INTER MAGAZINE 272

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Humberto Mouco, Lisboa, 2021



Fernanda Amado, Serra da Estrela, Março, 2021




Quando se fala em grupos de restauração, é comum associarmos a chefia das cozinhas ao chef executivo de cada grupo. E o uso do género masculino na frase anterior é propositado, porque na maioria dos casos esta figura é um homem. ¶ Os chefs executivos assinam a criação dos pratos na carta. Mas no dia a dia são outras pessoas a chefiarem realmente as cozinhas. Muitos casos há em que são mulheres, na sombra dos homens, a comandar as operações. Na Esquina do Avesso é a chef Helena de Carvalho que lidera a cozinha no dia a dia. Dona de uma genica quase inesgotável, ao fogão os seus braços multiplicam-se. A sua mohawk colorida alinha-se na perfeição com o metal que rasga pelo sistema de som da cozinha. Mas só privando de perto com Helena é que podemos testemunhar que dessas colunas pingam também baladas românticas nos momentos em que falham os fornecedores, falha a equipa ou falha ela própria. Um look bruto disfarça uma Helena delicada. É preciso perceber que cada pessoa tem várias dimensões. E é preciso trazer à luz quem está na sombra. × Tiago Lessa, Leça da Palmeira, Maio 2021


editorial

Fundada em 1989 por António Esteves inter magazine

Beira Primavera Estamos a chegar ao Verão de 2021, reabrindo algumas actividades que estavam encerradas, devido às imposições da crise sanitária. Covid 19 será o nome que ficará colado às nossas vidas como a guerra a que não fomos de uma maneira, mas que vai ter connosco de outra. Aqui estamos cheios de esperança que a vacinação tenha os efeitos desejados e que a descida de vítimas e de contágios, que agora se verifica, possa manter-se. ¶ Que voltemos à vida, que voltem os turistas, que siga o País. ¶ É a primavera, altura exacta para desabrochar, para refazer modelos, agir. Chega de estratégias e definições futuras, é ter a coragem de agir já. Com toda a força e instinto, olhando à volta, compreendendo que todos podemos contribuir para a desejada mudança. Uns com os outros. Atenção aos outros, às pessoas, à comunidade. Fazer a comunidade, inspirada em tantos exemplos de colaboração, fazendo destes os momentos chave a repetir e outros nunca mais. ¶ Ser fiel às vontades e convicções, procurar a sustentabilidade a todos os níveis e uma perspectiva humanista de toda a acção. ¶ Eis as Beiras. Seguimos no foco região a região. O foco possível, é um destaque. As Beiras, a maior região do Continente, do mar à montanha, com tanto por sinalizar. Tanta força por juntar, tanta bandeira por levantar. Há um grupo, o pequeno almoço da cozinha das Beiras que está a trabalhar essa vontade de sincronia. Que vá em frente e possa inspirar a uma defesa mais forte da identidade. Uma defesa aberta, para a manutenção e destaque, com as necessárias aberturas. × paulo amado

Director: Paulo Amado Chefe de redacção: Sónia Alcaso Gestora do projecto: Andreia Gomes Fotografia: Humberto Mouco Fotografia capa: Humberto Mouco Design gráfico: RPVP Designers colaboram nesta edição Ana Rita Santos, Bárbara Tomaz, Catarina Amado, Cátia Barbosa, Cristiana Morais, Dave Palethorpe, Destroy Trash, Fernanda Amado, Henrique Seruca, Luís Antunes, Mariana Correia de Barros, Teresa Castro Viana, Tiago Lessa, Theo Gould e Virgílio Nogueiro Gomes. Propriedade: Paulo Amado Rua Diogo do Couto, n.º 1, 1.º Esquerdo 1100-194 Lisboa, Portugal Nif. 182 809 110 contactos eg@egosto.pt www.egosto.pt +351 218 822 993 publicidade comercial@egosto.pt +351 218 822 993 venda por assinatura assinaturas@egosto.pt +351 218 822 992 Publicação trimestral Tiragem: 4000 exemplares Impressão Acabamento: Grafivedras Artes Gráficas Lda. design@grafivedras.pt Estrada Nacional 247, Km 36, n.º11, Escravilheira, 2560-191 S. Pedro da Cadeira, Torres Vedras venda por assinaturas mj/sg/nrocs n.º113499 depósito legal: 21.947/88, issn: 0873-53 lx Membro aind — Associação Portuguesa de Imprensa redacção e edição Edições do Gosto Publicações, Unip, Lda npc: 505 957 221 Registo na Conservatória Comercial n.º 10787 Capital social: 100.000 euros Rua Pereira Henriques, 1, Espaço 11H 1950-242 Lisboa, Portugal +351 218 822 992 consultar estatuto editorial em: http://www.egosto.pt/ estatuto-editorial-inter-magazine/ edições do gosto Ana Gouveia, Andreia Gomes, Catarina Amado, Paulo Amado, Rita Cupido, Sílvia Alves, Sónia Alcaso, Susana Hurtado. Com Humberto Mouco, Mário Batista, Vânia Rodrigues e Vítor Paulino. interdita a reprodução de textos e imagens sem o devido consentimento



30 O nome Martín Berasategui é mundialmente conhecido neste sector. A INTER magazine falou com o chefe basco e com Filipe Carvalho, o chefe do seu 50 seconds, em Lisboa. A conversa decorreu no restaurante da Torre Vasco da Gama, depois da apresentação do primeiro filme da série «A taste of Fifty seconds».

destaques

80 Natural de Penha Garcia, Josefina Pisarra foi traçando um caminho de sabedoria natural na história da alimentação. Hoje, do alto dos seus 86 anos, relembra mil histórias e tradições da sua terra e é um exemplo de fidelidade às raízes e de generosidade do ser humano.

70 O apelo para voltar à terra natal, Tentúgal, e pegar no negócio dos pais foi mais forte. Olga Cavaleiro é a sócia gerente das Pastelarias Afonso e dedica-se, de corpo e alma, à causa das confrarias gastronómicas. Defensora do património gastronómico português, a socióloga partilha, nesta edição, os seus saberes e interesses pela preservação dos territórios e dos seus produtos.


22 O delivery entranhou-se na vida dos portugueses e está agora a diversificar as operações: mais restaurantes, ofertas premium e maior independência dos restaurantes. Venha conhecer, pelas vozes dos principais operadores do mercado, o que tem acontecimento neste último ano caracterizado pela mudança e sobrevivência.

14 ‫‏‬A 11 de Março de 2020, Tedros Adhanom Ghebreyesus, Diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), declarou oficialmente o surto do coronavírus como uma pandemia. Em Portugal, os primeiros casos surgem a 2 de Março e o primeiro estado de emergência é assinalado a 18 de Março. De lá para cá muito aconteceu! Veja a síntese dos acontecimentos mais assinaláveis sobre a evolução da covid-19.

58 O Sublime Comporta é um retiro no meio do Alentejo com uma oferta gastronómica em que o produto local é estrela. O Food Circle, o restaurante mais exclusivo do hotel, é chefiado por Hélio Gonçalves e a INTER Magazine teve oportunidade de o conhecer.


in memorium

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Pão, de mão e mãe. Que apanha o cereal, da fertilidade, que dá a vida. Mouette cismou presa nesse património nosso e fez parte de sua vida pender para nós, os portugueses. Ela, perdão, a senhora, ou como gostaria, a Mouette, era francesa. Sensível e com olho, atentou, recolheu, fixou. Guardo memória da fotografia anexa a este texto. Esta menina de broa na mão que já soube quem era, de nome e localização e tudo. Mas não fixei, não era preciso, estava cá a Mouette para me dizer de novo quem era a «minina». Foi António de Sousa que me apresentou Mouette Barboff, foi ele – nome grande no universo do cereal e do pão em Portugal – quem em deu acesso a essa mulher maravilha. ¶ Durante anos tive a oportunidade de poder interagir com Mouette Barboff, enquanto jornalista, pessoa ligada a eventos e outrem presente no mundo nesta época. Entrevistei Mouette mais do que uma vez para a revista INTER Magazine, estive no lançamento de alguns dos seus livros, preparei uma exposição das suas maravilhosas fotos para acompanhar o seu penúltimo livro e organizei a homenagem do Congresso dos Cozinheiros em 2019. É uma colecção de vivências que toma outro sentido, o que era vida partilhada, continua a ser vida partilhada, agora mais memória, por essa nova camada, a noção de que nada se repete. ¶ A última vez que ouvi a sua voz, ia de carro à procura do ouro, à procura de Deixar o Pão Falar, com Mário Rolando – o exímio padeiro humanista – pessoa a quem dei os pêsames. Não conhecia ninguém mais do seu universo. Viverá em nós, Mouette. O País deve-lhe a atenção, o destaque, pelo contributo cultural que nos deu com a recolha e o estudo que levou por diante. Um abraço e até sempre. ×

MOUETTE BARBOFF texto paulo amado foto cátia barbosa

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especial texto ana rita santos foto humberto mouco

a pande mia e a restaura

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A 11 de Março de 2020, Tedros Adhanom Ghebreyesus, Diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), declarou oficialmente o surto do coronavírus como uma pandemia. Em Portugal, os primeiros casos de Covid-19 surgem a 2 de Março e o primeiro estado de emergência é assinalado a 18 de Março. O 15.º estado de emergência foi declarado recentemente, em abril de 2021.

Ninguém estava preparado para os desafios pessoais e profissionais, os desafios seja na saúde física seja na saúde mental, que ainda estavam para chegar. De máscaras na cara, com um frasco de álcool gel à mão e o constante distanciamento físico por receio, por recomendação, por lei. Digno de um filme de Hollywood, onde a resiliência é imperativa. E isso é o que o sector da restauração (e não só) tem procurado fazer neste último ano, ser resiliente.

António Costa referiu que, embora seja necessário o encerramento ao público dos estabelecimentos comerciais do sector da restauração, estes negócios deveriam continuar em funcionamento através dos serviços de takeaway e de entrega ao domicílio. «É importante, sobretudo nas aldeias, vilas e bairros, que a restauração de proximidade se mantenha aberta para servir e continuar a apoiar muitos daqueles que vão estar confinados no seu domicílio», declarou o chefe do poder executivo. ¶ O problema é que Primavera/Verão 2020 – Quando tudo começou… muitos dos negócios de restauração não estavam preparados Era uma segunda-feira, dia 2 de Março de 2020, quando para este tipo de conceito e, embora muitos tenham Portugal começa a confirmar os dois primeiros casos de conseguido adaptar-se e reinventar-se, outros não Covid-19, frutos de anteriores deslocações para Itália e conseguiram manter-se e tiveram que fechar, Espanha. O país não demorou muito a responder e provisoriamente ou até permanentemente. O decréscimo a 13 de Março é declarada a situação de alerta. ¶ Os do volume de negócio foi inevitável, e o apoio financeiro estabelecimentos de restauração e bebidas que dispusessem e social começou a ser necessário, em todas as vertentes de salas ou de espaços destinados a dança ficaram com o profissionais. Como tal, o Governo dispôs de medidas funcionamento suspendido, e existiu uma redução da de fundo perdido e crédito. Ainda assim, entre dia 1 e 3 de lotação máxima para os restantes restaurantes, entre outras Abril, num inquérito realizado pela AHRESP – Associação medidas. Algumas destas foram sendo acrescentadas e da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal, às anunciavam o que ainda estava para vir. Por todo o mundo empresas do serviço de alojamento turístico e da restauração vivia-se uma situação inédita, os média, a internet, tudo foi e bebidas, concluiu-se que por esta altura cerca de 75% das inundado pelo acontecimento da pandemia. ¶ A 18 de empresas estavam fechadas, cerca de 50% iam avançar para Março de 2020 é declarado o primeiro estado de emergência o lay-off, e que cerca de 80% das empresas estimava zero com a duração de 15 dias e com possibilidade de renovação. vendas entre Abril e Maio. ¶ Além do problema de capital, Confinamento obrigatório e restrições de circulação que a comunicação com o cliente devido ao confinamento ficou em caso de desobediência seriam puníveis por lei. Mas não comprometida e a única solução para a manutenção dessa ficou por aqui, entre as medidas impostas estavam incluídos ligação foi o universo digital. Um universo que passou a ser o encerramento de certas instalações e estabelecimentos, transversal em diferentes situações, como por exemplo, como os de restauração. As actividades de comércio a o teletrabalho e as escolas com as aulas online. De modo a retalho foram suspensas, com excepção das que que as empresas tivessem a oportunidade de uma adaptação disponibilizavam bens essenciais ou de primeira a esta realidade, começaram a ser criadas diferentes necessidade. Todavia, os locais que se mantiveram abertos iniciativas de consultoria, webinares e workshops em tinham de cumprir sempre com um conjunto de regras de plataformas como a Zoom, o Teams, não esquecendo higiene e segurança. Esta questão passou a ser um dever em as redes sociais. A educação, a formação, a troca de qualquer que fosse a situação ou espaço. Na página conhecimento, começaram a ser uma forma de colaboração governamental portuguesa, em descrição da conferência essencial para a sobrevivência e para o sucesso. No sector de imprensa de dia 19 de Março, o Primeiro-Ministro da restauração, o takeaway e as entregas ao domicílio

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especial implicavam um investimento no marketing digital e a adaptação do conceito à situação. A Kitch, o Turismo de Portugal, a Makro, entre outros nomes, foram impulsionadores de diferentes projectos. «Há pessoas por detrás das marcas e é o nosso dever cívico ajudar as pessoas», explica Filipa Herédia, representante da Makro, marca envolvida em igualmente outros tipos de iniciativas de ajuda social. Nomeadamente, o Alimentar a Saúde, ideia que surge do chefe Rui Silvestre do restaurante Vistas Rui Silvestre, no Algarve, e foi lançada a 23 de Março. O movimento, além da Makro, conta com diferentes apoios e tem como objectivo providenciar refeições aos colaboradores da área da saúde e às famílias carenciadas. Um movimento que se estendeu ao longo do país. Responsáveis de restaurantes anunciavam a oferta de sopa nas redes sociais, instituições a entregar sacos de comida a quem precisasse. Uma onda de colaboração começou a correr o país, seja ela profissional, social ou digital. «Fecharam-se restaurantes, mas abrimo-nos ao diálogo e à partilha – Uma procura de que juntos somos mais fortes, e conseguimos mais», pondera o chefe João D’Eça Lima do Restaurante Xisto, em entrevista a Paulo Amado, director da INTER. João foi propulsor de diferentes eventos nas redes sociais, como o ciclo de Conversas de Cozinha com outros chefes portugueses e de transmissão em directo no Facebook. Este tipo de iniciativas foi muito explorado por intervenientes da restauração ao longo da pandemia. ¶ O estado de emergência é renovado a 2 de abril. Neste mês, a Ministra da Agricultura, Maria do Céu Albuquerque, anunciou o lançamento da campanha, Alimente Quem o Alimenta, destinada a ajudar os agricultores a escoarem os seus produtos nos mercados locais e para promover o seu consumo. Nesta fase da pandemia começaram a ser verificados problemas com o escoamento de produtos agrícolas e das carnes de raças autóctones devido ao confinamento e ao encerramento do Canal Horeca, que tem como principal destinatário a restauração, explica o comunicado na página governamental. O fecho do canal Horeca e o tempo livre que adveio por consequência do abrandamento do volume de vendas dos negócios, impulsionou muitos responsáveis a começarem a ter uma preocupação diferente pela cadeia de valor do seu restaurante. A origem e a história dos produtos, a qualidade, a sustentabilidade que tudo isso poderia trazer a todos os intervenientes do ciclo. Um projecto que zela por estes

valores é o Projecto Matéria, desenvolvido pelo chefe João Rodrigues, do restaurante Feitoria, em parceria com outras entidades, como a ICEL. Uma outra iniciativa para o efeito é o Mercado dos Produtores, dirigido por Rita Santos da Comida Independente. ¶ A 16 de Abril é prorrogado o estado de emergência. Entre as diferentes restrições impostas, como as de circulação, existem também as de horário dos estabelecimentos, nomeadamente o fecho dos estabelecimentos a partir das 13 horas ao fim de semana. A 3 de Maio começa o estado de calamidade e é anunciado que vão existir três fases de desconfinamento. Em algumas regiões do país os números de casos continuam a subir, principalmente em Lisboa, o que se reflectiu num levantamento diferenciado das restrições. O dia 18 de Maio ficou marcado pela reabertura dos restaurantes, os quais tinham de fazer cumprir algumas regras, como a colocação de acrílico e assegurar o distanciamento de dois metros. No entanto, segundo um estudo da AHRESP entre 31 de Maio e 3 de Junho de 2020, 36% das empresas deste sector não conseguiram reabrir a 18 de Maio. A AHRESP sugere que as medidas de apoio sejam mais acentuadas, tal como a redução da taxa do IVA, a isenção da TSU a cargo destas empresas e a prorrogação da moratória dos financiamentos em curso. O estado de calamidade continuou até 14 de Junho, ou seja, durante a quadra dos santos populares ficaram proibidos todos os arraiais, marchas e desfiles. ¶ O verão sempre foi uma lufada de ar fresco no turismo nacional. «Após a queda de 9,4% no primeiro semestre de 2020 face ao final de 2019, a actividade económica mundial recuperou durante os meses de verão», explica o boletim económico de Dezembro do Banco de Portugal. Ao longo destes meses houve um alívio nas restrições, o calor propício às diferentes actividades impulsionou a organização de diferentes eventos como a Porto Food Week com o tema Safe Edition, organizado pelas Edições do Gosto. Um outro exemplo foi o Festival Arrebita Portugal dos criadores e organizadores Ana Músico e Paulo Barata, da Amuse Bouche. Ainda assim, o Banco de Portugal referiu que «para o quarto trimestre antecipava-se uma inversão da trajectória de recuperação, decorrente da reintrodução de medidas de contenção em vários países». Outono / Inverno 2020 – Os altos e baixos A 15 de Setembro o regime de situação de contingência passou a vigorar em todo o território nacional, até aqui apenas a Área Metropolitana de Lisboa estava neste regime.

A AHRESP sugere que as medidas de apoio sejam mais acentuadas, tal como a redução da taxa do IVA, a isenção da TSU a cargo destas empresas e a prorrogação da moratória dos financiamentos em curso. inter magazine


No sector da restauração, o limite máximo da lotação ficou imposto nas quatro pessoas por grupo, salvo se do mesmo agregado familiar. Os horários de funcionamento dos estabelecimentos ficaram da competência do presidente da câmara municipal da respectiva área geográfica, respeitando os limites entre as 20 horas e as 23 horas e o parecer favorável da autoridade local de saúde, descreve o Comunicado do Conselho de Ministros de 10 de Setembro. ¶ A 14 de Outubro é declarado situação de calamidade, alterando algumas das medidas do regime de contingência. O mês de Outubro revelou uma subida no número de novos casos, superiores a Setembro e até mesmo Abril, o que resulta num novo estado de emergência a 9 de Novembro. A constante alteração e intermitência das situações e das restrições estipuladas não dão estabilidade à indústria da restauração, o que remeteu para um mês de Novembro e Dezembro marcados pelos movimentos sociais em prole do sector, e de outros dos serviços de atendimento ao público. Os protestos e as vigílias tiveram lugar em diferentes partes do país, distinguindo-se os movimentos A Pão e Água, Mulheres pela Restauração, Vigília pela Restauração, entre outros. Daniel Serra, director da PRO.VAR (uma associação nacional de restaurantes com vista à promoção, inovação e defesa do sector da restauração), em entrevista ao site Etaste, explica que as vigílias também servem para estreitar laços entre os empresários deste sector e para se perceber que há mais motivos que os unem dos que os separam. O responsável pela PRO.VAR é da opinião que os apoios do Governo não estavam ainda adaptados à presente realidade do sector. ¶ Um novo estado de emergência foi assinalado a 24 de Novembro. Contudo, desta vez iria ser distinguido entre os diferentes níveis de risco, posto que as medidas seriam adaptáveis consoante a situação. ¶ E como foi um ano agridoce, em Dezembro, o Guia Michelin deu a conhecer os premiados em Portugal. Entre os restaurantes distinguidos com estrelas Michelin, destacam-se duas novidades na categoria de uma estrela: o novo 100 Maneiras do chefe Ljubomir Stanisic e o Eneko Lisboa do chefe espanhol Eneko Atxa. Embora, neste último ano que passou, tenha existido uma clara aposta na gastronomia tradicional portuguesa, na comida de conforto, e na alimentação equilibrada e sustentável, a alta-cozinha não ficou para trás. «Será algo que se vai afirmar nos próximos tempos. Os clientes que temos recebido, já na primeira fase do pós-confinamento, estão mais atentos ao produto, à qualidade»,

explica a chefe Marlene Vieira no fórum Pensar Cozinha, no dia 15 de Abril deste ano, das Edições do Gosto. «Têm mais distanciamento entre as mesas, um serviço mais cuidado. As pessoas preferem investir numa refeição mais especial, gastarem mais e ser mais marcante», completa Nuno Faria, sócio e diretor de F&B do 100 Maneiras, ainda em relação ao conceito de alta-cozinha. ¶ Durante o período da quadra festiva que engloba o Natal e o Ano Novo, as medidas e restrições foram adaptadas, nomeadamente as relacionadas com a circulação. Entre Março e Dezembro, a actividade da restauração e similares registou uma quebra homóloga de 42.5%, segundo informações adquiridas pelo Jornal de Notícias. Inverno / Primavera 2021 – A sequela O número de casos, obstante as medidas, continuou a subir. De 15 de Janeiro de 2021 a 4 de Abril é declarado o segundo confinamento. A restauração volta a fechar as portas e a adoptar o regime de takeaway e das entregas ao domicílio. Entre as medidas, «a limitação do valor que as plataformas de entregas ao domicílio podem cobrar aos restaurantes é de 20% do preço da refeição», explica a página governamental. O Ministro de Estado, da Economia e da Transição Digital, Pedro Siza Vieira, em conferência de imprensa, afirmou que nas reuniões de trabalho com as associações empresariais, «o que mais nos solicitaram foi concretizar o mais rapidamente possível os novos apoios e os que foram aprovados há um mês para o primeiro trimestre de 2021, e é o que iremos fazer». ¶ Mas estes apoios não solucionam tudo, «o que faz o turismo e os estabelecimentos de alojamento turístico e de restauração e bebidas “mexer” está praticamente paralisado. A circulação das pessoas, que tem estado fortemente condicionada, a diminuição do poder de compra, o receio natural que uma situação destas provoca, as restrições – que são muitas – ao funcionamento dos estabelecimentos, tudo contribui para a situação dramática que as empresas destes sectores hoje enfrentam», comenta Ana Jacinto, secretária-geral da AHRESP, num artigo de opinião em Janeiro para o Diário de Notícias. ¶ O sentimento de descontrolo e o frequente distanciamento social causados pela pandemia trouxeram a necessidade de mais informação e auxílio em temas como as consequências mentais e posteriormente físicas na saúde. Ansiedade, depressão, stress, burnout, entre outras condições, começaram a ser vistas com menos preconceito e com mais

O sentimento de descontrolo e o frequente distanciamento social causados pela pandemia trouxeram a necessidade de mais informação e auxílio em temas como as consequências mentais e posteriormente físicas na saúde. 17


especial compaixão. A 15 de Janeiro, na página online do Ministério da Saúde, foi indicado o estudo SM-COVID19 que visava avaliar o impacto da pandemia na saúde mental e no bem-estar da população em geral e dos profissionais de saúde: 38% dos profissionais da área de atendimento ao público, incluído a restauração, sofrem sintomas de burnout (exaustão física e emocional). Têm existido diferentes iniciativas de apoio aos problemas da saúde mental. «Quando nos sentimos apoiados, os nossos níveis de stress baixam. A situação de stress pede a conexão ao outro», desenvolve Nuno Mendes Duarte da Oficina da Psicologia, parceira das Edições do Gosto no projecto Nós As Pessoas, onde se facilitam as ferramentas necessárias para o apoio psicológico dos trabalhadores da área da restauração. «Saem das consultas com um escudo, não se muda o meio-ambiente, mas sim a relação que se tem com esse meio-ambiente», disserta Nuno durante a sua participação no fórum Pensar Cozinha. ¶ Após o segundo confinamento, foram impostos novos estados de emergência. O último foi estipulado a 16 de Abril, totalizando 15 até ao momento. O plano de desconfinamento, iniciado a 15 de Março e consequente levantamento progressivo das restrições, culminaria no dia 3 de Maio altura em que os restaurantes, cafés e pastelarias poderiam estar abertos sem limite de horários. No entanto, existiram actualizações nas medidas a aplicar, e no plano, devido às recentes alterações nos níveis de transmissão, como tal, ficou decidido que a partir do dia 1 de Maio o território nacional passaria a estado de calamidade, com excepção de alguns municípios. As fases de desconfinamento vão estar dependentes do número de incidências e as medidas adaptadas ao nível de risco, ou seja, através de uma avaliação intercalar os municípios poderão avançar ou regredir no plano. Nesta fase os horários de funcionamento da restauração podem ir até às 22h30, quanto às lotações, estipula-se que fiquem no máximo seis pessoas por mesa no interior e dez pessoas por mesa na esplanada, sendo que existem novas regras no que toca ao distanciamento e as pessoas que vivam em coabitação podem estar sentadas a menos de dois metros. A DGS também aconselha outro tipo de regras no que toca à higienização e disposição do espaço, nomeadamente a implementação de um circuito de circulação. ¶ A dia 2 de Junho, em conferência, António Costa revela que vão existir mais duas novas fases de desconfinamento no mês de Junho, mas a sua aplicação vai estar dependente da densidade populacional e da taxa de incidência ao longo de duas avaliações consecutivas. A partir de 14 de Junho ficou estipulado que os restaurantes, cafés e pastelarias mantêm as regras de lotação, todavia a admissão pode ir até à meia-noite e o encerramento até à uma da manhã. Segundo as informações governamentais, se nas duas avaliações existir um registo da «taxa de incidência superior a 120 casos por cem mil habitantes nos

últimos 14 dias (ou superior a 240 nos concelhos de baixa densidade)», no caso dos restaurantes, o encerramento fica apontado para as 22h30. Se o cenário tiver uma taxa de incidência com o dobro dos números anteriormente referidos, ao fim de semana e feriados são ainda implementados os horários até às 15h30. O segundo momento do desconfinamento de Junho é a dia 28, que se poderá estender até ao final de Agosto. Entre as novas medidas criadas, podem-se também contar com as de apoio aos sectores do alojamento, cultura e restauração. Como por exemplo, o Governo lançou o programa «IVAucher – O IVA que vai e volta» que a partir de dia 1 de Junho permite acumular o valor do IVA pago nestes sectores, entre Junho e Agosto, e usá-lo depois em forma de desconto (até 50% do valor da factura) nos mesmos sectores, entre Outubro e Dezembro. ¶ Ainda assim, na conferência de imprensa de dia 27 de Maio, a Ministra de Estado e da Presidência, Mariana Vieira da Silva, explica que quatro dos 278 concelhos do território continental estão em estado de alerta e, que no caso de Lisboa e Vale do Tejo, é motivo de preocupação a situação crescente. Daí a aprovação da aceleração de campanhas de testes já planeados e a sua realização em locais com mais casos. O Secretário de Estado da Saúde, Diogo Serras Lopes, salienta igualmente a importância do processo de vacinação no combate à pandemia para que se chegue a uma maior protecção colectiva. A segunda fase de vacinação arrancou em Abril e segundo os últimos dados das autoridades competentes, «40 % da população portuguesa (incluindo Regiões Autónomas) já recebeu pelo menos uma dose da vacina e mais de 22% já tem o esquema vacinal completo». Ou seja, já foram administradas mais de seis milhões de vacinas até ao dia 7 de Junho. A meta é atingir os 70% da população vacinada, com pelo menos uma dose, até ao final de Agosto. O país registou até agora mais de 853 mil casos, dos quais para cima de 812 mil recuperaram. ¶ Quanto à indústria da restauração, é «recuperar e saber o que podemos fazer, andámos dez anos a nível de tecnologia», reflecte Filipa Herédia, representante da Makro, ao ser questionada por Paulo Amado em relação ao futuro do sector. Os tempos são outros, mas a criatividade e o poder de adaptação ao mercado sempre teve de estar intrínseco ao sector para existir sucesso. Aliás, nestes últimos levantamentos das restrições, tem se sentido na restauração a vontade de criar e inovar, mas também se denotam as saudades que os consumidores tinham. E embora o mundo esteja diferente e nunca mais vá ser igual segundo João Ribeiro, director comercial da ICEL, a resiliência tem de continuar a ser a palavra de ordem, porque – e nas palavras que andaram a correr a Web e o mundo – #VaiFicarTudoBem. ×

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A comida toca sempre duas vezes inter magazine


Uma vez no telefone, a avisar que o estafeta já chegou, outra na campainha da porta. O delivery entranhou-se na vida dos portugueses e está agora diversificar as operações: mais restaurantes, oferta mais premium, mas também maior independência dos restaurantes, dizem os operadores.

O último ano foi de mudança/adaptação/sobrevivência (sublinhar aquele que melhor serve) para todos. Sem excepção alguma. Sobre o terramoto pandémico que assolou a área da restauração, já muita tinta se escreveu – e continuará a escrever, mas esperemos que não por muito mais tempo. A verdade é que, fechados em casa, no horribilis mês de Março de 2020, vimos as nossas vidas ganhar o apelido ‘virtual’. Trabalhos, rotinas, hobbies, jantares, festas, o mundo passou a depender do online. Façamos um exercício de memória e lembremos as primeiras semanas de confinamento. Medo de ir ao supermercado? Sim. Desinfectar produtos vindos da rua? Sim. Desinformação permanente? Sim. Fome? Muita. Sempre. Recordemos ainda com mais força como reagiram os restaurantes. Medo do desconhecido? Sim. Vontade de adaptação ao digital? Alguma. Necessidade de lutar? Toda. E, para os restaurantes, num ano tudo mudou. ¶ Durante meses, o delivery passou a ser a única forma de manter as cozinhas a fumegar. Quem já o fazia, seja de forma autónoma ou nas plataformas de entrega ao domicílio, continuou a fazê-lo e intensificou a operação; quem não o fazia, pensou e repensou, pôs na balança, desta vez não os ingredientes, mas os custos e os ganhos, e escolheu aderir ou não ao formato. Para quem ficou em casa, abrir uma aplicação de telefone e escolher o almoço ou o jantar tornou-se o prato do dia (perdoe-se a piada fácil). A par de um certo sentimento de poder contribuir para o movimento de apoio à restauração. ¶ Quanto às plataformas de delivery, quase todas na categoria de startup, conheceram meses de estranha adaptação, de

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desenfreado crescimento, de críticas duras da imprensa – sobretudo acusadas de práticas predatórias nas taxas cobradas aos restaurantes –, mas, claro, de maior facilidade de expansão no mercado. Para este artigo, falámos com quatro plataformas de delivery, com mais ou menos tempo de mercado e traçamos um retrato daquilo que são os desafios e as conquistas de uma realidade sem a qual já não sabemos viver: a comida a tocar-nos à porta. ¶ Um dos mais recentes operadores do mercado chama-se Volup, e entra no jogo como um negócio de ‘Prime Food Delivery’. Trocado por miúdos, é uma plataforma virada para restaurantes de topo, exactamente aqueles que por hábito não associamos à entrega ao domicílio. ‘E porque não?’, pensou o luso-espanhol Álvaro Meyer, de 26 anos, depois do primeiro confinamento, em 2020. «Eu era cliente das plataformas mais comuns. Um dia estava a conversar com um chef que equacionava lançar um delivery, reinventar-se, mas tinha dúvidas se isso iria ou não desvalorizar a sua marca. E pensei: em vez de cada um ter a sua própria entrega, podia criar um serviço de qualidade com um standard superior», conta. Meteu, então, as mãos à obra. ¶ Durante dois meses «loucos», descreve, munido de uma apresentação em Power Point, andou a tentar convencer vários chefes de Lisboa de que tinha uma oferta diferenciadora. A proposta já englobava aqueles que são os pilares da Volup: a companhia de outros restaurantes premium na plataforma, mochilas isotérmicas criadas de raiz para a marca, sacos de gramagem mais elevada, uma rede de ‘Navigators’ (nome inspirado nos navegadores portugueses) escolhidos a dedo, com fardas


Rui Bento, Kitch


Álvaro Meyer, Volup


delivery

elegantes, «para tentar fazer em casa, uma extensão do restaurante», justifica Álvaro. Reconhece que a experiência nunca será a mesma, claro está, mas esse é outro dos segredos: «criar uma nova – e boa – experiência». E ainda provar que o delivery não precisa de estar colado à fast food, «que a restauração superior tem algo a acrescentar.» ¶ Estreou a aplicação no final do ano passado, mas não com os 20 restaurantes iniciais que ambicionou. Contactou 60, fechou seis, entre eles alguns pesos pesados da gastronomia, como o Kanazawa, a Tasca da Esquina e o Eleven. Porém, acreditou que com a app a funcionar, o caso mudaria de figura. E assim foi: hoje conta já com mais de 40 restaurantes na plataforma, que entretanto se estendeu à Grande Lisboa, e tem tido vários contactos da parte dos próprios restaurantes. O funcionamento é semelhante às congéneres do mercado, porque, salienta «não inventámos a roda, mas difere no aspecto visual, com mais fotografias de pratos, de chefs. Temos o pagamento por MBway, que também é diferenciador», diz. ¶ Entre os nomes que hoje trabalham com a Volup, não necessariamente em exclusividade, estão o Pap’Açôrda, o 100 Maneiras, o Praia no Parque, o Solar dos Nunes e até o Cinco, com os seus cocktails. «O confinamento veio provar que o delivery é uma opção válida. Que pode ajudar a aumentar a facturação de um restaurante, sem necessidade de mais espaço físico.» Os planos de fazer crescer a marca, uma startup criada apenas com capitais próprios, são mais que muitos: «eventualmente ter menus executivos Volup, cozinhas virtuais… ainda estou no princípio», diz, no final da conversa. ¶ Falar de comida entregue ao domicílio em Portugal sem trazer à mesa a Uber Eats é como falar em

serviços de streaming e não incluir a Netflix. Não foi o primeiro a aparecer em Portugal – o NoMenu opera desde 1998, por exemplo –, mas apoiou-se na experiência das viagens de carro, em novembro de 2017 já bastante disseminadas no país, para construir uma rede de estafetas que fizessem a ligação dos restaurantes às casas dos clientes. «Quando montámos o serviço, sabíamos que o food delivery era sempre associado a refeições rápidas. Ao sushi, às pizzas… E queríamos oferecer mais: levar o talento nacional à mesa dos portugueses», conta Diogo Aires Conceição, General Manager da Uber Eats em Portugal. É certo que também as principais multinacionais de restauração rápida também englobam a rede de oferta da marca, mas o caminho não se trilha necessariamente por aí. De início contaram com uma equipa de vendas e comercial para identificar os restaurantes locais mais populares, os novos talentos da gastronomia ou outros espaços de chefs de renome. «E mantemos uma equipa que faz essa escolha, com base em diversas fontes, desde imprensa a bases de dados e questionários junto dos utilizadores», explica. ¶ A pandemia, reflecte Diogo, trouxe um impulso para o canal digital como um todo. «Num cenário em que as pessoas estão em casa, o serviço aumentou, claro. Não só de consumidores, como de restaurantes.» Para se ter uma ideia, as receitas de food delivery, aumentaram 180%. Mas, ressalva Diogo, «a digitalização do sector precedeu a pandemia.» Ou seja, o apenas o confinamento ainda mais. «Temos vários restaurantes que precisavam de se adaptar. Nós ajudámo-los nessa transição e adaptação. O delivery não é um substituto do restaurante tradicional, é uma oportunidade adicional.» A par dos restaurantes aderentes,

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«As taxas cobradas aos restaurantes não são impostas pelas plataformas, mas sim acordadas diretamente com cada restaurante antes de se iniciar a parceria.» david ferreira da silva, bolt food

surgiram outros restaurantes virtuais, baseados no conceito cozinhas fantasma, com nomes como José Avillez, Kiko Martins, Miguel Castro e Silva e, mais recentemente, Diogo Noronha, com o novo Ameaça Vegetal. ¶ A pandemia não trouxe só este crescimento à Uber Eats que hoje cobre mais de 60 cidades e opera com mais de seis mil restaurantes, lojas e outro tipo de comércio. Nas grandes cidades, como Nova Iorque ou Londres, as plataformas foram acusadas de cobrar elevadas taxas aos restaurantes – durante o estado de emergência, em Portugal, no início de 2021, a taxa foi fixada em 20%. Diogo defende o serviço. «Primeiro, o delivery não é uma cópia do restaurante; segundo, é preciso perceber o negócio, para que servem as comissões – e esses dados de lucro são públicos. Se subtrairmos o custo do estafeta, o restante serve para cobrir o marketing e a promoção», resume. Há um investimento a fazer para alcançar novos utilizadores, a retê-los, além de pagar toda a estrutura, «são cerca de 500 pessoas». ¶ À data desta conversa, em meados de Abril, Diogo esperava a reabertura do país para avançar com quatro objectivos específicos: passar de Uber Eats para (Uber) tudo, ou seja, aproximar-se daquilo que faz, por exemplo, a Glovo, a operar em Portugal também desde o Outono de 2017; aumentar a expansão geográfica de alcance da aplicação, «cobrir quase todo o território português»; «queremos que seja um serviço acessível, que possa ser usado todos os dias e não apenas em ocasiões especiais»; e continuar a crescer a nível de selecção de restaurantes, bem como «melhorar a experiência dos utilizadores», conclui. Reconhece que há ainda muito terreno para explorar, sempre com foco na novidade. «A inovação está no ADN da equipa.» ¶ «O delivery veio para ficar. É preciso

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pensar nele de forma mais séria.» A frase pertence a Rui Bento, o primeiro director geral da Uber Eats em Portugal, que lançou em 2020 o projecto Kitch, com o sócio, Nuno Rodrigues. E continua: «com o mercado de entregas ao domicílio a crescer em média 10% ao ano, fazia sentido dar acesso à comida favorita dos consumidores nas suas casas.» Fazê-lo no mercado da fast food era fácil, ao nível dos grandes restaurantes da cidade já não. «Os favoritos tinham as cozinhas no limite das suas capacidades.» Por isso, o primeiro desafio era fazer com o que a comida para entrega em casa saísse de outras cozinhas que não as dos restaurantes, através das chamadas cozinhas virtuais. ¶ O negócio estreou-se a 13 de Março do ano passado. O leitor reconhecerá, provavelmente a data, o primeiro dia de confinamento geral. Arrancou com alguns restaurantes como os japoneses GoJuu e Nómada – através da marca Umikai – aos quais se juntaram depois o Las Gringas (spin-off do extinto Pistola y Corazon) ou o Pigmeu, com o Reco Reco, mas acabou por sofrer uma viragem de conceito. «A entrega ao domicílio veio abanar bastante a forma como os restaurantes trabalham. Se ter só uma aplicação já gerava o caos, trabalhar com mais operadores era ainda pior, com dois e três tablets… Além de sentirem que os donos dos espaços sentiam que os clientes não eram deles, mas sim da aplicação.» Assim, mais cedo do que previam, lançaram a Kitch Tech, uma plataforma onde os restaurantes recuperam o contacto com as vendas digitais. «Cada um tem um site próprio, trabalha com as aplicações delivery desejadas, ou tem o seu delivery próprio, mas tudo dentro de uma app, que funciona como uma loja própria, com identidade pessoal, mas desenvolvida pela Kitch. É a ideia de ser o


delivery «Temos vários restaurantes que precisavam de se adaptar. Nós ajudámo-los nessa transição e adaptação. O delivery não é um substituto do restaurante tradicional, é uma oportunidade adicional.» diogo aires conceição, uber eats

delivery a adaptar-se ao restaurante e não o contrário.» ¶ Rui Bento, reconhece que o mercado da entrega ao domicílio arrancou mais tarde em Portugal do que noutros países, mas que houve uma recuperação e grande penetração no público. «No nosso caso, o que sentimos são as dores dos restaurantes. Eles querem focar-se em ser bons e, para poderem pôr o delivery em piloto automático, temos de ter processos cada vez mais automatizados.» Um trabalho que tem sido feito lado a lado com os restaurantes ditos independentes, de forma a que o delivery seja uma peça fundamental da engrenagem dos restaurantes. ¶ Já há vários anos que Rui Bento estuda o mercado e acredita que este pode ter um peso significativo para os restaurantes – «se assim não fosse, muitos não sobreviveriam à crise». O segredo, diz, é «dar mais controlo aos restaurantes, para poderem vender mais, de forma mais sustentável, com lojas e canais próprios, que lhes garantam melhores entregas e custos mais justos», finaliza. ¶ Uma pesquisa rápida pelo assunto ‘comida ao domicílio’ no Google devolve-nos já um número notável de plataformas de entrega nas principais cidades do país. A icónica NoMenu, a Takeaway.com, a Comer em Casa e outra, uma das mais recentes no mercado, a Bolt Food, também a reboque do serviço de transporte Bolt. A entrada no mercado deu-se em Outubro de 2020, em Lisboa, «um local estratégico para nós, tanto pelo número de habitantes, como pelo potencial de crescimento que representa para este setor. O objetivo seria que o serviço chegasse a Portugal apenas no final deste ano, contudo, a pandemia veio acelerar todo o processo», explica David Ferreira da Silva, responsável pela Bolt em Portugal. Consciente da feroz concorrência de mercado, acredita que a marca se tem distinguido sobretudo pelos «preços competitivos e taxas de entrega gratuitas num raio de 4 Km entre o restaurante e a habitação dos utilizadores», além da oferta diversificada. ¶ Também David reconhece o potencial

de crescimento do mercado de entrega de comida ao domicílio e defende, tal como o responsável da Uber Eats, que poderá haver uma percepção errada sobre as taxas cobradas aos restaurantes. «As taxas cobradas aos restaurantes não são impostas pelas plataformas, mas sim acordadas diretamente com cada restaurante antes de se iniciar a parceria. Infelizmente, existe ainda a percepção errada de que este valor da taxa se traduz em lucro para as plataformas, contudo, uma parte significativa do valor é alocado a custos essenciais ao bom funcionamento da operação.» ¶ Desde que começaram até hoje, contam com 100 restaurantes, de diferentes gastronomias do mundo, sem conseguirem identificar alguma que se distinga em detrimento das outras. Nos próximos tempos, têm como «objetivo continuar a consolidar o serviço em Portugal, tanto em Lisboa como noutras cidades estratégicas, e garantir que temos uma área de negócio cada vez mais robusta e atrativa, tanto para os nossos utilizadores, como parceiros.» ¶ Recentemente, chegou ao mercado uma nova plataforma de delivery, a Dinee, que põe em circulação pelo país, pratos de restaurantes das cidades onde não vivemos. Com uma diferença face ao delivery convencional: é preciso finalizar no fogão, forno ou frigideira. Faz parte do projecto de apoio a startups From Start to Table, ainda só tem entregas na Grande Lisboa, sempre à sexta-feira e para já conta com quatro aderentes. De Norte para Sul, são eles: Almeja, do chef João Cura, no Porto; Taberna Ó Balcão, de Rodrigo Castelo, em Santarém; O Frade, de Carlos Afonso, em Lisboa; e ainda a Mercearia Gadanha, de Michele Marques e Ruben Trindade, em Estremoz. ¶ É uma clara mudança de agulhas e ideias na forma de entregar comida ao domicílio – sobretudo porque envolve algum trabalho de cozinha –, mas à velocidade a que avança o mundo, provavelmente outras novidades surgirão. Isto sem referir a tão falada substituição dos estafetas por drones. Aguardemos. ×

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O Martin não sou eu, texto paulo amado ana rita santos foto humberto mouco

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É um nome forte na cozinha mundial. Tendo passado várias épocas na cozinha, aconteceu-lhe o mesmo que a todos os humanos. Bateu de frente na crise provocada pelo Covid 19 e meteu-se na cozinha. A INTER Magazine falou com Martin Berasategui o chefe consultor e Filipe Carvalho, o chefe do seu 50 seconds, em Lisboa. A conversa decorreu no restaurante, depois da apresentação do primeiro filme da série «A taste of Fifty seconds», no final de Abril.

somos nós paulo amado (pa) Disseste há pouco que ficaste arrepiado, com o regresso aos contactos com os fornecedores, que são as bases do turismo… martín berasategui (mb) Sim, o Martín Berasategui não sou eu, somos nós, somos todos. Não são só os cozinheiros, são os pasteleiros, os padeiros, os criadores de gado, os pastores, os apanhadores de cogumelos, os pescadores, os agricultores… (pa) A comunidade espanhola, portanto? (mb) Sim, é muito importante pensarmos igualmente que estamos lado a lado com os enólogos em Portugal, quão importantes são as adegas, e somos nós que dirigimos os concertos gastronómicos. Neste caso, o Filipe (NR sentado a seu lado) é quem pilota o projecto Fifty Seconds Martín Berasategui, em Lisboa. ¶ Mas não me esqueço de que o melhor livro da cozinha portuguesa foi a natureza que o escreveu, tal como em San Sebastián. O Filipe, e eu, olhamos todas as noites, ou todas as manhãs, para o livro que a natureza nos dá, a partir daí é que começamos a pensar como cozinheiros. Nós somos, por natureza, cozinheiros inconformistas e digo, sinceramente, fazemos o que gostaríamos que nos fizessem. É importante colocar-me, por exemplo, à frente do jornalista e que o jornalista conheça o Martín que eu gostaria de conhecer se fosse jornalista. E o mesmo acontece com os pescadores. ¶ Durante o pior ano da minha vida, que foi este

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último, eu lembrei-me muito de Peniche. O Filipe, e eu, quando fomos lá, antes da pandemia, conhecemos um pescador que era uma pessoa optimista, positiva, tinha um sorriso largo e era muito simpático, mas quando vimos, ele não tinha uma perna. ¶ Durante a pandemia, nos momentos mais difíceis, lembrei-me muito dele e dizia: se tu não és esse Martín, tens de trabalhar, pensar positivo, nunca sendo um vitimizado e ver tudo com olhos brilhantes. Aquele homem deu-me uma lição de vida, de atitude. O que para qualquer um seria um problema, ele estava ali só com uma perna, com as ondas do mar a bater, super atencioso, amável, um trabalhador nato. Ele via a felicidade. (pa) Como se passa esse espírito a uma equipa? É a empatia? Por exemplo, com o Filipe é mais natural porque já se conhecem, certo? (mb) A vida faz-se com equipas. Eu e a minha família somos uma equipa. Eu, a minha mulher e a minha filha. E agora, o genro e uma menina que nasce daqui a três meses. Os restaurantes e os hotéis são equipas. É preciso esquecer o «eu», eu não existo para mim. Foi assim que os meus pais me ensinaram, a pensar no «nós». Se a equipa está bem, eu estou bem. Se a equipa está chateada, eu estou chateado, e vice-versa. É assim que funciona. Hoje eu faço-lhe falta, amanhã é ao contrário. ¶ Ou seja, vocês, jornalistas, vestiram de luxo uma profissão


especial «Mas não me esqueço de que o melhor livro da cozinha portuguesa foi a natureza que o escreveu, tal como em San Sebastián.» martín berasategui

que é a da cozinha. Mas nos anos 70, quando eu comecei como aprendiz em minha casa, houve um desgosto, porque na altura o cozinheiro não tinha importância. Agora há universidades, escolas, antes não havia nada disso. Hoje em dia os chefes jovens têm muito mais sorte do que nós tínhamos. ¶ Na minha altura, quando estava no País Basco, o mundo passava por ele para ver a obra das cozinheiras e cozinheiros, muito bons, de outros países. É evidente que por detrás de tudo o que se vê, há muito esforço, muita dedicação, muita motivação. É como o que está também a passar-se em Portugal. O que mais seremos amanhã? Vamos estar a pensar mais que hoje em criatividade, mas não significa que não tenhamos de respeitar a excelente herança recebida de gerações anteriores. Eu quando comecei, era o Juan María Arzak, o Pedro Subijana Reza, o Karlos Arguiñano, o Luis Irizar. Eram eles que estavam lá, a criar o que mais tarde se chamou de nova cozinha basca. Eram cozinheiros estratosféricos. Eram, são e sempre serão. Ou seja, acreditar no êxito do trabalho em equipa foi o que tornou a cozinha basca pioneira na transmissão de conhecimento aos mais jovens que vinham de Espanha e depois de todo o mundo. E esse é o melhor legado que podemos deixar às gerações seguintes. Essa foi a primeira geração da cozinha basca, depois foi a minha geração, como o Hilario Arbelaitz, o Andoni Aduriz, o David de Jorge, ou o Bixente Arrieta. Ou seja, no final, é um trabalho importante feito por muitas pessoas, de geração em geração. ¶ Aos 15 anos, eu comecei como aprendiz porque o meu pai começou a ter problemas de saúde, perdemo-lo quando ainda éramos jovens. Quando eu tinha 20 anos, sentei-me com a minha tia e com a minha mãe, o meu pai já não estava, e eu assumi o negócio de família para elas se reformarem. Foi uma das coisas mais importantes que já fiz na minha vida. Elas tiveram que trabalhar muito, mesmo durante os dez anos que o meu pai lá esteve, mas com falta de saúde.

(pa) Tomaste a tua posição… (mb) Sim, muito jovem. Esse foi o momento de ter força, atitude, sempre para a frente e nunca para trás, sempre a somar e a multiplicar, não a subtrair. Sem meteres-te em sarilhos, porque a vida é para a frente. Eu venho do restaurante mais modesto de San Sebastián. (pa) Numa das edições do festival San Sebastián Gastronomika, no apogeu da cozinha molecular, recordo-me de ter visto com a tua convicção a apresentar o teu trabalho. Enquanto mantiveste o teu conceito, existiu uma ascensão desta cozinha que acabou apelidada de tecno-emocional. Tu pensaste em algum momento acompanhar essa mudança? (mb) Não, não, de modo algum. Tudo começou com um sonho que é o Michelin e que muda a minha vida quando estou na casa dos 20. Quando dou por mim, estou a viver um sonho que não sou capaz de controlar ou de expressar. Para me compreenderes tinhas de vestir a minha pele. ¶ Eu tenho as coisas muito claras e penso que para subir uma montanha podem existir muitos caminhos, mas todos são bons. Temos de respeitar as pessoas todas, é importante a abertura que existe por todo o mundo, com as técnicas, e com as outras coisas. O mau vai para o caixote de lixo e o bom, será como em todas as gerações. Mas eu sempre fui claro e tenho muita personalidade, então… (pa) Existiu uma altura em que um outro chefe parecido contigo, o Santi Santamaria, não tinha essa atitude. Criticava abertamente esse outro caminho novo. Concordas? (mb) Olha, há uma coisa sobre a qual sou muito claro, que tanto Ferran como Santi foram duas belíssimas pessoas que abriram caminhos importantes. Vou levar o bom, o mau…A vida passa demasiado depressa para nos lembrarmos de certas coisas. Temos de tentar aprender com tudo o que nos acontece na vida e melhorar todos os dias em comparação com os anteriores. É uma atitude que tenho como pessoa. ¶ Creio que tantas coisas têm sido bem-feitas em Espanha nos últimos 40 anos que…

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«Eu tenho as coisas muito claras e penso que para subir uma montanha podem existir muitos caminhos, mas todos são bons.» martín berasategui

(pa) Há que valorizar as boas… (mb) Claro, e tu conheces os antecedentes de Ferran e Santi. Eram duas pessoas que se acarinhavam muito, mas houve uma altura em que entraram em choque, como os casamentos, como os sócios e como tudo. ¶ Como por exemplo, o Andoni, eu acarinho-o muito, mais do que as pessoas pensam. Quando dão aplausos às pessoas que passaram por mim, eu considero-me parte desses aplausos, tal como os aplausos que dão ao Martín são para todos os meus alunos e alunas. Para mim, o Filipe não tem uma estrela Michelin, tem 12 como eu, porque as minhas são dele. E considero isto para qualquer um da equipa. (pa) Como observas o trabalho do Filipe aqui no Fifty Seconds? (mb) Para mim, o trabalho que o Filipe está a fazer é de um profissional com um dom inato para a cozinha. Como amigo é único, como cozinheiro, é impressionante e, na minha opinião, é o maior entre os maiores. Por isso é que está a conduzir o meu projecto aqui. É uma pessoa com muita garra, com uma atitude de superação de eleição. É o caminho a seguir, é muito mais que um grande cozinheiro, é uma belíssima pessoa, alguém que ganha o carinho de todas as pessoas e, para mim, é uma sorte e um orgulho enorme tê-lo aqui comigo. (pa) Filipe, e para ti, como é trabalhar com o mestre? Ter aprendido com ele… filipe carvalho (fc) A vida dá-te muitas oportunidades, como as que tive em Barcelona e em San Sebástian. Mas um dia decidi dizer ao Martín que queria regressar a Lisboa e ele responde que se eu vou para lá que ia abrir um restaurante para mim. Inicialmente pensei que ele estava a brincar comigo. Na verdade, o Martín já estava em negociações com o Sana para um projecto. Eu chego a dia 1 de Novembro de 2016 a Lisboa e o Martín chega no dia seguinte, a dia 2, para fechar o projecto. Para mim, trabalhar com ele é ter uma oportunidade única que jamais pensei ter aqui… Poder continuar a aprender no meu país, Portugal, com um chefe que me dá toda a informação que preciso, que me dá toda

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a liberdade para poder exprimir a minha filosofia e a minha técnica de cozinha. Ele não é um chefe que te diz para fazeres o que ele manda, não. Ele diz que se eu estou em Portugal, então, tenho de fazer com a minha identidade no restaurante do Martín. A única coisa que ele me pede é que eu faça o meu trabalho com muita qualidade, com consistência… ¶ (mb) Nós trabalhamos em conjunto. Uma das coisas que eu tenho orgulho de dizer por todo o mundo quando falo deste projecto é que todos os que fazem parte dele são portugueses e portuguesas. Eu sou o único que não sou, mas que acabo por ser. E digo-o com um enorme orgulho, porque quando um país como Portugal, que é um templo de matéria-prima e que é um país que é um exemplo para todos, te dá a oportunidade para fazer um projecto assim… A primeira coisa a fazer na vida é estar grato. ¶ Eu estou sempre a dizer que um cozinheiro é um portador da felicidade, é um maluco. Eu deixei de fazer muitas coisas na minha vida para estar onde estou. Se tens a sorte de fazer um projecto como o do Sana, o Fifty Seconds de Martín Berasategui, aqui em Lisboa, num dos sítios mais bonitos do mundo, não podes pensar que és «tu», não. Somos nós, e o melhor que podes fazer num projecto em Lisboa é um que mostre gratidão a Portugal. E a primeira coisa, e a mais importante, que um cozinheiro tem de fazer, numa altura que se fala muito de inovação e de tecnologias, é de facto falar de equipas, o resto vem depois. As equipas são o que me tornam grande e eu tento torná-las grandes. Eu sinto-me orgulhoso e digo-o abertamente, porque parece fácil, mas não é. ¶ (mb) Não é fácil de todo.O espírito que o Martín nos transmite é que não é um restaurante para uma pessoa, para um ego. É um restaurante para uma equipa com 25 pessoas que trabalha diariamente. E só quando nos vemos como equipa é que temos sucesso e se consegue atingir uma consistência, é o que vai fazer uma boa refeição. Não é a ter pessoal sempre a ir e a vir, na cozinha e na sala.


especial «Eu sou sempre o primeiro a entrar e o último a sair. Conheço muitas pessoas que falam, mas é preciso falar menos e fazer mais. O melhor exemplo é trabalhar muito.» martín berasategui

A consistência tem de existir dentro da cozinha e fora da cozinha. Tem de ser bom desde que fazes a reserva até ao momento em que te vais embora. ¶ (mb) É um trabalho de muito detalhe e é a soma dos detalhes que fazem a diferença entre um grande projecto ou apenas mais um. ¶ (fc) Uma das coisas das quais me recordo é quando estava em San Sebastián e se entrávamos às sete da manhã, o Martín já lá estava. ¶ (mb)Eu sou sempre o primeiro a entrar e o último a sair. Conheço muitas pessoas que falam, mas é preciso falar menos e fazer mais. O melhor exemplo é trabalhar muito. Existem pessoas que a trabalhar dormem, eu e as minhas equipas tentamos que até a dormir estejamos a trabalhar. ¶ (fc) Por isso é que estava a dizer há pouco, é um projecto que exige muito da minha equipa, de alguém que exige muito de nós. Estamos aqui com um objectivo, se não estamos aqui para dar o nosso melhor, é melhor não estar. Ou seja, se a minha equipa entra às sete da manhã, eu às seis tenho de estar aqui, para organizar, para fazer uma receita ou testar. Nós não temos um banco que vende Martín, temos de pôr em prática para conseguir acertar tudo, é importante. Eu estou em Portugal, mas é como se estivesse em San Sebastián, porque a informação vem daí, vem de Barcelona, vem de Tenerife, vem de todo o lado. O que o Martín pretende é que mantenhamos a identidade, mas que a informação venha de tudo. (pa) Compartilhar, colaborar… (mb) É igualmente importante perceber que há alguns anos atrás isto não se podia fazer. A equipa é a alma da tecnologia. Quando eu era jovem, há 20 anos atrás, isto era impossível. Ao colocar a alma na tecnologia, nós todos os dias falamos com ele, com a mulher, com o braço direito dele. Eu posso falar com os diferentes responsáveis dos projectos gastronómicos que tenho aqui. Sem nos deslocarmos. O que primeiro era a Robin Food, agora é a minha sala de tecnologia, é de onde falamos. A cozinha a funcionar e eu daqui desta porta estou a falar com ele. Não tens de dar menos do que gostarias de receber se estiveres no lugar deles, não é complicado. É senso comum. Existem pessoas que escondem as coisas. (pa) É uma abertura com

enfoque na culinária e em tudo mais do restaurante, assim sendo? (mb) É em tudo, em absolutamente tudo. (pa) Uma outra questão. Existe uma grande incerteza com tudo o que se vai passar daqui para a frente, embora ninguém conheça o futuro, o que gostarias de ver? (mb) No meu caso pessoal, lembro-me de em Março ter ficado umas horas em choque. Eu não era aquela pessoa e pensei que não podia entrar em pânico por nada deste mundo, com o máximo de respeito por tudo o que estava a acontecer. No fim, acabei por, como cozinheiro que sou, meter-me dentro de uma caixa. Eu vivo em cima do restaurante e fechei o parque de estacionamento durante os meses restantes e fui para a cozinha. Como cozinheiro, se eu não sei fazer mais nada, e até me divirto, então fui pensar em conceitos. Se eu não tivesse tido esse tipo de atitude e esse período, não ias ver o que vais ver dentro de pouco tempo. (pa) Aproveitaste da melhor forma possível. (mb) Sim, porque a nossa geração, os que são depois da guerra, não tínhamos tido um susto assim. Depois chegou esta guerra. Tínhamos duas opções: ou deixavas-te engolir pelos problemas que esta pandemia trouxe ou podíamos olhar com olhos de ver aquilo em que somos bons, que não és outra coisa sem ser cozinheiro, padeiro, pasteleiro, talhante e director de concertos gastronómicos. É nisso que me meti e é isso que vais ver. Eu lembro-me numa reunião que tivemos no Fifty Seconds de ter contado um episódio que se passou comigo e a minha filha, que me disseque eu teria de encerrar. Nessa noite, eu não compreendia nada. Sei que tinha o máximo de respeito, estava preparado para trabalhar arduamente, não me importava nada de dormir quatro horas e olhar para a frente. Hoje, também me levantei às quatro horas para estar aqui. Isso não me dá medo, estou preparado para isso, mas nunca imaginei que íamos ver o que estamos a ver. (pa) Mas agora já se pode vislumbrar uma mudança, não é? (mb) Sim, não tenho a menor dúvida, sempre pensei, desde o primeiro dia, que estamos nas mãos da ciência e temos de os deixar agir. Eu espero que o mundo seja vacinado o mais depressa possível e que saiamos disto com uma lição. ×

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Nasceu em 1967, em Lisboa, na maternidade Alfredo da Costa. A mãe é de Mangualde e era a mais nova de oito filhos, solteira. A mãe dela expulsou-a de casa, e ela veio para Alcântara. João viveu em Lisboa até aos 5 anos, e depois foi para Coimbra, para um colégio da Santa Casa da Misericórdia. Ali não se aplicou nos estudos, era rebelde. Batiam-lhe, ele fugia, voltava, a coisa correu mal. Ainda fez o segundo ano do ciclo (6.º de escolaridade) mas depois voltou para casa da mãe. Trabalhou nas arcadas do Estoril, como ajudante de copa e empregado de mesa. Vive há cinco anos na rua, junto a Santa Apolónia.

O que te trouxe para a rua? Más escolhas minhas, más decisões minhas, entre as quais o vício dos comprimidos, que me davam a volta à cabeça. Vives na rua há quantos anos? Há 5 anos. Eu era cooperador numa unidade terapêutica para tóxico-dependentes e alcoólicos, pensava eu que já tinha encontrado o meu caminho, o meu futuro, mas não, tive uma recaída. Foste casado, família, filhos? Estive para casar mas não, lá está, meteram-se os comprimidos. Estiveste sempre aqui na zona de Santa Apolónia? Sempre aqui, comecei por estar lá em baixo junto ao Lux, agora estou aqui mais a norte. Já sei que foi junto ao Lux que encontraste o bebé abandonado no lixo, foste o verdadeiro autor do salvamento. Acho que me saiu o Euromilhões, mas sem dinheiro. Temos uma vida, ele está vivo. Quando o professor Marcelo soube que tinha dado mérito às pessoas erradas ele, depois, corrigiu o erro, veio falar contigo? Não, nunca me contactou. Entretanto, fizeste mais coisas? Comecei pela hotelaria, ajudante de cozinha, depois fui padeiro. A partir de que idade é que os comprimidos te impediram de ter uma vida normal? Foi muito cedo. Primeiro ainda consegui manter-me a trabalhar. Eu tive o contacto com os comprimidos muito cedo, eram os comprimidos da minha mãe. Por isso aconselho a que as pessoas mantenham os comprimidos longe das crianças. Então começaste logo em criança? Que comprimidos é que ela tomava? Foi a partir dos 14-15 anos. Ela tomava comprimidos para emagrecer e outros para dormir. Eu já era rapaz e queria pertencer a alguma coisa, não sei bem ao que era, mas era a alguma coisa. Dediquei-me às drogas, aos comprimidos. O que é um dia normal para ti? O que comem, a que horas? Agora com a pandemia vêm muitas associações trazer comida. Antes, nós comprávamos umas pernas de frango, ou umas entremeadas, e entre todos grelhávamos aqui. Por causa da Covid, agora há menos esse sentido de comunidade. Antes acordávamos de manhã, lavávamos a cara e os pés com água daqueles garrafões que vamos buscar à fonte, ao chafariz lá em baixo… Mas ainda 39


entrevistas mundanas é longe, aqui na Estação de Santa Apolónia não vos deixam ir à casa de banho ou, ao menos, ir buscar água? Eles chateiam-se. Mesmo que deixem, temos de pagar 50 cêntimos. Para as nossas necessidades, defecar ou urinar, procuramos o sítio mais escondido, vamos à linha do comboio. Tapamos com pedras e damos lume ao papel que usámos, que é para encobrir os cheiros. Isso é a manhã. Se sobrou alguma coisa comemos um bocado de pão. Ao almoço, alguns vão à «sopa dos pobres», há uma nos Anjos, outra no Largo de S. Bernardo, a associação Crescer dá alguns apoios, mas mais técnicos, encontrar casa, ou quarto, não tanto de nos dar comida. Para beber temos as garrafas de água que nos dão com a comida. A dos garrafões é para lavar as mãos, os pés, a cabeça. Como nós dizemos aqui, tomar banho à gato. Não há balneários públicos? Há ali um em Xabregas, que abre às 8h30. Não se paga, é onde vai a malta da Vitae, que é o albergue maior de Lisboa, onde as pessoas podem ir dormir à noite. Há pessoas que vivem lá, é na mesma rua, há anos. E vão ao balneário tomar banho, principalmente à segunda-feira. E lavar roupa. Nós lavamos aqui à mão, com a água que vamos buscar. Ou levamos ao balneário e lavamos lá. As tendas são uma coisa recente? Sim, foi uma boa ideia que tiveram, há 5 anos não havia tendas. Estamos muito mais abrigados do frio, da chuva. Diz-me uma coisa: se uma pessoa tiver vontade de sair da rua consegue? Há pessoas que preferem ficar na rua, ter uma vida mais despreocupada, mais livre? Há os dois lados. Pela experiência que tenho, há pessoas que preferem mesmo não sair, porque já estão há muitos anos e adaptaram-se de tal maneira que não querem sair. Por várias razões, uma delas é porque não querem ser mandados por ninguém. Outra razão é que querem ser eles mesmos, livres, independentes. Há outros que mais depressa querem sair, e depois fazem muito barulho, fazem muitas críticas, que a uns dão casa, a outros não dão, mas há um tempo para tudo. Eu, por exemplo, quero sair daqui, a Crescer já me sinalizou com «eu quero ter um quarto», e estão a tratar disso. Outros não querem. Simplesmente não querem. Como em tudo, há hábitos de vida enraizados há muitos anos, acredito que seja mais por submissão, não gostam de ser submissos. Teriam de trabalhar, ter um horário, depois há despesas… Eles, em geral, antes de ouvir as pessoas já estão a fazer julgamentos. Creio que há uma aproximação que tem de ser feita de parte a parte, não só de um lado. Ainda sobre o dia-a-dia, como fazem para arranjar dinheiro? As pessoas dão-vos dinheiro, ou fazem pequenos trabalhos? Eu, pessoalmente, não faço trabalhos. A gente pede nos semáforos, há outros que pedem pessoa a pessoa, os estacionamentos com o Covid diminuíram muito, há outros que vendem comprimidos, há outros que roubam, há outros que enganam o próprio amigo que vive ao lado, para arranjar dinheiro para os seus consumos. Ou seja, mesmo apesar do tal espírito de comunidade, é preciso estar com as defesas bem atentas? Tal e qual. Há um espírito aqui, nesta zona, mas há que ter sempre um pé à frente e outro atrás. Há episódios de violência? Há. Ultimamente, não tem havido, mas normalmente há mais à noite, por causa do vinho. Começam a beber e soltam o mau leão que têm lá dentro, ele desperta e depois vêm para aqui e discutem por tudo e por nada. É uma maneira de descarregar, ou… não é bem descarregar, é aliviar, pensamos nós... não é que eu seja muito dado ao vinho, mas aqui é o vinho que

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faz mais violência. Que tipo de vinhos é que consomem? É o mais barato. Vejo muita gente a beber vinho branco de pacote, mesmo quente. Não preferem o tinto? O tinto é pior. Aqui entre os sem abrigo, não todos, mas nós queremos é andar de cabeça cheia. E nesta zona toda a gente bebe branco. Cerveja só havia um amigo nosso que bebia cerveja, porque quando ele bebia vinho virava um monstro autêntico. Álcoois mais fortes não. Esse amigo nosso quando bebia cerveja era um rapaz calmo, quando bebia vinho e metia outras coisas, ficava um monstro, violento. Nós compramos sempre as coisas mais baratas e mais acessíveis. Bom, isso todos nós fazemos o mesmo… Ah ah ah, é verdade… e dentro daquilo que nós possamos dar, vocês aos vossos filhos, nós ao nosso corpo, à nossa satisfação interior. Há um dia de festa de vez em quando, um aniversário, ou algo assim? Sim. Eu recordo-me que quando fiz 52 anos, esse tal amigo, que agora não está cá, por problemas que não vou dizer, mas há-de voltar em 5-6 meses, quando ele soube que eu fazia 52 anos, comprou-me um bolo, foi ali aos monhés e comprou comida e repartiu por nós, isso calhou-me… foi como família, vivendo aqui…Ir a um restaurante é impossível, mesmo a um tasco assim mais popular? Eles são preconceituosos. Só se nos saísse o euromilhões. Alguns são preconceituosos. É conforme, eu falo mesmo por mim, nós temos um pré-julgamento, mesmo não tendo sem-abrigo escrito na cara, eles conforme uma pessoa vai vestida, ou conforme a companhia, ainda há o estigma de que os sem-abrigo são pessoas feias, porcas e más. Ou ladrões e isto e isto e isto. Que não se podem acertar, ou porque são sem-abrigo, ou porque tem a doença A, B, ou C. As pessoas ainda não têm a noção de que um sem-abrigo é apenas uma pessoa que ou escolheu ser sem-abrigo, algumas, outras tiveram infelicidade na vida e não tiveram escolha. Com a pandemia e o desemprego viu-se mais gente a chegar? Muito mais, muito mais. E gente a ir-se embora? Com as associações a apoiar, notou-se muito mais gente a sair? Sim, principalmente a Crescer, tem tirado muita gente da rua. E esses ficam longe, ou depois voltam? Muitos voltam, bastantes, mais de metade. E os que não voltam, vêm cá visitar os amigos? Essa sensação de família permanece depois? Em alguns. Outros desaparecem e a gente nunca mais os vê. Outros desaparecem e a gente passando um mês ou dois ou três recebe a notícia «olha, morreu.» Outros têm essa sensibilidade de passar por cá e dizer «olha, como é que vocês estão, eu já tenho uma casa, foi a Crescer que me arranjou… é um bocado difícil». É difícil porquê? Em respeito à comida, aqui passam muitas carrinhas que nos trazem comida, em casa depois ninguém passa a levar comida. Mesmo dando a casa, eles não nos dão comida. É preciso uma vida mais estruturada? Já que tocou nesse tema, eu penso que falta uma certa ajuda a nível psicológico, às pessoas que saem de sem abrigo e passam a ter uma vida dita normal, que creio que não há… o processo não acabou ali. Não culpo as associações, culpo mais a nós mesmos porque não vamos à procura. A associação se calhar pensa que o problema está resolvido e quer passar para resolver o próximo problema. Sim, penso que isto tem de ser durante algum tempo. É o mesmo que largar as drogas. Largas as drogas hoje mas tens de ter acompanhamento, se não podes voltar. É preciso ir incentivando para fazer outras coisas. ×

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Conta-nos sobre a vida de enfermeiro. Quantos dias trabalhas por semana, quantas horas trabalhas por dia? Trabalho cerca de 5 dias por semana, depende do horário. Trabalho 12 horas e meia por dia. E agora, ao que interessa. Num dia típico de trabalho, quando e o que comes? E onde, quem prepara, levas de casa, há bares? Num dia de trabalho costumo sempre tomar o pequeno almoço em casa, café com leite e torradas. Quando chego ao trabalho às vezes bebo um iogurte antes de começar. Depois almoço, normalmente tarde. Costumo levar comida de casa, uma sopa e alguma coisa que sobre do jantar. Quem prepara é a minha mãe, tenho essa sorte. Se não faço levo alguma coisa mais simples feita por mim, uma massa ou uns bifinhos. Depois à tarde costumo lanchar, um iogurte que levo, ou mandamos vir uns docinhos para o serviço, também é bom. Não estás directamente implicada na frente Covid mas de certeza que a doença mudou o teu trabalho. Como? Há mais medo? Mais cuidados? Coisas banais que se tornaram problemas? Quando comecei a trabalhar já estávamos na pandemia, não posso apontar grandes diferenças mas já tinha prática anterior e uma coisa que complica o nosso trabalho é o equipamento de protecção individual. Apesar de nos habituarmos, a máscara é complicada e temos de insistir com os doentes com a máscara, temos de estar sempre a mudar de máscara. Há várias tarefas que acabam por nos trazer acréscimo de trabalho, os cuidados com controles de infecção, apesar de já os fazermos antes, mas têm de ser reforçados, os testes frequentes, etc. Vamos agora ao dia de descanso. O que gostas de fazer? Comes as refeições normais? Ou o hábito dos outros dias impõe-se? Bebes uns copos? O quê? Acordo tardíssimo, gosto imenso de dormir. Aproveito para ir ter com o pessoal, vamos beber um cafezinho, ou umas cervejas. Como acordo tarde acabo por só almoçar, lá para as duas ou as três, lancho qualquer coisa depois e janto em casa. Gostas de cozinhar? O que mais gostas de fazer? Eu ó-d-ê-i-o cozinhar, não gosto nada de cozinhar. Por isso o que mais gosto de fazer são petiscos, coisas mais simples, umas panquecas para o pequeno almoço, umas tostas com ovos escalfados, ou uns ovos estrelados, coisas complicadas não é a minha onda. E o que mais gostas de comer? Quem melhor o cozinha? É uma pergunta difícil, gosto de comer muita coisa, sou um bom garfo. Gosto muito de comer carne de porco à alentejana e polvo à lagareiro. Quem melhor cozinha é a minha avó, que cozinha m-a-r-a-v-i-l-ho-s-a-m-e-n-t-e, já lhe disse que ela deveria abrir um restaurante mas ainda não a convenci. Descreve um dia de férias perfeito, sítio, o que fazes, com quem o passas, o que comes, o que bebes. O dia de férias perfeito é passado na praia, com família amigos e solinho. O dia de férias perfeito é passado todo na praia. Levo alguma coisa para comer, coisas simples, umas frutas, depois ao final da tarde ir para o bar, comer mais qualquer coisa, com o pessoal todo bem disposto. É o dia perfeito para mim. E agora, deixa um desejo. Uma coisa tua, deixa lá a Covid que essa é de todos nós. Depois de toda esta conversa de comida, o desejo que eu tenho, muito grande, é que eu tivesse sempre alguém na minha vida que pudesse cozinhar para mim. Preguiçosa, eu sei… × Nasceu em 1998 e estudou enfermagem na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa. Estagiou em Cabo Verde, durante um Erasmus, e também na unidade de queimados do hospital de S. José. Trabalha como enfermeira na unidade de hematologia do Hospital dos Capuchos e na Diaverum, uma clínica de hemodiálise. Não está na frente Covid19 mas como todos nós, aliás, mais do que todos nós, sofre um grande impacto com o Covid na sua vida. 45




destaque

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Chefe e contrabaixista, Leonel Ribeiro é um homem de convicções. Ama a cozinha com a mesma intensidade com que ama a música e admite que, na vida, o plano B pode anular a precisão do plano A. Auto-didacta em ambas as áreas, defende que fazer aquilo em que se acredita é o «único caminho».

texto teresa castro viana fotos tiago lessa

Ribeiro «Eu comecei a cozinhar porque deu tudo errado», desabafa Leonel Ribeiro, 39 anos, chefe e mentor do Cabeça de Porco, na Invicta. Natural do Rio de Janeiro e engenheiro de som de formação, viu-se lesado pelo sócio em início de carreira. «Eu queria ser produtor musical, fazer discos. Montei aquela merda toda e de repente isso aconteceu», confidencia. «Peguei uns trocos, fui a uma favela, comprei uma arma e pensei em me matar. Mas a arma não funcionou. Não tentei a segunda vez.» ¶ Os programas de culinária americanos, transmitidos pela televisão por cabo, acabaram por ser uma salvação. «Um dia vi um cara preto cozinhando com boné na cabeça, uma tatuagem de cruz igual à minha no braço. Parecia um rapper. Era o G. Garvin, de Atlanta. A primeira

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coisa que passou pela minha cabeça foi que também tem preto cozinhando como chef», conta. ¶ Ir ao mercado comprar os ingredientes para replicar as receitas de Garvin passou a ser um hábito, assim como o de se rodear diariamente de tachos e panelas. Em pouco tempo estava a fazer eventos todos os fins-de-semana. «Um amigo queria uma feijoada para o aniversário e eu disse que tinha acabado de montar um catering, que estava a tirar um curso de chef mas nunca o tinha feito.» ¶ Assinou a carta de um pub quando só conhecia «costela bbq, chicken wings e onion rings», passou por alguns «tascos» e ficou um mês e meio na cozinha do Restô Ipanema a fazer saladas e lavar louça. «Acho que me tornei cozinheiro nessa altura porque criei


destaque um certo fascínio pela profissão», diz. «Gostava daqueles caras que saiam dali, iam dançar forró, ficavam loucos de álcool e cocaína e voltavam no dia seguinte às sete da manhã como se nada tivesse acontecido.» ¶ Os livros de técnica de cozinha começaram a ser um investimento, já que «não havia dinheiro para fazer cursos». A esses juntou-se Kitchen Confidential, de Anthony Bourdain, chef que admite ter mudado a sua vida. «Deixei de ter preconceitos com a comida por causa dele. Passei a comer de tudo.» ¶ Na hora de começar a pensar como cozinheiro, também o fogo foi um ingrediente basilar. «Sempre fui muito ligado a ele, mas sem essa ideia glamurosa que agora há porque toda a gente viu o Francis Mallmann na Netflix.» Esteve uma temporada na Argentina e Uruguai e, de volta ao Brasil, aproximou-se deste elemento apenas no seu segundo restaurante, o Empório Quintana, onde trabalhava com um pit smoker, uma pequena grelha a gás com uma campânula que pode obrigar o fumo a ficar neste recipiente, introduzindo assim o seu sabor nas comidas ali confeccionadas. ¶ Em 2016, depois de um divórcio complicado, do fim de uma sociedade e de duas tentativas de assalto, chegou a Portugal. Acidentalmente. Regressar a França, onde havia estudado cozinha depois de já se considerar um auto-didacta, ou instalar-se nos Estados Unidos eram os planos iniciais mas o incentivo de um amigo – «Porra Leo, em Portugal o vinho é muito barato» – foi suficiente para o fazer mudar a rota. ¶ Por cá, no Porto, o Capim Dourado, restaurante de cozinha de raiz brasileira, foi o seu primeiro poiso. «Foi um desafio maravilhoso. Vim de escola francesa, segui pelo caminho do fogo e, como brasileiro, nunca tinha feito comida do meu país profissionalmente.» ¶ No entanto, foi no Cabeça de Porco,

que abriu no final de 2019 na cave do Centro Comercial Sírius, apelidado por muitos «o sítio mais improvável do Porto», que a sua comida começou a ganhar fama na cidade. Torresmos, enchidos artesanais e sandes de pulled pork passaram a fazer parte da rotina de alguns, apesar de ainda ser uma proteína muito marginalizada. «Hoje em dia, comer um bife da vazia é um estatuto. Para muitos, o porco ainda é carne de pobre, carne de guerra.» ¶ Pouco mais de um ano depois, e em plena pandemia, o Cabeça de Porco mudou de casa, para uma maior, numa rua da Baixa, e o foco passou a fazer-se no churrasco americano. Por lá, Leonel trabalha com três raças de porco – Bísaro, que usa para a charcutaria de cura longa, Mangalitsa, com várias finalidades, e «porco branco, que tem uma carne mais rija» e é utilizado em preparos «que levam tempo» – e reconhece que a mudança de conceito não é uma questão de tendência, mas de identidade. ¶ A mesma que aplica na música, outra das suas grandes paixões. «Às vezes eu pego o contrabaixo e penso em deixar a gastronomia, mas depois como alguma coisa muito ruim e volto de novo a pensar em cozinhar», brinca. «Para mim, há uma conexão imediata entre a música e a gastronomia. Na música há determinados padrões para você estudar a escala de um instrumento; na cozinha também os tenho. Deixo tudo na mesma posição há dez anos. Se você tirar o sal dessa posição, eu vou errar o prato porque eu não olho para ele. É automático.» ¶ «Eu venho para a cozinha porque decido que não quero tocar qualquer música. Deixo de trabalhar em restaurantes de outros chefs porque não quero cozinhar o que querem que eu cozinhe», explica. «Na cozinha, no palco e na vida sou carne de pescoço», lê-se na tatuagem que tem no antebraço direito. «Sou difícil, reconheço, mas é por ideologia.» ×

«Gostava daqueles caras que saiam dali, iam dançar forró, ficavam loucos de álcool e cocaína e voltavam no dia seguinte às sete da manhã como se nada tivesse acontecido.» inter magazine



madeira

Partilha em Kampo madeirense inter magazine


A ideia não é de agora. Já há algum tempo que Júlio Pereira, natural da Carvoeira, Mafra, radicado há 20 anos no Funchal, Madeira, tinha na ideia apresentar o melhor da ilha a outros colegas de profissão, guiando-os pelas paisagens de uma terra que vê como sua, apresentando-os a produtos e produtores locais. A pandemia e tudo o que aconteceu em 2020 só deram força a essa ideia de partilha, a esse Kampo de Partilha, nome do evento. Aproveitando o facto de os restaurantes na Madeira continuarem abertos, ao oposto do que tem vindo a acontecer no continente desde o início deste ano, o chefe e proprietário dos restaurantes Kampo e Akua e da padaria Kôdea quis oferecer a oportunidade a dois colegas em particular, «totalmente distintos com métodos de trabalho diferentes», de voltarem à acção. Foram eles Diogo Rocha da Mesa de Lemos, em Viseu, e João Rodrigues do Feitoria, em Lisboa. Ambos os chefes contam com uma estrela cada no guia Michelin. ¶ A INTER magazine esteve presente no evento com o chefe lisboeta em Março e, no fim do serviço do último de cinco almoços, conversou com anfitrião e convidado. «Voltar a cozinhar foi incrível», atira Rodrigues que estava sem poder exercer o seu ofício há já quatro meses e meio, altura em que o seu Feitoria encerrou. «Aceitar este convite foi uma oportunidade também de conhecer melhor a gastronomia da Madeira e de usar os seus produtos», começa por explicar o chefe que no dia seguinte iria iniciar uma série de visitas a produtores para o trabalho que está a desenvolver no âmbito do Projecto Matéria, que tem como foco o mapeamento de produtos portugueses. ¶ Mas, antes disso, o Kampo de Partilha. Tudo começou com um menu proposto pelo chefe do restaurante lisboeta, moldado ao tipo de cozinha do restaurante Kampo, um espaço «dinâmico e divertido, com uma cozinha aberta», descreve João. No entanto, na chegada à Madeira, tudo mudou. Júlio explica: «O intuito era usarmos produtos de cá e nós temos

dificuldades de logística a esse nível. Quando o João chegou não havia peixe, os fornecedores não tinham. Havia atum porque começou agora a época da pesca do atum e os pescadores vão todos para o atum. Ele queria trabalhar com um peixe de mercado e também com lulas.» Este último era para a katsu sando que acabou por ser de espada, peixe bem conhecido localmente. O atum foi usado na entrada, em dois serviços (tártaro de atum sobre lima e atum braseado com molho cítrico). Já no prato principal de peixe foi utilizado pargo (com arroz de lapas e nage). Mas estas não foram as únicas alterações à sua proposta inicial: «Havia a ideia de usar porco mas tinha que vir de Espanha e estar sujeito ao que os contentores trazem… É uma dinâmica diferente do que estamos habituados. Aqui há determinadas coisas que não estão implementadas em termos de produção então é difícil. É importante ter flexibilidade e saber jogar com o que está disponível. Conseguimos fazer ajustes e encontrámos equilíbrio», conta o cozinheiro convidado. ¶ O menu final, composto por seis pratos, foi resultado não só da disponibilidade dos produtos mas também de várias refeições em restaurantes locais e visitas ao mercado. Requeijão do Santo, mel de cana, bolacha Maria da fábrica de Santo António e banana da Madeira foram outros dos produtos utilizados. Alguns deles, João Rodrigues vai visitar nos próximos dias. «Vai ser uma verdadeira descoberta! O mar não domina a gastronomia local e isso quer dizer que no interior há coisas muito interessantes por descobrir.» ¶ Quanto ao Kampo de Partilha, Pereira garante que o evento é para continuar com mais convidados do continente, ainda que por agora aconteça uma pausa devido à reabertura dos espaços de restauração. «Os chefes têm de se focar nos seus espaços. E é engraçado ver que agora, mais que nunca, os clientes sentem-se agradecidos por estarmos abertos. Creio que os meus colegas vão sentir isso também.» ×

texto catarina amado foto henrique seruca

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cozinha vegetal

Diogo Noronha e o início de uma comunidade inter magazine


Foodriders, Ameaça Vegetal

texto catarina amado foto humberto mouco

O estrelato chegou na altura do restaurante Pedro e o Lobo. Diogo era um cozinheiro jovem, convicto dos seus ideais. Tinha ganho mundo através de viagens por meio mundo e experiências fortes em cozinhas vegetarianas e veganas em Nova Iorque, onde se formou e em Barcelona. O restaurante surgiu em plena época de crise e o projecto acabou por encerrar, apesar de deixar impressões positivas do seu trabalho. Dentro de portas, sempre discreto, passou por diversas cozinhas até chegar ao Pesca, um restaurante virado para o mar, apoiado em pequenos produtores locais e produtos biológicos sazonais. Já na altura, Diogo afirmava ser urgente mudar a dieta em alinhamento com a natureza humana e de forma a comer de forma mais saudável e local. Ele próprio, durante a sua adolescência, lutou para convencer os pais de que as vantagens de uma alimentação à base vegetal era apropriada para um jovem em crescimento. Ainda hoje recorda essa rebeldia que, ao contrário do que se poderia pensar, não se cingiu a uma só fase. Hoje, aos 42 anos, Diogo sente-se em casa com o seu mais recente projecto, Ameaça Vegetal, um restaurante virtual, e pertencente ao colectivo Foodriders – que além do chefe, conta com os membros fundadores Marta Fea e Damian Irizarry, do extinto Pistola y Corazón – criado durante a pandemia e do qual faz parte o restaurante mexicano, igualmente virtual, Las Gringas. Mais do que por pessoas da gastronomia, Foodriders é composto por profissionais

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das áreas de design e criação de experiências, em que temas com o design e a música têm o seu papel. ¶ O conceito do Ameaça Vegetal tem como base a dieta flexitariana, de base vegetal, e omo o nome indica, é flexível no sentido em que privilegia o consumo de vegetais e fruta, no entanto, permite ocasionalmente o consumo de proteínas animais saudáveis e de qualidade, provindas de produção local e tendo em conta a sazonalidade. O nome do projecto, conta o cozinheiro, é uma provocação de que o futuro pode e deve passar pela cozinha vegetal e pela dieta flexetariana. «Há um mundo viciado em proteína animal. A pandemia foi um game changer no sentido de que pessoas perceberem que a qualidade dos alimentos faz a diferença e que a alimentação promove a saúde», afirma. Noronha conta com a sua experiência e conhecimento em alta cozinha na preparação e finalização das propostas gastronómicas do Ameaça Vegetal no qual se destacam as sopas, as sandes, as ‘não-sandes’ e as sobremesas. Apesar de agora ser «apenas» uma dark kitchen, conceito que ganhou ainda mais força com a pandemia, e que se define como um restaurante sem sala, apenas disponível através de uma aplicação de comida, os responsáveis pretendem abrir no futuro próximo uma foodtruck e um restaurante físico, onde serão explorados micro conceitos, sempre aliados a uma componente artística e assentes na ideia de comunidade. ×


simplesmente… vinho texto luís antunes

Salão off de vinhos, petiscos, arte e música do Porto

Nas últimas décadas, como contraponto à globalização e industrialização do vinho, grupos de produtores têm vindo a organizar mostras de vinhos alternativas às grandes feiras do vinho (Vinexpo em Bordeaux, Prowein em Dusseldorf,...), cujos custos, modo de comunicação e público alvo são cada vez menos adequados para o pequeno produtor ou o vinho diferente. Essas mostras alternativas, chamadas salão off, giram em torno de uma ideia comum que pode ser uma região ou um modo de trabalhar (biológico ou biodinâmico). ¶ No caso do simplesmente… Vinho, o traço comum é a ligação à terra, às castas locais, a uma enologia competente mas com raízes na tradição e, como tão bem diz a Filipa Pato, «sem maquilhagem». O vigneron está presente e dá a cara pelo que faz, partilha a emoção que sentimos cada vez que bebemos os seus vinhos. Neste espaço estão em pé de igualdade o Casa do JOA, de Trás-os-Montes, que faz apenas uns poucos milhares de garrafas ou o Álvaro Castro que engarrafa 100 vezes mais ou o famoso Dirk Niepoort. Há um sentimento de partilha entre todos os vignerons que simplesmente… os une, o feeling é um por todos e todos por um. Em Portugal, até hoje, simplesmente… Vinho é o único salão off de vinhos, petiscos, arte e música, para partilhar com os amigos. ¶ A primeira edição, 2013, reuniu 13 vignerons, teve exposição de arte, a música foi improvisada e ainda não havia petiscos. O crescimento foi orgânico. O 5.º aniversário foi celebrado com um leilão de

beneficência, em que cada lote reunia 1 peça de arte e um vinho, criando ligações inesperadas entre 87 artistas e outros tantos vignerons. Em 2018 atingiu-se o número mágico de 101 vignerons. ¶ Desde a 2.ª edição que os chefes e os petiscos são fundamentais. Os jantares pop-up iniciaram-se em 2017 com o fantástico Abe Conlon (Best Chef in America 2018, James Beard) do Fat Rice de Chicago, o templo da cozinha Macaense-ó-Portuguesa dos USA. Seguiram-se os chefes Luis Américo, Israel Dedéa (Serra Gaúcha, Brasil) e Leopoldo Garcia Calhau. Nos petiscos há já uma longa lista de restaurantes e chefes: DOP (Rui Paula), Mercado e Boteco Brasileiro (Luis Américo), Delicatum ( Joana Vieira e André Antunes), Ode Wine House e Taberna Tá-se Bem (Cristovão Sousa), Puttanesca (Nuno Santos), Casa Ribeiro e Carvão (Miguel Morais), Oficina dos Rissóis (Alexandra e Louis Druesne), Shiko (Ruy Leão), Claro! (Vitor Claro) e Ricardo Teixeira Coelho. ¶ Arte plástica e música são mais dois elementos de partilha do simplesmente… Vinho. Tal como nos aromas e sabores, nomes conhecidos e debutantes contribuem para a energia (e sinergias) que fazem do salão off do Porto algo único. ¶ Em 2021, tudo muda. Do Inverno para o Verão. Dos edifícios históricos para um jardim com história. Das caves sombrias para o luminoso ar livre dos jardins da Casa Cor de Rosa da Faculdade de Arquitectura do Porto, no primeiro fim de semana de Julho. A não perder, o jantar pop-up da Confraria da Cabidela! × Mais informação: www.simplesmentevinho.pt

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destinos

Mais Alentejo no

Sublime Comporta inter magazine


O Sublime Comporta é um retiro no meio do Alentejo com uma oferta gastronómica em que o produto local é estrela e onde está incluindo o Food Circle, o restaurante mais exclusivo do hotel, chefiado por Hélio Gonçalves e que a INTER Magazine teve a oportunidade de conhecer.

texto catarina amado foto bárbara tomaz

A calmaria deixa adivinhar que nos espera um deserto. A pandemia ainda vive. Surpresa de lotação cheia na entrada. Os transeuntes passeiam-se com toalhas de piscina sobre o ombro, aproveitando o calor convidativo do Alentejo. Estamos no Sublime Comporta, um projecto que começou por ser uma casa de férias de uma família mas que agora abraça muitas outras. A sua designação é a de hotel mas poderia ser a de retiro. Quando nasceu, em 2014, a casa do casal Gonçalo Pessoa e Patrícia Trigo, proprietários, albergava 14 quartos e tinha apenas um restaurante, o Sem Porta, e um spa. Agora as suites e as villas multiplicam-se e os quartos já chegam quase a uma centena. Há também mais três restaurantes (sazonais), entre os quais, o Food Circle, a Tasca da Comporta e o Comporta Beach Club. Este primeiro, o mais gastronómico do conjunto, é um literal círculo apoiado por uma estrutura de vidro e madeira, com um balcão para 12 comensais e inaugurou a sua temporada em Abril e manter-se-á aberto até Outubro. A ideia do Food Circle é aproveitar os produtos da terra e cozinhá-los sobre brasas. É um conceito que foi criado juntamente com a idealização de um jardim biológico (que contou com a preciosa ajuda de Graça Saraiva do Ervas Finas) e um pomar dividido por cores e sabores, que circunda o restaurante, e que actualmente conta com mais de 300 espécies, entre aromáticas, flores comestíveis, leguminosas, frutas e legumes, onde se destacam os morangos silvestres, o alho bravo, o funcho ou as calêndulas, entre outros. ¶ Com a entrada do actual chefe de cozinha do grupo, Hélio Gonçalves, que nos últimos cinco anos trabalhou em Singapura, a ideia foi reforçada com um menu «mais local» cujo principal intuito é puxar o Alentejo à mesa. É precisamente no jardim biológico o ponto de

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partida da experiência Food Circle, já com um cocktail de autor na mão, feito a partir do gin Sublime da casa em parceria com a produtora Brejinho da Costa. Dentro do círculo, a atenção prende-se no ofyr, o terceiro cozinheiro, uma espécie de grelhador, alimentando a fogo, onde são cozinhadas e/ou terminadas algumas das confecções da cozinha. Cozinhar com o fogo é um verdadeiro desafio pois tal como explica o responsável de cozinha, «não tem máximo, nem mínimo. É um desafio. O domínio vem com a experiência. No prato, sente-se o sabor a fumo, a grelhado mas não é nada muito puxado. Talvez mais para a frente possamos explorar mais esse lado.» ¶ No Food Circle, o limite de produtos é Alcácer. Falamos de mel, azeite, farinhas, produtos lácteos, entre outros. Já os peixes e bivalves vêm do rio Sado. Há também um grande foco no porco preto Alentejano. À sua chegada, o chefe confessa que o grande desafio foi mesmo a reconexão com os produtos e as receitas portuguesas. Hélio iniciou a sua carreira ao lado de António Bóia, um chefe que é um mestre e que lhe ensinou «bases fortes de cozinha portuguesa». Em Portugal, antes de viajar até Singapura, trabalhou ainda com José Avillez, no Cantinho do Avillez e no Belcanto. «Foi onde pude afinar as coisas, abrir o meu mundo gastronómico», comenta. O regresso à terra-mãe foi por isso uma aprendizagem completa, reforça. «Já queria voltar a Portugal, tinha muitas saudades. Aqui tudo é diferente, os produtos estão à minha volta, é uma maravilha. Em Singapura não há produção de nada, 80% dos produtos que usávamos vinham de avião do Japão. Os legumes vinham de Espanha e a carne de França ou da Austrália. Portanto, voltei com vontade de aprender tudo outra vez, de voltar ao paladar português, de conhecer novos produtores», afirma.


destinos «A ideia do Food Circle é aproveitar os produtos da terra e cozinhá-los sobre brasas. É um conceito que foi criado juntamente com a idealização de um jardim biológico (que contou com a preciosa ajuda de Graça Saraiva do Ervas Finas) e um pomar dividido por cores e sabores, que circunda o restaurante (…)»

Hélio encontrou um país diferente, com mais valorização pelo produto local e um público mais interessado. ¶ Este é o segundo ano do chefe no hotel – chegou no final de 2019 – e as diferenças são grandes quanto ao tipo de cozinha implementado em cada um dos restaurantes, cuja influência asiática era notória no início, ainda que em pequenos apontamentos. Afinal, Hélio tinha vindo de uma experiência no continente asiático, chegando a chefiar os restaurantes Boca e Iggy’s – este último com uma estrela Michelin. Exemplo desse toque asiático foi a primeira carta do restaurante mais democrático da casa e aberto o ano todo, o Sem Porta. «Tínhamos um arroz de carabineiro que levava molho kabayaki, feito a partir de espinhas de peixe, soja e açúcar amarelo», comenta. Agora o foco de acção é a cozinha portuguesa e alentejana e nas opções do mais recente menu desse restaurante, entre entradas frias, entradas quentes, entradas vegetarianas, peixes e mariscos, carnes, vegetariano, há cavala fumada, açorda de carabineiro, barriga de leitão, perna de cabrito assado com arroz de miúdos, arroz de lavagante e polvo estufado com batata-doce de Aljezur, só para dar alguns exemplos. Já nas restantes opções gastronómicas da casa, mantém-se no Comporta Beach Club, opções mais ligadas ao mar, entre mariscos e peixe grelhado, e alguma oferta de carne. Relativamente à Tasca da Comporta, cuja época tem início em Junho, a jóia do espaço são os petiscos portugueses. ¶ Dividido entre a responsabilidade que a gestão de vários espaços acarreta, Hélio apoia-se na sua equipa de cozinha e sala, alguns eram já jóias da casa, outras pérolas do mercado. É o caso de Lorina Gaspar, o seu braço-direito no Food Circle e Rui Petrolino, sommelier. Ela iniciou-se em cozinha com Rui Paula e depois teve experiências na Alemanha e em Espanha. No regresso a Portugal, passou pelo Bistro 100 Maneiras e estabeleceu-se no Sublime Comporta, onde trabalha há já três anos. Já ele, com experiências em

restaurantes como o Ocean e o LAB é responsável pela harmonização vínica dos espaços gastronómicos da casa. No caso do Food Circle em particular, Rui trabalha em conjunto com os chefes para criar a melhor ligação possível. «Em relação aos vinhos a única regra que existe é a utilização de vinhos portugueses. Existe realmente uma preocupação em ter bastantes produtos portugueses de qualidade, com algum foco em pequenos produtores e que representem aquilo que é a nossa tradição e com espaço para produtos mais inovadores também, claro», refere o especialista. ¶ De volta à acção do Food Circle, ao longo da noite, apresentam-se oito pratos que vão se adaptando às estações e à sazonalidade do produto. Destaque nos snacks para a falsa cereja de foie alentejano feito a partir de fígado de aves biológicas e da empada de ensopado de borrego (primeiro cozinhada no forno a lenha e depois finalizada no ofyr), com o borrego a ser panado em farinha, temperado com alho, cebola, malagueta, pimenta e depois a ser cozinhado posteriormente em banha. Nas entradas, não falta a clássica ostra do Sado grelhada acompanhada por um granizado de gaspacho Alentejano. Segue-se uma interpretação dos pezinhos de porco Alentejano feito com base na receita tradicional com os acompanhamentos de alface romana e jus de porco. Num dos momentos mais doces, é apresentada uma tarte de pinhão (inspirada na receita de tarte de amêndoa da mãe da chefe) com pêra grelhada e gelado de rosmaninho. «A nossa maior inspiração é a gastronomia portuguesa e a cozinha alentejana. O menu do Food Circle em concreto é uma representação disso. Trata-se de ir buscar todos estes diferentes sabores e trabalhar de uma forma simples mas também de privilegiar todos os produtos, sejam eles do nosso jardim ou dos nossos fornecedores locais», explica Lorina enquanto as brasas acalmam ao ritmo da noite estrelada da Comporta. ×

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Manuel Martins. O Lisboeta que sonhava inter magazine


Na infância só queria brincadeira e comer o arroz-doce da avó, mas sempre ambicionou ser independente e para isso trabalhou muito, ainda trabalha. Hoje, Manuel Martins gere uma das mais conceituadas empresas da área, a Nx Hotelaria, em conjunto com o filho, Ricardo Martins. ¶ Manuel dos Santos Martins é nascido e criado em Campolide nos anos 50 e 60. Alfacinha de gema, Lisboa foi o seu recreio enquanto caminhava para a vida adulta, pendurar-se em eléctricos com a pressa de chegar aos sítios e as brincadeiras «com respeitinho» pelas meninas e moças, é o que guarda desses tempos com saudade. Isso e o puré de batata da avó e o arroz-doce, «eram muito bons». Não se lembra do que queria ser quando fosse grande, «mas queria ser independente e ganhar o meu dinheiro», recorda o empresário em entrevista à INTER. Foi assim que ganhou a sua primeira bicicleta, a trabalhar nas entregas para poder brincar independentemente. De um seio familiar unido, o pai era barman no Estoril Sol, no Casino, e a mãe doméstica, «não éramos ricos, mas para a época tínhamos o suficiente». ¶ Estudou no Colégio de Portugal, na Parede, e «ainda miúdo» tirou o curso Industrial, em Santos. Quando se é jovem traz-se no andar a esperança, mas quando Manuel Martins entrou no mercado de trabalho no Autódromo do Estoril «pensava ir trabalhar nas máquinas e afinal puseram-me a passar cabo». Decidido em ir rumo ao que sempre ambicionara ter, independência, quando teve oportunidade foi para a Utilmóvel. Aqui, desempenha as funções de técnico de equipamentos hoteleiros e, aqui, é onde tudo começa. Alguns cursos depois, como o de Electrotécnia – técnico de equipamentos electrónicos – na Fonseca Benevides, estava na altura de se aventurar por conta própria. Teve sócios e ainda teve duas empresas, mas são águas passadas

por desentendimentos ou devido à crise na altura, fecharam – «Isto de ser patrão não é só ganhar dinheiro, é trabalhar muito». ¶ Em 2012, começa de novo, Manuel Martins funda a NX Hotelaria em parceria com o seu filho. «Claro que temos as nossas diferenças, mas trabalhamos bem em conjunto. É o meu melhor sócio», diz descrevendo a relação de trabalho com Ricardo Martins, o filho. A NX Hotelaria é uma empresa em Almada desenhada para projectar, instalar e manter um espaço de hotelaria e restauração, entre os variados clientes conta com o Belcanto e com o Via Graça. A empresa está associada a diferentes iniciativas do âmbito da gastronomia, como o concurso Chefe Cozinheiro do Ano organizado pelas Edições do Gosto e pela INTER. Também têm investido numa academia de formação na área da cozinha e da enologia, «essa área é com o meu filho, as ideias e projectos são dele». «A assistência técnica, obras e montagens, sou eu, mais os meus homens», explica o responsável. O trabalho bem feito é o mais importante e diz que o cliente às vezes complica o simples, mas «eu já tenho 40 anos disto, já tenho muito ‘calo’». Às sete e meia da manhã já está na NX e o fecho é entre as sete ou as nove da noite, «conforme o que for preciso», trabalha todos os dias, mesmo sábados e domingos. Quando questionado pelo tempo livre, ri-se, mas diz que arranja um espaço para os seus papagaios e para os seus peixes do lago. Para conseguir ter férias tem de sair de Almada e gosta de Portugal inteiro para o fazer, mas «em geral, são muito curtas». ¶ Manuel dos Santos Martins é da opinião que na liderança o exemplo que se dá é importante e quando confrontado para confessar a sua receita para o sucesso, o conselho é simples, embora nem sempre fácil – «trabalhar muito e rodearmo-nos de pessoas que queiram trabalhar. E claro, ter clientes e mantê-los por muitos anos». ×

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texto ana rita santos foto humberto mouco

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Interrogar-se-iam os nossos antepassados, não muito longínquos. Sim, porque fomos ainda educados com três Beiras: a Litoral, a Beira Alta e a Beira Baixa. Ainda é possível identificar as características tradicionais destes três territórios em relação à sua alimentação e produtos emblemáticos. Mas durante quanto tempo ainda guardaremos esta memória identitária? ¶ O facto de ainda hoje podermos descrever a identidade cultural alimentar daquelas três Beiras, deve-se naturalmente ao seu território e produtos que herdámos da Natureza e, mais recentemente, admitamos cerca de um século, à chegada de novos produtos e de novas gentes. Estes movimentos alteraram significantemente as tradições locais e de forma continuada. O século xxi parece um século de vertigens atendendo à velocidade a que a informação é transmitida e à chegada, quase diária, de produtos que anteriormente não eram tradicionais na região. ¶ Para entendermos, melhor, o que ainda distingue cada uma das Beiras pegamos na geografia e receituário até meados do século xx. A Beira Litoral identifica-se mais com uma «dieta atlântica», com uma grande variedade de peixes da sua costa e muitas confeções a descobrir. Para além do bacalhau, as enguias preparadas sob variadas fórmulas, a raia, a sardinha, e toda a multiplicidade de peixes avaliados, especialmente grelhados. Mas esta região tem nas carnes um emblema nacional que é o famoso Leitão à Moda da Bairrada. Ainda as Chanfanas, os Buchos e a elegância das Carnes Marinhoa, e Arouquesa, completam esta região. Nos doces, os Ovos Moles de Aveiro, o Pão de ló de Aveiro, os Pastéis de Tentúgal, e toda a doçaria conventual de Arouca, de Coimbra e do Lorvão. E não esquecer o Queijo Rabaçal. ¶ Quando viajamos pela Beira Alta, a oferta pesqueira é mais limitada, com evidência para as trutas e o bacalhau. Uma parte desta região tem influência do Douro, como por exemplo as famosas bolas de carne de Lamego. Caprinos e ovinos fazem a festa à mesa, bem como os enchidos locais. Na doçaria mais popular vamos dos arrozes-doces às múltiplas tigeladas e a muitos doces de romaria. Já nos mais delicados, as Castanhas Doces de Viseu, as Lampreias de ovos, os Ouriços, os Ninhos e os Pastéis de Vouzela. E não deveríamos deixar no esquecimento a Pera Passa de Viseu. ¶ A Beira Baixa é a continuação natural da Beira Alta com variações, mas tão autênticas que marcam a região. No capítulo de sopas ou entradas tem uma das mais delicadas, os invulgares Pastéis de Molho da Covilhã. Nos peixes continuamos com a celebração do bacalhau e das trutas. A caça marca presença com receituário de perdiz e de lebre. As carnes têm também um cartaz próprio que é o Cabrito Estonado. Buchos e Maranhos têm formas variadas capazes de propor um roteiro destas especialidades. Estamos numa região de carnes, mas o maior cartaz é o famoso Queijo Serra da Estrela e também Queijo Serra da Estrela Velho. Ainda O Queijo Amarelo da Beira Baixa e o mesmo também na versão Velho, e igualmente o Queijo de Castelo Branco com a versão Velho. Não podíamos terminar sem citar o Queijo Picante da Beira Baixa. Na doçaria vamos brilhar com as Papas de Carolo, variadas Tigeladas, Talassas, Cavacas, Bolos e Biscoitos de Azeite, Borrachões e a riqueza de outros mais elaborados como as gargantas de Freira, o Órgão, os Rebuçados de Ovos… ¶ Tantas razões para conhecer mais e melhor as BEIRAS que sejam Litoral, Alta ou Baixa. × texto virgílio nogueiro gomes fotos humberto mouco

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beiras

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texto catarina amado fotos humberto mouco

Mulher forte, de convicções, regressou à terra natal, Tentúgal, em Montemor-o-Velho, com o intuito de elevar o negócio da família, as pastelarias Afonso, e o produto-estrela da terra, o pastel de Tentúgal. Pelo meio, apaixonou-se pelo mundo da gastronomia e por lá permaneceu. Entretanto, 20 anos depois, Olga Cavaleiro continua mais enamorada do que nunca. Interessam-lhe as histórias, a preservação dos territórios e dos seus produtos e, sobretudo, as pessoas.

pelo conjunto de burocracias envolvidas, pelo tempo, pelo desbravar caminho. Foi aí que comecei a perceber que esta era uma área que gostava. E é aí que começa a sua veia de investigadora. Sim. Comecei a falar com pessoas mais antigas, na altura sobre o pastel de Tentúgal. Também investigámos a história do doce, como nasceu. Sentimos uma necessidade enorme de começar a escavar. Depois criámos a Confraria da Doçaria Conventual de Tentúgal e, mais tarde, acabo por entrar na Federação Portuguesa das Confrarias O facto de ter voltado a Tentúgal para a assumir a direcção Gastronómicas – onde estou até hoje [como presidente]. comercial da pastelaria dos seus pais foi um ponto de Costumo dizer que o pastel de Tentúgal é a minha segunda viragem para o mundo da gastronomia, verdade? Sim. pele e a gastronomia o meu respirar, o que me alimenta. Quando volto a Tentúgal começo a envolver-me não só no O que faltava ao negócio dos seus pais? Como o negócio da família como depois acabo por assumir a transformou? Eu queria vir para Tentúgal, há sempre o apelo presidência da Associação de Pasteleiros de Tentúgal – eu da terra na nossa vida. Na altura, questionaram-me o porquê não era pasteleira mas representava-os. Nesse seguimento de ir para uma vida que sabia que seria dura e não tinha nada acabo por estar à frente do processo de qualificação de a ver com o que tinha estudado, Sociologia, e eu até tinha Indicação Geográfica Protegida (IGP) do pastel de Tentúgal. uma boa vida. Os meus pais já tinham uma idade grande Como na verdade eu cresci entre os pastéis, porque a minha e achei que era o momento de mexer na imagem da empresa mãe é pasteleira, isto tudo era natural. Considerava ser o meu e tudo isto foi coincidente com a necessidade de mexer com objectivo de vida regressar a Tentúgal e também sentia que a imagem do próprio pastel. Também era necessário mudar a tinha de ajudar a que o pastel tivesse outra visibilidade. Por forma como o negócio estava estruturado, a forma como a outro lado, tinha de tentar que ele pudesse ser vendido com produção era feita, procurando evitar desperdícios. Era outra dignidade e outra qualidade. Começo por fazer todo preciso ter uma lógica de gestão empresarial e acrescentar o projecto da IGP que posso dizer que foi a maior conquista àquilo que era um negócio familiar com base no saber fazer, da minha vida! Foi a coisa mais complicada que já fiz, muito padrões de trabalho e aumentar o número de produtos

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beiras disponíveis. Ao longo dos últimos 20 anos mudámos a empresa, fizemos inúmeras obras. É um projecto que está sempre em evolução. Não sabemos qual vai ser o futuro porque a minha vida passa também por outras coisas que gosto de fazer. Disse que um dos seus objectivos era valorizar o pastel de Tentúgal. Como surge esse produto na doçaria portuguesa? O pastel de Tentúgal, como hoje o conhecemos, é diferente daquele inicialmente criado há 200 anos pelas irmãs carmelitas do convento da Nossa Senhora do Carmo. Chamava-se meia-lua, levava amêndoa e servia de oferta a quem fazia doações ao convento. Com a ordem de encerramento dessas instituições deixou de haver dinheiro para comprar amêndoas então o pastel foi adaptado, deixou de ter o formato meia-lua para ter em formato rectangular, que permite que se enrole mais facilmente, sem amêndoa, com menos recheio. Se há dois séculos ninguém tivesse tido esta ideia hoje não teríamos o pastel de Tentúgal como o conhecemos. Portanto, quando dizemos que um produto tem que se manter como ele é, é complicado. Portanto, houve uma evolução que foi parte natural da tradição. Exactamente. Uma das coisas que mais tenho pensado ultimamente é a necessidade que temos de afirmar o tradicional ou a tradição como sendo algo fechado, como sendo uma cristalização de um momento específico do tempo. Isso dá-nos conforto, mas apenas isso. Por algum motivo gostamos de sentir que somos um ponto de chegada e eu gosto mais de ver a coisa ao contrário: somos um ponto de partida. Recebemos um conjunto de matrizes de gosto e no fundo vamos evoluindo e, se pensarmos, esta tem sido a história de quase todo o nosso receituário. Há muito a ideia de que as coisas sempre foram tal e qual como as conhecemos. Daqui a 100 anos acredito que o pastel de Tentúgal, por exemplo, estará diferente. Acredito que se o pastel de Tentúgal não mudar vai perder muita importância, e eu já sinto isso. Não se quer mexer naquilo que são as suas características físicas, como a quantidade de açúcar, a constituição do ovo e por aí adiante. Desde há algum tempo para cá que o nosso gosto mudou, hoje queremos as coisas menos doces. Eu sou de Tentúgal e acho o pastel demasiado

doce. Mas na nossa pastelaria somos obrigados a manter o mesmo teor de açúcar… ¶ Acredito que não estamos a dar espaço para que haja a necessária interacção entre o gosto do público e o que achamos ser o gosto do público. Em Tentúgal temos outro doce muito bom, as queijadas, e na loja em Coimbra já vendemos mais queijadas do que pastéis. Como é que se explica isto? Terá a ver com a tendência mundial de se consumir menos açúcar e produtos mais saudáveis? Sim. O nosso gosto vai evoluindo e temos de ter consciência que isso faz parte da evolução da alimentação, não vale a pena fechar a porta e trancar as receitas a sete chaves. Isso só tem um resultado: as pessoas vão se afastando. Quando criamos a possibilidade de pensar o que está dentro da panela, ao mesmo tempo vamo-nos aproximando daquele gosto, ao contrário este vai acabar por ficar encerrado na celebração, no momento especial. A evolução da gastronomia é circular, se fizermos círculos eles interligam-se e há sempre uma parte do primeiro que passa para o segundo e assim sucessivamente. E, na sua opinião, como podemos contornar essa situação? Abrindo a nossa mente para a necessidade de manter o mesmo processo de evolução. Repare, antes não se comia cabrito assado ou guisado acompanhado de batatas, não havia esse hábito. A batata afirma-se na alimentação portuguesa apenas no século xix pois é um produto que permitia fazer face a grandes períodos de fome e tinha uma grande rentabilidade produtiva. Hoje em dia, não imaginamos comer um cabrito que não seja acompanhado de batata. O que vai acontecer, na minha opinião, é que temos de acordar e perceber que mais do que sermos um ponto de chegada, somos um ponto de partida e necessariamente, a nossa matriz de gosto vai incluir aquilo que é lógico para nós. Da mesma maneira que hoje quanto comemos uma caldeirada, normalmente com batata, curiosamente, temos de perceber que há produtos que de uma forma ou de outra vão-se integrando. Há produtos que apenas espreitam a panela, não entram. Esse é o chamado processo de absorção. Depois há outros produtos que vão sendo retirados. Ainda falando de doçaria, de que forma a introdução dos mixes na pastelaria

«Uma das coisas que mais tenho pensado ultimamente é a necessidade que temos de afirmar o tradicional ou a tradição como sendo algo fechado, como sendo uma cristalização de um momento específico do tempo. Isso dá-nos conforto, mas apenas isso.» inter magazine


portuguesa influenciou os perfis de gosto? [Os mixes] vieram destrui-la [a pastelaria portuguesa]. Acho horroroso como a indústria imiscuiu-se numa coisa tão bonita. Quando estou a dar aulas a alunos de pastelaria, nas Escolas de Hotelaria, digo sempre que a pastelaria é a mão de Deus na cozinha. Não basta cozer ou estufar. Não é só necessário ter técnica, é preciso ter mão, uma mão leve, uma mão invisível. Só assim é possível fazer coisas absolutamente incríveis. Essa indústria dos mixes tomou conta de todos os circuitos, dominou tudo aquilo que é a produção de pastelaria em Portugal. E ou tomamos uma atitude rapidamente ou vamos perder muita coisa, como a matriz de gosto. Hoje são os próprios consumidores que não conseguem perceber a diferença entre o que é feito a partir de mixes e o resto. É assustador. E eu não tenho dúvidas que as minhas pastelarias vão-se extinguir naturalmente. Porque diz isso? Porque hoje as pessoas não conseguem comer um folar que não tenha leveduras rápidas ou um aroma introduzido. Um bolo tem de ser fofo e saber a chocolate ou baunilha para vender. As pessoas já não querem a pastelaria tradicional. Ando há 20 anos a ser assediada pela indústria mas eles já ganharam respeito pela nossa casa e já não nos abordam. Ninguém resiste porque o preço é muito alto a pagar. As nossas pastelarias, nas nossas mãos, nunca vão utilizar esse tipo de coisas. A Olga tem vindo a estudar ao longo dos anos os temas da gastronomia portuguesa e das cozinhas regionais. Fundindo agora a gastronomia à sua formação em sociologia, de que forma a alimentação condiciona ou é condicionada por um território? A alimentação é muito filha da biologia. Se formos ver a linha do tempo da história da alimentação somos de facto muito condicionados pela nossa biologia e pela necessidade de todos os dias termos de comer e por diversas vezes ao dia. Há uma espécie de forma biológica que nos obriga a pensar e a evoluir na alimentação. Depois, somos também muito determinados pela geografia, tanto do ponto de vista da presença como da ausência. Quando pensamos em alimentação, pensamos naquilo que está à nossa volta, naquilo que pode ser um recurso e no que pode ser

considerado comestível. Tentamos escolher dentro daquilo que está ao nosso alcance aquilo que é possível e não nos faz mal e aquilo que o nosso gosto, a nossa boca, a nossa língua, o nosso nariz, os nossos olhos, o nosso estômago e o nosso sistema digestivo dizem que está bom. Depois fazemos o esforço ao contrário, ou seja, vamos e fazemos migrações por causa daquilo que não temos. Portanto a presença e a ausência é algo que nos marca do ponto de vista da geografia: nós não tínhamos mas fazíamos por ter. Tínhamos o arroz desde a presença dos árabes na Península Ibérica mas só começámos a comer arroz a partir do momento em que ele começa a ser produzido no Brasil e a ser importado para Portugal. Portanto, a alimentação foi uma das razões que levou as novas expedições a sair. ¶ Por outro lado, o território condiciona-nos, aquilo que temos perto de nós ou não condiciona, a nossa fome condiciona, a forma como nos interpretamos o mundo condiciona. Portanto a alimentação tem esta coisa fantástica que a forma como ela é moldada tem muito a ver como o modo como encaramos a natureza, a relação com a divindade, as partilhas sociais e os rituais de comunidade. Esse carácter simbólico da alimentação é uma coisa que lhe dá vida, cor e forma. Portanto, a alimentação é um misto de presença e ausência que encontramos no território. Relativamente as Beiras, que território é este? As Beiras são um caso interessante. Estão no centro do país e isto significa muito mais que do que possamos à partida pensar. E o que significa estar no centro? Por um lado, temos que entender todo o sistema montanhoso das Beiras para perceber que há de facto uma Beira litoral, uma Beira para lá da serra e uma Beira no topo da serra e que há rios que unem um ponto e o outro. Sabemos que essa ligação entre o Douro e o Tejo se faz também através de alguns rios que circulam e que andam pelas Beiras. Podemos falar muito concretamente de uma Beira que está mais encostada a norte, de uma Beira transmontana que se nós percebermos recebe muitas influências de Trás-os-Montes. Há conceitos culinários que migraram de cima para baixo e de baixo para cima e cruzam-se nas influências. Há também uma Beira alentejana encostada ao norte do Alentejo onde há o tratamento

«(…) a alimentação tem esta coisa fantástica que a forma como ela é moldada tem muito a ver como o modo como encaramos a natureza, a relação com a divindade, as partilhas sociais e os rituais de comunidade. Esse carácter simbólico da alimentação é uma coisa que lhe dá vida, cor e forma.» 73


beiras comum da cabra, dos ensopados, das ervas aromáticas. Depois uma Beira litoral que encosta ao Tejo onde já se encontra se açordas de peixe de rio e que se aproxima muito do sabor ribatejano. Esta Beira, além de bastante fértil é, na minha opinião, uma grande via de circulação, a geografia permite que seja. ¶ As Beiras têm uma identidade que é fragmentada pelas influências que recebe a norte e a sul sendo que é dentro dessa identidade que se descobrem as linhas que as unem. Pode dizer-se que é um território cheio de personalidades diferentes. Sim, e um território multifacetado e diversificado. Mas eu acredito, e tenho andado a pensar muito nisto ultimamente, que a gastronomia não tem fronteiras. As pessoas gostam muito de dizer «isto é meu», «não podem usar este nome nesse prato» ou «este receituário é daqui». Mas a verdade é que encontramos o mesmo receituário com nomes diferentes em diversos sítios de Portugal. Encontramos também a mesma designação mas com ingredientes diferentes. A gastronomia é muito volátil na forma como se expande. Acredito que há linhas que atravessam o país muito identitárias. Sinto que as Beiras é uma identidade sempre fronteira, uma fronteira que encosta a Trás-os-Montes, ao Baixo Minho, ao Ribatejo, a Estremadura, a Espanha, ao Alentejo, ao mar e que expande. E as suas influências devem-se às migrações de trabalhadores que fizeram com que muita da nossa gastronomia se expandisse. E os portugueses conhecem suficientemente bem as Beiras? Não. Mas nos últimos tempos as Beiras têm sido uma espécie de paraíso gastronómico perdido e fico feliz por isso. Sinto que temos muito para apresentar e não somos este meio caminho entre Porto e Lisboa. As Beiras têm uma identidade muito própria e não tenho dúvida que vai ser descoberta pelos turistas e pelos portugueses. Da sua tese sobre cozinhas regionais, que principais conclusões tirou? O objectivo inicial era perceber se temos cozinhas regionais. E cozinhas regionais, verdadeiramente, só temos uma: a cozinha alentejana. O resto são sotaques alimentares. Esta é a conclusão que cheguei. Temos uma matriz norte-sul cujo um dos factores de «divisão» é o Tejo. Não no sentido de dividir nem de estrangular para um lado e para o outro mas é uma evidência geográfica que mostra como somos diferentes. Identidade gastronómica de cozinha regional é o Alentejo que se afirma. Depois tempos pronúncias alimentares. Se estivermos no Alentejo sabemos o que é uma miga e uma açorda, embora haja discussões. No Norte,

acima do Tejo, migas e açordas há muitas mas com uma pronúncia diferente, com um sotaquezinho diferente. Da mesma maneira que temos os falares regionais temos pequenas diferenças. Temos o butelo em Bragança ou a chouriça de ossos mas quando passamos o Douro já se houve falar em bexiga, bucho. São sotaques. A forma de fazer é exactamente a mesma. Podem meter mais pimentão ou menos mas isso é porque na altura tínhamos mais ou menos acesso ao produto. De uma forma geral é um sotaque alimentar. Uma sopa no Minho é uma sopa em Trás-os-Montes ou nas Beiras. ¶ É claro que temos que perceber quais os critérios que usei para perceber isto. Há muita diferença entre o Minho e o Douro mas as suas diferenças têm muita coisa em comum. Há uma identidade gastronómica transmontana que não se confunde com a minhota. Mas a verdade é que em termos de identidade como um todo, mais facilmente encontramos coesão na alentejana e mais facilmente encontramos uma fragmentação que é determinada por sotaques e pronúncias alimentares. Esta é a minha perspectiva que pode evoluir hoje em dia porque o meu conhecimento da gastronomia é diferente. Eu nunca centrei a minha tese naquela ideia de gastronomia dos tais pratos emblemáticos. A gastronomia é mais que isso, há que ir a raiz, aos produtos, aos receituários de festa e também aos do quotidiano. Em termos gerais que evolução tem visto na própria gastronomia, na forma como as pessoas olham para ela? Eu vejo a gastronomia portuguesa como um processo em constante evolução. Agrada-me imenso ver a forma como finalmente estamos a aceitar isso como natural. Apesar de sabermos que hoje há muito a necessidade de cristalizar a receita. Finalmente aceitou-se pacificamente essa evolução, essa multiplicidade identitária. Não estamos tão centrados de que a gastronomia portuguesa tem que ser feita apenas com produtos locais, produtos portugueses, ou receituário local e já se consegue perceber que a gastronomia é uma zona de fronteira, é sempre uma identidade de fronteira Mas isto e o que eu sinto destes atores mais jovens que estão dentro da gastronomia. Nós não tínhamos tradição de açorda ou de arroz de marisco e hoje não podemos falar de gastronomia portuguesa sem falarmos destes dois pratos. E isto é um factor natural e pacificamente as pessoas estão a aceitar isso. Há menos agressividade na forma de demarcar fronteiras, momentos e identidades como se as coisas fossem estanques. ×

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Empoleirada num cabeço que se impõe ao olhar, a aldeia de Monsanto detém um produto tradicional e singular que poucos conhecem: o burlhão. Paula Lopes, produtora de enchidos, é a única que ainda o comercializa.

A paixão pela sua terra natal – Monsanto – onde nasceu, viveu e trabalha, vê-se nos olhos de Paula Lopes. É ela que, aqui, nesta aldeia histórica de Portugal, ainda faz enchidos tão especiais como os burlhões. «São elaborados com o bucho da cabra e enchidos com a mesma carne e com hortelã», explica a única produtora deste produto singular que corre o risco real de desaparecer nos próximos anos. Por enquanto, graças a Paula, a tradição ainda é o que era. ¶ Paula trabalha há mais de duas décadas com a produção e a venda de enchidos, ao mesmo tempo que ajuda a preservar a sua continuidade. Tudo começou por acaso, conta: «Casei e, na altura, em Penha Garcia, abri um talho com o meu marido. Os enchidos surgiram da necessidade de evitarmos o desperdício das carnes do talho e, rapidamente, começaram a ser muito procurados pelos clientes». O próximo passo foi investir num fumeiro, já em Monsanto, e iniciar um empreendimento de criação de suínos. «Actualmente, temos 40 porcas a parir e também assamos leitões. Através da nossa suinicultura, fazemos morcela de fígado, morcela de arroz, batateira, farinheira, paio, chouriço, chouriça e bucho», enumera Paula, salientando que todos os produtos são feitos durante o Inverno pois o tempo frio acolhe, de braços aberto, a produção das carnes e enchidos. ¶ Os enchidos de Paula Lopes ganharam estatuto na região das beiras, mas também atraem apreciadores de todo o país. A venda é directa ao consumidor. «Não pretendemos desenvolver o negócio, não queremos industrializá-lo; queremos manter a qualidade. Temos uma mercearia com talho onde vendemos os nossos produtos, aqui, no largo de Monsanto, e isso tem sido suficiente. Trabalho muito por encomendas ao quilo e, até à pandemia, estava a correr muito bem! Havia sempre mais encomendas que produção», refere.

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texto sónia alcaso foto humberto mouco

Os enchidos que Paula confecciona e comercializa são produtos tradicionais de Monsanto. É o caso da morcela de fígado e dos burlhões. Há outros produtos que também faz e que se fazem, inclusive, por todo o País, mas que aqui são também únicos, porque a confecção de cada enchido respeita sempre as especificidades da terra onde é produzido. «Em cada região de Portugal existe um número surpreendente de diferentes enchidos. Temos enchidos maravilhosos que a maior parte das pessoas não conhece e que correm o risco de desaparecer», refere Paula, alertando para a necessidade urgente de se preservarem e promoverem os enchidos portugueses. ¶ A pandemia trouxe dias duros. «As vendas decaíram bastante, houve uma quebra de 50% ou mais», admite. «As pessoas que consomem estes produtos são, sobretudo, aquelas que não vivem cá; têm raízes aqui, mas vivem na cidade. E, claro, com as restrições trazidas pela pandemia, ninguém saiu de casa durante meses!». Contudo, a produtora de enchidos não é de cruzar os braços e passou também a enviar as encomendas pelos CTT. «Foi o que fiz para salvar o negócio, mas não é a solução, porque faz encarecer muito mais o produto», desabafa. ¶ Paula espera agora que a normalidade volte rapidamente. As vendas de enchidos tendem a recuperar passadas as restrições às deslocações das pessoas. «Este tipo de negócio não sofre muito; o cliente está sempre garantido, já conhece o produto», afirma a produtora, com o olhar posto lá no alto, em Monsanto. «Alegria mesmo, era ver estas ruas cheias de turistas, de novo!». Monsanto sempre foi uma das aldeias mais visitadas de Portugal, pela sua inegável importância histórica e carisma. Na certa, as ruas voltarão a encher-se de gente. No seio desta instabilidade, é importante ter uma postura de otimismo e tranquilidade. ×


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A Quinta da Biaia, que remonta ao século xvii, fica situada entre as encostas de Castelo Rodrigo e a Serra da Marofa. As famílias mentoras do projecto, Flor e Lopes Ferro, ligadas por uma profunda e longa amizade, são herdeiras das terras da Biaia e sempre estiveram ligadas à produção vitivinícola. A essas famílias, juntou-se Luís Leocádio que vem complementar e enriquecer o projecto, enquanto enólogo. «Podemos afirmar, que todos já nascemos enquadrados, não só no mundo dos vinhos, mas pelo respeito e valorização da natureza e dos produtos que dela podemos usufruir e valorizar», refere Ricardo Lopes Ferro. ¶ O projecto da Quinta da Biaia, enquanto produtor e engarrafador, surgiu em 2014, tornando-se mais profissionalizado no final de 2017. O terroir único desta Quinta ajudou à sua implementação, desde a produção biológica à vinificação, valorizando as características únicas da sub-região de Castelo Rodrigo. Luís Leocádio explica que a Serra da Marofa constitui «uma barreira natural que protege de ventos marítimos, potenciando as desejadas amplitudes térmicas que dão origem a vinhos fortemente influenciados pela altitude e pelo clima agreste (frio, amplitudes térmicas, baixa precipitação, elevada insolação). Estas vinhas, plantadas com as castas características da região, estão a uma altitude média de 750 metros, dando origem a vinhos com uma forte acidez, que é a sua espinha dorsal». ¶ Certificada para a produção em modo biológico até à vinificação, a Quinta da Biaia tem cerca de 100 hectares (29 hectares de vinha e mais 28 hectares de vinha junto da adega). ¶ Este tipo de produção, realizado sem recurso a produtos químicos, em solos revitalizados e enriquecidos apenas com matéria orgânica, está em consonância com os valores e princípios da Quinta da Biaia. «Nós, enquanto produtores, que vivemos no território, herdámos as terras e queremos deixá-las para as gerações seguintes, somos defensores do modo de produção biológico, como factor fundamental da preservação da biodiversidade, condição essencial para um ecossistema sustentável», afirma Carlos Flor, acrescentando também que, «por não ser utilizado nenhum produto de síntese, nem de origem animal, os nossos vinhos também podem ser integrados numa dieta vegetariana e vegana».

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Ricardo Lopes Ferro junta-se ao amigo e sócio e refere ainda que o lema da Quinta é «privilegiar o espírito, a frescura e acidez natural» dos produtos. «Os nossos vinhos exprimem a nossa Terra. Os nossos vinhos permitem apreciar plenamente a pureza das castas com que foram feitos, nas nossas terras, pelas nossas mãos!», diz. ¶ Contudo, os custos de se produzirem vinhos biológicos são muitos, como enumera Luís Leocádio: «O custo de viticultura é maior, o risco de perda da produção é maior e a produção por hectares é mais baixa». Mas as vantagens superam essas implicações, sendo o resultado «claramente positivo». «A uva tem maior grau de concentração, não tem componentes prejudiciais à saúde e preserva e estimula a biodiversidade do território». ¶ A pandemia, que chegou quatro meses após a Quinta da Biaia ter lançado o seu re-branding e o novo portfólio, veio afectar o negócio. «O impacto, no início, foi muito significativo, até porque o mercado horeca é muito importante para nós. Contudo a exportação compensou fortemente o impacto sofrido no mercado nacional e, hoje, a exportação representa mais de 50% do volume das nossas vendas», explica o empresário. ¶ O futuro da Quinta da Biaia passa pela aposta em três eixos: «diversificação de produto, enoturismo e infraestruturas», revela Carlos Flor. A comercialização de amêndoa será uma das novidades. «Temos 37 hectares de amendoal em modo de produção biológica e equacionamos comercializar com a nossa marca outros produtos que produzimos na Quinta». Por outro lado, no enoturismo, também serão lançadas as primeiras iniciativas, suportadas nas condições naturais que a Quinta proporciona, desde as visitas e provas, a eventos ou participação nas vindimas, entre outras iniciativas. Por fim, os responsáveis explicam que já estão a agarrar as oportunidades de expansão: «investimos o ano passado na plantação (nova) de vinha em 8,5 hectares e temos intenção de, nos próximos dois anos, plantar mais 20 hectares de vinha. Após este período pandémico e com a recuperação do mercado nacional pretendemos investir na adega para obtermos um maior grau de adequação às nossas necessidades». ×


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Josefina encontrou, na sua terra beirã de Penha Garcia, um caminho de sabedoria na história da alimentação. Hoje, partilha connosco esses saberes, sabores e tradições e é um exemplo de fidelidade às raízes e de bondade do ser humano.

Recuando no tempo, Penha Garcia era, nos anos 30 e 40, uma aldeia praticamente isolada das outras terras pertencentes ao concelho de Idanha-a-Nova, Beira Baixa. Não havia estrada para Monsanto e nem para Monfortinho e, por isso, os acessos eram muito difíceis. Rochas e castelo, no alto de Penha Garcia, observavam a vida simples e pobre da maioria das pessoas. Faltavam alimentos a muitas famílias, mas não faltava amor, nem poder de resiliência, nem vontade de partilhar numa aldeia assente na bondade do ser humano. Todos cozinhavam muito com pouco. Todos eram ricos na sua simplicidade. Todos partilhavam o que tinham com quem não podia ter. E foi nessa terra «especial» que, no dia 29 de Janeiro de 1935, nasceu Josefina Pisarra. ¶ Josefina viveu em Penha Garcia até ao seu casamento. A infância e juventude foram passadas na aldeia, onde o seu pai era ferreiro e a mãe lhe ensinava a cozinhar em tachos e panelas de ferro à lareira. Desde cedo, a curiosidade de Josefina levou-a a querer aprender mais sobre cozinha, produtos e tradições. São muitas as histórias desses tempos que guarda na memória e, para nosso bem, partilha connosco. «Quando penso nos cozinhados da minha mãe, vem-me logo à memória o arroz de bacalhau. O meu irmão ainda hoje diz que, por mais voltas que a gente dê, nada se compara ao arroz de bacalhau que a nossa mãe fazia!», diz Josefina. ¶ A agricultura, nessa altura, era de subsistência, mas toda a gente comia os produtos

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da época. Era um alimentação muito simples, mas cheia de sabores e odores, graças às ervas aromáticas que cresciam nas margens da ribeira. E surgiam, então, refeições simples como sopa de gravanços, canja com hortelã, sopa de feijão-verde, sopa de feijão-frade com poejo, entre tantas outras iguarias que Josefina nos enumera. «Nos anos 30 não havia, por exemplo, couves, porque a aldeia estava isolada e as sementes não chegavam cá. Contudo, aproveitava-se o que nascia dos campos; todas as ervas comestíveis eram usadas. Era uma alimentação reduzida às necessidades básicas das famílias, mas, ao mesmo tempo, muito criativa e natural». ¶ A caça era, por sua vez, abundante. Perdiz, lebre, coelho, tordos e pombos bravos existiam para matar a fome de qualquer família. ¶ Havia também diferentes representações em torno do acto da alimentação. Antigamente, comer determinados alimentos acontecia em momentos específicos que reuniam as pessoas em torno da comida, com grande carga simbólica. Era o caso da matança do porco, como explica Josefina: «Durante o ano, as pessoas alimentavam um porco que era abatido no inverno. Fazia-se, então, a festa da matança do porco que juntava a família e os amigos. Do animal, aproveitava-se tudo: comiam-se umas partes e o resto era guardado na salgadeira para enchidos; as carnes davam para o ano inteiro. Durante a semana não se comia carne, só ao domingo em que toda a gente comia sopa de grão com toucinho da salgadeira ou, então, cozia-se um


beiras Rochas e castelo, no alto de Penha Garcia, observavam a vida simples e pobre da maioria das pessoas. Faltavam alimentos a muitas famílias, mas não faltava amor, nem poder de resiliência, nem vontade de partilhar numa aldeia assente na bondade do ser humano.

enchido.» Mas, e quem não tinha possibilidade de ter um porco, de o alimentar? «Esta aldeia sempre foi muito solidária. No dia de Carnaval, toda a gente fazia chegar às casas das famílias que não tinham porco, o jantar da carne». O espírito de solidariedade e partilha, em Penha Garcia, fazia a diferença. O Natal é outra ocasião exemplo disso e que Josefina recorda com saudade: «Comia-se alguma coisa ligada à caça, perdiz ou lebre, nada de especial, mas as filhós, acompanhadas por café de cevada, é que não podiam faltar! Só quando morria alguém da família é que não se faziam. Mas toda a aldeia, na noite de Natal, fazia chegar o prato das filhós a essa família». ¶ Em Penha Garcia, no dia 24 de Dezembro, havia ainda o costume de se arder o madeiro do sobreiro ou da azinheira, no largo da porta da vila, onde se reuniam à volta desse fogo os rapazes e os chefes de família. Depois, homens e mulheres iam todos à missa do galo. ¶ A malha dos cereais era outro dos acontecimentos da vida das famílias rurais de Penha Garcia. Nesse dia de Verão, as espigas de centeio eram estendidas na eira, formando as eiradas, que eram batidas pelos malhadores (homens) com os seus mangais e, assim, era extraído o grão das espigas. Depois, as mulheres juntavam o grão para o centro da eira. A parte da alimentação era muito importante nestes dias, pois servia para impulsionar a força nos trabalhadores. Josefina conta como era servida cada refeição durante o dia da malha: «Logo pela manhã, serviam-se os ovos da malha, acompanhados com mel (ainda hoje se fazem). Depois, vinham as migas de batata com pão, queijo, presunto e chouriço. Às 12 horas, os malhadores comiam a sopa de feijão-verde com bexiga de porco ou enchidos. Na altura da côdea (15 horas) era a vez do ensopado de cabra. Na merenda, era-lhes servido gaspacho com o resto de carnes de porco e, por fim, à ceia, comiam papas de carolo com soro». ¶ Josefina continua a seguir muitas dessas tradições e receitas. «O meu pequeno-almoço é, actualmente, o mesmo que comia com o meu pai – papas de carolo (milho). Naquela altura, também havia quem as comesse à ceia. São maravilhosas e dão saciedade por muito tempo!».

E, de facto, os seus 86 anos são cheios de energia, de vivacidade de espírito, de criatividade. ¶ O melhor da sua terra é que, ainda hoje, existe esse espírito de tradição e partilha entre todos. O amanhã incerto é sempre apaziguado por uma mão solidária, uma mão altruísta que distribui o que tem com os outros. «Quem apanha o primeiro feijão-verde ou outro legume qualquer, dá também aos vizinhos a provar», refere Josefina. ¶ Foi ao vencer, em 2015, o concurso Cook-Off - Duelo de Sabores, ao integrar a equipa do concelho de Idanha-a-Nova, transmitido pela RTP1, que Josefina Pisarra se tornou conhecida do público português. ¶ Desafiada por amigos e familiares para escrever sobre as suas histórias, Josefina lançou, dois anos depois, o livro «Sabores de uma Época – Tradições de uma Terra», uma edição do Município de Idanha-a-Nova, que dá a conhecer receitas culinárias e várias tradições alimentares das famílias de Penha Garcia, nos anos 30 e 40. Com fotografias de Valter Vinagre, este livro foi premiado como Livro do Ano, no âmbito do Prémio Portugal Cookbook Fair 2018, uma iniciativa desenvolvida em parceria com a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL). ¶ Do livro saltam as histórias de Penha Garcia, as suas receitas e acontecimentos tradicionais. Nas palavras de Josefina, sentem-se também os sabores, os cheiros, os sons e, sobretudo, os afectos desta mulher beirã que sabe homenagear a sua terra melhor do que ninguém.¶ Há 12 anos que Josefina regressou à sua aldeia, depois de ter vivido, com o marido, em outras partes do mundo durante 54 anos. A verdade é que, para onde quer que fosse, levava a sua terra na mente e no coração. Era aqui o seu lugar. ¶ Hoje, depois de tudo o que viu e aprendeu ao longo do tempo, Josefina deixa uma mensagem a todos: «Eu aconselho que as pessoas comam os pratos tradicionais da época e que coloquem sempre muito amor e paciência em tudo o que cozinham!». ¶ O desejo de Josefina é garantir a continuidade e a valorização das tradições da sua terra, Penha Garcia, à qual tem dedicado, com amor, a sua vida. ×

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Aos 14 anos, Ricardo já assava leitões no forno de lenha do Mugasa, sob o olhar atento do pai, Álvaro Nogueira, mestre assador do restaurante aberto pela família há mais de 40 anos na aldeia de Fogueira, Sangalhos, em Anadia. Esteve para seguir a área dos mercados mobiliários financeiros e trabalhar na banca mas o compromisso familiar falou mais alto. Nascido e criado dentro do restaurante, foi sempre ao lado dos pais que foi trilhando o seu lugar no espaço, onde hoje, aos 45 anos, assume a gestão, bem como, o desenvolvimento e inovação do negócio. Ao longo dos anos, as mudanças foram significativas no espaço e nas condições de cozinha mas a essência manteve-se, acredita Ricardo: «São muitos anos (mais de 30) de experiência e dedicação, bem como amor implícito por esta arte maravilhosa de assar leitão. Acredito que mantivemos a humildade, a dedicação e o esforço que se reflecte no respeito e na admiração por quem nos procura.» Além dessas funções, o herdeiro do império Nogueira é hoje o mestre assador da casa, responsável por um dos pratos mais icónicos do Mugasa e da região da Beira Litoral, o leitão à Bairrada. Essa liderança no forno a lenha foi partilhada durante anos com o pai que hoje, já reformado, é presença constante no espaço. Segundo o especialista, os segredos para uma boa feitura desta iguaria passam pela escolha da matéria-prima, que no caso do Mugasa pode vir de norte a sul do país, sempre com o mesmo tamanho, bem como o domínio da técnica do assadura, o controlo da temperatura do forno e, por último, o molho «único e inconfundível» – que só leva quatro ingredientes: sal, vinho branco, banha de porco e pimenta – aprendido com a mãe, Helena Nogueira, que se introduz, antes da assadura,

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na barriga e na garganta do leitão. O resto do trabalho implica experiência, paciência e muito amor. «O leitão assa durante duas horas em lenha de vides ou de pinho, o que lhe confere um aquecimento forte e equilibrado. Mas os desafios são vários ao longo desse tempo: os primeiros 20 minutos determinam a cor da pele do leitão e, por isso mesmo, o assador tem que adaptar os seus conhecimentos à matéria-prima, uma vez que os leitões são todos diferentes e têm comportamentos distintos na assadura», explica. Todo o trabalho de Ricardo Nogueira e equipa é para que os sabores do leitão sejam preservados. À mesa do cliente, o animal é servido, cortado em quadrados pequenos – com a pele, que se quer crocante e estaladiça com um interior suculento, virada para cima – e acompanhado de batata cozida (ou frita), salada de alface e laranja. Se for possível, a refeição é acompanhada por um copo de espumante da Bairrada, uma combinação vencedora para o responsável. ¶ A versatilidade deste animal não se esgota num só prato e o Mugasa enaltece essa variedade na sua carta, com iscas, cabidela e feijoadas do mesmo. Apesar de esse ser um produto-estrela, o restaurante conta com outras iguarias reconhecidas, caso da chanfana, do bacalhau assado, dos rojões e da doçaria da mãe de Ricardo, do qual se destaca a aletria. ¶ Para o futuro, Ricardo Nogueira mostra-se optimista e desejoso de continuar a trabalhar no melhoramento da qualidade de produto e serviço do restaurante. «As expectativas são as melhores. Andámos a semear para colher. Em frente é que é o caminho e o melhor da vida é viver. Queremos agarrar da melhor forma esta oportunidade que a vida nos deu e está a dar de sermos uma casa de referência, reconhecida pelo seu esforço e qualidade.»×


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João d’Eça Lima

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Nasceu em Lisboa, em 1975, num Agosto quente e revolucionário. Dentro de si, desde cedo, manifestou-se o gosto por aprender, ser desafiado, compreender o mundo. Licenciou-se em História, tirou um mestrado de Multimédia em Educação, deu formação a professores, coordenou projectos de educação artística e criativa em museus nacionais e, por fim, decidiu estudar Cozinha na Escola de Hotelaria e Turismo de Coimbra. ¶ Seja ao que for que se dedique, João d’Eça Lima há-de sempre partilhar o que vai aprendendo na vida. A paixão pela cozinha surgiu da vontade de «fazer algo em que fosse bom». Por natureza, mais do que por aprendizagem. «Porque acho que há coisas que nascem com as pessoas e que as tornam únicas», explica o chefe de cozinha. Hoje, o seu passado e o seu presente continuam interligados. «Agora percebo que, mais do que cozinhar, é a investigação, novamente, que me apela e me faz continuar nesta área depois da mudança. Cozinhar as memórias e a história. Quase como em resumo do que fiz e que desejo fazer no futuro. Preservar e dar a conhecer a história e cultura à volta da cozinha e culinária ensinando a nossa memória civilizacional colectiva». ¶ Os 16 anos como professor do ensino básico e secundário ficaram para trás, mas não o amor pela investigação, pelo ensino e por ver crescer nos outros o desejo pelo conhecimento. Antes de ter o seu espaço no meio da serra, João d’Eça Lima esteve na Pousada de Condeixa, em Coimbra, como chefe de cozinha e onde começou a sua aventura. Agora, com o seu projecto, Xisto, está «no meio do nada que é o centro de tudo». Tens sabores e influências na tua cozinha que venham da tua infância? Tenho. Ninguém na minha família teve alguma vez ligação ao mundo da restauração. Nasci e cresci

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numa educação e meio familiar urbano, com acesso a muitas coisas a nível social que hoje valorizo muito e não nego. Não tenho memórias nenhumas da ruralidade. Nem da vida comunitária. Nem do campo. Sou e serei sempre um homem da cidade mesmo estando no meio da serra por escolha. As minhas memórias são de uma cozinha senhorial. Dos folhados e pudins. Do peixe fresco, dos rolos de carne e dos mariscos no verão. Dos restaurantes que o meu avô me levava a descobrir e onde, por deferência, sempre conheci o melhor serviço e alguns sabores que ainda hoje conservo como únicos. Só na minha adultez comecei a explorar os sabores mais ditos tradicionais. E foi uma surpresa. Na altura, pela imensidão de experiências que procurei. Em parte porque dei aulas em quase todo o território das Beiras e, por isso, tive sempre essa oportunidade de ir descobrindo as terras em que fui ficando. E com isso os seus sabores. Tenho o melhor dos dois mundos em mim. As minhas influências, no entanto, são sempre os sabores de infância. Curiosamente… Quais os desafios de se ter um projecto no meio da serra, longe dos centros urbanos? Muitos. Não é por estar no meio da serra que o desafio é grande. Há muito bons restaurantes no meio rural e de serra. É por o projecto ser o que é. Primeiro porque foi pegar num «bar» de praia fluvial, numa das zonas menos conhecidas e transformar essa ideia numa de um restaurante único. Depois, dar a conhecer o local e a riqueza que vão ainda tendo lugares por descobrir e desbravar em termos turísticos e gastronómicos. E depois porque eu defini o projecto do Xisto como um desenho de sabores de um território que vai da Figueira da Foz (mar) à Sertã (serra). Por isso precisava de ter produtos, receitas, conhecimento, modelos e uma concepção que fosse única com receitas únicas que não se


restaurantes beiras podiam encontrar em mais nenhum lado que não fosse ali. O grande desafio foi mudar a lógica de tudo e criar interesse. Foi preciso trabalhar o triplo do que em qualquer outro lugar. Ajudava a beleza natural do espaço que é verdadeiramente especial mas era preciso arriscar em pratos, iguarias e sabores que as pessoas não estavam e não estão tão habituadas. Por isso foi um processo e está a ser um processo muito curioso. Criámos memórias e redefinimos a estrutura do lugar. Pelos sabores. E isso fez daquilo, ali, um acto de restauração. Um restaurante. Foi esse o desafio. Mais do que tudo o resto que é normal em quem se aventura longe dos centros urbanos. O nosso cliente não passa à porta. Vai por interesse. Assim como é preciso ir buscar os produtos directamente. Mas esses acabaram por ser os desafios mais fáceis em função do outro, maior. A cozinha que fazes no Xisto é de investigação? A cozinha do Xisto é uma cozinha da memória do mar à serra. Começa, sim, numa investigação permanente, de auscultação e de registo, com as pessoas, os restauradores, as comunidades da região das beiras e depois é desenvolvida (e por vezes adaptada) para ser servida à mesa do Xisto. É uma cozinha com rostos por detrás de cada sabor. Com histórias para serem contadas se o cliente estiver interessado em as ouvir. Tudo o que ali é servido tem memória. Do produto à receita, do sabor à forma como é levado à mesa. Que pratos regionais destacarias na tua ementa? Nós temos sempre duas referências numa ementa que muda completamente em cada época do ano. Quando digo completamente é mesmo tudo. Entre cartas não há nenhum prato que se mantenha ou repita. Por isso, os pratos são sempre únicos e com os produtos na sua época. Mas há

duas referências comuns em todas as cartas. O uso da caça, de carnes de caça (javali, veado, perdiz…) e o bacalhau. A caça é sempre trabalhada com base em receitas da região e muito ricas na aromatização com ervas e plantas da região (local, pois há abundância mesmo à porta) e o bacalhau por via do uso do azeite rico e muito bom que a região fornece e que usamos. Diria que estas são as duas valências das cartas que estão sempre presentes. Depois, há sempre e muito destacado por quem nos visita, o peixe trabalhado muito com sabores de mar, o que sendo servido no meio da serra, não é tão comum. Mas a verdade é que fazemos a rota do Mondego e por isso o peixe tinha que estar presente no seu máximo esplendor. Na tua opinião, como está o estado atual da gastronomia das Beiras? Infelizmente, por um desinvestimento na investigação está pobre. Ou melhor, a empobrecer. Há muita gente que resiste e luta contra os lugares comuns em que estamos a cair mas é preciso mais. É preciso um trabalho de fundo, de valorização do produto, das receitas, da recuperação da memória para que não seja tudo reduzido a cabritos, chanfanas, bacalhaus à lagareiro (seja lá o que isso já é) e afins. Precisamos de recentrar a cozinha e culinária das beiras (que são um território de uma riqueza gastronómica imensa) no que a torna única e na história que tem para a valorizar. E isso não é feito. Turisticamente as pontencialidades são enormes. O território é tão vasto como brilhante na sua diversidade. As memórias são mais do que muitas, mas tudo isso está a perder-se por se vulgarizar o comum e detrimento do único e endógeno. Porque quem visita tem que ser desafiado a provar e descobrir o que torna cada lugar especial em vez de

A cozinha do Xisto é uma cozinha da memória do mar à serra. Começa numa investigação permanente, de auscultação e de registo, com as pessoas, os restauradores, as comunidades da região das beiras e depois é desenvolvida (e por vezes adaptada) para ser servida à mesa do Xisto. inter magazine


ser «agradado» com o mais fácil e comum. O que as Beiras precisam é de serem únicas e de razão para se voltar. Ter um sabor ao qual se quer regressar e só nesta região se pode encontrar. É um processo todo por fazer. Certos produtos agrícolas estão associados (até no nome) às terras onde são produzidos. O que salientarias aí na tua região? Há as leguminosas específicas. O chicharo é uma delas. Mas mais do que isso, num tempo de sustentabilidade e de ecologia, os peixes do rio. As beiras são imensamente ricas em rios, riachos e afins e a ficarem cada vez mais pobres no que diz respeito a esta gastronomia do rio. Dos lagostins ao peixes, das ervas aromáticas aos legumes, precisamos de um trabalho de recuperação sustentada do gosto e do cuidado ambiental. Assim como, da recuperação de uma cozinha frugal e mais de base vegetal que era fonte de muita sobrevivência da região. Aqui, os queijos, o azeite, o mel, os figos, as azeitonas, são de uma qualidade ímpar. E valorizar isso servindo à mesa é fundamental para a valorização do todo que a região tem para oferecer. Como te estás a aguentar com a pandemia? É aqui que estar longe dos centros se sente mais. Não por não podermos arriscar num modelo de entregas que fosse criativo e sustentável economicamente, mas porque o sermos um restaurante com pouco tempo de vida, com uma identidade muito própria, com uma fundamentação económica que ainda estava em construção nos levou a fazer muitas escolhas e tomar decisões muito difíceis. Por isso a nossa decisão foi encerrar completamente, entrar em modelo de «hibernação», esperando poder e ter formas de reabrir quando possível. Sabemos que, quando reabrirmos, estaremos apenas a

trabalhar para «pagar» as perdas do tempo de encerramento esperando que não voltemos ao mesmo num futuro que também temos que acautelar caso venha a acontecer. Se disser que é desafiante e mais mil coisas modernamente motivadores estou a mentir. É muito difícil, muito duro e muito penoso. Mas enquanto houver esperança e mais sonhos do que memórias, vamos tentar continuar. Na tua opinião, de que forma os restaurantes se poderão reinventar perante esta crise sanitária? Creio que há duas linhas em que pensar. Primeiro em como manter e sobreviver economicamente nestas fases de semi-aberturas ou aberturas condicionadas por horários ou número de lugares a que se soma o takeaway para quem o faz. Mas depois há o futuro. Creio e sempre acreditei nisto, que quem quer ir a um restaurante para uma visita para além da alimentação por necessidade, quer encontrar, cada vez mais, identidade e tipicidade. Serem e terem ofertas únicas. A que se vai de propósito para degustar um sabor ou ter um momento de descoberta. Creio que este é o tempo perfeito para voltarmos à gastronomia de matriz regional e com produtos de excepcional qualidade que o nosso país tem com a valorização de cada região, para que isso seja motivo de visita de quem quer descobrir tudo isto que é tão rico e único. Diria que, mais do que continuar temos que aceitar esta necessidade de reconstrução. De criarmos valor para sermos definitivamente um país com uma identidade gastronómica própria com cada região, como as Beiras, a terem coisas únicas para serem (re)descobertas. Tínhamos tido tempo para pensar e fazer isto bem. Espero mesmo que o possamos fazer. Seja agora, seja pela evidência que o futuro próximo penso que nos vai trazer. ×

Creio que este é o tempo perfeito para voltarmos à gastronomia de matriz regional e com produtos de excepcional qualidade que o nosso país tem com a valorização de cada região, para que isso seja motivo de visita de quem quer descobrir tudo isto que é tão rico e único. 89


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Diogo Rocha nasceu em Canas de Senhorim, Urgeiriça, em 1983. Desde muito novo, soube que a cozinha iria ser a sua vida. Há 30 anos, em Portugal, a profissão de cozinheiro não era valorizada, nem tinha o mesmo glamour de hoje, e Diogo teve de enfrentar alguma resistência da parte da mãe. Apesar da tenra idade, já percebia a importância de se persistir nos sonhos; o mundo da cozinha era-lhe irresistível. «Adorava cozinhar e já acompanhava o meu pai (Chefe de Sala) em eventos desde os nove anos, sempre fascinado pela preparação dos artísticos bufetes de frutas, frios, queijos, doces, entradas e, claro, toda a dinâmica de serviço, preparação e confecção de um evento para centenas de pessoas!», recorda Diogo que foi crescendo, enriquecendo-se com as experiências que ia tendo, com os sabores dos cozinhados familiares, com os aromas do campo onde vivia. «Por vezes de forma injusta, digo que a minha mãe não é grande cozinheira, mas depois lembro-me do seu bacalhau à Brás, da dobrada, da língua de vaca, do bacalhau de forno (que tem o mesmo aroma que o que a minha madrinha faz, e é incrível), e percebo que tenho essas recordações de bons sabores, a que junto as “tachadas” do meu pai, mestre a fazer feijoadas, caldeiradas, cozido, e também as da minha avó materna, que cozinhava uma sopa de castanhas especialmente para mim e fazia umas batatas fritas únicas (tecnicamente erradas), que depois de fritas eram tapadas num tacho e quando chegava a hora de comer estavam ensopadas em gordura, e moles!». Diogo absorveu todos esses saberes, mas no fundo já se preparava para pertencer a uma nova geração de chefes que, além de grandes executores culinários, fariam a sua intervenção na cozinha, criando a sua marca. «Gosto de ir beber a essa informação mental mas, depois, o que quero fazer é mesmo a minha cozinha, com várias influências, e que se transforme também ela numa influência». ¶ A aprendizagem sempre foi uma

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prioridade na vida do jovem cozinheiro. Fez o Curso de Cozinha e Pastelaria da Escola de Hotelaria e Turismo de Coimbra, licenciou-se em Produção Alimentar e Restauração e fez o mestrado em Sustentabilidade de Turismo na ESHT. Começou a trabalhar no Encontrus (catering), e no restaurante Terreiro do Paço, Villa Joya e Valle Flor, como estagiário. Em 1999, conheceu o chefe Vitor Sobral que, para além de se tornar o seu mentor, incentivou-o a continuar os estudos. Ainda a frequentar o último ano da licenciatura, assumiu a chefia do Hotel da Urgeiriça durante um ano e, em 2008, entrou para o Dão Sul, onde se tornou chefe executivo de todo o grupo com três espaços de restauração: Quinta de Cabriz, Quinta do Encontro e Paço dos Cunhas de Santar. Em julho de 2013, entrou no universo do grupo de Celso de Lemos, vindo a abrir o Mesa de Lemos como chefe executivo em abril do ano seguinte. ¶ Desde então, Diogo Rocha dedica-se a explorar os sabores mais tradicionais da cozinha portuguesa, demonstrando sempre um profundo respeito pelos produtos nacionais. «Temos quase só produtos de produção e origem portuguesa, e os nossos pratos resultam dessa matéria-prima que selecionamos e acreditamos ser a melhor. Não queremos ser conhecidos por sermos “desconstruidores” de receitas, por fazermos cozinha de fusão ou outras. Queremos e acreditamos ter a nossa identidade, que até é considerada por alguns como improvável e diferente, mas cheia de personalidade e sabor vincado.» ¶ Em 2019, o Mesa de Lemos conquistou a sua primeira Estrela Michelin. «O sonho de um cozinheiro quando se torna chefe é ter no reconhecimento do público/clientes as suas capacidades de cozinhar, e com isso proporcionar grandes momentos de satisfação a quem come a nossa comida. Ver na crítica nacional bons textos e recomendações motivam-nos a querer chegar ao reconhecimento internacional, sonhar


beiras «O sonho de um cozinheiro quando se torna chefe é ter no reconhecimento do público/clientes as suas capacidades de cozinhar, e com isso proporcionar grandes momentos de satisfação a quem come a nossa comida.»

estar ao lado dos nossos ídolos, jogar na mesma “Liga ”, que neste caso é uma Champions League», refere Diogo, acrescentando que ganhar esta distinção não era só um objetivo pessoal, mas também um reconhecimento para toda a região e, em especial, para Viseu que nunca tinha tido um restaurante com Estrela Michelin. Esse impacto foi inegável e levou a uma grande afluências das pessoas ao Mesa de Lemos. Ganhar uma Estrela significa a ascensão do restaurante e pode colocá-lo definitivamente no mapa da gastronomia mundial, como conta o chefe: «No dia em que ganhámos a estrela Michelin, recebemos reservas de Nova Iorque, Bruxelas, Madrid, Paris, etc. Foram dias loucos no aumento de reservas, chegando mesmo a ser difícil de gerir. Percebemos imediatamente a dimensão, o alcance e o negócio que o Guia Michelin traz. As pessoas que viajam por motivos de turismo gastronómico, e os consumidores deste tipo de restaurantes é enorme, e só consegues perceber isso quando fazes parte desse clube». ¶ O Mesa de Lemos é um elogio à excelência da cozinha tradicional das Beiras. Aqui, abundam os produtos regionais, como o Queijo Serra da Estrela DOP, o Requeijão Serra da Estrela DOP, Feijão Bonito, as Feijocas, a Maçã Bravo de Esmolfe, o Cabrito da Serra do Caramulo, o Borrego da Serra da Estrela e o Bacalhau (que não sendo de origem portuguesa, é-o na forma de o salgar e o conservar). ¶ Na opinião de Diogo, nunca as Beiras tiveram tantos e tão bons cozinheiros, produtores, empreendedores e pessoas a quererem fazer bem e diferente. As suas palavras reflectem o orgulho de pertencer a esta região: «Sabemos que nunca vamos ter as quantidades em produtos que acharíamos necessários, ou nunca vamos ter o produto no tempo que pretendemos no nosso restaurante. Sabemos que qualquer evolução qualitativa também está associada ao valor que conseguimos dar ao que temos e passar a mensagem desse valor aos outros. Mas sabemos que temos condições climatéricas e

geográficas muito distintas, que são uma enorme vantagem. Sabemos ainda da riqueza de produtos que temos quando falamos de mar, campos, serras e rios. Sabemos muito, e reforço que defendo que vivemos um bom momento, mas também sabemos que será preciso trabalhar mais, dar mais identidade ao território, dar a conhecer, sermos melhores no serviço e tudo o que temos que oferecer, porque gastronomia é muito mais do que só comida, e aqui nas Beiras isso existe mas ainda não o conseguimos evidenciar em pleno». ¶ Aguentar o embate da pandemia não tem sido fácil, mas Diogo Rocha não espera melhoras no imediato. «Dias difíceis, longos, incertos e de hesitação são aqueles que já passaram e ainda faltam passar neste período inesperado e necessário para a segurança de todos, que coloca sobre a nossa mente um gigante ponto de interrogação sobre o futuro de todos os restaurantes, cozinheiros e as vastas equipas que disso dependem deste sector». ¶ No Mesa de Lemos, Diogo refere a importância de Celso de Lemos para a equipa de todo o restaurante, considerando-o «um visionário que nos lidera, fazendo-nos acreditar naquilo que nem nós por vezes acreditamos; e se em tempos podia ser mais fácil, hoje a sua motivação, trabalho e generosidade não nos deixam esmorecer e ajudam-nos a querer fazer mais e melhor». ¶ Com os olhos postos no futuro, Diogo deixa uma mensagem de arranque a todo o sector. «Quando “regressarmos”, estaremos a competir com o mundo inteiro, e teremos de ser criativos para voltar a ser atrativos e regressar aos níveis de sedução e de visitantes e turistas alcançados anteriormente». Ser português é ter orgulho em sê-lo e o chefe da Mesa de Lemos sabe bem disso. «Somos um povo que sempre conquistou tudo o que tem com muita dificuldade, dando sempre mostras de que é capaz. Com a crescente qualidade, consistência e jeito inigualável dos Portugueses, acredito que sairemos mais realistas e conscientes do que podemos fazer a partir daqui». ×

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«Toma lá morangos!» de Dave Palethorpe, Humberto Mouco, Cinco Lounge, Lisboa, 2021







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