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O Sabor e o Saber

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FERNANDO LOKSCHIN

NOMES NO MENU: BECHAMEL, O

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As bolachas Maria são longevas, têm um século e meio. Estão tão presentes na nossa história, nos são tão familiares que não parecem invocar uma Maria em particular, soam uma denominação genérica tal maricas, ‘Maria Fumaça’ ou mesmo ‘João e Maria’.

Causa espanto que as bolachas devam o nome a uma duquesa russa; mas foi para celebrar o casamento de Maria Alexandrovna com o segundo filho da Rainha Vitória, o duque de Edimburgo (1874), que uma padaria londrina – a Peek Freans – criou as Maria Biscuits.

Até então as bolachas não tinham confecção sofisticada, eram vendidas a granel e destinadas, tal um pão de maior durabilidade (daí o nome biscoitos, ‘duas cocções’), às tripulações embarcadas. Estas ‘bolachas de navio’ – chamadas também de pão do mar, bosta de ferro ou quebra molar –, muito utilizadas nas grandes navegações (Séc. XVI), eram tão duras que os marujos, como os cavalos, eram selecionados pelos dentes.

Delicadas e delgadas, redondas, bem embaladas, imitando as medalhas que celebravam o casamento nobre, as bolachas Maria tornaram-se um dos primeiros produtos alimentares globalizados. Consumidas na Ásia, Escandinávia, Oceania, América Espanhola e Brasil, tornaram-se uma marca reconhecível como Coca-Cola ou Colgate.

É uma ironia que um confeito tão popular tenha o nome de uma personagem tão aristocrática. Dizem que Maria Alexandrovna foi pernóstica a ponto de morrer ao receber um telegrama e ela endereçado como mera Frau Maria Coburg.

Outro nobre, este não esnobe, mas jogador inveterado, tornou-se o mais popular dos epônimos alimentares, o IV Conde de Sandwich. Conta Pierre-Jean Grosley no seu Guia de Londres (1770): “Um Ministro de Estado passava 24h na mesa de jogo, tão absorto que só comia um pedaço de carne entre duas fatias de pão. Este novo prato, altamente em voga, leva o nome do Ministro que o inventou”. Em agosto de 1762, Edward Gibbons confessava em seu diário o desgosto com “os mais nobres e ricos ingleses sentados numa mesa de café coberta por guardanapos comendo sanduíches de carne fria acompanhados por bebida forte e confusão política”.

O IV Conde de Sandwich era impopular; na sua morte (1792) houve quem sugerisse o epitáfio “Raramente um homem assumiu tantos cargos para realizar tão pouco”. Intrigas da oposição. Apesar do jogo – e pecados agregados, ‘O Conde Insaciável’ é o título de sua biografia –, Sandwich deixou um espólio invejável: deu nome a um arquipélago do Pacífico, a uma cidade em Massachusetts e a um pássaro africano. No inglês virou verbo, ficar entre duas alternativas, e no português batizou os programas de estudo com uma estadia no exterior – o recheio –, interposta entre dois períodos no Brasil.

A história lembra mais dos príncipes que dos plebeus. O Marquês de Bechamel foi ministro financista de Luiz XIV (1685) com o curioso título de ‘Superintendente da Cozinha Real’ e teria criado o Molho Bechamel, a base de gemas, manteiga e farinha de trigo, para acompanhar ‘galinhas velhas ou perdizes’. Bechamel é o molho branco Premium, uma das bases da culinária. Na crônica da época, lamenta o Duque d’Escars: “Este sujeito tem sorte! Venho servindo ‘poulet a la crème’ por 20 anos antes de Bechamel nascer e não tive a chance de ceder meu nome nem ao mais modesto dos molhos”. O Ministro teve a sorte de virar molho, não foste isto estaria esquecido.

Plebeu, o Filé a Cavalo é um à la minute – os dois ovos montam no bife e sem ter de esperar pelas batatas fritas, chega antes que o Filé a Pé. Com um ovo só, transforma-se em Filet a Camões, caolho. Já o Filé Chateaubriand é

O MINISTRO QUE VIROU MOLHO

haute-cuisine, invoca a obra religiosa de Francois Chateaubriand; seu sine qua non é a suculência do bife de primeira preparado envolto em carne de segunda, o filé frito entre duas carnes, tal Jesus crucificado entre os dois ladrões.

De origem recente, anos 50, o Carpaccio tem berço, nasceu no Harry’s Bar de Veneza, um monumento tão importante como os canais e gôndolas. O Carpaccio foi criado por Giuseppe Cipriani em 15 minutos para consolar uma cliente, a Condessa Moncenigo, submetida a uma de dieta de carne crua para tratar anemia: finas fatias de filet cru, molho de mostarda, molho inglês, limão e pimenta. As cores vermelho-alaranjado do prato eram afins às usadas pelo pintor Vitorio Carpaccio (Séc. XVI).

Conforme a biografia do bar (Harry’s Bar, Arrigo Cipriani, 1996), ao receber o Carpaccio, a condessa chorava bebendo um Bellini. Nos anos 30 Cipriani deu o nome de outro pintor veneziano – Bellini – ao coquetel que se tornou um clássico. Reuniu dois produtos nobres do Vêneto, Prosecco e pêssegos, numa bebida refrescante e pobre em álcool. O tom amarelado claro do coquetel lembraria as telas de Bellini. Mangia que ti fa biene – inventar um prato para o conforto de alguém é um tema recorrente em gastronomia. Foi para fortalecer a esposa em puerpério que Alfredo di Lelio, dono de uma tratoria de Roma, criou o Fettuccini Alfredo em 1908. Deu certo. Seu condimento era a teatralidade do preparo à mesa: a massa levantada alto da caçarola para se mesclar com a manteiga e o parmesão fresco pela ação da gravidade entusiasma qualquer apetite.

Há muita mise en scène na cozinha. Tal a massa com a manteiga e parmesão, as artes, os sentidos e os prazeres se misturam e se complementam. Uma obra de arte libera os mesmos neurotransmissores nas mesmas áreas cerebrais que um Alfredo, um Carpaccio ou um Bellini. David Belasco (1853-1931), o precursor da dramaturgia moderna, dizia que a chegada de um prato no jantar é comparável ao abrir a cortina do teatro. A mesa é um palco.

Para Rossini, a celebridade musical do Séc. XIX, o estômago era o “condutor da orquestra das paixões”. Aos 40 anos (e 40 óperas) se aposentou para dedicar-se “à mais admirável ocupação na vida, comer!”.

O sabor e o saber

FERNANDO LOKSCHIN

“Comer. Amar, Cantar e Digerir são os quatro atos da ópera cômica do viver e eles passam como bolhas de champanhe. Quem os deixa ir sem desfrute é um idiota completo.” Bravo! Justo que seja homenageado nos Tournedos Rossini: filé, crótons e foie gras com trufas e molho madeira.

Comida é memória, permite viajar no tempo. Proust inicia Em Busca do Tempo Perdido (1908) com as lembranças afloradas por uma taça de chá com madelaines: “acabrunhado pelo dia tristonho e a perspectiva de um dia seguinte sombrio, levei à boca uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de Madeleine”. Se as memórias são uma porta dos fundos, as Madelaines chegaram à literatura pela porta principal.

Buscar a história das Madelaines é perda de tempo; há muitas versões e um único fato: nasceram em Commercy, norte da França. Uma das lendas é que Madelaine Palmier, uma serviçal, tenha preparado os confeitos para o rei Estanislau I da Polônia, lá exilado (1755). Marie, filha de Estanislau e consorte de Luis XV, faria das Madelaines a nouvelle vague de Versalhes. O alimento do pobre requer o mecenato do nobre.

Proust descreve as Madelaines como “biscoitos curtos e rechonchudos que parecerem moldadas numa valva estriada de uma concha de São Tiago”, no francês, Coquille de Saint Jacques, as vieiras, um dos raros alimentos com nome sacro. As vieiras tomaram o nome e tornaram-se símbolo de St. Jacques, o apóstolo peregrino: exibindo sulcos em várias direções a partir de um foco, a concha era usada por Tiago para esmolar alimento.

Cansados de néctar e ambrosia, os Deuses sequestraram precocemente minha amiga Vera Couto e Silva, queriam no Olimpo a Pavlova que só ela era capaz de fazer. A sobremesa foi criada em 1926 durante o tour australiano da bailarina russa Anna Pavlova. Merengue, chantilly e frutas num doce leve e delicado como a bailarina, com as frutas em torno do merengue desenhando o tutu, o saiote do ballet. Assim como a Pavlova, a sobremesa, Nellie Melba, a cantora lírica, nasceu na Austrália, mas as Torradas e os Pêssegos Melba são ingleses, ambos criados por Escoffier, chef do Savoy Hotel. Os Pêssegos Melba foram a atração do jantar post estreia da ópera ‘Lohegrin, o Cavaleiro do Cisne’, em Convent Garden (1892): um cisne de gelo nadando num lago de sorvete de baunilha com pêssego. Já as Torradas Melba surgiram cinco anos depois, fatias finas tostadas nos dois lados para tratar um mal-estar estomacal (eufemismo para diarreia) da cantora.

Primeira visita de um chefe de Estado ao Brasil, a do Rei Alberto da Bélgica em 1920 trouxe duas consequências: a Siderúrgica Belgo-Mineira e o doce Rei Alberto, um mimo da Confeitaria Colombo ao rei: gelatina, merengue, ovos moles e abacaxi e ameixas, uma mixórdia que deu certo. Anos depois, em 1954, a Colombo criou a Torta Marta Rocha para celebrar a primeira Miss Brasil, ‘ambas fartas e gostosas’, como diziam na época. A Rainha Charlotte, 15 filhos e muitas polegadas a mais que Marta Rocha, era a esposa de George III. O Larousse Gastronomique traz nada menos que 17 Tortas Charlottes, frias e quentes, doces e salgadas, com ingredientes que vão de maçãs e peras a aspargos e salmonetes.

A linguagem está repleta de ecos literários – Odisseia, Poliana, Sífilis, Quixotesco, Homérico, etc., alguns ressoam na gastronomia. Pantuagruelico faz referência à sede e apetite de “Pantagruel, o rei dos dipsodos” (os sedentos...), personagem de Rabelais (1534), Panta é afim a ‘pança’ < L. pantex. Rocambole, herói de folhetins publicados entre 1857 a 1870, vivenciava aventuras tão confusas que deu nome – só no Brasil – ao Rocambole, o bolo suíço, um pão de ló recheado enrolado sobre si mesmo.

Como o mamute e o tigre do Cáspio, o clã outrora dominante dos Stroganoff está extinto. Deixou como herança o Palácio Stroganoff de São Petesburgo, as coleções

de joias e moedas do Museu Hermitage e, não menos importante, a receita do Boeuf Stroganoff, o estrogonofe, culinária francesa com alma russa, cubos de carne com creme de leite azedo.

Antes da demonização do açúcar e da sacralização da correção política, ‘branquinhos’ e ‘negrinhos’ definiam os aniversários infantis. O nome original é brigadeiro. Na primeira eleição com voto feminino e não existindo ainda o (saco sem) Fundo Partidário, voluntárias angariavam recursos para a campanha do Brigadeiro Eduardo Gomes (1950) vendendo docinhos de leite condensado, brigadeiros. O Brigadeiro perdeu para Getúlio, mas os doces conservam o mandato popular.

É curioso que Margarita, nome não tão comum, migrasse para a gastronomia em duplicada: a mais tradicional das pizzas e o mais popular dos drinks. Na visita de Rainha Margarita de Savoia a Nápoles em 1889, o padeiro Raffaele Esposito criou uma pizza de manjericão, tomate e mozzarella, com as cores verde, vermelha e branca da bandeira italiana.

Já o coquetel Margarita – tequila, limão, licor de laranja e sal – tem origem disputada. Há a versão de que o proprietário do Hotel La Gloria de Tijuana o tenha preparado em 1938 para Marjorie King, atriz alérgica a todas as bebidas alcoólicas com exceção de Tequila. Marjorie é a tradução de Margarita, ‘pérola’. Outra versão é que a dançarina e aspirante a atriz Margarita Cansino tenha inspirado o barman do Hotel Agua Caliente a criar o coquetel. Esta dançarina se transformaria em Rita Hayworth, a estrela de Gilda, o arquétipo da femme fatale. Se, conforme a atriz, os homens iam deitar com Gilda, mas acordavam com Rita, há quem beba Margarita para sonhar com ambas.

Antes de mangiamaccherone, os italianos eram mangiafolie, ‘comedores de folhas’ (Séc. XVI), natural que a Caesar Salad tenha o nome do chef italiano Cesar Cardini (1924) que a preparava junto às mesas de seu restaurante no México: alface, crótons, parmesão, suco de limão e

ovos. Já os ingleses se definem como beefeaters, ‘comedores de bife’, e cantam nos pubs “a carne enobrece nossos cérebros e enriquece nosso sangue”; natural também que o Duque de Wellington, um herói militar, cedesse seu título ao Bife de Wellington: bife e patê envelopado em massa folhada. Derrotados por Wellington em Waterloo, os franceses insistem que o nome do prato seja alusivo ao aspecto e sabor das famosas botas de Wellington. Um outro militar, este francês, Marechal Duplessis-Praslin deixou a marca na gastronomia. Seu cozinheiro tostou amêndoas com açúcar e chamou pelo nome do patrão, amandes a la prasline (1662), em 1680 a palavra já aparecia sem o ‘s’, praline. Exemplo do potencial criativo A DESCOBERTA DE dos acidentes de cozinha, o Crêpe Suzette, ‘capaz de transformar um UM NOVO PRATO TRAZ MAIS canibal em um gentleman’, foi obra de um aprendiz de cozinha de 14

ALEGRIA À HUMANIDADE anos no Cafe de Paris de Monte Car QUE A DESCOBERTA lo, em 1895. Na sua biografia (Life a la Henri, 1937), Henri Charpentier

DE UMA NOVA ESTRELA. conta que preparava ‘panquecas francesas’ para ninguém menos (BRILLAT-SAVARIN, 1826) que o herdeiro ao trono da Rainha Vitoria quando a mistura de licores com casca de laranja pegou fogo na caçarola. Apagado o incêndio o rapaz se refez do susto ao provar “a mais deliciosa harmonia de sabores adocicados”. Não deu crepe – as panquecas flambadas foram um sucesso e assumiram o nome da única jovem à mesa, Suzette. ‘Susaninha, 14 anos e filha de um comensal’, seria a descrição com discrição da escort do Príncipe de Gales, notório lotário de codinome Dirty Bertie... No dia seguinte, Dirty Bertie fez chegar a Charpentier um anel, um chapéu e uma bengala. Presentes bizarros, mas nada mais justo. Suzette deve ter ficado feliz. Como escreveu Brillat Savarin, a descoberta de um novo prato traz mais alegria à humanidade que a descoberta de uma nova estrela. FERNANDO LOKSCHIN É MÉDICO E GOURMET fernando@vanet.com.br

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