jornal do commercio 5
Recife I 24 de junho de 2012 I domingo
economia
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Quando o crédito está em casa FAMÍLIA É cada vez mais comum o devedor ser financiado por um amigo ou pai, mãe ou irmão. Mas a operação exige muito cuidado emidiafelipe@gmail.com
U
m ruidoso e provavelmente milionário mercado de crédito informal se movimenta à margem de estatísticas e controle de instituições financeiras. São parentes, amigos e conhecidos, de todas as classes sociais, que emprestam e pegam dinheiro e cartões de crédito emprestados entre si. Diferentemente das lucrativas operações feitas pelos bancos, as “soluções caseiras” têm como principal moeda a confiança – um bem que deve ficar em primeiro lugar quando é preciso lançar mão desse recurso. O funcionário público Eduardo Lins de Azevedo, 34 anos, acaba de vender um carro para comprar outro. Para isso, contou com o apoio do pai, que comprou o veículo usado e emprestou R$ 10 mil para a aquisição do novo bem. Eduardo e a esposa já pagaram R$ 5 mil. “Meu pai me deixa muito à vontade para pagar como eu puder, porque existe uma relação forte de confiança e ele sabe que se eu ainda não paguei é porque eu realmente não pude”, explica Eduardo. Para ele, a opção de pegar – e pagar – o dinheiro do pai é melhor do que contratar o mesmo valor nos bancos, correndo o risco de comprometer a renda da família e entrar no cheque especial. “Eu fico tranquilo de pegar porque sei que esse dinheiro não faz falta pra ele. Se fizesse falta, eu me sentiria constrangido”, comenta. “Embora ninguém possa dimensionar, essas soluções caseiras são extremamente comuns”, avalia o consultor econômico da Federação do Comércio de Bens e Serviços de Pernambuco (Fecomércio-PE), Luiz Kehrle. Contudo, justamente por não haver uma regulação ou métodos neste mercado, muitas vezes as pessoas não sabem como se portar. O consultor, autor de livros e palestrante de finanças pessoais Gustavo Cerbasi assegura que a prática “é algo comum em todas as classes sociais”, mas que deve ser vista com cuidado. “É muito comum um relacionamento que
se deteriora depois de um empréstimo”, lembra o consultor. “O ‘pedir emprestado’ é muito delicado. Quem está precisando deve primeiro avaliar as oportunidades no mercado: consignado, refinanciamento de automóvel e até usar a casa como garantia”. Porém, Cerbasi admite que nem sempre isso é possível e há casos em que amigos e parentes são a única forma de alguém que já não tem acesso a créditos bancários resolver um sério problema financeiro. Nessas situações, extremamente baseadas na confiança, ele orienta que tudo se alinhe para que a relação pessoal não seja danificada. Para isso, uma conversa franca sobre a situação financeira de ambos é um bom começo. Nesse “olho no olho”, Luiz Kehrle complementa que é importante o credor analisar a capacidade financeira de quem vai receber o valor. Cerbasi lembra também que o credor deve ficar atento para não humilhar, mesmo que inconscientemente, quem está ajudando, tratando o valor como se fosse “um troco” ou algo insignificante para ele.
Analistas são unânimes: é preciso transparência para preservar a relação Do lado de quem está pedindo, Cerbasi orienta que deve partir do tomador do empréstimo uma formalização, como um contrato simples ou uma nota promissória, para mostrar que ele valoriza a atitude de quem vai ceder o dinheiro por algum tempo. Outra postura proativa do devedor é uma prestação de contas frequente, avisando dias antes do dia acertado que já está providenciando o dinheiro; e alertando sobre possíveis atrasos. “Demonstrar vontade de pagar significa demonstrar valor pelo relacionamento”, pontua Cerbasi.
É possível aplicar juros sobre o valor O publicitário David Cantídio, 26 anos, vê nos empréstimos uma poupança. “Como eu confio nas pessoas pra quem eu empresto, sei que vou receber, e é uma forma de eu não gastar esse dinheiro”. Ele não obriga seus devedores a pagarem juros, mas recebe ofertas, muitas vezes até exageradas. “Uma vez um amigo pediu R$ 2 mil para pagar R$ 3 mil, porque ele disse que assim ele se sentiria melhor, já que eu estava fazendo um favor e esse era um valor que não conseguiria num banco. Mas eu não aceitei, era fora da realidade”, conta. Atualmente, ele tem R$ 2,6 mil emprestados com duas pessoas. Para o consultor Luiz Kehrle, aliados à redução das taxas de juros nos bancos, os empréstimos entre amigos, familiares e conhecidos enfraquece a figura do agiota, aquele que geralmente é um desconhecido que empresta dinheiro a juros exorbitantes e geralmente usa constrangimento e até agressividade para cobrar o dinheiro. Fora do mercado financeiro regulado pelo Banco Central, a cobrança de juros para empréstimos está limitada à correção monetária (que pode ser feita usando um índice oficial de inflação) somada à taxa básica de juros, a Selic, limitando-se a 1% ao mês. Acima disso, a operação pode ser considerada agiotagem, que pode ser enquadrada como
Guga Matos/JC Imagem
Emídia Felipe
crime contra a economia popular, com detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
REMUNERAÇÃO
No entanto, Kehrle e o consultor Gustavo Cerbasi concordam que remunerar o credor, dentro da lei, diminui o peso do “favor”, especialmente se o dinheiro emprestado tiver saído da poupança - para a professora de Economia Doméstica Fátima Macena, esse é um dos raros casos em que cabe a cobrança de juros. “Quando você empresta sem nenhum juros, pode estar deixando de ganhar com aquele dinheiro. É como se você estivesse dando esse valor que você deixou de ganhar”, observa Kehrle. “Se o tomador oferece essa remuneração, mesmo que seja pouca, mostra que valoriza o que o credor está fazendo. E pode acabar sendo uma oportunidade para os dois lados”, complementa Cerbasi. Fátima Macena pondera ainda que os juros cabem também em casos mais extremos, em que o credor usaria recurso do empréstimo para pagar uma conta e vai ter que atrasar. “Aí caberia o tomador compensá-lo. Mas amigo é amigo. Juros fora dessas situações não são corretos”, ratifica. Vale lembrar que esses tipos de empréstimos devem ser declarados, por ambas as partes, para a Receita Federal.
SOLUÇÃO E ORIENTAÇÃO Na imagem mais acima, Geyson Araújo, que empresta seus cartões para as compras de amigos. Na outra, Gustavo Cerbasi: “O ‘pedir emprestado’ é complicado”
Tem gente que empresta até o cartão Outra ferramenta financeira doméstica que circula de mão em mão é o cartão de crédito. O funcionário público Geyson Araújo, 27 anos, tem três e rotineiramente preenche seus limites com compras de parentes e amigos. “Tem gente que não tem cartão e precisa fazer uma compra parcelada. Alguns pedem porque não conseguem crédito nos bancos porque estão ‘negativados’”, relata. Geyson já teve que cobrir parcelas de compras de outras pessoas em seus cartões, mas não guarda mágoas tampouco exclui o devedor. “Contanto que eu tenha o dinheiro para cobrir, não tem problema porque eu conheço o motivo desses atrasos e entendo porque a pessoa está demorando”. Mas não é preciso ter uma amizade de longa data ou um parentesco tão próximo para que o dinheiro circule. A empregada doméstica Simone Lima, 39 anos, contou com a patroa para quitar uma dívida junto a uma grande loja de departamentos. Os mais de R$ 1 mil foram pagos e estão sendo descontados do salário de Simone, sem custos extras. Ela não se lembra ao certo quanto era a dívida, fruto de pequenos empréstimos que ela deixou de pagar no ano passado. Mas sabe que economizou quase R$ 1 mil que pagaria somente de juros, mesmo depois de uma negociação. A patroa se ofereceu para quitar à vista. “Minha patroa me ouviu falando da dívida no telefone e se ofereceu. Se eu tivesse pedido a ela antes, teria pago menos, mas tive vergonha”, conta Simone, que fica quite com a empregadora em julho. Para o consultor Luiz Kehrle, casos como o de Simone podem ser uma boa saída para empregadores que veem seus funcionários envolvidos em problemas financeiros. Se é de comum acordo e bem planejada, a atitude pode evitar que o empregado se afunde ainda mais em dívidas, comprometendo a produtividade dele. É importante que seja documentado, para evitar problemas futuros entre o funcionário e a empresa. “Tem que se considerar se o tomador vai ter capacidade de pagar. Por isso é necessário avaliar bem a renda e as despesas dele, para ver se a dívida cabe.”
OUTRAS SAÍDAS
A professora de Economia Doméstica da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) Fátima Macena diz que outra saída é multiplicar os credores. Ela conta um caso que acompanhou em um dos grupos que orientou. A pessoa precisava de R$ 300 para sair do vermelho, mas não tinha, entre parentes e amigos, quem lhe conseguisse o valor. Então, ela falou com três pessoas e pegou R$ 100 com cada uma. “É preciso deixar a vergonha de lado e buscar as soluções, especialmente entre as pessoas que se tem amizade”. Fátima aconselha também que se negociem prazos.“Combine 30 dias com um, 60 com outro. Tente fazer de um modo que você não se surpreenda sem dinheiro para honrar seus compromissos”. Por outro lado, ela lembra que o devedor tem que se organizar para não dever mais, o que será a maior prova de sua credibilidade. “Estar devendo não é bom para ninguém. As pessoas precisam entender que não podem gastar além de sua renda”, conclui.