o imaginário ancestral do que já fomos, não se esgota na mesa mas passa pela mesa. O mais importante ali é tu sentires as pessoas felizes por te terem em casa, que se esforçam por receber da melhor maneira, que passam o ano inteiro a cultivar aquilo que comes, que vibram quando gostam daquilo que eles têm e do reconhecimento que dás àquilo que fazem. Mesmo que as pessoas não façam algo

tipo uau, foi algo feito com esforço e veio de pessoas fantásticas que te recebem de maneira maravilhosa e, no final, bate tudo certo porque estar à mesa não é só um acto de criticares aquilo que estás a comer, estar a mesa é um acto de desfrutar a vida, conhecer pessoas, contactar com elas, perceberam como elas vivem. É muito mais profundo do que pura e simplesmente te sentares e criticares. Podes relatar um caso específico? Há uma padaria que vou quando posso que tenta produzir tudo biológico, tenta ter as massas mães à nossa maneira tradicional portuguesa, que não é bem as sourdoughs. Tenta ter os preceitos todos mas depois quando vais perceber e olhar, o pão é feito com farinhas compradas em Espanha. Ali tens uma vontade imediata de querer criticar. É uma pessoa que investe no seu pão, que se levanta às tantas da manhã, leveda ao pão e depois utiliza aquela farinha? Esta é a primeira coisa em que pensamos. Mas depois ela responde-nos que não tem onde ir buscar outro tipo de farinha, não tem pessoas que façam farinha com os nossos cereais. E isto faz-te pensar. O que devo pensar de uma pessoa que está num sítio mais remoto, que se força ao máximo para ter um bom produto mas que depois no sítio mais improvável lhe falham as matérias-primas? Que atitude podemos ter? Ela está a fazer o melhor que pode. A teu ver, o que podemos fazer para mudar isto? Na cidade temos um paradigma complicado. Nós estamos a sugar as coisas do interior, estamos a transformá-las a nosso belo prazer e a deixar morrer tudo no sítio onde elas se produzem. Precisamos que as pessoas queiram ir lá para cima, que tenham vontade. Hoje já podemos trabalhar em várias coisas ao mesmo tempo à distância. Nós precisamos que alguém queria ir trabalhar para fora das grandes cidades. Há muitos sítios que contam com melhores condições de vida do que em Lisboa e nós teimamos em estar nas grandes cidades. Esta pandemia veia mostrar o quão errado nós podemos estar. Trás-os-Montes é o sítio do país onde mais se utiliza centeio para fazer pão e a tal senhora está a fazer pão com centeio que não é deles

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especial cnc’20 «A grande parte das tabernas é dentro de casa. São casas espalhadas por território, em aldeias remotas onde as pessoas mantém muito a cultura e fazem uma cozinha ancestral, muito enraizado naquilo que sempre fizeram.»

e nós aqui, na capital, estamos a fazer pão com centeio que eles produziram. É uma engrenagem estranha que precisamos de repensar. Hoje já há muita massa cinzenta que pode apoiar isto, desenvolver influências positivas e fluxos para que as coisas se retomem. O governo tem de apoiar a descentralização das pessoas mas uma vez mais digo que também temos de ter vontade. Aqui muitas vezes vivemos amontoados, sem bom ar para respeitar ou uma fonte potável de onde beber água. É preciso um empurrão mas também há que ter vontade. Como surgiu a entrada do Vítor Adão no projecto? O Vítor é de Chaves e além de ser esta pessoa que todos conhecemos em Lisboa, ele tem uma vida de agricultura que se assemelha muito à vida dos taberneiros que também são agricultores. Ele foi um intermediário, um curador. Em conjunto com ele, fizemos várias viagens onde como convidados levámos pessoas da nossa área que de alguma forma pudessem dar visibilidade ao projecto. A nossa área é quem conseguem apelar melhor a uma ideia consciente daquele território, é quem pode entender que ali vive-se a sustentabilidade por uma razão de necessidade e não de negócio. Lá em cima não se estraga nada e produz-se tudo na quantidade suficiente para não estragar. Em vários casos, é aquele ícone da sustentabilidade que estamos à procura. Precisávamos de pessoas que pudessem olhar e perceber o que se está ali a pensar e o valor que podemos dar a esta sustentabilidade na nossa alimentação. No fundo, a presença dos chefes foi no sentido de reconhecimento do território, identificação dos produtos. Foram poucos os chefes que levei que conheciam aquele território. Os chefes chegavam a cozinhar com os taberneiros? Sim e também num sentido de formação. Inicialmente não fomos bem recebidos com o facto de queremos dar formação, as pessoas não aderiram. E essa formação são coisas pequenas que visam a melhorar processos. Houve um momento em que o Luís Espadana dá um conselho a uma senhora que estava a descascar alhos secos sobre uma forma rápida de fazer aquela tarefa e a pessoa depois acabou por aplicar e por perceber

que daquela maneira demorava muito menos tempo. É isto. Com essas acções, com os chefes, começaram a perceber que aquilo que recebiam deles era muito importante. E hoje em dia já temos pessoas a pedir formação e isso há-de ser o final do projecto.Perante o que esta a acontecer actualmente, qual o estado das tabernas? Por eles serem agricultores e pela taberna não ser, na maior parte dos casos, o negócio central da vida deles, tem-se estado a aguentar. Temos sorte de naquele território não ter havido muitos casos e mortes por Covid-19, apesar do Alto Tâmega estar muito envelhecido. Arrisco-me a dizer que a idade média da população deverá rondar os 60, 70 anos. A meu ver, só conseguiram subsistir porque tinham outros negócios. Têm sempre a horta. Já os restaurantes da Rede, que são uns três ou quatro, têm sofrido pelo facto de estarem fora das grandes cidades mas conseguem ser procurados de outra forma e não estão a ser tão castigados como em Lisboa. Mencionaste que tens um prazo para terminares o projecto. O que ainda queres fazer? Quero fazer um livro que possa servir de guia e incentivar as pessoas a ir lá acima. Gostava ainda de encerrar com um evento grande, em Trás-os-Montes, com pessoas ligadas à gastronomia. Que marca esperas ter deixado nas pessoas com a tua participação? Espero que os taberneiros entendam que são muito bons, que são um bastião de uma cultura que para nós é essencial e se está a perder. Espero que se valorizem a eles próprios primeiro e antes de tudo. Espero que entendam que a cooperação entre o conjunto é importante. A rede antes não lhes trazia benefício, estavam desligados uns dos outros. Espero ter levado lá pessoas que possam aportar coisas positivas e não só um desgaste de território, de falta de reconhecimento e exigências da qualidade que temos na cidade. Espero que as pessoas entendam que a comida ali não é a meta mas é um meio e que é preciso valorizar produtos de qualidade que estão a ficar abandonados, como a batata de Chaves que é maravilhosa e que recentemente conseguimos que a comercializassem. ×

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João Oliveira, Bertílio Gomes, Diogo Rocha e Vitor Adão

A Gastronomia inter magazine


no Presente

O presente é um termo para designar o tempo do agora, que é também o passado e o futuro ao mesmo tempo. O ano de 2020 chegou e a restauração em Portugal estava ao rubro: chefes e empresários abriam restaurantes de fine dining ou conceitos mais democráticos, a comida portuguesa tinha reconhecimento dentro e fora de portas e, à mesa, eram passados momentos infindáveis a saborear comida que nos tratava o corpo e a alma, a conviver com os outros e a apreciar as vistas. ¶ Três meses mais tarde, o cenário alterou-se. O presente agora é uma realidade atroz que ameaça destruir os sonhos de centenas de empresários da restauração. João Oliveira, do restaurante Vista, em Portimão, Bertílio Gomes, da Taberna Albricoque, em Lisboa, e Diogo Rocha, do Mesa de Lemos, em Viseu, juntaram-se para debater o Presente da Gastronomia. Antes da pandemia Bertílio Gomes – Eu tenho 25 anos de gastronomia, de cozinha. De 2012 a 2019 viveram-se anos de sonho na gastronomia! Toda a gente teve oportunidades, sobretudo a alta cozinha que nesses anos se conseguiu afirmar. Foi um momento de crescimento, tanto dos cozinheiros como da restauração, dos produtores,

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de todos agentes. Havia dinheiro e é tudo uma questão de investimento financeiro. Estamos gratos por vivermos essa fase. No futuro isto há-de ser muito diferente. Havemos de levar algum tempo a recuperar. ¶ João Oliveira – O presente era óptimo para todos. O crescimento estava a ser contínuo, desde o mais pequeno ao maior. Toda a gente conseguia viver da gastronomia, toda a gente investia, tinha visibilidade e estava com uma expectativa muito alta. E o que aconteceu foi parar tudo. Mas a gastronomia em Portugal, nos últimos cinco anos, teve uma momento de afirmação internacional. E tudo isso foi muito gratificante! ¶ Diogo Rocha – Nós temos um país a duas velocidades. Este tempo já está datado, foram uns anos de ouro em que o reconhecimento internacional apareceu. O exterior começou, de facto, a dizer que a nossa gastronomia era boa. Contudo, nós, Mesa de Lemos, em Viseu, num cantinho de Portugal vivemos a uma outra velocidade. Não tivemos esse boom e, daí, talvez a quebra pode não ter sido tão acentuada numa região como a nossa. Ninguém enriqueceu nestes últimos três meses. Por vezes, quando falamos com colegas, parece que o interior se salvou. Mas é mentira. Podemos ter resultados melhores, de facto, do que quem está no litoral, mas as nossas condições são sempre diferentes.


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Durante a 1.ª vaga Bertílio Gomes – Acordei da paulada no dia 30 de Abril, com a lembrança de que estávamos a chegar a 1 de Maio e essa é uma data em que se celebra no Algarve a abundância. É tradição as pessoas comemorarem o Maio a fazerem petiscos nas ribeiras, a comerem os primeiros caracóis do ano. E eu, como todos, desesperado por estar em casa, a matutar em problemas, decidi fazer caracóis e ir vender de porta a porta, em take away. Foi o recomeço e, com a desconfinamento, comecei a abrir gradualmente. Foi muito difícil. Quando parei tinha 80 funcionários e quando recomecei tinha oito. É este o cenário que estou a viver hoje em dia; é esta a única forma que eu conheço de ir sobrevivendo. ¶ João Oliveira – Nós, estando no Algarve, tínhamos acabado de reabrir, dia 3 de Março, e fechámos a dia 14. Foi um choque muito grande! Também tínhamos acabado de contratar uma equipa enorme e tivemos de dispensar uma parte, porque não sabíamos se iria demorar uma semana, um mês ou muito mais até voltarmos ao dito normal. E ficámos com um mínimo que era o que tínhamos dia 19 de Junho quando reabrimos. Não sabíamos o que iria acontecer, a incerteza era grande. Na cozinha de 21 trabalhadores, passei a oito. Readaptámo-nos às circunstâncias. Os primeiros dias de reabertura foram tranquilos, mas de uma semana para a outra, as coisas mudaram. Voltámos a ter lista de espera no restaurante e o hotel a funcionar bastante bem. ¶ Diogo Rocha – Houve muito romantismo, abrem-se muitos restaurantes com o coração e o dinheiro do pai. É preciso perceber isso. No meu caso e no do João, por exemplo, podemos ter uma empresa por trás, mas apresentamos contas. No dia em que apresentarmos prejuízos, somos eliminados. É assim que funciona. No meu caso, nós não fizemos nada. Tivemos a sorte de alcançar a estrela Michelin no ano passado e isso trouxe um aumento de procura gigante. Houve uma exposição enorme nacional e internacional e, de repente, com a pandemia, arrefecemos. Fechámos a 14 de Março, respeitei o lay off e estive em casa a ver o que é que isto iria dar. Eu não tinha nada para dizer naquela altura, estava vazio. Nós reabrimos no dia 5 de Julho e correu muito bem.

Mas acho que tem haver, mais uma vez, com a novidade da Estrela. Foi ela que fez com que nos conseguíssemos manter à tona. Durante 2.ª vaga Bertílio Gomes – 70% da nossa facturação é ao fim-de-semana, mas é muito imprevisível. Há dias muito fracos e outros muito fortes. As pessoas estão a viver muito a confiança do momento. Se naquele dia, as notícias são menos graves, as pessoas têm mais disposição para ir ao restaurante; se são uma desgraça, fecham-se em casa. Eu, com uma equipa mínima, não consigo planear nada. É uma loucura gerir tudo isto! É incontrolável. Por outro lado, há coisas que podiam atenuar este impacto e que não foram feitas. Desde o início que se falava numa 2.ª vaga e a resposta do SNS está a entrar em ruptura e isto, se calhar, foi devido a excessos que se fizeram durante o Verão. Nem há tempo de reacção. Andamos a tentar arranjar soluções e fazemos a nossa parte, com malabarismos… vamos ver até quando se consegue aguentar. Fazemos isto por amor, são os meus projectos, e agora é um imbróglio muito grande. Todos nós, possivelmente, vamos sair deste processo furados de tiros. Veremos quem sobrevive. ¶ João Oliveira – Estamos, de novo, a sofrer, em câmara lenta, semana após semana. Nós sabemos que, teoricamente, isto irá fechar e o que podemos fazer até lá? Em Março, fechámos de um dia para o outro, agora não sabemos. Vamos manter-nos na mesma linha e para o próximo ano não iremos fazer investimentos, mas continuaremos a dar o melhor do nosso trabalho. O Algarve é sazonal e a realidade do Algarve é muito complicada. Temos colegas em grande aflição, cada vez está a ficar mais difícil. ¶ Diogo Rocha – Um empresário da restauração está constantemente a investir, é ambicioso quase por natureza. Nunca pensámos que iria haver uma pandemia. Fizemos investimentos e com esta situação não há retorno. E, por isso, reclamamos agora alguma ajuda. Eu tenho de lutar para daqui a um ano estar aqui novamente como cozinheiro do Mesa de Lemos e que o restaurante ainda exista. Esse é o meu objectivo. E ter a minha equipa ao lado. Temos de sobreviver a tudo isto. ×

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O Futuro

João Rodrigues, Alexandre Silva e André Lança Cordeiro

da Restauração inter magazine


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Dias muito conturbados em praticamente todos os restaurantes. Como será o futuro dos restaurantes depois da pandemia e que desafios enfrentam nesta 2.ª vaga? Como inovar? Investir em delivery ou parar a equipa? Mais três grandes nomes da restauração nacional juntaram-se numa conversa sobre a actualidade e, agora, o futuro. Desta vez, ficamos com algumas das palavras de João Rodrigues, do Feitoria, Alexandre Silva, dos restaurantes Loco e Fogo, e André Lança Cordeiro, do Essencial. Lidar com a pandemia João Rodrigues – O Feitoria está dentro de um hotel e isso, nestes tempos, é uma agravante. Está anexado a uma estrutura muito maior que tem uma componente de custos bastante elevada e chegámos a uma altura em que, mesmo tendo o restaurante com uma diminuição de espaço, o hotel em si está francamente mal. E, claro, que influencia tudo o resto. Não são dias obviamente felizes para ninguém,

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é complicado! É insustentável manter os espaços abertos. No hotel estávamos com uma ocupação de 20% o que é pouquíssimo para manter uma estrutura grande a funcionar. Nós vamos estar fechados até dia 15 de dezembro e depois haverá uma reavaliação e veremos se vale a pena reabrir. ¶ Alexandre Silva – Eu desde dia 12 de Março deste ano que decidi que iria partilhar tudo com a equipa, até porque me ajuda a tirar este peso das costas e não têm sido decisões nada fáceis de pôr em prática. Desde que começou esta pandemia já reduzimos 32 trabalhadores dentro da empresa e tivemos que nos adaptar. Neste momento sentimos que andamos com uma mesa às costas, colocamo-la aqui, depois já tem de estar noutro lado e nunca sabemos muito bem o que fazer. Já todos percebemos que termos fechado o país no início da pandemia foi um erro, até porque hoje estamos três vezes pior. Se calhar isso fez com que os restaurantes entrassem em colapso e recorressem a uma força financeira que, possivelmente, não vão conseguir pagar no futuro.


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O Time Out Market fechou e isso veio piorar tudo. O Time Out Market foi aquilo que fez com que a nossa empresa começasse a construir outros projectos e a trabalhar de uma maneira diferente. Era uma bolha financeira que nos ajudava a termos tempo para pensar. A verdade é que é um mercado que trabalha apenas com turistas (10% são portugueses, 90% são turistas) e não há nada a fazer. No Fogo, neste momento, estamos com uma quebra de 35%, mas, bem estruturado, consegue aguentar os custos todos que tem. Tive a sorte do Fogo ter aberto em Dezembro em 2019 e só tínhamos clientes portugueses. Já o Loco sofreu bastante. Tinha uma lista de espera de dois meses e hoje começamos a semana com mesas vazias… é assustador! O restaurante posicionou-se numa zona que, na altura, era estável e fazia sentido, hoje já não faz. ¶ André Lança Cordeiro – Como muitos outros, eu também fechei o restaurante antes de ser decretado o estado de emergência. No início, nem tinha planos para fazer take away. Contudo, vários familiares começaram a pedir-me que fizesse uma ementa especial para a Páscoa e surgiu a ideia: fazer um prato que pudesse ser encomendado por cada um e assim podermos fazer um almoço pascoal em família, à distância. Desde aí, comecei a fazer um menu para ser entregue ao sábado; as pessoas encomendavam durante a semana. Havia muita gente a apoiar quem estava a fazer coisas diferentes. Eu não tinha estrutura para fazer um take away diário e este modo de funcionar correu muito bem; foi o que nos permitiu sobreviver e continuarmos a trabalhar. Não sou um céptico relativamente ao take away, mas faço-o segundo as minhas regras. Eu monto uma operação que faça sentido para mim. Não envio nada quente, a pessoa tem de terminar o prato em casa, segundo indicações. Apoios à restauração João Rodrigues – Estamos a gerir uma situação que não conhecemos, não dominamos, nos causa muita incerteza e nos deixa apavorados porque falta chão a todos, ao governo, aos patrões, aos empregados. Estamos todos a apagar fogos. É importante pensar que sequelas é que isto pode trazer no futuro em termos de comportamento das pessoas

(voltarão a viajar?), se faz sentido termos o crescimento exponencial que tivemos em termos de alojamentos, de oferta gastronómica… há que repensar todas estas questões. Faz falta um grupo de gente influente na restauração que crie um espaço de debate, forte, com espírito crítico e construtivo para pensar o futuro, quando tudo isto passar. Até lá vamos estar todos em modo de sobrevivência. Temos de gerir esta situação da melhor forma possível, dia a dia, mês a mês, até haver novamente clientes. Fala-se muito em gestão, sem clientes não há nada. ¶ Alexandre Silva – Acho que, nesta fase, temos de mostrar aos clientes que eles estão seguros. E tentar garantir o distanciamento. Os restaurantes, com todas estas regras impostas, dificilmente vão conseguir sobreviver. É muita pressão e há-de chegar uma hora em que nos queremos é desenrascar. Existem estruturas, mas para funcionarem devem ser genuínas, nós quando acreditamos numa coisa, temos de a levar até ao fim. Estou a pensar, quando isto passar, abrir o Loco todos os dias. Até lá é controlar os custos, largarmos a parte emocional, um bocadinho, e usarmos a racional. ¶ Eu acho que o governo tem feito o trabalho que lhe é permitido fazer. Eu não tenho cor política, não defendo ninguém, a verdade é que ninguém estava preparado para isto. Se é muito ou pouco, já todos percebemos que é pouco, mas mesmo assim (e contra mim falo) há um interesse e um respeito pela restauração. Atenção que não estou a defender ninguém; mas temos de ser justos e perceber a dificuldade que é pensar sobre este tema e agir em conformidade. ¶ André Lança Cordeiro – Eu também não sei que condições é que o governo tem para apoiar; faço o que me permite a mim atrair pessoas ao meu restaurante. É isso que me pode fazer sobreviver. Todos os apoios que vieram são bons, não vou discutir se são muitos ou poucos. Na verdade, não é só a restauração que está a ser atacada. ¶ Nós somos poucos, somos só dois na cozinha e uma pessoa na sala. A minha opinião sobre esta redução dos horários é que só vem piorar a situação, porque faz com que as mesas se condensem todas mais no mesmo espaço horário. Eu sinto isso na cozinha, porque tenho de cozinhar para mais pessoas ao mesmo tempo e só tenho dois braços. As pessoas estão, claro, a vir mais cedo jantar. ×

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João Ferraz não é do mundo da cozinha mas como historiador de formação, esse é um tema que cada vez mais lhe causa curiosidade, nomeadamente quando falamos da alimentação como elemento da cultura de um país. Em 2016, através da série ‘Retratos’, entrevistou nomes como os de Ferran Adrià, Gaggan Anand e Quique Dacosta, com o fim de tentar perceber as relações culturais entre comida, bebida e o mundo contemporâneo. Com o fim de difundir os conhecimentos que estava a adquirir nas suas entrevistas, decidiu democratizar o acesso que estava a ter. Foi então que criou um canal de Youtube e, posteriormente, o site Casa do Carbonara. ¶ No Congresso dos Cozinheiros, Ferraz estreou o seu mais recente documentário ‘Behind the Plate – A terra e o prato’ – gravado entre Junho de 2018 a Dezembro de 2019 – que visa ir mais além ao pensar as relações culturais entre temas como o território, a memória, a sustentabilidade, as tradições e a responsabilidade social. Junta mais de 30 cozinheiros, vinicultores, cientistas e agricultores oriundos de país como Brasil, Peru, Espanha, França e Dinamarca, como Ferran e Albert Adrià, Andoni Aduriz, Virgilio Martínez, Pia León, Alex Atala, Alain Ducasse, Mauro Colagreco, Josep e Joan Roca. Como surgiu a ideia para o documentário? Apesar de eu cada vez mais viver perto do mundo da cozinha, eu não sou deste mundo. Sou historiador e trabalho com estudos culturais em geral.

Fui-me dando conta ao longo do meu envolvimento com o mundo da gastronomia que muitas das questões que são colocadas do ponto de vista formal, académico e teórico são questões contemporâneas que o chefe lida hoje em dia, casos da regionalização, da globalização, da sustentabilidade, da relação entre a tradição e a inovação e da memória. E estes são temas que se discutem tanto num conjunto abstracto da sociologia da cultura como do ponto de vista prático da gastronomia. Os chefes têm que lidar com estes temas todos os dias mesmo de forma não racional. A minha ideia foi tentar fazer com que os cozinheiros falassem sobre esses assuntos do ponto de vista menos prático. Procuraste tocar em temas considerados menos comuns, é isso? Como em todas as profissões, o cozinheiro acaba por ser consumido pelo seu ofício, pela media. Fala muito mais de receitas, técnicas, questões ligadas à cozinha – e isso não tem problema nenhum, é assim que funciona. Um engenheiro fala mais de engenharia do que dos princípios que se regem por detrás da profissão. Mas é bom dar um passo atrás e olhar para esse temas de maneira geral e a ideia foi tentar fazer com que os cozinheiros reflectissem. E que temas são esses? Dessas entrevistas que foste fazendo, o que pudeste concluir junto dos chefes? Muita coisa concluída foram temas esperados. Embora quisessemos concluir o documentário

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com o tema da memória, a sustentabilidade tomou conta e foi o assunto mais importante. O Christian Puglisi do Relæ, na Dinamarca, falou directamente das doenças ligadas à maneira como produzimos alimentação que acaba por ser um pouco profético dado que estamos numa pandemia agora. Outra coisa legal de ver foi a preocupação dos chefes com a desigualdade social, a fome e a falta de alimentos no mundo. No senso comum esperas que os chefes dos restaurantes com estrela Michelin se preocupem menos com estas temáticas mas não, foi um assunto recorrente nas conversas. Que mensagem pretendes passar com este projecto? Primeiro expor o grau de complexidade das relações que circundam a gastronomia. Acho que muitas vezes isso é tomado por adquirido, como se a gastronomia fosse algo muito prático, ligado a um mercado de luxo, de consumo de turismo e de hospitalidade. Mas há uma série de complexidades que podem mexer com muito mais coisas do que só a frivolidade da comida de luxo. Há muito mais coisas que passam pelas mãos dos chefes. Eles são pensadores, eles lidam com problemas reais e têm de reflectir sobre eles e resolvê-los. Depois, reunimo-nos em sociedade por conta da comida há alguns milhares de anos. A sociedade forma-se à medida que o homem domestica o alimento. E o documentário não mostra directamente isso mas é uma mensagem que fica

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no ar: os cozinheiros são mediadores entre diversas pontes da cadeia de produção que vai desde do campo ao turismo. No documentário consegues perceber isso, em várias feridas abertas do mundo de hoje que têm a ver com a globalização, a produção industrial e a exclusão. A teu ver, os chefes têm cada vez mais uma palavra a dizer naquilo que fazem? Acho que têm um papel importante de responsabilidade ecológica que eles já se vêm inteirando e o próximo passo é que tomem essa responsabilidade social e política. Os chefes ressentem-se de terem uma voz menos activa na política. Acho que este é o momento em que eles têm de refazer um pouco esse caminho e procurar ser mais participativos na comunidade à sua volta. Entrevistaste chefes de vários países e culturas diferentes, com diferentes backgrounds. Conseguiste ver uma linha de pensamento igual nas várias gerações? Surpreendentemente sim. Existe muitas similaridades na hora em que falas com o Virgilio Martínez sobre a Amazónia e a seguir com o Alain Ducasse sobre a cozinha francesa. As conversas com ambos passaram justamente pela sustentabilidade e por como entender as particularidades de cada ponto do planeta e fazer daquilo um valor. E daí a importância da memória, a memória que diferentes comunidades e povos trazem para a gastronomia. ×


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Nasceu na Figueira da Foz, ao lado do mar. Da infância guarda as memórias da terra, o cheiro dos campos de arroz, da maresia, os convívios e a música. Mais tarde, a comunicação e o marketing tornaram-se uma paixão. Hoje, Isabel Caeiro é a mulher que está à frente da gestão da comunicação da Makro.

Isabel Caeiro é natural da Figueira da Foz. Os estudos foram passados entre a sua terra e Lisboa. É licenciada em Economia pela Universidade Lusíada de Lisboa e pós-graduada em Marketing Management pelo ISEG. Frequentou ainda o mestrado em Gestão Estratégica das Relações Públicas da ESCS. Começou o seu percurso profissional na CME, empresa de construção e manutenção electromecânica, passou pela indústria cerâmica em Montemor-o-Velho (Olarte) e chegou à Makro de Alfragide, em 1997. Anos depois, foi nomeada para Communication & Engagement Manager da Makro Portugal, passando a assumir na íntegra a gestão da comunicação da empresa grossista no mercado nacional. ¶ Isabel Caeiro é uma mulher de convicções fortes. Para si, os princípios orientadores que constituem a força motriz por trás de uma marca passam por construir um negócio sustentável, «o fazer acontecer, o liderar pelo exemplo, o sucesso do cliente e o poder dos relacionamentos», explica a responsável numa conversa, no âmbito do Congresso dos Cozinheiros. A presença da Makro neste evento tem sido incontornável. «O nosso propósito é muito simples e claro – Viver a paixão pela Gastronomia Portuguesa, levando ao mundo a sua diversidade. Sendo a empresa um player muito focado no sector horeca, é natural que procuremos estar associados a iniciativas que, de facto, impactem o setor, como o Congresso dos Cozinheiros», refere Isabel para quem a cozinha portuguesa é também uma paixão. «A nossa cozinha é uma das melhores e mais

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diversificadas de todo o mundo. Aliás, a nossa cozinha tem influência direta na de outros países. É este suporte que queremos proporcionar, de forma a contribuir para a sua visibilidade além-fronteiras. Por outro lado, a Makro pertence a um grupo internacional que por si só, já faz todo um trabalho global no sentido de dar visibilidade às cozinhas dos vários países onde se encontra». ¶ Há mais de 30 anos em território nacional, a Makro tem apoiado sempre o setor, contribuindo para a consolidação e evolução dos cozinheiros profissionais. A parceria com o Congresso dos Cozinheiros tem «corrido muito bem», sendo «um momento importante, onde a própria Makro acaba por ter uma presença destacada a par de momentos de intervenção muito importantes, dando também a conhecer aos especialistas presentes as suas soluções, serviços, novidades e inovações. É uma plataforma de visibilidade muito importante, sem dúvida», afirma Isabel. ¶ Nestes tempos conturbados, de incerteza e instabilidade, «adaptação e resiliência» têm sido as palavras-chaves para a Makro. «O canal horeca foi muito afetado, mas também tentou reinventar-se e adaptar-se no sentido de não parar. Procuramos continuamente apoiar os nossos clientes, oferecendo-lhes soluções que lhes permitam ajudar a ultrapassar estes tempos mais difíceis». Por trás de uma marca estão sempre pessoas fortes e optimistas. E Isabel Caeiro não foge à regra. «Temos que reagir e reinventar-nos no sentido de conseguir ultrapassar da melhor forma possível as adversidades e ter sempre presente uma visão de futuro». ×


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JoĂŁo Ribeiro

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A lei de João A lei da faca

texto paulo amado foto humberto mouco

A sessão começa, na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa. Ajeitando-se nas cadeiras, impacientes, na correria da vida nova, estão futuros cozinheiros. A voz grave de João Ribeiro surge no espectro. A primeira pergunta é minha. O seu gesto definido, a maneira como agarra numa faca e a levanta perante a audiência, há algo de cerimonial no levantar da pedra, o pousar da faca e o seguir da «homilia». Eu digo «extensão de braço» e a sala pensa «meu futuro». Tilintam as facas na pedra, as cabeças na ideia, e João Ribeiro continua falando de metais, processos e afiação. ¶ É uma parte forte de sua vida, a cutelaria. Eis a cara principal da marca, junto da restauração, o homem que nasceu na família fundadora, na Benedita a terra mãe da ICEL. Ainda que as possibilidades da conexão virtual sejam muitas, não dispensa a palavra directa. Ouvir, falar, agir. Corre Portugal e o mundo que conhece antes de ingressar na ICEL. Contacta com representantes da marca, talhantes, representantes de matadouros, restauradores e chefes. Está conectado, como a marca, ao Congresso dos Cozinheiros, este ano realizado virtualmente. Aprecia muito a proximidade aos que fazem do seu dia a dia as profissões da cozinha e com quem partilha os seus conhecimentos e recebe inputs. Profissionais e jovens, como aqueles que, no fim da sessão de Lisboa e de outras mais, correm à bancada a tocar na pedra de afiação, segurar a faca, a partir de agora sonhada, e todos juntos fazem mais forte este sector apaixonante, a cozinha profissional. Acabada a sessão, dedica a mesma atenção a todos até que recolhe as peças que acondiciona vagarosamente, ainda falando, com a mesma dedicação que o sacerdote, passando o pano pelo cálice. Ainda há muito por vir. ×

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Os Congressos

O Congresso de Cozinheiro (CNC) marca desde há quinze anos a paisagem de eventos culturais relacionados com a cozinha e os cozinheiros. Só faltei a dois! Parece que alguns dos seus objetivos terão sido desenvolvidos, desde a alta Idade Média, pelas antigas confrarias agora com objetivos, algumas, diferentes. ¶ Mas o que representam os congressos no século xxi? Certo é que deixaram de ter aquelas sessões contínuas de comunicações, por vezes pretensiosas, de conteúdos relacionados com o congresso, mas com um discurso pouco atrativo. Talvez tenham exagerado e, por vezes, os de cozinha, se transformaram em verdadeiros festivais de exibicionismo culinário. Costuma-se dizer que no meio estará a virtude (?). Pois é, hoje os congressos têm estes dois componentes e para os quais é sempre difícil encontrar o equilíbrio. Numa época de transformações tão grandes e tão rápidas é necessário, por isso, manter uma forma de abordagem na qual também se explique a evolução. Quantas vezes, se confirma que essa evolução é baseada no crescimento, ou ajustamento, das tradições. ¶ A cozinha revela-se, especialmente desde o século xix, como um processo dinâmico e em crescente evolução e mutação. Foi em muitos congressos que se divulgaram novos conceitos e novas tendências. No entanto, não foi num congresso que foi divulgado o movimento para uma nova «Cozinha Futurista». Talvez porque não sentiram o impacto

texto virgílio nogueiro gomes foto humberto mouco

com a divulgação do seu manifesto, e a primeira atitude formal do seu conteúdo foi apenas informado na sequência de um jantar que juntou os ideólogos principais, italianos e franceses, em 15 de novembro de 1930. Tinha tudo para não chegar aos congressos, e apenas para ser criticado. Naquele juntar foi dito: O macarrão, apesar de agradar ao paladar, é uma comida passadista porque estufa, embrutece, ilude sobre sua capacidade nutritiva, torna-nos céticos, lentos, pessimistas. É, por outro lado, patriótico favorecer sua substituição pelo arroz. Por estas palavras se entende o insucesso da cozinha futurista. Os congressos, de cozinha, são também um «modelo» de formação técnica em muitos aspetos que as escolas de hotelaria nem sempre contempla ou porque os seus orçamentos são limitados não podendo apresentar iguarias que, pelo seu preço, lhes ficam distantes. Muitas das apresentações culinárias têm vindo a colmatar algumas falhas formativas e muitas delas são tradicionais. ¶ Os congressos do CNC, do qual se realiza este ano a 16.ª edição, são verdadeiramente o evento mais bem conseguido em Portugal sobre uma modernidade da cozinha e sempre com apresentação de tradições portuguesas. Pelos seus palcos já passaram figuras ilustres no panorama internacional como tem servido, ainda, para evidenciar o melhor que se faz em Portugal. ×

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I N T E R M A G A Z I N E

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#interfoodanddrinks #270 / 2020 trimestral outubro — dezembro director Paulo Amado pvp continente ₏ 7,5 issn 0873-531x


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