L
I
R
I
A
D
A
R # 2 6 8
«Follow me», Alexandre Silva, Madrid Fusión, 2009
Humberto Mouco, Lisboa, 2020
editorial
Fundada em 1989 por António Esteves inter magazine
Unem-se vontades, reúnem-se esforços, abafa-se o medo, ultrapassam-se as incertezas, solta-se a criatividade, restaura-se a alegria, multiplicam-se cuidados, sorri-se com os olhos e destrancam-se as portas. ¶ A abertura dos restaurantes é o lento regresso à normalidade possível. Nós (os clientes) entramos, parte do rosto oculta. Se não tivermos máscara, lá dentro haverá, só para momentos de circulação, que na hora do prazer quer-se tudo a descoberto. Percebe-se a capacidade reduzida do espaço (50%) e as sérias medidas de higienização – mãos desinfectadas, pratos e talheres colocados à vista na mesa limpa, pronta para nos receber, individual ou não, que partilhar sempre fez parte da refeição, mas agora exige-se uma atitude de maior contenção. Restringir algumas liberdades para preservar outros valores importantes, como a saúde e a segurança de todos. ¶ E depois chegam os pratos! Voltam os explosivos sabores da comida dos cozinheiros, aqueles que estudam para conjugar e equilibrar produtos e ingredientes dos quais morríamos de saudades. E, por momentos, podemos pensar que recuperámos a vida descontraída de outrora. Mas o ambiente, dentro dos restaurantes mudou após longas e dramáticas semanas de portas fechadas; tornou-se ainda mais caloroso, depois de tantas dificuldades e tantos receios, tantas desesperanças e tantas lutas, tantos sacrifícios e tantos sonhos. As novas regras são desafiantes para quem serve e para quem é servido, mas a essência continua intacta. Rapidamente, abraçamos as novas medidas restritivas; o importante é que a restauração volte a florescer, porque nós queremos, de novo, toda a comida do mundo. ¶ A experiência de ir a um restaurante vai muito além de alimentar o corpo; é a exploração do que está no prato e também do que está ao redor do mesmo; é um despertar sensorial que nos trata do corpo e da alma. Saímos cheios de aromas. Recuperamos o aroma da humanidade. O aroma da força, da resiliência e do entusiasmo pela vida, mesmo quando a vida ameaça fugir. ¶ Vamos marcar mesa? × sónia alcaso
Director: Paulo Amado Chefe de redacção: Sónia Alcaso Fotografia: Humberto Mouco Fotografia capa: Theo Gould Design gráfico: RPVP Designers colaboram nesta edição Alexandre Silva, Ana Paz, Bruno Azevedo, Catarina Amado, Destroy Trash, João Rodrigues, Luís Antunes, Marta Almendra, Nuno Diniz, Olavo Silva Rosa, Olga Cavaleiro, Óscar Correia, Rafael Tonon, Rafael Ventura, Susana Barroso, Tamara Alves, Teresa Vivas, Theo Gould e Virgílio Nogueiro Gomes. Propriedade: Paulo Amado Rua Diogo do Couto, 1, 6.º Frt 1100-194 Lisboa, Portugal Nif. 182 809 110 contactos eg@egosto.pt www.egosto.pt +351 218 822 993 publicidade comercial@egosto.pt +351 218 822 993 venda por assinatura assinaturas@egosto.pt +351 218 822 992 Publicação trimestral Tiragem: 4000 exemplares Impressão Acabamento: Grafivedras Artes Gráficas Lda. design@grafivedras.pt Estrada Nacional 247, Km 36, n.º11, Escravilheira, 2560-191 S. Pedro da Cadeira, Torres Vedras venda por assinaturas mj/sg/nrocs n.º113499 depósito legal: 21.947/88, issn: 0873-53 lx Membro aind — Associação Portuguesa de Imprensa redacção e edição Edições do Gosto Publicações, Unip, Lda npc: 505 957 221 Registo na Conservatória Comercial n.º 10787 Capital social: 100.000 euros Rua Diogo do Couto, 1, 6.º Frt, 1100-194 Lisboa, Portugal +351 218 822 992 consultar estatuto editorial em: http://www.egosto.pt/ estatuto-editorial-inter-magazine/ edições do gosto Ana Gouveia, Andreia Gomes, Catarina Amado, Paulo Amado, Rodrigo Melo, Rita Cupido, Sílvia Alves, Sónia Alcaso, Susana Hurtado. Com Humberto Mouco, Mário Batista e Vânia Rodrigues e Vítor Paulino. interdita a reprodução de textos e imagens sem o devido consentimento
destaques
inter magazine
Em todos os tempos, e sobretudo nos de crise, ajudar o próximo é um acto de bondade, compreensão e solidariedade. E que o digam alguns dos chefes com quem falámos! 18 Óscar Correia, Bruno Azevedo e Rafael Ventura debruçam-se sobre os dilemas da gestão em tempos de pandemia. 26 Nuno Diniz, Virgílio Nogueiro Gomes e Olga Cavaleiro trazem-nos interessantes reflexões sobre a nossa Portugalidade. 34 A viagem a São Miguel, nos Açores, numa altura em que o Covid-19 era ainda uma miragem, mostra-nos a dedicação e o respeito das pessoas aos produtos da região. 56 O chefe do Feitoria, João Rodrigues, escreve sobre o seu projecto Matéria, já online, reflectindo sobre as matérias-primas por trás da identidade gastronómica nacional. 68 Olavo Silva Rosa reflecte sobre os problemas da interioridade do País, como a desertificação, o isolamento e a desaceleração. 74
contra o racismo texto sรณnia alcaso
inter magazine
George Floyd, afro-americano, morreu, deitado de bruços na estrada, no dia 25 de maio de 2020, após Derek Chauvin, então policial, branco, de Minneapolis, se ter ajoelhado no seu pescoço durante oito minutos. Floyd dizia «não consigo respirar» e Chauvin continuava a pressionar, mesmo depois da vítima ter perdido os sentidos. ¶ Capturado em vídeo por uma testemunha, este brutal assassinato indignou o mundo inteiro, levando as pessoas a saírem à rua para manifestarem a sua revolta em mais de 75 cidades, e os Estados Unidos viveram a mais grave onda de manifestações desde 1968, após o assassinato do líder de direitos civis Martin Luther King Jr. ¶ Esta morte, nos Estados Unidos, não foi um caso isolado. A polícia exerce uma permanente e excessiva vigilância às comunidades negras. × 11
contra o racismo
Quem somos
Somos os teus vizinhos, colegas e amigos. Fazemos a música que ouves. Somos estrelas nos filmes de que gostas. Somos desportistas de renome mundial. Limpamos a tua casa e o teu local de trabalho. Construímos a tua casa e arranjamo-la quando é preciso. Ensinamos os teus filhos. Cuidamos dos teus pais quando eles próprios já não o conseguem fazer. Somos designers, médicos, advogados, enfermeiros e proprietários de pequenas empresas. Conduzimos os teus táxis, os teus autocarros e os teus comboios. Nós entregamos o teu correio. Cultivamos a comida que comes e o tabaco que fumas. ¶ Nós somos tudo o que tu és. Quando feridos, sangramos como tu. Sentimos dor, como tu. Apaixonamo-nos, como tu. Nós somos fortes, como tu. Somos vulneráveis, como tu. Nós ficamos zangados, como tu. Ficamos tristes, como tu. Rimo-nos, como tu. Nós choramos, como tu. Orgulhamo-nos da nossa cultura, como tu. Nós amamos os nossos filhos, como tu. Nós preocupamo-nos com o futuro, como tu. Nós cometemos erros, como tu. Nós somos capazes, como tu. Temos dias bons e dias maus, como tu. Queremos crescer, como tu. Nós temos planos, como tu. Nós preocupamo-nos, como tu. Temos as nossas próprias religiões, como tu. Temos as nossas próprias opiniões, como tu. Nós temos aspirações, como tu. Queremos tornar o mundo num lugar melhor para os nossos filhos, como tu. Estamos desesperadamente otimistas quanto ao futuro, tal como tu. ¶ Mas nós não somos iguais. ¶ Fomos retirados à força das nossas pátrias. Fomos acorrentados e obrigados a trabalhar sem compensação. Tiraram-nos a nossa arte, a nossa cultura, as nossas religiões, as nossas línguas e as nossas identidades. Foram-nos roubados os nossos recursos naturais. As nossas histórias não são tão importantes como as tuas. A nossa história não é ensinada como a tua. Nós não somos celebrados como tu. A riqueza da tua nação foi construída sobre as nossas costas. ¶
texto theo gould
Nem todos nascemos iguais. Não vimos de lares estáveis. Vivemos nos lugares onde tu não queres viver. Não temos tantas casas como tu. Não nos pagam tanto como a ti. Nós não recebemos a mesma educação que tu. Não fazemos as mesmas ligações na universidade que tu. Nós não temos as mesmas oportunidades de emprego que tu. Pagamos mais juros em empréstimos do que tu. Não temos tantas pessoas em posições de poder como tu. Nós não recebemos o mesmo salário que tu. ¶ Temos mais amigos e familiares na prisão do que tu. Temos mais amigos e familiares mortos do que tu. Para a polícia, somos um alvo, ao contrário de ti. Não nos é concedida pela lei a mesma clemência que a ti. Não temos as mesmas condições para votar do que tu. Nós não participamos na elaboração das leis que somos obrigados a seguir. Não fazemos parte dos círculos de poder que te permitem enriquecer. Não somos proprietários de terras, como tu. Não temos dinheiro de família, como tu. Não temos «cunhas», como tu. Não estamos igualmente representados em toda a sociedade. Nós não fazemos parte do Sistema. ¶ Historicamente, temos experimentado mais dor do que tu. Preocupamo-nos sobre de onde virá a nossa próxima refeição. Temos mais complexos de inferioridade do que tu. Não passamos despercebidos, como tu. Somos feitos para nos sentirmos diferentes de ti. Somos abusados verbal, mental e fisicamente. Somos ignorados quando manifestamos as nossas preocupações. Somos estereotipados e ridicularizados devido à cor da nossa pele. Dizem-nos que o nosso cabelo não é tão bom como o teu. Não somos feitos para nos sentirmos bonitos, como tu. Não nos sentimos importantes, como tu. ¶ Nós somos mais odiados do que tu. ¶ Sentimo-nos sempre saturados. ¶ Vivemos com medo todos os dias. ¶ Nós somos explorados. ¶ Nós estamos cansados. ¶ Estamos encurralados. ¶ Mas estamos a erguer-nos. ¶ Somos fortes. Somos poderosos. Somos belos. E temos orgulho no que somos. ¶ Nós somos negros. ×
inter magazine
Deitar nas ruas a própria alma
texto sónia alcaso
Porque é que os homens, alguns homens, conseguem arrancar das próprias entranhas tanta violência? Não perguntam, não dialogam, agem como bestas nas suas duras crostas mentais. Afogam-se na autoridade e, resguardados nelas, são capazes das maiores piores ignomínias. ¶ Bastam minutos, longos minutos de ódio, minutos suficientemente fortes para inflectir o curso de uma vida e da própria vida. Como um minuto pode cobrir o sentido da eternidade… ou, apenas, do miserabilismo que existe no ser humano, permanentemente violado e violador. Vimos George Floyd pedir ajuda e vimos também o polícia, ali, abaixo das nuvens, aquele homem calcificado, de vista fixa na vida que tirava, ele sim, com uma alma enegrecida e para sempre perdida. ¶ O choque das imagens filmadas por um telemóvel, em plena luz do dia e à frente de outros três colegas seus, que nada fizeram, alastram pelo mundo. A morte foi filmada, permitindo que testemunhássemos, à escala global, a brutalidade e a total ausência de empatia pelo sofrimento do outro. «O racismo não está a ficar pior, está a ser filmado», afirmou o actor Will Smith. ¶ O mundo levanta-se em incrédulo horror e, mesmo em plena pandemia, reage. Porque o racismo é pior do que qualquer vírus. Abre as janelas de par em par, todas – as virtuais e as reais – e sai para protestar toda a indignação e revolta que sente. Deita nas ruas a própria alma. É a revolta pela morte nas mãos de quem devia proteger e que faz disparar todas as lágrimas da terra. Às vezes, com gritos violentos contra a carga inimiga porque o arquivo que se carrega, onde se deixam pedaços de sangue e pele, é demasiado pesado e faz disparar reacções em cadeia, incontroláveis. E liberta tudo: os escarros, as pústulas, as mazelas e o lado mais irracional que ataca, também inocentes, também cegamente. ¶ E são viaturas policiais em labaredas, nuvens de gás lacrimogéneo, pessoas pressionando outras pessoas contra o chão e manifestantes avançando, uns civilizadamente, outros enlouquecidos. ¶ Já não se pensa. Os nossos cérebros não são o resultado de um meticuloso processo de concepção
13
para criar boas máquinas pensantes; em vez disso, são uma vaga miscelânea de brechas, remendos e atalhos que nos tornam tantas vezes inaptos para interagir com outros cérebros. ¶ É vergonhoso perpetuar a violência. É vergonhoso carregar-se um preconceito tão pesado como o racismo ao longo da história (escravidão, colonialismo, apartheid) e continuar a transportá-lo para o século xxi, para 2020, onde a vida continua dura para quem não tem a pele clara. ¶ A onda de indignação fervilhou nos Estados Unidos da América e transbordou para o globo. As manifestações catapultadas pela morte de Floyd vão para além dela. O apelo ao ódio é um problema mundial. O racismo é um problema mundial. As manifestações onde se reclama uma sociedade igualitária, justa, é uma resposta mundial. ¶ Portugal manifestou-se. Renovou-se toda a longevidade de um corpo em marcha, rua acima, abaixo, todos achados e unidos sobre as cores solares da tarde do dia 7 de junho. E fomos e iremos muitas vezes, todas as que forem precisas, porque recusamos mover-nos neste teatro de olhos vendados. As manifestações desbravam caminhos penosos, com palavras salpicadas de sangue, mas pacíficas, destruindo fantoches que estão no comando da crueldade humana. Manifesta-se a gente e o fogo sem cor que corre nas suas veias liberta-se e lambe os ares, propagando-se, instala-se para durar, aliado ao tempo e à memória, e arde por muitos lugares do mundo, uma queimadura central que avança como uma maturação nos frutos. ¶ E será assim, sempre assim, por todos os Floyd deste mundo, até ao dia em que o homem entenda essa velha, velha palavra e tão difícil de assimilar – paz. O homem que vive em paz é apenas aquilo que é, um ser sem cor definida, que vê o dia tornar-se mais azul, igual para todos, e a noite mais doce, igual para todos, e o tom da pele não irá nunca justificar qualquer tipo de discriminação, e o mundo tornar-se-á um lugar satisfatório para pessoas razoáveis. Esse mundo que ainda não existe mas que precisa ser criado como uma Fénix. ×
contra o racismo
Selo Safe and Clean, Reservado o Direito de Admissão Um desafio aos colegas restauradores texto marta almendra
Mise en place Nasci em Portugal, no Porto, em 1976, e a minha realidade é a de uma mulher branca, classe média, cuja formação foi sempre apoiada por uma visão humanista e inclusiva. Habituei-me, desde cedo, a não ter vergonha de estar do lado certo e fui assim pintando a minha alma com todas as cores do mundo. ¶ Sempre me incomodaram piadas discriminatórias, e cedo compreendi que o racismo é algo que se vai instalando, ajudado pela impunidade do silêncio. Na adolescência sentia-me desconfortável com piadas sobre negros e lembro-me com orgulho do momento em que comecei a pedir às pessoas que não as contassem na minha presença. Não tinha, na altura, a noção do peso do silêncio mas, de alguma forma, fazer silêncio tornou-se demasiado pesado para mim. Passei a ter longas discussões sobre racismo e fugi de skinheads porque o meu companheiro inseparável era um negro, corpulento, que não passava despercebido em noites de copos na Ribeira e em dias de jogos de futebol nas Antas. Nunca senti que estar do lado certo fizesse de mim uma pessoa especial. Sempre me pareceu lógico não aceitar opiniões ou actos que sustentem a ideia de que uma cor de pele pode definir uma pessoa. Assim como acredito que Portugal se faz da diversidade de culturas e que o nosso povo nobre e valente não se mascara atrás de cruzes (re)torcidas. ¶ Os meus restaurantes são a minha segunda casa sendo também, casas do mundo. A nossa equipa tem diferentes raças, nacionalidades, crenças e culturas. Nunca, nesta família que vamos construindo, aceitei uma única prova de intolerância ou discriminação de uns em relação a outros. Há uma regra fundamental para trabalhar nas nossas equipas: não perder o respeito por nós, pelos outros (que merecemos como seres humanos, matéria feita de carne, osso, sangue) e pela vontade que temos em fazer os outros felizes através dos alimentos que preparamos e servimos com amor. E na família mais alargada, onde cabem os nossos clientes e fornecedores, aparecem, lá na nossa casa do
mundo, seres feitos da mesma matéria que nós, que tratamos como iguais a nós e que não aceitaremos que nos tratem de uma maneira diferente. O serviço O casal, branco, passa à porta do restaurante. Para e observa o menu. Fazem um ou dois comentários sobre o preço médio por cabeça e dirigem-se para a entrada. A rapariga, branca, vai ao encontro deles com um belo sorriso. «É para jantar?» «Sim.» «Têm reserva?» Envergonhados respondem que não e registam mentalmente que aquele restaurante não é para vir sem reserva. Sorriem. «Tentámos ligar, mas não atenderam.» A rapariga, branca, percebe que mentem, mas, sem perder o sorriso, responde que «não se preocupem que temos mesa, era só para saber se era uma das reservas desta noite.» O casal, branco, avança com o peito a estalar de importância. A rapariga, branca, que os recebe aponta para uma mesa. «Pode ser aqui?» O casal, branco, entreolha-se. A mesa deles é ao lado de uma com um grupo de jovens, negros, que estão entretidos a conversar. O homem, branco, pergunta «não tem outra mesa na sala de dentro?» A rapariga, branca, responde que «infelizmente, na sala de dentro já está tudo cheio». A mulher, branca, mete a mão na carteira. Retira uma nota de 10 euros e pergunta se não há mesmo possibilidade de passarem para a sala de dentro. A rapariga, branca, finge que não entende o gesto e aconselha-os a, numa próxima vez, fazerem reserva e darem indicação de preferência da sala de trás. O homem, branco, olha para a mulher, branca, e diz «como é, queres ficar?». A mulher, branca, responde com um ar enjoado «que remédio, a esta hora já não encontramos mesa em lado nenhum.» E sentam-se no lugar indicado. Instala-se um silêncio do lado branco e os risos do lado negro parecem mais sonoros do que realmente são. A rapariga, branca, entrega o menu. Faz uma breve apresentação. «Como disse? Desculpe, mas é que com esta guincharia não conseguimos perceber nada do que nos está a dizer.» A rapariga, branca,
inter magazine
volta a explicar. Quando termina dirige-se à mesa do lado. «Estão a gostar?» Os jovens, negros, respondem que «está tudo óptimo». A rapariga, branca, conversa um pouco com os jovens, negros, sorri e afasta-se na direcção da mesa do casal, branco. «Já escolheram?» «Acho que não vamos conseguir comer aqui. Está um cheiro estranho.» Os jovens, negros, ficam em silêncio. Os seus rostos oscilam entre a indignação e a tristeza. Da sala de dentro sai um outro casal, asiático, que passa à frente da mesa do casal, branco. «Parece que já vamos ter uma mesa lá dentro», sorri a mulher, branca. A rapariga, branca, pede um minuto e afasta-se. Quando volta já não sorri. «Acompanhem-me». Sentados na sala de dentro o casal, branco, aguarda para fazer o pedido. Um rapaz, negro, dirige-se à mesa. «Já escolheram?» O casal, branco, pede duas ou três coisas. Parecem mais descontraídos. O homem, branco: «a tua colega que nos indicou a mesa não está disponível para nos continuar a atender?» O rapaz, negro: «peço desculpa, mas a minha colega está a atender apenas as mesas da frente.» Novamente o homem, branco: «não fazia mais sentido estares tu à frente e ela cá atrás?» O rapaz, negro, com os olhos a encherem-se de lágrimas de dor e revolta, responde com um sorriso forçado e decide que, no final da noite, irá falar com a gerente e explicar que tenciona voltar para o call center onde trabalhava antes, porque não se sente bem a atender clientes presencialmente. Na sala da frente os jovens, negros, preparam-se para pagar. Decidiram que já não vão sair pela noite dentro. De repente sentiram-se «cansados». No fim do serviço já apenas a mesa do casal, branco, estava ocupada. Havia um silêncio triste, apesar da música. O casal, branco, pede a conta e paga. A mulher volta a pegar na nota de 10 euros e pousa na mesa. «Isto é para tua colega lá da frente, por nos ter arranjado uma mesinha cá dentro.» O rapaz, negro, sabe que mal os clientes saiam da porta para fora irá desatar a chorar. O casal avança em direcção à saída e passa pela rapariga, branca. «Menina, deixámos ali uma notinha para si. Veja lá se o seu colega não a mete ao bolso.»
15
A rapariga, branca, fica a observá-los a afastarem-se. Sabe que mal os clientes saiam da porta para fora irá desatar a chorar. Como os jovens, negros, nessa noite choraram deitados nas suas camas, brancas. Petit four Os meus restaurantes são a minha segunda casa sendo também, casas do mundo. Sou apaixonada pela restauração e pela gastronomia porque acredito que podemos transformar o mundo à mesa. Podemos corrigir erros, tomar decisões importantes, mudar mentalidades. Eu decido quem são os meus amigos de carne e osso, e os virtuais. Assim como decido quem entra na minha casa. Quero que os meus restaurantes tenham um selo Safe and Clean, para que quem ali entra sinta que está numa casa do mundo, com uma equipa do mundo, onde não há casais, brancos, jovens, negros, raparigas, brancas, ou rapazes, negros. Apenas pessoas que saíram das suas casas para entrarem nas casas do mundo do nosso país, para se sentarem às nossas mesas, para se sentirem felizes e seguros enquanto comem o que preparamos (com amor) para eles. Clean and Safe de gente imbecil. ¶ E se todos os restauradores tiverem a coragem de pôr este «selo» na porta dos seus restaurantes? ¶«Reservado o direito de admissão. Este estabelecimento partilha os princípios fundamentais da Lei Nacional relativa à proibição de Discriminação Racial (134/99 de 28 de Agosto), pelo que racistas, xenófobos ou fascistas estão impedidos de o frequentar.» ¶ Sem medo. Estaremos a tornar as nossas «casas do mundo» num mundo melhor. ¶ Acontecimentos recentes mexeram no lado menos colorido da alma de cada um de nós e a verdade espalhou-se, a preto e branco, como peças de dominó, pelo planeta onde vivem os seres humanos. Não vale a pena que nos escondamos no silêncio. Vamos fazer ecoar a nossa voz pelo mundo todo e dar o exemplo através daquilo que fazemos melhor dentro das nossas salas e cozinhas (do mundo). ×
contra o racismo
A cozinha dos negros importa
Foi apenas no final de 2018 que um restaurante europeu com um menu totalmente voltado para as raízes das culinárias africanas se destacou no galardão dos prémios ditos gastronómicos. O Ikoyi, no mercado londrino de St James, conquistou a sua primeira estrela Michelin. O chefe, Jeremy Chan, é um inglês nascido de pai chinês e mãe canadiana. O seu sócio e amigo de infância é Iré Hassan--Odukale, inglês negro com heranças nigerianas. ¶ Na imprensa em geral, o Ikoyi é descrito como um restaurante de comida da África Ocidental moderna. Mas o que os dois colegas querem, no fundo, é destacar não apenas os ingredientes, mas também os sabores e as referências desta região do continente. E mostrar que as culturas africanas deixaram muito mais influências na comida do mundo todo do que estamos dispostos a admitir. Inclusivamente na alta cozinha! ¶ Da soul food americana às muitas receitas tropicais caribenhas, das tradições mantidas na Bahia brasileira aos muitos sabores trazidos do continente africano a Portugal, a cultura alimentar dos negros está vastamente presente nas nossas mesas. Mas quase nunca olhamos para a comida que eles nos relegaram – mesmo que indiretamente – com o mesmo reconhecimento que olhamos para outras influências gastronómicas. ¶ Como brasileiro, digo que as influências italiana e japonesa na cozinha do meu país, por exemplo, nomeadamente em
texto rafael tonon
São Paulo, são geralmente vistas como parte da riqueza culinária que herdamos com os imigrantes – o que é normal, dada a importância demográfica destes povos no país. Mas pouco reconhecemos os valores das matrizes africanas nas nossas receitas, que foram trazidas com aqueles 12,5 milhões que «migraram» forçadamente de África – muitas vezes impedidos sequer de carregar consigo os seus ingredientes. Não é diferente em outros países. ¶ Os Estados Unidos possuem quase 50 milhões de negros no seu território (cerca de 14% de toda a sua população). Os japoneses representam cerca de 1,5 milhão, de acordo com o Pew Research Center. No entanto, há muitos mais restaurantes japoneses pelo país (são 89 mil pelo mundo!) do que os de cozinha africana ou sulista – estes quase sempre relegados às comunidades afro-americanas. ¶ Trata-se, aliás, de uma característica do comportamento da culinária africana nos países onde chegou. Houve pouquíssimas oportunidades para que os negros criassem um ambiente de preservação ou desenvolvimento de suas tradições. Na tentativa de se adaptar (ou de ser adaptada!) a culinária africana acabou por se miscigenar, por se deixar sobrepor. Aos poucos, porém, mostrou sua força. ¶ Nos Estados Unidos, a cozinha feita pelos escravos africanos «saiu dos subúrbios e ganhou popularidade em todo o país, influenciando a alimentação de todos os seus habitantes», afirma Adrian Miller, autor
inter magazine
do livro Soul Food – The Surprising Story of an American Cuisine. Miller passou um ano a visitar restaurantes voltados à soul food em todo o território americano (foram 150 deles em 35 cidades) e defende que, ao mesmo tempo em que há muitos restaurantes tradicionais a encerrar em cidades como Nova York e Chicago, há uma onda de novos restaurantes a abrir com a proposta de resgatar as raízes dessa cozinha de alma. ¶ Facto é que a ampla discussão sobre os termos da igualdade racial e o inflamado discurso político em torno das comunidades de origem africana têm ajudado a trazer uma maior visibilidade e mais oportunidades aos chefes negros no mundo todo – embora eles sigam ainda mal representados na alta cozinha num contexto mais amplo. ¶ Também é preciso reconhecer que estamos décadas atrasados nesta discussão, muitas vezes por nem a admitirmos. «O impacto da escravidão e do colonialismo é um assunto pouco discutido quando se trata das razões pelas quais a culinária africana tem sido negligenciada por tanto tempo», afirma o chefe Shay Ola. Nascido em Londres de pais descendentes de nigerianos, vive em Lisboa, onde comanda o Queimado, um pequeno restaurante no Bairro Alto. Com ele, somam-se mais alguns poucos chefes negros pelo país: Tiago de Lima Cruz, Carla Sousa, Jesus Lee Fernandes, Viriato Pã… ¶ Mas o cenário está a mudar:
17
hoje são mais do que ontem, tanto cá quanto em outros países. A culinária africana – e, consequentemente, seus representantes – estão a ganhar mais projeção no mundo, numa repercussão crescente e inédita. «À medida que chefes como eu obtêm certo reconhecimento, ganham uma plataforma, isto leva mais pessoas a olharem com atenção para aqueles que se parecem mais comigo, o que é ótimo e faz as coisas mudarem», diz o chefe vencedor do prémio James Beard como Rising Star Chef of the Year em 2019 e cujo restaurante, Kith/Kin em Washington, também foi reconhecido pelo Guia Michelin. Uma simples questão de representatividade, pela qual mesmo nós, brancos, devemos lutar. ¶ Assim como a própria soul food tornou-se um ato político, uma maneira dos negros antes segregados no seu próprio país reivindicarem a sua parte no legado cultural norte-americano, parece cada vez mais urgente discutir como (des)valorizamos as raízes africanas e as suas contribuições para o mundo também através da cozinha. A comida, afinal, pode desempenhar um papel importante neste debate: o de trazer a igualdade racial à mesa, expô-la. Enquanto sentados civilizadamente, temos de olhar, mastigar e engolir garganta abaixo esse tema que passaria apenas pelos nossos olhos desatentos no ecrã escurecido dos nossos telemóveis – acompanhados de uma hashtag, é claro. ×
restauração texto sónia alcaso fotos humberto mouco
«É durante as fases de maior adversidade que surgem as grandes oportunidades de se fazer o bem a si mesmo e aos outros.» Dalai Lama
A SOLI DARIE DADE inter magazine
No meio da tragédia causada pela pandemia do coronavírus, demonstrações de afecto e amor ao próximo indicam que é sempre possível transformar uma situação de emergência em experiências de cooperação, partilha e solidariedade. A pandemia da Covid-19, ao paralisar a economia nacional (e mundial) tem destruído os rendimentos de muitas famílias, deixando-as numa situação de grande invulnerabilidade social. Também aos profissionais de saúde tem sido exigida uma força sobre-humana, à custa de muitos sacrifícios pessoais, tudo pelo combate ao inimigo invisível. ¶ São tempos de incerteza e insegurança para todos, mas que, ao mesmo tempo, têm evidenciado a força de muitos portugueses. É desses portugueses, do sector da restauração, que vamos falar. Gente que sabe cuidar dos outros, não só quando tudo está bem, mas também quando tudo está mal. ¶ Por todo o país, multiplicam-se exemplos de cozinheiros que, com as suas actividades confinadas durante três meses em tempos de quarentena e isolamento social, não se limitaram apenas à contabilidade dos danos e a contribuir para a difusão dos alarmes; criaram antes iniciativas e movimentos que encorajaram a uma mudança de mentalidades para o futuro, tornando-se protagonistas de uma nova e indispensável solidariedade pro-activa.
SALVA 19
restauração a fazer o que mais prazer lhe dá: cozinhar para os outros. Falamos de Rodrigo Castelo que nos contou como se processa a iniciativa de colaboração entre a Taberna O Balcão, o Banco Alimentar e os mais necessitados: «A Makro, todas as semanas, entrega-nos matéria-prima que nós, depois, transformamos. O Banco Alimentar identifica quem mais necessita e distribui, por famílias, IPSS e população sem abrigo. Como a Taberna Ó Balcão estava encerrada, em lay off, os meus cozinheiros e o pessoal de sala, a quem agradeço imenso, ofereceram-se desde o primeiro instante a colaborar. A Câmara Municipal de Santarém e a Empresa Municipal Viver Santarém, disponibilizaram a cozinha da Casa do Campino, tendo fornecido no total 700 refeições». E, em tempos difíceis a cooperação entre todo o sector faz-se notar, como salienta ainda Rodrigo: «todos os outros restaurantes de Santarém mostraram-se disponíveis também para apoiar, em caso de necessidade. Em Santarém, existe também um grupo alargado de restaurantes que se uniram, formaram um grupo WhatsApp e, durante cerca de três semanas do Estado de Emergência, doaram 35 refeições diárias ao Serviço de Urgência Covid
«É muito bom sentir que conseguimos ajudar de alguma forma quem está a ajudar toda a população.» Vasco Coelho Santos (Euskalduna Studio)
Iniciativas no Norte e Centro Vasco Coelho Santos, à frente de dois restaurantes no Porto, Euskalduna Studio e Semea by Euskalduna, dedicou-se, em tempos de confinamento, a um trabalho solidário para o Hospital de São João. A ele, juntaram-se onze chefes e empresários do Porto, (Marco Gomes (Oficina), Tânia Durão (Atrevo), Pedro Braga (Mito), Renata Coelho (Adega S. Nicolau, Taberna dos Mercadores e Terreiro), António Lamas (Intrigo), Nuno Castro (Esquina do Avesso, Terminal 4450, Sushiaria e Fava Tonka), Joana Babo (Boa Bao), Marta Almendra (Taqueria Ilegal, Boteco Mexicano e Cruel) e Cristóvão Sousa (Ode Wine House e Taberna Está-se Bem), entre outros). «A ideia foi cada um de nós cozinhar num dia diferente, nos seus restaurantes, garantindo 100 refeições diárias para os seus profissionais de saúde do Hospital de São João», refere o cozinheiro, acrescentando que «é muito bom sentir que conseguimos ajudar de alguma forma quem está a ajudar toda a população». ¶ Em Santarém, outro chefe, conhecido por se dedicar a causas sociais que lhe «alimentam o coração e limpam a alma», arregaçou mangas e tratou de continuar
inter magazine
do Hospital Distrital da região». ¶ A Taberna Ó Balcão já voltou a servir refeições à mesa do seu espaço, tão evocativo das boas tabernas ribatejanas do passado. Tem sido um período difícil, mas Rodrigo Castelo teima em «agarrar-se às coisas boas». «Estes dias tem sido de muita reflexão e, com isso, estamos a reinventar-nos, colocando tudo o que temos de criatividade e de melhor para cima», refere o chefe, especificando que estas novas regras diminuem a facturação dos restaurantes, mas permitem «um aperfeiçoamento das equipas, maior foco nos clientes (agora em número reduzido) e mais tempo para cimentar e reajustar negócios».
-me do que vinha por aí, bastava olhar para os países afectados na Ásia para perceber que, em breve, iríamos viver uma «guerra» sanitária que nos obrigaria a fechar os negócios e parar parcialmente as nossas vidas». E porque Rui previu um período de grande esforço e dificuldade, em que muitos nem tempo teriam para se alimentar e recuperar forças, tratou de desenvolver uma acção de apoio aos profissionais de saúde. Nasceu o Alimentar a Saúde. «Juntei a minha equipa que, em formato de voluntariado, se prontificou a fazer parte do Alimentar a Saúde, contactei a Makro que se mostrou imediatamente disponível, a partir daí foi só delinear uma estratégia», explica-nos o Calor humano no Sul chefe. A ele, rapidamente se juntou todo um movimento Descendo para o sul, chegamos ao restaurante Vistas, de apoio. «Vários dos nossos fornecedores e parceiros em Vila Nova de Cacela. Rui Silvestre, o chefe de cozinha, apoiaram esta causa, como a Nutrifresco, Melodias do está duplamente de parabéns, não só pelo seu restaurante oceano, Lima com pimenta, Moet Hennessy e o próprio ter ganho, no final de 2019, a sua primeira estrela Michelin, resort Monte Rei. Também existiram muitas doações de como pelo trabalho de solidariedade que desenvolveu particulares que se mostraram solidários com esta acção». ¶ ao longo de todo este tempo de confinamento, quando A ideia foi-se espalhando pelas terras e outros restaurantes a pandemia obrigou os restaurantes a fecharem portas. do Algarve, com chefes que tinham cozinhas e equipas «Quando o Covid 19 começou a chegar à Europa, apercebi- paradas, mas cheias de vontade de ajudar, juntaram-se à
«Estes dias tem sido de muita reflexão e, com isso, estamos a reinventar-nos, colocando tudo o que temos de criatividade e de melhor para cima.» Rodrigo Castelo (Taberna Ó Balcão)
21
restauração continuar a colaborar com estas iniciativas de solidariedade, mas em outros formatos, «certamente não com a mesma regularidade pois é humanamente impossível, mas em ações concretas, quero muito manter o elo de ligação que foi criado ao longo destes três meses e meio». ¶ O Vistas está a adaptar-se a algumas regras da DGS, como por exemplo o uso de máscaras pela parte dos profissionais de sala que têm contactos com os clientes, mas na verdade, segundo o chefe, 95% das recomendações já eram cumpridas anteriormente. Com as portas abertas ao futuro, Rui Silvestre crê que os restaurantes vão ter de ser «mais autênticos e marcar a diferença pela experiência» e, apesar dos prognósticos menos optimistas relativamente ao turismo este ano, mostrase bastante otimista em relação ao futuro da restauração e hotelaria em Portugal: «Temos chefes, hoteleiros e gestores muito competentes por este país fora, somos apaixonados pelo que fazemos e, aos poucos, os clientes vão perceber que nós levamos isto a sério, vão perceber que é seguro ir a um restaurante, vão voltar a ter confiança e nós. Estaremos de máscara na cara, mas de coração aberto para os receber». ×
«Tem sido uma experiência gratificante a de poder ajudar famílias, algumas com crianças que estão a passar um momento tão difícil.» Rui Silvestre (Vistas)
iniciativa de Rui Silvestre, como o Noélia & Jerónimo, o Monte Rei, o Casa Azul e o Vila Monte, entre outras dezenas de restauradores e hoteleiros que se prontificaram com o seu trabalho. ¶ Entretanto, com o envolvimento da rede de emergência alimentar, Rui Silvestre teve contacto com uma outra realidade que também o sensibilizou: a de centenas de famílias que perderam os seus rendimentos e não conseguiam fazer face às despesas diárias associadas à alimentação. Mais uma vez, arregaçou as mangas e criou uma rede de solidariedade, essencial para manter a vida de centenas de pessoas. «Chegou-nos uma ajuda preciosa que foi a da Cruz Vermelha de Tavira que, para além de nos ceder às suas instalações, deu-nos todo o apoio logístico necessário para que pudéssemos aumentar a nossa produção diária, produzindo mais de 20 mil refeições», refere o chefe. E como a alegria de fazer o bem é uma felicidade verdadeira, Rui Silvestre confessa que «tem sido uma experiência gratificante a de poder ajudar famílias, algumas com crianças que estão a passar um momento tão difícil». ¶ Agora, com a reabertura dos restaurantes, Rui Silvestre pretende
inter magazine
solidariedade texto sรณnia alcaso photo arlindo camacho
NO ERGONSE
NU
inter magazine
«É um restaurante» abriu portas em 2019 e, rapidamente, conquistou Lisboa. Um projeto de inclusão social que, para além de ser um restaurante de casual fine dining, com comida de conforto e partilha, é também uma iniciativa de reintegração dos sem-abrigo no mercado de trabalho.
Desde que se formou na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa, Nuno Bergonse já passou por muitos locais, somando experiências dentro e fora de Portugal (Ritz, Penha Longa, Eleven, Moo, em Barcelona, Pedro e o Lobo e Ministerium, entre outras). Mas foi a partir de 2017 que decidiu abraçar projetos sociais que lhe mudaram a vida. «É um restaurante» é um deles – um espaço no coração de Lisboa, perto da Avenida da Liberdade, que partiu da iniciativa da Crescer - Associação de Intervenção Comunitária, em parceria com a Câmara Municipal de Lisboa. Esta casa, aberta em 2019, pelas mãos dos chefes Nuno Bergonse e David Jesus, conta com uma equipa de pessoas que estão, ou estiveram, em situação de sem-abrigo. Recentemente, com o mundo a mudar para toda a gente, os jovens cozinheiros continuaram a fazer o que mais gostam: cozinhar e ajudar os outros, aqueles que sentem o impacto desta pandemia de uma forma avassaladora, na própria pele. Com o menor apoio dos voluntários nas ruas e a reduzida distribuição de comida por parte das instituições, Nuno Bergonse e David Jesus passaram a preparar cerca de 400 refeições por dia para entregarem a sem-abrigos. ¶ A INTER magazine falou com o Nuno sobre esta iniciativa de solidariedade que tem auxiliado centenas de pessoas por toda a cidade.
já tinham vivido nas ruas e que, desta vez, estavam na posição de alimentar quem mais precisa. Outro apoio fundamental foram todas as doações de bens alimentares que recebemos por parte de particulares e empresas privadas. Na prática, reunimos os meios humanos que já tínhamos, as doações de bens alimentares e criámos um mapa de trabalho, em que cozinhamos diariamente 400 refeições no «É um restaurante». Todos os dias a carrinha da Crescer vai ao restaurante, às 18:30, para recolher as refeições a serem distribuídas pela cidade. Com a reabertura agora do restaurante, como é que fica este projeto de solidariedade? Vamos continuar até ao final de Junho com o compromisso de continuar a cozinhar as mesmas 400 refeições diárias e, daí para a frente, iremos abrir as portas ao público. Este projeto, como qualquer outro, fica marcado pela crise económica que já se sente mas, em simultâneo, com muita vontade de dar a volta e nunca deixar de acreditar. Após estes «tempos» atípicos, quais são os vossos planos e estratégias para «É um restaurante»? Os planos passam principalmente por mudar a carta do restaurante, melhorar o espaço e decoração e melhorar processos internos de formação, uma vez que a nossa missão é formar pessoas que estiveram ou estão numa situação de vulnerabilidade, para que tenham ferramentas para entrar no mercado de trabalho. Na tua opinião, como é que os restaurantes se poderão reinventar Antes de ter encerrado, devido à pandemia da Covid-19, para ultrapassar esta crise económica? Apesar da crise que, como estava a correr o projeto «É um restaurante»? claramente, todos vão enfrentar, a criatividade deve ser O projeto estava num bom ritmo, numa fase crescente o foco para conseguir dar a volta. É um período em que e de consolidação. O balanço, até agora, é muito positivo. devemos analisar e avaliar os negócios. Optimizar processos, A cozinha de «É um restaurante», nestes tempos de crise, minimizar custos, adaptar a oferta, vender para outros canais, passou a ser o palco da preparação diária de comida para entre outras ideias, são fundamentais para que a adaptação levar aos sem-abrigo. Como é que esta ideia se desenvolveu? a uma nova realidade seja menos dolorosa. Qual é a maior Uma vez que não podíamos estar de portas abertas ao lição a ser tirada desta pandemia? A maior lição é constatar público e que sabíamos da crise que existia nas ruas de que o ser humano, apesar de achar que tem controle sobre Lisboa, não conseguimos ficar indiferentes e decidimos tudo, desta vez foi encostado à parede por um vírus que nem juntar toda a equipa do projeto e iniciar a missão de cozinhar sequer pode ser observado com os nossos próprios olhos. refeições para as pessoas em situação de sem-abrigo. Que Sejamos ricos ou pobres, estamos todos no mesmo barco. apoios teve esta iniciativa e como decorreu este processo, Igualmente importante foi sentir, desde o primeiro dia, o na prática? O principal apoio foi dos próprios beneficiários espírito de solidariedade e constatar que, quando realmente do projeto «É um restaurante» que, no seu passado, é preciso ajudar o próximo, há sempre alguém. ×
25
gestão ⁄ serviço texto óscar correia foto humberto mouco
Tempos desafiantes
inter magazine
Longo já vai o tempo com esta distância social e a maior proximidade digital de sempre! Será um privilégio voltarmos a poder abraçar a hospitalidade novamente. ¶ Desde a última quinzena de março, que a nossa a hospitalidade e sector sofreu o seu pior momento devido a um inimigo invisível que nos acertou com força e impacto emocional sem aroma ou textura, que nos aconchegue, levando-nos ao confinamento social. ¶ Depois de um mês e meio no nosso setor, não se fala de outra coisa que não seja, e agora? Como vamos sair desta? Mataram os nossos restaurantes. Mas a questão principal a tirar neste tempo é: O que aprendemos? ¶ Bom falando de novas fórmulas para a reabertura, estratégias de relançamento da nossa atividade gastronómica, consolidação e consistência nas ofertas gastronómicas, manutenção de postos de trabalho, capacidade financeira para reabrir, e uma lista sem fim de dúvidas que nossa invadem a todo o momento são desoladoras porque estamos habituados a abraçar quem nos visita e a socializar como se não houvesse amanhã com todos os que nos rodeiam. Mas é verdade que tudo agora é bastante ambíguo e incerto, pois não sabemos quando ou como abriremos e, o mais importante, quem o abrirá e em que ordem com que equipes e que clientes teremos? Chegaram tempos desafiantes e que nos vão testar para sermos melhores. Tenho a certeza que este momento nos obriga a abraçar os outros á distância e online para nos trazer o conforto e preencher o vazio que ficou da ausência de normalidade que depositamos tanto nos últimos anos, Não vamos levantar as cortinas do palco mágico e de um dia para o outro esperar que tudo seja como antes. Este vírus veio para mudarmos os nossos costumes e comportamentos, mesmo em relação à atuação na sala ou na cozinha, e como clientes. Mas aqui a formação será mais importante que nunca, vamos ter agora a oportunidade de nos focar em melhor gestão, transformar chefes em empresários e investirmos os nossos recursos em formar as nossas equipas e prepará-las para, daqui a um ano, podermos estar à altura da retoma internacional e os turistas nos voltarem a invadir com a sua energia. ¶ Por agora será desafiante ver os artistas de serviço e cozinheiros passarem por um protocolo de proteção sanitária ou talvez com novas técnicas de fazer pedidos nos restaurantes, seja por via digital ou outra qualquer, novos processos e procedimentos se desenvolverão com máscaras. Como podemos sorrir? Temos de acreditar!
27
A nossa intenção e carinho são mais velozes que qualquer vírus um dia será. ¶ Há muitos dias parados para aqueles que vivem nesta ansiedade e num ritmo de pressa e corrida durante esta paragem repentina, sem fim à vista o que nos faz ter de procurar alternativas, sermos vistos nas redes sociais, fazendo ‘lives’, downloads de receitas, vídeos ou qualquer artigo para permanecer ativo e conectado com o mundo de ilusões que ainda nos alimenta. Pelo menos, teremos oferecido um sorriso ou partilhado uma receita de alegria momentânea para nos fazer sentir abraçados no meio desta pandemia de afetos que nos obriga a ser criativos e a estarmos próximos, como se continuássemos a cuidar uns dos outros. Esta missão é o que nos inspira e serve o propósito de dar sentido à hospitalidade que acreditamos. É uma gestão inteligente, temos de recuperar os sistemas em regime de hibernação, a gastronomia é a alma de um povo, a própria refeição é um ato que junta sociedades, sem olhar a status quo, comemos aquilo que somos, mas todas as iniciativas têm hoje um dose de tolerância diferente do passado recente, a capacidade de partilha faz-nos ser melhores e isso é servir. Será um privilégio voltarmos a poder abraçar a hospitalidade novamente. No final, ainda nos vamos divertir muito a contar histórias aos nossos clientes sobre este período alucinante da humanidade. ¶ Por humildade e preocupação, quis transmitir esta reflexão a todos os que vivem o dia-a-dia com a esperança do «que vai acontecer», mas, na realidade, ninguém sabe enquanto não pudermos regressar passo a passo à normalidade que apaixonadamente nos faz acreditar que está para breve. Mas, se alguém conseguir tirar algo positivo desta proximidade digital durante estes meses, fantástico, é sinal que sairemos mais humanos e conhecendo o valor de um abraço ou de um sorriso quando nos voltarmos a reencontrar num dos restaurantes ou bares do nosso gosto. No momento é ouvir, ouvir e aprender para nos adaptarmos e continuarmos as nossas vidas, acreditem, resistam e pensem que melhores dias virão. Os melhores espaços de hospitalidade do mundo serão aqueles que tiverem os melhores seres humanos do mundo, com a sua energia, autenticidade e genuína vontade de receber e servir. São esses que personalizam e interagem de forma a estimular experiências emocionais duradouras nos clientes que voltam para mais! A hospitalidade portuguesa é a nossa melhor arma para combater qualquer pandemia. ×
gestão ⁄ serviço texto bruno azevedo foto humberto mouco
Não te deixaremos morrer
inter magazine
Um sistema é um conjunto de elementos interdependentes de modo a formar um todo organizado. Visam especialmente regular relações entre esses elementos interligados, criando valor mútuo a todas as partes. Os sistemas ocorrem na natureza, nas organizações sociais, na economia e em quase todas as áreas. A restauração funciona dentro de um sistema interligado, onde donos, funcionários, produtores, distribuidores, consumidores e o Estado geram um ciclo de produção-distribuição-consumo-feedback que nos últimos anos tinha crescido em número e valor no nosso país. ¶ Na minha opinião o que mais contribuiu para esse crescimento foi a evolução das características de consumo do mercado interno combinado com um robusto crescimento do número de visitantes estrangeiros. Estes fatores tornaram possível uma mudança de paradigma da nossa oferta de restauração, aumentado por um lado o número de grupos especializados em serviços de restauração e por outro na especialização em determinados segmentos da oferta. Assistimos a um crescimento do fine dinning realizado por uma nova geração de chefes portugueses e também à especialização gastronómica (vegan, étnica, etc). Este crescimento proporcionou melhores opções de escolha ao consumidor e catapultou a restauração para uma posição invejável dentro do tecido económico português através de um dinamismo e inovação que finalmente estabelecia a fundação para uma elevação da Gastronomia Portuguesa. ¶ No entanto este dinamismo não se fez sem uma dose de dramatismo. A restauração sempre viveu sob um risco muito elevado de encerramentos. Mas como é um sistema que aprende com os desafios, cada encerramento de restaurantes ajudou a melhorar a oferta, a qualidade e o dinamismo desta indústria. ¶ Até que um único elemento introduzido no sistema consegue paralisar tudo – a falta de procura devido à pandemia. ¶ A procura desapareceu em menos de uma semana e com isso obrigou ao encerramento compulsivo de toda a indústria, exceto serviços de take away e home delivery. No entanto, a restauração não se deixou ficar e iniciou imediatamente um movimento de resistência nunca visto nos tempos recentes, usando as ferramentas disponíveis e concentraram-se debaixo do hashtag #resistir. ¶ As atividades económicas envolvem geralmente pessoas, estruturas, sistemas e processos combinados através de ações de gestão. Essas ações de gestão visam essencialmente dois objetivos principais. Por um lado, controlar todas as variáveis envolvidas e por outro fornecer informação para poder planear, organizar e liderar o futuro. ¶ À primeira vista parece um sistema simples. Uma pessoa produz comida que é adquirida pelo consumidor por um preço que permite obter uma margem e que com essa margem permitirá adquirir ainda mais comida e manter economicamente todo o sistema. Mas o sistema da restauração não é assim tão simples como parece. Com a concorrência, regulação e
29
mudanças nos hábitos de consumo os componentes embora funcionem de forma padronizada vêm as interações mudam frequentemente. As mesmas condições iniciais podem produzir resultados diferentes, dependendo das interações dos elementos no sistema. A jornada do cliente É importante entender as motivações e a viagem emocional do cliente para adquirir e consumir o nosso produto. Esta situação permite conhecer os motivos pelos quais o teu produto gera atenção no mercado e desta forma gerir o processo desde o momento em que o cliente sabe do nosso negócio e realiza a visita até ao momento em que está online a escrever sobre a experiência. Conhecer e gerir esta jornada é extremamente importante para controlar a experiência do cliente e para saber como comunicar com ele oferecendo novos serviços, sugerindo ofertas especiais, realizando upsells e criando lealdade. ¶ A jornada inicia-se com o cliente a escutar sobre o nosso restaurante. Pode ser por conselho de conhecidos, como pode ser por publicidade online ou até por simplesmente passar à frente do restaurante. O objetivo é que a imagem transmitida seja positiva e vá de encontro à filosofia de serviço, valores operacionais e cultura da empresa. Por exemplo, se um consumidor estiver à procura de um restaurante com determinada oferta gastronómica perto da sua casa, depois de encontrar o restaurante irá seguidamente procurar informações sobre a qualidade do produto e do serviço bem como do preço. ¶ Uma vez decidido o restaurante é realizado uma reserva (se possível) e o cliente dirige-se para a sua refeição. A chegada é um momento extremamente importante porque será criada uma primeira impressão do espaço físico e do acolhimento. O cliente está dentro do nosso espaço e a sua experiência é em grande parte controlada por nós. Falamos do conforto, da temperatura, do ruído, da música, dos aromas, mas também do nível de assistência, amabilidade e compromisso dos colaboradores para com o bem-estar do cliente. A este nível de compromisso chamamos serviço. O serviço pode ser bom, mau ou indiferente e baseia-se na perceção do cliente. Algo mais sentido que medido. ¶ Uma das limitações da restauração é que começamos pelo fim e não pelo início. Se um cliente entra numa loja de roupas, ele pode estar ali só para ver o produto e se decidir. Mas num restaurante sabemos à partida que o cliente vai ali para consumir e, portanto, ao entrar a reserva já sabemos à partida que ele vai comprar comida e bebida. Esta situação acontece muito frequentemente em Portugal. Estamos sentados na mesa e vindo do nada, mesmo sem nos cumprimentarem, um empregado deposita um cesto com pão e umas entradas na nossa mesa. Se aceitarmos pagamos. E não aceitarmos vai parar a uma outra mesa. Apontadores de pedidos são também mais comuns que verdadeiros vendedores. ¶
gestão ⁄ serviço Vender é servir e uma oportunidade de interagir com o cliente. Venda com serviço é a base do negócio da restauração. ¶ A jornada do cliente implica identificar e gerir todos os pontos de contacto entre o cliente e o nosso produto. A forma como é realizado irá gerar uma experiência interpretada pelo cliente e independentemente da experiência irá comentar com conhecidos e amigos ou escrever online. As reviews online são m dos componentes mais importantes da reputação do restaurante. Na atualidade as pessoas comentam mais online que na vida real e com a continuação de medidas restritivas, poder controlar a reputação online será vital para gerar a intenção de consumo. As críticas online são inclusive mais importantes para o mercado turístico que para o mercado local. Críticas positivas por utilizadores estrangeiros gera confiança e perceção da experiência possível. ¶ Desenvolver iniciativas de vendas, serviço e upsell são vitais para o sucesso do negócio aumentando as receitas e também a experiência do cliente. Embora nesta fase de distanciamento social e menor interação entre os colaboradores e os clientes o upsell parecer menos importante, é nestas alturas de paragem que melhor nos podemos preparar para o futuro. É o momento de criar a iniciativa porque como é algo que leva tempo a criar, esta é para mim a melhor oportunidade. ¶ A experiência do cliente é feita de sensações (calor, prazer, tensão), emoções (alegria, medo), pensamentos e sensibilidade. A sensibilidade é muitas vezes feita de conhecimento prático sobre determinados artigos em específico, como por exemplo vinhos. A comunicação verbal e não verbal por parte dos empregados deverá ser cuidada para transmitir a correta experiência. Não deve ser deixada ao acaso e deve ser treinada e alvo de regulação. ¶ O upsell baseia-se em 4 princípios básicos: › Identidade › Conhecimento › Direcção › Linguagem Os empregados de mesa e os bartenders do restaurante deverão se identificar como vendedores vocacionados para o serviço e não como simples apontadores de pedidos. Esta identidade é extremamente importante porque irá fazer com que o colaborador introduza na sua comunicação com os clientes a sugestão de pratos e bebidas que aumentam o gasto médio ou que nos oferecem melhores margens. Essa identidade terá que ser gerida pelo gestor do restaurante através de formação especializada em upselling, monitorização permanente do serviço e elaboração de um sistema de recompensas aos colaboradores que melhores vendas pratiquem. Ao praticarem a venda sugestiva os colaboradores irão desenvolver autoconfiança suficiente para
interagir de forma assertiva com o cliente, aumentando o índice de satisfação com o serviço. ¶ Depois de tomarmos a decisão de que queremos ser vendedores e não simples apontadores de pedidos é importante para reforçar a confiança do que se vende em obter um conhecimento profundo do produto que se vende e das técnicas utilizadas na sua confeção. Que confiança transmite um empregado de mesa que não sabe o que leva o cocktail que está a sugerir? O conhecimento dos produtos e das técnicas de confeção é também importante na hora de sinalizar alergias a produtos. Deverão ser treinados e instruídos a incluir as características e os benefícios de cada prato e conhecer as combinações de cada produto. Essa formação não tem que ser muito complexa. Pode ser uma prova de menu para toda a equipa ou então uma simples partilha dos componentes de cada prato. Sem conhecer o produto muito dificilmente haverá upselling. ¶ O terceiro pilar implica guiar o cliente usando as ferramentas e adereços disponíveis como os menus, mocktails ou cartas de vinhos. Com o distanciamento social e com muitos restaurantes a usarem meios eletrónicos, há também oportunidades de upsell como pop-ups com promoções e produtos referenciados. É aqui que aparecem as oportunidades de sugerir entradas e aperitivos quando o empregado de mesa vai se apresentar aos clientes, é aqui a oportunidade de sugerir s pratos principais que desejamos promover e é aqui também a oportunidade sugerir sobremesas e digestivos para a mesa. Orientar os clientes desde o início poderá criar uma experiência elevada desde as entradas aos digestivos. ¶ O último pilar é a linguagem que utilizamos para interagir e sugerir ao cliente. Mais do que ser um agressivo vendedor, deveremos plantar ideias e sugestões na mente do cliente usando uma linguagem correta usando adjetivos fortes ao descrever a comida e a bebida e fazendo perguntas abertas ao cliente. O uso de perguntas abertas é extremamente importante, porque permitem saber as preferências do cliente e fazer sugestões com base nessas preferências. As perguntas fechadas implicam respostas de sim ou de não, enquanto que as perguntas abertas permitem entender as preferências. ¶ Se a comunicação passar a ser exclusivamente por menu online, podem-se aplicar as mesmas técnicas que são usadas no E-commerce para o upsell e o crossell. ¶ O sistema da restauração está a ser desafiado de forma extrema. Para sobreviver os negócios deverão ser capazes de desconstruir e interpretar a jornada do cliente de forma correta e profissional. Ao desconstruir a jornada os restaurantes deverão ser capazes de entender que cultura de serviço têm, que valor é percebido pelo cliente, que entraves existem à venda e au sucesso e poderão atuar reduzindo esses constrangimentos. ¶ Em uníssono, gritemos bem alto – não te deixaremos morrer! ×
inter magazine
Chama-se Peixe à Porta e é o mais recente projecto e serviço da Nutrifresco, empresa nacional de pescado selvagem e marisco. O conceito nasceu com a pandemia de Covid-19, com o objectivo de fazer chegar aos lares dos portugueses os melhores e mais frescos peixes e mariscos, mantendo todas as regras de higiene e segurança. ¶ Tendo a sazonalidade como regra obrigatória, as encomendas devem ser realizadas com 24 horas de antecedência. As entregas são gratuitas e abrangem as regiões do Algarve, Évora, Grande Lisboa, Santarém, Leiria, Grande Porto, Vila Nova de Gaia, Braga e Guimarães, entre outros. ¶ Os Cabazes de Peixe Fresco Selvagem 100% Nacional são compostos por uma selecção de até 3 variedades de peixe do dia, adquiridos nas lotas nacionais, garantidas assim a frescura e qualidade. Os clientes podem escolher entre os seguintes Cabazes: Simples, Plus, Gastronómico e Sem Espinhas. Em breve, serão anunciados novos cabazes. ¶ Os Cabazes de Marisco são compostos por uma selecção de frescos como Sapateira ou Santola, Berbigão, Mexilhão, Ostras da Ria Formosa, Gambas do Algarve, Perceves de Sagres e Camarão Vermelho. ¶ Os Congelados Premium são também uma opção a ter em conta, para as espécies que não se encontram disponíveis na Costa Portuguesa, sendo exemplo disso o Salmão Selvagem do Alasca, Bacalhau da Islândia e o Camarão Tigre de Moçambique. ¶ Caso os clientes prefiram escolher os produtos do mar que mais gostam, as quantidades pretendidas e o modo como vêm amanhados, podem optar pelo Peixe à Escolha. ¶ Todas as informações sobre os produtos, receitas de chefes e o formulário de encomendas se encontram no website: www.peixeaporta.pt
O Saber e o Sabor do Peixe Fresco à porta dos Portugueses
publireportagem
gestão
Restaurar a Restauração! «Existe uma perspectiva reconfortante na gestão da crise, segundo a qual raramente se tem de passar duas vezes pelo mesmo desastre.» jack welch
texto rafael ventura
nem com uma conjuntura favorável. Aconselho que façam uma análise aos Quadros do Sector do Banco de Portugal dos Indicadores de Risco da Restauração e onde se constata que empresas com EBITDA negativo, Seguramente que os próximos 24 meses serão tempos em 2018, são 39,69% e com Resultado Líquido negativo difíceis, cheios de desafios para o sector da Restauração foram 44,55%. Ou seja, das duas uma: ou a contabilidade e é bem provável que passado este período de crise sanitária oficial não espelha a realidade, ou uma significativa parcela e de crise económica, os efeitos desta última se prolonguem dos agentes do sector são débeis gestores e incapazes de no tempo, infelizmente. Assim, acreditar que os modelos gerarem riqueza. ¶ Justificar constantemente o deplorável de negócio dos Estabelecimentos de Restauração e Bebidas desempenho económico pelas obrigações legais e fiscais é (ERB) pré COVID-19 poderão ser modelos viáveis para incompreensível, porque quem decide investir neste sector se ultrapassar este período, não será aconselhável fazer tal toma essa decisão de livre vontade e deverá aceitar à partida raciocínio para a maioria das empresas. Naturalmente, existe, o enquadramento que lhe é imposto, assumindo como sempre, alguma relutância na mudança, mas quanto mais premissa a racionalidade do Investidor. Porém, desconfio cedo haja abertura para tal exercício melhor preparados que se apenso aos pedidos de ajuda ao Estado/Contribuintes estarão os empresários e as empresas. ¶ Redesenhar o que agora se fazem, muitas vezes com arrogância, fosse Modelo de Negócio e adaptá-lo às actuais circunstâncias imposta a condição obrigatória de uma auditoria prévia do mercado é imperativo e urgente, para isso é fundamental à sua contabilidade acredito que muitos iriam prescindir realizar uma análise da evolução do mercado, mas o dessa ajuda. Ou então, outra reflexão é se fará sentido primeiro passo será esquecer o passado, centrar na ajudar empresas que cronicamente se encontram actualidade e projectar o futuro próximo. Ficar agarrado moribundas, não será altura de deixar o Mercado funcionar ao passado numa carpidura permanente sobre quanto e ser ele próprio a fazer a purga? Ou se essa ajuda, a existir, ele era confortável e perfeito é um exercício inútil. Por fará sentido que seja universal para todos os agentes? ¶ isso, acho incompreensível que alguns representantes do Dificilmente a maioria das empresas poderia compreender sector, passados mais de 60 dias do início da crise sanitária a totalidade do impacto da COVID-19 com a devida continuem, incompreensivelmente, em pranto com a antecedência para a adopção de medidas de mitigação, afirmação de que a Restauração não pode ser limitada no entanto cabe agora a responsabilidade de serem feitas na sua capacidade operacional, por imposição externa as devidas adaptações ao Modelo de Negócio, definir as da Direcção Geral da Saúde (DGS), quando possui uma incertezas e prudentemente considerar novas vagas do estrutura de custos superior às necessidades actuais. surto. Para isso é fundamental que as empresas realizem Quem profere tais afirmações só demonstra que continua Testes de Stress para esses diferentes tipos de cenários, para sem compreender que a maior limitação não é imposta perceberem quais as acções estratégicas que devem adoptar pela DGS mas pela Procura, ou a falta dela, e que para proactivamente com vista a ultrapassar este difícil período, a maioria dos consumidores, conscientes, a procura de 24 meses, preservando a sua capacidade para gerar riqueza. segurança vai ser a regra. ¶ O estado permanente de Não é racional, nem responsável, acreditar que se possa apego ao passado é incompreensível, infrutífero e adicionado ultrapassar este período sem fazer quaisquer alterações ao constante pedido de auxílio ao Estado, também, não ao negócio e sem perdas, não serão tempos para grandes deixa de incomodar vindo de um sector em que o seu Resultados, porque tão cedo não estaremos em modo desempenho económico não tem sido dos melhores, «Business as usual», infelizmente. ×
inter magazine
portugalidade texto e foto nuno diniz
A Urbe e a Aldeia
inter magazine
Um dos fenómenos recorrentes nos últimos anos e que se acentuou com explosiva propagação, nos mais recentes meses, foi o da eclosão dos… Sabichões, também conhecidos como Doutores da Mula Ruça! ¶ Estes rochosos seres nada mais são do que néscios que resultaram de uma noite de desvario entre uma salsicha de lata e um salpicão de soja e que, ao contrário dos infelizes progenitores, falam, falam e falam! ¶ De tudo. ¶ Muito! ¶ Tendo, vá-se lá saber porquê, o rei na barriga, têm a certeza que os outros que não partilham da mesma sabedoria, são burros! ¶ E estão por todo o lado. ¶ Uns são pagos para nos esmagar com a sua verborreia, na televisão, no parlamento e nos jornais. Usando a cartilha completa do mais descarado populismo, dizem tudo e o seu contrário se acharem que isso lhes vai trazer dividendos, incluindo saber todas as receitas para terminar com a dívida, para construir uma sociedade geneticamente pura, para recuperar com grandiloquência restaurantes em crise, para gerir com infinito lucro companhias de aviação, para acordar e sarar para sempre a economia e as finanças. Sabem os nomes de todos os corruptos mas não dizem. Sabem mais do que qualquer ministro sobre qualquer pasta existente mas nunca assumem qualquer responsabilidade onde possam demonstrar tal sapiência. Embora não saibam o caminho, dominam a partida, aldrabam no trajecto e banham-se confortáveis na chegada. ¶ Sabem, ponto final parágrafo. ¶ Embora não se saiba onde aprenderam. ¶ Não se saiba se aprenderam. ¶ E nunca se conheceu deles nada mais do que palavras ocas. ¶ Outros, que graças aos conhecimentos ou à família são geniais gestores, sabem tudo sobre gestão. E no entanto as suas empresas devem a todos, têm prejuízo gigantescos, pagam mal aos infelizes colaboradores, utilizam todos os truques para contornar as leis, e claro, como liberais puros, são logo os primeiros a exigir ajudas aos mesmos governos sobre os quais dizem cobras e lagartos. ¶ Há ainda os que pululam maioritariamente nas redes sociais e que professam uma fé única no poder redentor da internet. ¶ Estes são igualmente profundos sabedores de tudo o que possa ter a ver com sabedoria. E claro que hoje em dia, o vírus é uma
35
mina riquíssima e inesgotável e um verdadeiro pote de mel com o poder de atrair todos para o tema. ¶ Assim despejam conhecimento como quem despeja o lixo, fazem previsões tremendas onde utilizando secretos métodos de cálculo, são melhores e mais rigorosos com os números de mortes, infectados e recuperados, do que qualquer outro ser vivo. Comentam com escárnio ou palermoide admiração o que se passa nos outros países, criticam os governantes bem como aqueles que é suposto serem os verdadeiros especialistas, conhecem como mais ninguém o número de testes feitos, a fazer e possuem informações secretas sobre o verdadeiro número de vítimas que é sempre imensamente superior aos números oficiais. ¶ Apresentam teorias que embora se contradigam umas às outras, são melhores, mais factuais e mais bem sólidas do que as outras todas, feitas por tantos cientistas e estudiosos que, tenho que reconhecer, também se vão entretendo na constante contradição. ¶ Sabem que há má-fé, escandalosa e conspirativa falta de informação, e a que há é sempre manipulada com intenções maléficas. ¶ E depois há um grupo (o meu favorito), que embora com uns especialistas ainda mais especiais, também inclui uma selecção cuidadosamente representativa dos anteriores: ¶ É composto essencialmente por muitos daqueles que falam e escrevem (desde que o computador tenha corrector ortográfico) sobre os restaurantes… ¶ São ostentatórios, apesar de dolorosamente básicos, críticos de qualquer espaço que não seja dos amigos ou onde não comam à borla (embora não saibam comer). Teorizam com um sorriso condescendente sobre os pontos de cozedura perfeitos para qualquer corte, de qualquer peça do mundo animal e vegetal, utilizando qualquer meio de cozedura (embora não saibam cozinhar). ¶ Adoram balbuciar disparates e oferecer julgamentos pueris, pseudo modernos, sobre a cozinha tradicional/regional (que acham ser coisa velha, só para velhos). ¶ Peroram sobre cozinheiros famosos (que não conhecem), restaurantes estrelados (onde nunca foram), e até acham que têm algo a dizer sobre o nome escolhido por quem de direito para um determinado espaço (que obviamente não entendem), com as certezas mal lidas e
portugalidade coladas com cuspo que só impressionam quem também pouco sabe e acredita inocentemente poder vir a aprender algo com tão patéticas fontes de erudição. Estão convencidos que influenciam, que são respeitados e nunca percebem que estão apenas a fazer figura de parvos. ¶ Felizmente que no meio destas palermices, resistem alguns que são sérios, sabem, e querem ainda saber mais. Transmitem ideias com seriedade e têm o cuidado de manter uma escrita onde harmonizam a elegância com a crítica construtiva. ¶ E assim segue, alegremente, o dia a dia na urbe. ¶ Entretanto, eu, algures perto do sítio onde provavelmente Judas perdeu as botas, aproveito para me encantar com o mundo real e rural e, nos raros intervalos em que não estou ocupado com assuntos realmente úteis, ir-me divertindo com as figuras dos Doutores da Mula Russa que, aqui por estes lados, ninguém alguma vez ouviu falar…Pois aqui é que é. Aqui é que está. Aqui é também o País a sério. Feito de pessoas velhas, novas, altas, gordas, magras, baixas. ¶ Ninguém é rico. Ninguém é pobre. E todos são prestáveis. Sem frete. Sem fingimentos. Sem malícia. ¶ São cultos. Muito cultos. Guardando uma cultura tão antiga, quase extinta, que infelizmente já não vem nos livros, não aparece nas televisões, raramente andou pelos jornais, não entende a internet. ¶ Sabem tudo sobre estrume, labaças, croças, silagens, chagas. ¶ Sabem fazer fumeiro, pão, tratar, matar e aproveitar todos os pedacinhos, dos animais que criaram. ¶ Amanham as terras, recolhem e cortam lenha, plantam, semeiam, colhem e guardam tudo aquilo que nós, humanos civilizados e incultos, achamos que não serve para nada. E mesmo o que não plantam nem semeiam (castinçais, carvalhos, cardos, urzes, giestas, tojos, carquejas), ou o que origina aproveitamento secundário (palhas do centeio), aproveitam para as cortes dos animais, ou para os alimentar, ou para fazer telhados de colmo, ou para aquecer a casa, ou para adubar os solos pobres, ou para forrar os soalhos, ou para tudo aquilo que seja possível imaginar e que não nos passa pelas nossas desconhecedoras cabeças. ¶ E também constroem como ninguém: palheiros, espigueiros e eiras.
Monumentos à simplicidade e à eficácia que possuem uma estética, que pelo menos para os meus olhos é de uma beleza comovente, para lá de obvia dificuldade pois jamais seria capaz de os reproduzir. ¶ São comunitaristas, solidários, cuidadores. ¶ Já tiveram bois do povo, fornos do povo, vezeiras, cegadas em torna-jeira e malhadas. Com espanto, compreendo que ainda hoje subsiste esse espírito comunitário: no preparo das terras, nas apanhas, nas matanças, na utilização dos baldios, ou até como constatei em Maio de 2020, no emprestar de lameiros a um casal da aldeia do lado, que comprou vacas mas não tem terras… ¶ Há uns dias atrás, a Rosa e o Porfírio mandaram um dos seus vitelos para o matadouro, como fazem todos os anos, para ter carne para a casa. Dois dias depois aparece a Rosa em minha casa para me oferecer um pedaço do animal. E obviamente ofereceu-me as partes mais nobres! ¶ É assim que são. É assim que se manterão! ¶ E estas pessoas únicas, milagre de resistência às futilidades dos tempos, têm nomes e caras que aparentam estar sempre bem dispostos e não podem ser esquecidos. ¶ Para lá da Rosa e do Porfírio que vão fazendo tudo para que eu me sinta bem, há ainda o Vilela, o Justino, a Ferreira, a de Contim, a do Brás, o Morgado, o Grilo, o Domingos do Outeiro, o Joaquim do Duro, os Patrícios, o Rolo e a Maria e os Miro. ¶ Aqui, o sol nasce e põe-se, o mesmo para todos e com o ritmo variável mas seguro do astro, ainda vai seguindo um quase imutável ritmo da vida. ¶ Passei em Sezelhe cerca de dois meses. ¶ Confirmei que, aqui, é onde quero estar. ¶ Mas porque não quero ser igual aos outros (que critico e continuarei a criticar), porque não acredito em espectáculos de fingida ou oportunista indignação para apenas dar nas vistas deixando tudo na mesma, vou voltar (contrafeito) à urbe e tentar contribuir com tudo o que sei e posso, para que os meus cozinheiros reencontrem a normalidade, trabalhando horas decentes, sendo devidamente pagos e podendo assim voltar a sorrir. Depois, regresso de vez. ×
inter magazine
opinião texto luís antunes foto sónia alcaso
Desconfinar ou desconfiar
inter magazine
Cronologia simplificada dos sobreviventes: Primeiro foi o medo, acompanhado pelo medo do medo. Andaram os dois em disputa. Ganhou o medo. Ficámos em casa, vencemos o vírus, correu tudo bem. Aos que viveram. Houve fases: preocupação, re-planificação, combate, cerrar fileiras, depois o tédio, depois a ansiedade, depois a lassidão. Ainda estamos na ansiedade. Agora que o combate abranda, temos medo de voltar a ter medo e temos medo de perder o medo. Estamos fartos da lassidão mas temos medo. Dizem-nos que podemos desconfinar mas também nos dizem para desconfiar, ter cuidado, medo. ¶ Nos dias do medo, tive pouco medo. Alguma prudência mas pouco medo. Fui insensato talvez, egoísta talvez, olhei os números e fui optimista. Pensei no colectivo e no individual, creio ter feito a minha parte, todos cremos. Mais rigorosos ou mais relaxados, mais crentes ou mais cépticos, todos pensamos ter feito o melhor. E, pelos vistos e até agora, teremos feito o melhor, ou o melhor possível. ¶ Agora, desconfinar. Senti-me compelido logo no dia D, 18 de Maio, a sair para almoçar fora. Grosso modo, vi todas as normas a ser respeitadas. Vi restauradores carinhosos com os seus clientes, com saudades de receber bem, de partilhar. Também eu tinha saudades de um sorriso, que desta vez a máscara esconde, mas que sabemos lá estar. Tinha saudades de uma imperial, de um café com jeito, de um arroz de cabidela a sair no momento, um jarrinho de vinho da casa. De pessoas. Há um sentimento de gratidão que se espalha sem palavras, e mais depressa do que qualquer vírus. De quem serve para quem come, de quem come para quem serve. Desconfiar? Sempre. Aprendemos todos a ser mais exigentes connosco e com os outros. O português, que gosta de deixar passar, está mais calvinista. Só um bocadinho, mas talvez seja o q.b. Nestas semanas, como todos nós, suponho, já repreendi e já fui repreendido. Por conhecidos
39
e por desconhecidos. Enquanto a minha barba crescia para proporções pandémicas, crescia também a intensidade dos sentimentos. Agradeci de lágrimas nos olhos ao carteiro que me entregava uma carta. Revoltei-me com a insensatez dos agrupamentos sem sentido. Mudei de passeio vezes demais ao ver uma pessoa ao longe. Gastei muito sabonete líquido. Tive medo de morrer e medo de viver. Tive muita esperança: para a minha vida e para a vida humana. Também tive assomos de pessimismo e de optimismo. Queremos agora desconfinar, mas sabemos que as coisas não voltaram a ser como eram. Mas queríamos que fossem. Temos essa esperança. Mas também vemos, com todo um modo de vida posto em causa, sinais novos. Agora sabemos olhar para o lado, na rua, e ver pessoas. Pessoas todas iguais, pessoas que precisam de nós como nós precisamos delas. Só juntos venceremos. Sabemos olhar para os negócios que nos envolvem e ver pessoas. Não apenas lucros injustos. Pessoas, empregos, riscos, sabemos ver margens, fazer as contas, pensar que nessa margem está a garantia do futuro deles, que é o nosso, porque é ali que fazem a cabidela que me faz lembrar a da minha avó. Também vemos inevitabilidades. Pessoas que chegaram ao fim, era a vez delas. Negócios que chegaram ao fim, por não haver meio de continuarem. Teremos talvez aprendido que a vida não é justa nem injusta, é como é. Podemos apenas vivê-la, apreciando cada nova respiração que conseguimos completar. Não carregar nos ombros todo o peso. Apreciar os prazeres e as dores, todos são prova de vida. Sair mais uma vez de casa, meter uma máscara ao bolso, olhar o céu, sentir os pés na estrada, tomar um rumo e respirar pelo caminho. Em Portugal, saber ainda que o céu gosta de nós, o mar gosta de nós, há um cheirinho no ar de um tacho que se apura, o vinho já está no frigorífico, gostamos acima de tudo de sentar à mesa e comer enquanto discutimos o que vamos comer na próxima refeição. ×
Ensaios fotogrรกficos, evento Animal 2020, Theo Gould
portugalidade texto virgĂlio nogueiro gomes foto humberto mouco
Cozinha Regional
inter magazine
O tempo passa muito depressa! O conceito de cozinha, ou o seu conteúdo, alterou-se de forma bem visível. Definir as cozinhas regionais torna-se cada vez mais difícil. Cuidadosamente teremos sempre de definir o que é a região em termos geográficos. Mas a definição de uma cozinha pode ser também referida a uma localidade que se integra num espaço mais alargado e este também integrado em região que pode ser um país. E atualmente será, também, por moda, qualquer local ou região aquele que reivindica as suas especialidades culinárias como elemento identificador e integrado no seu património cultural. ¶ Segundo Patrick Rambourg, na História da cozinha e da gastronomia francesas, 2017, escreveu: Falar de cozinha regional, é reportar-se, conscientemente ou não a um espaço específico… que se distingue, pelas suas características físicas, humanas e históricas, de qualquer outra entidade territorial. Os territórios da área alimentar não são forçosamente, e rigorosamente, coincidentes com as definições de território de carácter administrativo ou legar. O cultivo de um produto, ou uma tradição alimentar, não se submetem rigorosamente a essas definições com exceção dos produtos qualificados com DOC, DOP ou IGP. A dificuldade começa, pois, pela definição do território ou terroir como vamos ouvindo dizer. ¶ Em Portugal este conceito de tradição alimentar associada a uma região, ou território, é muito tardia. Os primeiros livros de cozinha não evidenciam as regiões e, estas, só aparecem em receituários no século xix. E aparecem com força, ou importância, a partir de meados do século xx pelo grande movimento de refeições fora de casa e também pelo crescimento do número de restaurantes. E a história da alimentação veio reconhecer a importância pelo interesse que deram a esta disciplina. Os historiadores deixavam os relatos de refeições de exceção e passaram a relatar o regime alimentar do «terceiro estado», ou seja, a esmagadora maioria da população, e não a diferente alimentação das classes médias e altas da sociedade, segundo João Pedro Ferro no livro Arqueologia dos Hábitos Alimentares, 1996. ¶ A identidade regional da tradição alimentar em Portugal ainda se deve ao que a Natureza dava espontaneamente a cada região que se alargou até onde era possível deslocar, por um dia, o transporte de produtos perecíveis. Depois, com o aperfeiçoamento e velocidade dos transportes, podemos assistir à entrega de produtos que raramente se encontravam há um século. Coentros em Trás-os-Montes? Ou do clima como comer morangos em janeiro? Esta facilidade de movimento dos produtos criou uma saudável, e atual, atitude de cada região voltar a dar importância aos produtos locais, e confecioná-los na época de melhor sabor. Por isso, será a nova cozinha regional mais elitista? Veja-se o exemplo do G em Bragança com uma estrela Michelin. Ou o Feitoria em Lisboa com o seu programa «matéria». Felizmente há muitos mais exemplos. A virtude de confirmar as tradições com heranças centenárias, mas conscientemente atualizadas. ×
49
portugalidade texto olga cavaleiro foto humberto mouco
Ă€ espreita do gosto portuguĂŞs inter magazine
Macia, a minha imaginação desliza pela paisagem. Vai suave e feliz e viaja com o sol por companhia. O verde húmido a cheirar a terra e as sombras das árvores no rio fazem cenário a uma viagem que tantas vezes faço no meu pensamento, sobretudo quando quero pensar no sabor que encontrei para além da expetativa. Tem vezes que vou à procura e pareço uma miúda quando encontro o fio à meada, outras vezes sou mesmo apanhada de surpresa. Em todos estes encontros retenho os rostos e os sotaques que me apaixonam tanto quanto o sabor. ¶ O encanto da gastronomia é que ela é feita por pessoas para pessoas e, por causa dessa reciprocidade, o sabor sabe sempre a conforto, mesmo que a refeição tenha saído de mãos que nos são estranhas. No todo que escolhemos pôr dentro da panela, há ingredientes que deixamos entrar em abundância, outros apenas deixamos que espreitem e tenham uma presença breve, outros ainda são amigos fiéis do sabor. Estes são aqueles que a mão escolhe para a receita, não espreitam, vivem dentro da panela e inspiram cada refeição. ¶ No enrolar do novelo que nos leva ao ponto zero de cada receita regresso a estes rostos e penso nas escolhas que constroem sabor. Sempre que o faço sinto-me entrar na intimidade que acontece em cada ato da cozinha. E é por isso que gosto de saborear de olhos fechados, sem distrações. É nesses momentos que percebo que as diferenças que pensamos existir de Norte a Sul são apenas diferentes expressões de um mesmo gosto português. Mais preocupados em querer ver as diferenças de forma a individualizar as singularidades de cada pedaço de gastronomia do nosso Portugal, não percebemos que o gosto atravessa Portugal tal espinha dorsal do nosso léxico gastronómico. A forma como revelamos esse gosto é que é cheio de subtilezas, são essas expressões regionais feitas pronúncias alimentares que dão cor à chamada manta de retalhos gastronómica portuguesa. ¶ Na verdade, pouco diferencia os Milhos ou Painças transmontanas às Papas de Carolo das Beiras ou ao Xerém algarvio. E, entretanto, atravessámos Portugal e percebemos que a motivação sempre foi a mesma, porventura mudaram os recursos, os tais a que abrimos a porta ou apenas deixamos espreitar na panela. Num lado, o porco feito rei da mesa portuguesa, do outro o mar que com o feitiço da lua e a generosidade das
51
marés fez descobrir alimento. E do porco que não se esgota no interior serrano ou no planalto e desce até à praia numa presença que lhe dá destaque até nas incríveis sobremesas com sangue. Comer na Ericeira as filhós de sangue de porco chamadas Carracenas ou Mouriscas e, mais acima, na Beira Litoral, descobrir as Papas de Moado é entrar na intimidade do quotidiano de quem via no porco, literalmente, o seu mealheiro. Para ele, sempre abrimos a panela de forma escaqueirada. Não há assim tanta diferença entre o Interior e o Litoral que chouriças e morcelas doces não faltam. ¶ Dizia o povo que «Caldo sem pão só no inferno o dão». Tão verdade se visitarmos o modo como o pão de trigo, centeio, milho ou de mistura abeberava o caldo. Já se são migas, açordas, sopas secas, ensopados ou sopas já depende para onde queremos viajar. Das águas fervidas, aos caldos bem cheirosos e «untuados», à solidão do azeite e alho à presença faustosa do porco, mais uma vez o porco, tudo depende onde queremos ir jantar. Uma verdade, a expressão múltipla do pão a lembrar-nos porque o sacralizámos. ¶ Haverá maior expressão da unidade portuguesa que aquele fio que une todas as receitas de arroz doce? Mais do que motivações rebuscadas, agrada-me ir até ao íntimo de cada cozinheira e pensar como o arroz nasceu doce segundo expressões tão diferentes, porventura motivadas pelo que se tinha e não se tinha. Às vezes, a abundância e os ovos entravam, outras a falta e o leite levava a mistura de água e, depois de feito, o arroz doce era conduto para o pão. Escolhas pensadas nas voltas e voltas da colher de pau sobre o arroz despejado na panela. E depois, nem nos apercebemos, mas talvez as Papas de Carolo doces sejam uma outra expressão do arroz feito doce na mistura com o açúcar e leite. Talvez as Papas de Carolo sejam uma receita gémea do arroz doce, apenas paridas em circunstâncias diferentes. A mingua de arroz levou à escolha do milho partido e a falta de açúcar levou ao mel. Beleza que a escassez nos ofereceu. ¶ Tanto que há a descobrir no gosto português, pronúncias que se arrastam para a cozinha e nos fazem viajar pelas geografias que não conhecem distâncias reais, apenas imaginárias. Somos filhos de várias geografias, mas o gosto que nos sacia é o mesmo. O gosto português que espreito em cada receita. ×
comunicação texto sónia alcaso
Interactividade Sócrates, a horas da cicuta, terá pedido a um dos seus discípulos que lhe ensinasse uma nova ária de flauta. «Para que te vai servir?» ¶ «Para saber antes de morrer!» ¶ Estes são tempos de ambiguidade, excesso, medo, ataque, colapso, interrupção, doença, irritação, perigo, crueldade, neurose, morte, obsessão, desvio, desconforto, dúvida, risco, grito, isolamento. Resistência e adaptação. ¶ Estamos no meio de um processo económico catastrófico e ambíguo socialmente que coloca também novas preocupações neste início de século xxi, ao nível da comunicação. Socialmente, trata-se de desfazer a ingenuidade de um pensamento preso a velhas categorias (uma forma de ser mais centrada nas relações laborais do que familiares; na destruição do planeta do que na sua preservação) e fascinados com a ideia de que novos e absolutos começos possam simplesmente emergir (maior solidariedade, mais respeito e temor pela natureza e pela vida, novas formas de comunicar). ¶ Ao nível comunicacional não é de hoje esta realidade de nos relacionarmos cada vez mais com as máquinas. Mas, sem dúvida, que se intensificou nestes últimos meses. Isto não significa propriamente uma relação de atração ou fascínio, mas sim a resposta a uma necessidade básica: a de precisarmos cada vez mais, e por vezes desesperadamente, de comunicar ou entrar em contacto uns com os outros. E é nesta nova forma de comunicação (não tão nova assim!) que encontramos a concepção de um espaço virtual das redes como um promissor belo e bom viver em comunidade, liberto do controlo da maquinaria do estado e da burocracia, da materialidade, do lixo industrial, do tráfego sobrecarregado ou até das recentes máscaras, por vezes asfixiantes. ¶ De acordo com o filósofo italiano Mario Perniola, «ao homem-máquina substitui-se o homem-vídeo, no qual a tecnologia e a sensibilidade vivem numa relação de surpreendente simbiose:
o homem contemporâneo parece-se com uma coisa extraordinariamente dotada de sentidos e de capacidades perceptivas. O aspecto inquietante e perturbador desta maneira de ser reside no facto de ela abrir um imaginário colectivo em que são violadas as fronteiras entre o orgânico e o inorgânico, entre o modo de ser da natureza viva e o modo de ser das coisas: a definição do homem já não é a de animal racional, mas sim de coisa que sente». ¶ Claro que esta visão de redução do homem ao estado de coisa parece extremamente negativa. Este estado de coisas não implica que se comunique melhor. Pelo contrário, a produção de ruído cresce progressivamente a uma multiplicação de meios. Há sempre muito que se perde. Perdem-se os gestos, a linguagem corporal. Uma sociedade que perde o acto de tocar fica desprovida de tudo o que é natural, mas desenvolve uma nova linguagem. E é esta linguagem que se vai fazendo através de meios tecnológicos que se torna essencial para nos fazermos entender ou, por mais estranho que pareça, para sentirmos e nos fazermos sentir. ¶ O eixo, aqui, é a interactividade; uma nova noção de presença que intervém agora nos nossos dias. A adaptação à utilização destes novos suportes está a fazer-se rapidamente. Tanto por graúdos como por miúdos. «Como é que isto se usa» está a deixar de ser uma interrogação ou uma dificuldade e já está a ser tão co-natural como a utilização de qualquer outro utensílio ou suporte. ¶ Não se trata de entreter, de engendrar espetáculo e esperar os aplausos imediatos, de usar tanta tecnologia quanto a suportável. Quem aqui vier, tem de resistir a tentação da facilidade «criativa» de ampla receptividade garantida no imediato, não interessam os best-sellers. O foco deve estar no testemunhar um tempo, no transportar uma mensagem e esperar contribuir – na actualidade e no futuro – para a humanização da humanidade que houver, enquanto houver. ×
inter magazine
Querer. Poder. Fazer.
Finalmente. iCombiPro. O novo standard. Para que possa trabalhar de forma mais LQWHOLJHQWH VLPSOHV H Hʸ FLHQWH
Reimaginado. Reinventado.
Increva-se agora e experiencie mais. UDWLRQDO RQOLQH FRP
aรงores texto catarina amado fotos humberto mouco
Uma viagem pelos produtos dos Aรงores
inter magazine
Após o relato da viagem que a INTER Magazine fez na edição passada ao Funchal, na Madeira, onde visitámos quatro produtores apaixonados pela região, contamos agora tudo sobre a nossa jornada a São Miguel, nos Açores, numa altura em que a pandemia ainda era uma miragem. Aqui encontrámos a mesma dedicação ao produto mas desta vez com os campos verdejantes tão característicos da região como pano de fundo.
A nossa causa de ir além Portugal Continental persegue-nos e esta romaria aos Açores foi apenas o início para chegarmos a um país inteiro. Em São Miguel, com a ajuda de gente amiga, visitámos projectos sonhados e concretizados por gente da terra, gente que insistiu e não desistiu das suas tradições e produtos e deu um passo em frente, aproveitando o melhor que a natureza dá, o tempo. Tempo é preciso para nascer, crescer e dar vida. Nas linhas seguintes, relatamos uma viagem de conhecimento recorrendo à voz de quatro produtores que, orgulhosamente, continuam a levantar a bandeira da sua Ilha ao peito.
e um supermercado, José aventurou-se e partiu na busca de conhecimento, junto da tia, emigrante em França e especialista no tema. «Decidi ir ter com ela para aprender a fazer o verdadeiro bolo lêvedo que me lembro de comer», começa por explicar. Depois de «meses e meses» a aperfeiçoar a receita da familiar, José Machado criou a sua própria versão «com menos açúcar do que a original». Em 2013, abriu o Café/Fábrica Bolos do Vale e, desde então, todos os dias, tem a mesma rotina: às 16h inicia a feitura da massa dos bolos e que muitas vezes chega aos 100kg por dia. Fá-lo em conjunto com o filho mais velho, com quem trabalha há dois anos e pretende passar a pasta muito em Bolo lêvedo breve. «Quero descansar, sempre trabalhei no mínimo Para alguém que cresceu no seio da hotelaria, abrir um 12 horas por dia. E ele já está afinado», diz divertido. negócio de bolos lêvedos – um dos produtos-estrela dos O processo é longo pois a massa tem de descansar e levedar. Açores – não é algo que seja propriamente estranho. Apesar «O segredo é a humidade da massa, tem de chegar aos disso, José Francisco Machado é o primeiro a esclarecer que 85% e ficar fina e, por vezes, é difícil com que fique», refere. até então, nunca tinha estado envolvido em nada relacionado O resto? «É saber os ingredientes ao certo, saber o que com cozinha, pastelaria ou padaria. «Trabalhei em todas as o produto leva para não ficar pesado». Mas tudo depende áreas da hotelaria, menos nessas. O meu primeiro trabalho do tempo. «No inverno as massas precisam de mais foi abrir portas num hotel», conta. A ideia de investir no fermento, no verão precisam de menos por causa do calor doce típico regional de Vale das Furnas surgiu quando se que fazem com que as leveduras venham com mais apercebeu da falta de qualidade apresentada nos demais rapidez», explica. Findo o acto de amassar, as 00h, bolos lêvedos da região que, muitas vezes, se apresentam o responsável volta a pegar na massa para a tender, só para «empapados», o que segundo José, revela excesso de açúcar depois deixá-la descansar uma vez mais. Normalmente, na composição do mesmo. ¶ Depois de um restaurante à 1h30 da manhã está a fazer aquilo que são os bolos
57
açores «A boa alimentação influencia tudo na matéria-prima.» Nuno Teixeira, Aviário do Povoacense
lêvedos, na chapa, onde ficam fielmente três minutos de cada lado. ¶ Apesar de contar com a ajuda da família mais próxima, José emprega ainda mais sete funcionários. O negócio cresce a olhos vistos e o responsável já pensa em adquirir um espaço maior para que possa aumentar a sua produção de bolos.
«pela sua artéria principal que está debaixo da espinha» e, por último, em colocá-lo dentro de um tanque com água do mar a circular cerca de 5 a 10 minutos a fim de «deixá-lo a sangrar» De seguida, o peixe vai para uma mesa colocada na embarcação e um arame é colocado no orifício já aberto que atravessa o sistema nervoso do peixe e o destrói. De outra forma, após a sua morte, o peixe continuaria através Peixe Açoriano do sistema nervoso a emitir stress para os músculos, o que Conhecido pela sua diversidade, nos últimos anos, o mar geraria ácido láctico e faria com que a proteína começasse açoriano tem sido vítima de maus tratos por alguns dos seus a ficar condicionada. «Por exemplo, o sabor que conhecem pescadores que aplicam técnicas pouco adequadas na sua do pargo não corresponde ao seu real sabor», explica. Esta captura e conservação do peixe. Quem o afirma é Afonso forma de tratar o peixe por parte do Fat Tuna permite que o van Uden, o proprietário da empresa Fat Tuna, uma empresa mesmo apresente «uma textura e paladar diferentes, além de de comércio de peixe dos Açores criada em 2016. «Muitos que o tempo da sua frescura triplica». No entanto, esta não peixes chegam à lota completamente desfeitos, mata-se representa a totalidade da fatia de negócio da empresa que imenso peixe. Além de que as embarcações vão cada vez também compra pescado sem recurso à técnica japonesa. para mais longe, mais fundo, estamos a esgotar a riqueza «São embarcações que já conhecemos e que sabemos dos Açores», começa por dizer. ¶ «Tenho uma grande que nos trazem bom pescado.» ¶ Afonso admite que nem ligação ao mar e gosto de negócios. Decidi começar um todas as embarcações de Rabo de Peixe, que possui a maior negócio que viesse resolver um problema do mercado do comunidade piscatória a nível regional, estão dispostas a pescado que é a falta de consistência de qualidade do peixe. fazer este tipo de tratamento ao peixe mas felizmente, tem Toda a gente fala bem do peixe dos Açores mas a verdade tido apoio por parte da direcção regional e, nesse sentido, é que o peixe não é assim tão bem tratado», continua o tem dado alguma formação na região sobre a técnica. «Os responsável. De forma a conseguir distinguir-se no mercado, mais novos é mais fácil de aceitarem que os mais velhos. Nós van Uden e equipa embarcam com alguns barcos piscatórios oferecemos mais dinheiro e contratos de venda directa para e aplicam no peixe a técnica japonesa centenária ikejime, os pescadores cumprirem aquilo que pedimos.» que permite uma maior qualidade do produto, controlando assim o processo entre a captura e a entrada do peixe na lota. Ovos Afonso conta que primeiramente escolhe as embarcações A agricultura sempre foi uma realidade na vida de Nuno com base nas suas artes de captura como a linha à mão ou Teixeira. Em casa, ao crescer, era hábito conviver de perto o carrete eléctrico. Depois, já no mar, dá formação para que com animais e a natureza à sua volta. Após um tempo os pescadores apliquem a técnica que consiste primeiro em a laborar na área da construção e já com 600 galinhas matar o peixe com um espigão de inox «que toca no meio em casa a depender do seu cuidado, Nuno pensou que dos olhos do animal», depois em sangrá-lo com uma faca poderia dedicar-se realmente àquela que era a sua paixão.
inter magazine
açores «O meu queijo é feito com recurso a uma pasteurização lenta e todos os dias, às 5h da manhã, vou buscar o leite directamente das vacas.» Luís Silva, Queijaria Covoadense
«Comprei o terreno onde estamos em 2015. Desde o início, a minha vontade era de produzir ovos em qualidade e não quantidade», começa por explicar. «Não houve aqui dinheiro de subsídios. Tudo o que está aqui é fruto do meu suor e do da minha família», continua. No início, com as suas galinhas, criadas no solo, Nuno admite que utilizava uma ração que não era apropriada e que rapidamente começou a ver resultados nos seus animais que não eram de todos os espectáveis por si. «A boa alimentação influencia tudo na matéria-prima e apercebi-me que a ração que utilizava não tinha as proteínas suficientes e necessárias», explica. Por isso mesmo, tratou de se informar e contactar alguém especializado em Avicultura. «O Dr. Luís Paquete mudou a alimentação dos meus animais que agora só comem cereais e milho. Comecei logo a ver diferenças mesmo galinhas em fim de vida», afirma. ¶ Neste momento, o Aviário do Povoacense – assim se chama – , na vila da Povoação, tem capacidade para 6000 galinhas e no futuro pretende acolher mais 4000. Por dia, as galinhas dão cerca de 1000 ovos que são prontamente distribuídos pelo responsável e equipa pelos mini-mercados da Ilha e alguma restauração, caso do Hotel Ponta Delgada, onde Tiago Santos é chefe consultor. «O chefe contactou-me e pediume ovos frescos do dia, algo que eu não estava habituado que me pedissem», comenta admitindo que «faz diferença para [os chefes] que sejam entregues no dia, na sua qualidade.» Queijo fresco Corria o ano de 2006 quando Luís Silva decidiu apostar numa exploração de cabras, importadas da Holanda, para produzir leite do animal e vendê-lo às queijarias da região. Tudo corria pelo melhor até que em 2013, uma doença nos animais obrigou-o a abater todos eles. O negócio só
retomou um ano depois, em 2015, desta vez com aposta em leite de vaca e a abertura da Queijaria Covoadense, na freguesia da Covoada. «Desta vez, recorri a uma exploração de 120 vacas do meu irmão, não me quis meter nisso outra vez», começa por explicar. Desta vez, Luís também queria primar pela diferença e decidiu o que seu queijaria iria honrar o tradicional queijo fresco, enrolado numa folha de conteira – que Luís e equipa tratam de apanhar, lavar e desinfectar – que permite com que este fique em pleno estado de conservação, dentro do frigorífico, ao longo de sete dias. «Quando a matéria-prima é boa, o produto é bom por natureza. O meu queijo é feito com recurso a uma pasteurização lenta e todos os dias, às 5h da manhã, vou buscar o leite directamente das vacas», afirma Luís quando questionado sobre o segredo do seu produto. ¶ O processo de feitura do queijo, que chegam aos 100 por dia, está finalizado depois da hora do almoço, altura em que é embalado. «Ao contrário do que as pessoas pensam não existe queijo do dia, é sempre do dia anterior», clarifica. Antes disso, o queijo tem de fazer a coalhada do leite e a tal pasteurização em que o leite é aquecido a «uma temperatura de 65º e depois mantido, com a chama desligada e de tampa fechada, durante meia hora». Nos últimos anos, o produtor conta que recorreu ao apoio de uma pessoa especializada em biologia e também de um queijeiro que o ajudaram a aperfeiçoar processos, quantidades e temperaturas. ¶ No futuro, Luís Silva tem nos seus planos fazer uma «sala rústica» dentro da fábrica, para fazer provas de queijos e enchidos [a esposa é proprietária de uma Salsicharia] para grandes grupos e ainda continuar a afinar o queijo curado de pasta mole que também fabrica e que surgiu da constante vontade por parte dos clientes internacionais ou continentais em levaram os queijos de Luís consigo. ×
inter magazine
aรงores texto sรณnia alcaso foto humberto mouco
inter magazine
Cláudio Pontes é um ávido defensor das tradições dos Açores. Após mais de 20 anos em cozinhas de topo, na capital, e experiências ao lado de Aimé Barroyer no The Oitavos e Tavares Rico, regressou em 2016 à sua terra berço, comprometido em defender as suas raízes e com um novo desafio entre mãos — a chefia do Azor Hotel, o primeiro 5 estrelas da região.
CLÁUDIO PONTES Trabalhaste mais de duas décadas fora da tua ilha, São Miguel. Quando decides voltar, porque o fazes? O meu regresso está relacionado com a falta de tempo que não tinha para estar com a minha família e que agora tenho. Além disso, achei que poderia assim defender melhor as minhas raízes açorianas e aplicar todo o meu conhecimento nos Açores. Como defines o trabalho que fazes no restaurante À Terra e no Azor Hotel? A ideia é defender o máximo possível os produtos regionais, assim como as nossas receitas, acrescentando um toque mais moderno. Todas as nossas cartas são pensadas na sustentabilidade e na sazonalidade dos produtos, algo que é muito importante para mim. ¶ Penso que nos últimos cinco anos, o turismo tem crescido bastante e gastronomia acaba por ter um papel muito grande na cultura regional. Por isso mesmo, tento que os clientes percebam a nossa gastronomia através da nossa oferta gastronómica. Desenvolves um trabalho especial com a raça açoriana Ramo Grande. Porquê a aposta nesse tipo de produto? Eu acredito que temos que defender os nossos produtores e dar-lhes confiança para que eles continuem a produzir o produto regional. A Ramo Grande é uma raça original da Terceira.
65
É uma vaca de trabalho que a partir do seu leite faz uma das melhores manteigas que já provei. ¶A Ramo Grande foi durante muitos anos vista como tendo uma carne dura e de má qualidade. Comecei a perceber que não deveria ser bem assim quando tomei conhecimento que um dos melhores restaurantes do mundo, em Espanha, era um dos seus principais importadores. Comecei a contactar produtores e começámos a trabalhar juntos, a mostrar o melhor que essa raça tem. ¶ Ainda dentro desse tema, temos procurado trabalhar a vaca leiteira além do leite. Temos um mercado muito grande de laticínios nos Açores mas não ouves falar muito em carnes dos Açores. Como olhas para o sector gastronómico dos Açores? Sempre disse que tínhamos uma das melhores gastronomias do mundo, por isso mesmo, penso que iremos ter um bom futuro, mesmo depois da pandemia. Nós, portugueses, temos a capacidade de dar a voltar e reerguermo-nos. Devido à mais recente situação que o país atravessa, penso que vamos regressar um pouco às bases da cozinha, com mais sabor, mais identidade, mais regionalismo e mais produto nosso. Na reabertura do À Terra vamos adaptar-nos para chegar mais perto da raiz da nossa cozinha regional. ×
Tamara Alves
projecto matĂŠria texto joĂŁo rodrigues
inter magazine
Comparo os tempos que vivemos a uma tirania, onde somos governados pelo medo, que nos obriga a estarmos recolhidos, que nos priva da nossa liberdade, que nos impede de estarmos com quem gostamos e a não nos expressarmos da forma que queremos. ¶ Como em todas as tiranias, esta também deve ser combatida, e, portanto, devemos regressar com calma e com os cuidados necessários a uma normalidade possível. Temos, a bem da nossa liberdade enquanto pessoas, de regressar ao que fazíamos antes desta pandemia se instalar entre nós. ¶ Um dos aspectos interessantes desta tentativa de regressar à normalidade, foi esta explosão de informação que se gerou nas redes sociais, muito fundamentada na perspetiva de uma crise económica sem precedentes, com a evidente falta de contacto que se avizinha com o estrangeiro (seja por falta de turistas ou por constrangimentos nas exportações) e consequentemente em prol de nos virarmos mais para dentro e consumirmos aquilo que é nacional. Assistiu-se de facto a um processo regenerativo incrível em termos de políticas de consumo de vários sectores e a juras eternas de amor por pequenos produtores e a tudo o que tenha chancela de produção Portuguesa. ¶ Uma das premissas do projecto Matéria é que todos os produtores têm de ser visitados in loco antes de os colocarmos na plataforma,
por uma questão de filosofia do próprio projecto e para percebermos se realmente há um enquadramento entre as partes. Isso obriga-nos, naturalmente, a um sem número de viagens pelo país e assim o tenho feito, nos últimos anos, quando iniciei o processo de mapeamento de produtores para a criação do site que agora está finalmente disponível. Nestas viagens, são inevitáveis as conversas, umas mais longas que outras e algumas mais interessantes que outras, uns com mais para dizer, outros mais comedidos, uns com mais conceito de base, outros nem por isso, uns fazem-no por questões financeiras, outros por acreditarem melhorar o mundo, uns que estudam todo o processo, outros porque toda a vida sempre o fizeram desta forma e não conhecem outra. Independentemente da escala, de serem latifundiários, associações ou independentes, há em todos eles um denominador comum: o difícil que é viver – ou mesmo em alguns casos sobreviver – através do seu ofício. Ouvimos, portanto, uma série de comentários que espelham esta realidade: «não há agricultura sem subsídios, quem disser o contrário vive iludido ou mente», «a agricultura é a arte de empobrecer lentamente» ou «eu preferia que me pagassem o preço justo pelo meu produto para não ter de recorrer a subsídios». ¶ Numa altura em que o discurso do dia é consumir o que é português, talvez fosse importante
PAÍS REAL? Cogumelos, Hortelão do Oeste. Fabrice Demoulin.
69
projecto matéria Agora, é preciso ter em mente que consumir é comprar, ajudar é comprar. Falar é importante, informar também, mas o que interessa é comprar aquilo que os produtores põem à nossa disposição e fazermos isso, todos os dias, nos nossos trabalhos e em nossas casas.
perceber que isto é um saco muito grande onde cabem vários tipos de produção, vários tipos de filosofias, volumetrias distintas, assimetrias brutais na capacidade de dar resposta às adversidades. E não é de agora nem devido à pandemia, sempre foi assim e, arrisco-me a dizer, que sempre o será. ¶ Temos, portanto, muito por causa desta tal tirania que nos tirou a liberdade que tanto prezamos, uma oportunidade de nos reinventamos, de nos regenerarmos. Principalmente o interior tem a oportunidade que sempre reclamou, mas terá de se tornar apelativo e competitivo, terá de haver intervenção de quem governa neste sentido, novas políticas agrícolas podem e devem ser implementadas para proteger quem produz no nosso país, e, por último, sim, devemos consumir nacional, fazendo uma escolha em consciência do tipo de produção que vai de encontro há capacidade económica de cada um e ao encontro daquilo que cada um defende enquanto forma de estar. ¶ Agora, é preciso ter em mente que consumir é comprar, ajudar é comprar. Falar é importante, informar também, mas o que interessa é comprar aquilo que os produtores põem à nossa disposição e fazermos isso todos os dias, nos nossos trabalhos e em nossas casas. ¶ Não interessa se quem compra são as grandes superfícies que esmagam margens e compram por atacado, mas pagam a horas e compram realmente a produção directamente; ou se são os particulares que compram mais
vezes, mas pouco de cada vez; ou a restauração e os seus prazos prolongados de pagamento; ou as mercearias e lojas especializadas que precisam de eliminar ao máximo os intermediários. Aqui, como em tudo, escolha para quem se vende é legítima, mas os produtores que realmente fazem por paixão e com gosto, esses manter-se-ão fiéis a si mesmos e não terão de se sentir pressionados a mudar para poder subsistir, é claro que ter a sua cara associada ao seu produto e a sua história contada pode ajudar a valorizar o que fazem e que lhes seja pago o valor justo por aquilo que vendem. ¶ O que realmente interessa é que as famílias (algumas de três e quatro gerações) que dependem directamente da produção, que os campos que se regeneram através da pastagem de animais e caso contrário estariam nesta altura secos e áridos, que a limpeza dos terrenos que é feita por pastores e agricultores e que assim impedem os incêndios, que a ocupação das terras que impede que estas se transformem em matas, que os moleiros que ainda mantêm os seus moinhos em funcionamento, que o manter do saber fazer e das tradições, que o tal repovoamento do interior há anos reivindicado… possam sobreviver e tornarem-se uma realidade cada vez mais sólida e viável. ¶ Façamos então as nossas escolhas em consciência e, no fim do dia, ponhamos em prática aquilo que apregoamos e defendemos. ¶ Ajudar é comprar, fazer mais e falar menos impõe-se. ×
Dona Octåvia, Salsicharia Canense, Portalegre. Vânia Rodrigues.
Viagem do Jantar MatĂŠria com Kamilla Seidler, Ilhas Desertas, Algarve. Fabrice Demoulin.
crónica texto olavo silva rosa ilustração júlia da costa vital lordelo
Um problema de semântica
Trás-os-Montes é longe. Longe com as devidas aspas… não vou entrar no mérito do longe e do perto; num país tão pequeno, qualquer distância entre ponto A e ponto B, faz-se em menos de oito horas de carro. Refiro-me a uma distância que se prende com esta ideia de um lugar que não fica a caminho de nada, onde não há nada, e o que mais sobra é tempo. Já lá vamos. ¶ O que nos levou a Trás-os-Montes foi o desejo de encontrar boa azeitona, e boa gente que a transformasse em azeite, sem lhe retirar a extra virgindade. Conseguimos, mas talvez seja prudente eliminar um ou dois possíveis equívocos. Não é rigoroso afirmar que o azeite seja um produto eminentemente alimentar. Sabemos que na antiguidade clássica era usado como pomada para estancar as feridas, e na idade média dava combustão às lamparinas de fogo que iluminavam o interior dos edifícios. Gordura alimentar por excelência, é banha de porco. A história do azeite deve menos aos temperos e às frituras, do que aos unguentos e combustíveis, porém, como ninguém salteia os grelos em betadine, ou tempera o tomate com um fio de gasóleo, é hoje do senso comum tratar o azeite como um alimento. Também é do senso comum achar que o produzimos copiosamente (só isso explica aquelas piscinas de azeite em que mergulhamos o bacalhau), o que não é totalmente verdade. Produzimos bastante, é certo, cerca de 60 mil toneladas por ano, mas importamos outras 75 mil (números redondos). ¶ No restaurante Maria Rita, situado nas redondezas do lagar que visitámos, servem-no, a ferver, em doses generosas, sobre um delicioso manjar que dá pelo nome de Sopa Seca. Recomendo vivamente a visita, com um senão: o restaurante fica a 15km de Mirandela. Duvido que algum de vós queria estar a 15km de Mirandela (ou a 10, ou a 5, ou até mesmo em Mirandela). ¶ «Atrás do Marão mandam os que lá estão». Quem tentar
vasculhar este provérbio, acabará sempre por tropeçar nos «problemas da interioridade». A desertificação, o isolamento, a desaceleração. Quanto a mim que não gosto de grandes ajuntamentos, o que me é difícil de encontrar na desertificação, são problemas… O que por lá encontrei foi uma boa definição de oásis: andar 2 quilómetros a pé e não me cruzar com ninguém. Quanto ao isolamento, em sociologia é conhecido por ser um notável conservador de traços culturais. Há em Trás-os- Montes vestígios mouriscos, judaico-cristãos, romanos e pré-romanos. Não são memórias cravadas nos edifícios, são vestígios vivos, comidas, festas, cerimónias, palavras – o único lugar do mundo onde a língua portuguesa ainda é falada a três pessoas no singular e três no plural. Em Lisboa, soam as sirenes da parvónia quando alguém solta um «vós ides» ou um «vós sois»; achamos piada a quem saboreia o idioma em toda a sua extensão, e achamos normal que tenha desaparecido uma pessoa verbal sem ninguém ter dado por isso. O misterioso desaparecimento de pessoas na língua portuguesa, é um fenómeno linguístico (e policial) que merece ser investigado. Os portugueses, algures entre o séc. xix e o séc. xx, mataram o VÓS. Os brasileiros, que são obviamente os donos da língua, seguiram-nos o exemplo fratricida e mataram o TU. Não conheço nenhuma outra língua que tenha matado tanta gente… Qualquer dia não sobra ninguém para conversar. ¶ Queria trazer-vos os problemas da interioridade, mas só lhe encontrei virtudes. Existe, quando muito, um problema de semântica. O Álvaro Domingues explica muito bem o não-problema da interioridade: «se pensarmos na Península Ibérica, não existe lugar mais interior do que Madrid», e não consta que Madrid sofra propriamente de problemas de interioridade. ×
Olavo Silva Rosa e o Tiago Antunes estão a produzir uma série com o apoio da INTER magazine.
75
Marta Pereira da Costa nasceu em Lisboa em 1982 e começou a estudar música muito cedo, tendo escolhido a guitarra portuguesa aos 18 anos, tendo Carlos Gonçalves como professor. Entretanto estudou engenharia civil, que praticou durante 10 anos. A partir de 2012 dedicou-se em exclusivo à música, tendo dado inúmeros concertos em todo o mundo, gravado discos, e ganho prémios. 2020 prometia concertos em vários continentes, mas a pandemia confinou-a a casa, onde aproveita para compor.
entrevista mundana texto luís antunes fotos theo gould
inter magazine
A
O que come e bebe antes de um concerto? E quando termina? Gosto mais de comer depois do concerto. Como estou nervosa não gosto de jantar antes nem de beber vinho antes, porque fico muito mole. Depois do concerto, gosto de um copo de tinto, aproveitar para prolongar o momento com o resto da banda e os amigos. Antes, banana com queijo, chá, um pouco de chocolate. Depois, escolhemos um restaurante, muitas vezes fora de horas, e ceamos como deve ser. Adoro comer, petiscar, e descomprimir e conviver à mesa, é um bom prémio depois de um concerto. Nas suas viagens, qual o prato mais estranho que lhe deram a provar? E qual o melhor? E qual se revelou impossível de comer? Nenhum foi impossível de comer, provo tudo. Antes não gostava de mão de vaca, nem nada com demasiada gordura ou cartilagem, e quando provei a mão de vaca (feita pelo Vítor Claro, meu amigo, não consegui recusar) gostei e comi. O mais estranho ou impressionante à vista foram uns passarinhos bebés fritos, no evento Animal, eram mínimos e via-se tudo, mas eram tão bons que valeu a pena provar e repetir! O melhor: um almoço que virou jantar com o José Júlio Vintém, almoçar, beber, tocar, as pétalas de toucinho alentejano, nunca pensei conseguir comer e adorei. O fado é boémio? Ou a vida moderna civilizou-o? Revê-se nas noites vadias [eu sei que é perdidas] e sombras bizarras? Antes vivia todo o ambiente do fado de forma amadora e apaixonada. Nos últimos anos já me considero um bocado outsider do fado, as minhas músicas misturam influências. O fado ainda é boémio, sempre será, mas a vida moderna abriu-o para as novas gerações, já não é tão nocturno, acontece também ao fim da tarde num terraço, com um copo de vinho. Mas também ainda vive nas casas tradicionais, com chouriça assada, etc. Entretém-se com a guitarra, a tocar-compor-tocar, perde a noção das horas. É o meio da noite e tem fome. O que faz para comer? Corto umas fatias de Manchego. E o que gosta de beber? Fado vai com vinho, ou tem preferências mais variadas? Tem regiões preferidas? Tipos? Tem um consumo clássico (carne com tinto, peixe com branco, etc.) ou gosta de experimentar? Tenho sempre amigos que me vão apresentando vinhos, vou provando, mas confesso que de vinhos entendo pouco, quando tenho que escolher faço sempre uns telefonemas antes. Sou mais clássica, gosto mais de tinto, mas quando apanho um branco que adoro, prefiro-o ao tinto. Gosto de vinhos encorpados. Qual o seu prato preferido, e onde gosta de o comer? E qual o prato que melhor lhe sai quando vai para os fogões? Gosto muito de arrozes. Arroz de peixe, de lebre, arroz de cabidela (adoro!). Sei fazer uma boa sopa de peixe, ou umas boas bochechas de porco estufadas. Qual a maior surpresa que teve à refeição? No prato ou no copo? Tenho um grupo de amigos que está sempre a comer coisas boas. Um prato que me ficou sempre na memória foi o Bacalhau à Conde da Guarda do Vítor Claro, tenho sempre saudades de repetir este prato. No copo, foi o melhor branco que bebi: Chassagne Montrachet de Vincent Dancer 2010. ×
I
A
A
R
E
O
A
S
C
P
D
M
A
E
R
T
R
77
T
entrevista mundana
inter magazine
I
N
V
E
K
texto luĂs antunes fotos theo gould
Qual o seu dia de folga e como o ocupa? Segunda-Feira. Depois das tarefas administrativas adoro ir para a ilha da Culatra. Jantar bem, nadar bem. E respirar. Qual o escritor que mais leu, diga-me um livro que não se cansa de reler. Escritor: Rumi. Livro: Naples ’44, por Norman Lewis ou The brief wondrous life of Oscar Wao por Junot Díaz. Já vi fotos do seu carro [um Fiat 123 300D]. Conte a história dele. Como consegue reunir a dedicação para o manter a funcionar? Era um táxi na Bélgica, de 1978 até 1990. 1,340,000 km. É ainda forte como um tanque. Só utilizo água Vitalis no radiador (só a brincar). Passa um mês de férias de sonho numa ilha do outro lado do mundo. No regresso apercebe-se de que deixou lá a câmara com todas as fotografias. O que faz? Esperança. Lembrei-me de pagar a minha assinatura do iCloud. Qual a sua árvore preferida? Existe uma oliveira atrás da Praia do Barril muito, muito velha, muito misteriosa, incrivelmente bonita. Qual a melhor e a pior característica dos portugueses? Mantém as respostas para os olhanenses? Os portugueses são anarquistas pacifistas. Para mim são as características melhor e pior. Só encontrei coisas positivas em Olhão. Normalmente os olhanenses são pessoas humildes, queridas e vigorosamente individuais. Escolha um nome para o seu barco. Bora Porra! ×
U
G
O
L D
Kevin Gould nasceu em Manchester em 1959. Foi chefe de cozinha em Inglaterra e em França, antes de uma carreira de sucesso como crítico gastronómico no The Guardian, que o levou a correr o mundo inteiro. Nessas viagens, apaixonou-se por Olhão, onde comprou uma casa. Conhecendo cada vez melhor a identidade da cidade algarvia, e encantado com os seus produtos únicos, mudou-se de vez para lá e abriu em 2017 o restaurante Chá Chá Chá onde faz uma cozinha focada na micro-regionalidade e sazonalidade, e Santa Maria Madalena, uma pastelaria sem glúten. Fala um português quase impecável, que aprendeu e pratica com os pescadores. 81
entrevista mundana
L O
S T
texto luĂs antunes fotos theo gould
inter magazine
L
U
S
O
Rafael Bento, aka Lost Soul, nasceu em 1995 em Lisboa. Toca guitarra clássica há 12 anos mas os seus sons são agora outros, já que desde 2017 é músico, produtor e beat-maker, juntando influências do fado, bossa nova, choro e jazz nas suas criações lo-fi. Faz sound-tracks para documentários e eventos, em particular ligados à gastronomia. Nos dias do confinamento acabou por trocar a noite e o dia, o que não lhe é assim tão raro.
Diz-me cinco momentos relevantes num teu dia normal. Acho que o momento mais relevante do meu dia é o acordar, sinto que se não acordar bem o meu dia não corre bem. Não passo sem tocar guitarra ou jogar um ou dois jogos no meu PC. Diz-me duas coisas que tenham mudado no teu dia normal por causa do Covid. Eu trabalho em casa, portanto as coisas não mudaram muito no que toca à minha produtividade, o maior impasse foi a quantidade de projectos/concertos cancelados. Como viras muitas noites ao contrário por causa da música, conta-nos que refeições fazes. Muitas vezes só faço uma refeição, entretanto vou petiscando, pois passo a maior parte do tempo acordado à noite. Já te aconteceu estares a «jantar» às 9h00 da manhã, comendo uma feijoada ou cozido, com um bom copo de vinho, e espoletares reacções de quem chega e vê? Essa é a história da minha vida, muitas das vezes janto às 5 ou 6 da manhã ou porque estive a acabar algum projecto ou mesmo porque tive a jogar «fora de horas». O meu sleeping schedule não está muito dentro das normas da sociedade, daí as reações. Qual a bebida perfeita para uma noite tua a tocar e pôr música? Não sou muito de beber, mas quando toco gosto sempre de beber uma amêndoa amarga. Diz-nos dos teus gostos: prato preferido, bebida preferida, se vinho ou cerveja específica melhor, que tipo ou região de vinho, que tipo de cerveja, etc. Sou bastante simples: bifinhos com cogumelos e natas. No que toca a bebida ainda mais simples sou, amo água. Restaurante preferido? Prato preferido? Que gostas mais de cozinhar? O meu restaurante preferido fica perto de Castelo Branco, mais precisamente em Oleiros, perto de Cambas, terra que viu a minha avó nascer. Sítio simples, óptimos grelhados e pessoas super-simpáticas. Gosto de bastante de cozinhar, mas sinto que sou uma pessoa mais de fazer bolos ou doçarias quando ponho «as mãos na massa.» × 85
opinião texto ana paz ilustração ana rita baptista
Apologia de uma mesa de restaurante
Vivemos para comer ou comemos para viver? Quanto a mim ninguém faz nem uma coisa nem outra. Comemos para partilhar a vida. Mesmo quando comemos a sós e mesmo quando tragamos algo à pressa comprado à pressa num restaurante algures no decorrer do dia, partilhamos connosco um dos maiores prazeres da vida. Somos escravos da fome ou da gula ou da obrigação de nos nutrirmos, todos os dias, a horas mais ou menos estipuladas como corretas para refeição, porque cedemos ao que verdadeiramente nos domina pelo prazer – a partilha. Explanar a minha interpretação desta partilha a sós é como explicar um dos atos mais primários e inocentes que qualquer mamífero pratica na época do cio ou fora dela quando não encontra parceiro. Não precisarei de me alongar. ¶ O auge da partilha do prazer de comer é optar pela mesa de um restaurante. É na mesa do restaurante que começam as grandes paixões, tal como é na mesma mesa do restaurante que se incendeiam ódios e os arrebatamentos mais corrompidos terminam. Jamais ali se arrastam. ¶ Há prazer em cima e em baixo da mesa de um restaurante. Até porque o prazer de comer, melhor se degustado com lentidão e delonga, é um complemento dos apetites carnais entre comensais que partilham troços ou pedaços das suas vidas numa mesa de um restaurante. Os lábios latejam e engorgitam-se com as especiarias e com os sabores e o calor do cozinhado e movem-se brincalhões em uníssono com a mastigação, entre pausas e palavras e sorrisos partilhados, enquanto a língua envolve e sente cada sabor e brinca com os lábios entre tragos, e a garganta os engole faminta e sedenta. Não há melhor sítio para experimentar o sangue a fluir nos nossos corpos ávidos de partilha, quando nos intrigamos e sentimos um desejo descomedido por outrem, do que partilharmos uma mesa de um restaurante, dádiva dos que com as suas mãos moldaram, com o calor do fogo e do amor,
89
coisas brutas e insonsas em divinas iguarias. ¶ Na mesa de um restaurante satisfazem-se desejos, ampliam-se apetites engrandecidos e sedes pela vida e pelo outro. Ou por nós. Combinam-se sensações libidinosas e desenvolvem-se ou crescem ânsias e avidezes. Ou então murcham, culpa de outras fomes já satisfeitas e que foram mirrando, e que encontram no deleite dos pratos a antítese do êxtase. Aí a mesa de um restaurante dá-nos uma reprimenda acerca do que a vida deveria ser. Acredito que muitos amores acabem por perecer por definhamento na repetição desta constante contradição sobre a mesa de um restaurante e outros se arrastem sem eira nem beira pela ausência da mesa de um restaurante. Quantos amores não morreram já e só se darão conta quando voltarmos a poder usufruir em condições normais deste apogeu dos sentidos? ¶ Aí a terra girará novamente e todo um novo mundo se desdobrará perante nós. Chefes e cozinheiros poderão mostrar novamente o que é a entrega total, o que é a beleza e a emoção de uma experiência para além dos sentidos básicos. Precisamos urgentemente de mesas de restaurantes, de pessoas que nos apapariquem, que nos coloquem à frente cozinhados erguidos com amor, pura entrega e prazer, vinhos que nos despertem malandrices depois de nos encantarem com os seus aromas, texturas e cores, música de outras pessoas a partilharem ideias e desejos, mesas bem-postas, toalhas, guardanapos, loiças e copos que nos exultem a vista pela dedicação com que o posicionamento foi pensado. ¶ Falta-nos tanto o auge libidinoso da mesa do restaurante, que andamos todos meio perdidos, sem os lábios trémulos de anseio e desejo, sem a intensidade fogosa de um prato acabado de sair de uma cozinha profissional, sem um copo de vinho de cor rubra, sem um termo de comparação para as nossas atuais vidas corriqueiras que a tudo se resignam. ¶ Precisamos desesperadamente de uma mesa de restaurante. ×
breves contos taberneiros A estrada acaba numa paisagem de tirar o fôlego e numa taberna. ¶ Cá fora o vento é gélido e cortante, lá dentro, o aconchego do lume, e dos sorrisos do Bruno e da Marisa. ¶ Para a mesa, um copo de vinho, uma alheira feita e grelhada pelas mãos de Lúcia, mãe de Bruno, e dois dedos de conversa. ¶ Depois o Barroso num cozido, mais uns copos de vinhos e a conversa fica mais fácil. ¶ A paisagem ali quieta, numa janela gigante para um vale deslumbrante, que não deixa desprender o olhar. ¶ Neste Domingo, quando o sol se esconde na montanha do Gerês, arrependemo-nos de não ter chegado mais cedo, mas ainda falta a doce despedida. ¶ Mas há outra despedida e não é nossa, é de Bruno e Marisa, com as malas no carro para o regresso a Bordéus. ¶ É assim todas as semanas, matam saudades do amor à terra da Avó de Bruno, oferecem memórias a quem os visita, e deixam Lúcia à espera da próxima sexta. ×
Uma história de amor texto teresa vivas fotos humberto mouco ⁄ acervo da tabernas do alto Tâmega
Taberna da Ti Ana da Eira, desde 2016, Parada de Outeiro, Montalegre, Inverno 2020
91
lugares texto susana barroso
Identidade Serpense
Todos temos a terra dos pais ou dos avós onde vamos algumas vezes por ano. Páscoa, férias de Verão ou Natal ou Carnaval, há algo que nos continua a puxar para estes lugares. A Páscoa em Serpa, por exemplo, foi o que sempre me permitiu assinalar esta época de alguma forma. Isto é, se ficasse por Lisboa, a Páscoa seria igual a qualquer outro dia. Em Serpa, as tradições incluem o cortejo etnográfico, que passa pelas ruas principais da terra e a procissão para transportar a Nossa Senhora de Guadalupe, da Igreja de São Salvador para a Ermida no Altinho (que fica já quase fora da cidade). No dia em que a Santa regressa à Ermida, toda a terra se reúne durante a procissão. Houve-se o Cante Alentejano, unem-se as vozes e as lágrimas escorrem-nos pela cara. Depois de deixar a santinha na Ermida, as famílias juntam-se ao longo da encosta e fazem piqueniques durante toda a tarde. Na capela acendem-se velas e deixam-se preces à santinha. ¶ É nisto que penso quando penso em Páscoa.
Na tradição e naqueles que a continuam a manter viva todos os anos. No sentimento de pertença a algo maior do que nós. Nesta memória coletiva que une o lugar e as pessoas. Será a identidade dos lugares uma coleção de memórias e tradições? Será o património cultural o que define a sua identidade? ¶ Acredito que precisamos de tradições para continuarmos a sentir que fazemos parte da história. É por isso que quero continuar a comemorar a Páscoa em Serpa. Mesmo quando os meus avós já não estiverem cá, sobretudo quando já não estiverem cá. ¶ Para quem visita Serpa, a Páscoa é uma oportunidade para conhecer o que há de melhor nesta «Terra Forte» e testemunhar o amor que os serpenses têm à sua terra e à sua padroeira. ¶ «Ó Serpa de Guadalupe / Das muralhas casas brancas ¶ Dos poetas e pastores / Dos cantes até às tantasNão se cansam as gargantas / Dos teus filhos a cantar ¶ São preces à Santa Mãe / Ao seu encanto sem par (…)» ×
inter magazine
SCHMIDT • ALUGUE AQUI • VIRIATHUS DRINKS
GRANDES MARCAS QUE MARCAM A DIFERENÇA
SOMOS O SEU PARCEIRO DE NEGÓCIO NAS ÁREAS DE HOTELARIA, RESTAURAÇÃO, EVENTOS E NIGHTLIFE
linkedin.com/company/grupo-stosberg
instagram.com/grupo_stosberg
D
S
E
#interfoodanddrinks #268 / 2020 trimestral abril — junho director Paulo Amado pvp continente ₏ 7,5 issn 0873-531x
O
N T E R A A I E
D
E
I M G Z N