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Coluna Palavra
Palavra
LUÍS AUGUSTO FISCHER
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TREM AZUL
Pode escolher a voz: Milton Nascimento, Elis Regina, Tom Jobim (em inglês), entre outros. Mas o apelo é imediato, em qualquer caso. A canção lenta, amena, nos fisga inapelavelmente.
Coisas que a gente se esquece de dizer Frases que o vento vem às vezes me lembrar Coisa que ficaram muito tempo por dizer Na canção do vento não se cansam de voar
Meio banal até a letra, como a melodia, que é encantadora mas simples, não inventa muito. Coisas, frases, vendo, canção, memória. Mas tem aspectos comoventes na dicção: as vogais se prolongam querendo alcançar o infinito – na canção do vento, essas coisas esquecidas ou sufocadas não se cansam de voaaaaaaaaar.
E o refrão investe nas vogais também:
Você pega o trem azul O sol na cabeça O sol pega o trem azul Você na cabeça O sol na cabeça
Vocêêêêê pega o trem azul, o sooooool na cabeça.
Simples e de efeito certo: a emoção começa na garganta e toma o corpo todo – e sem muita demora a gente já está balançando o corpo, discreta mas efetivamente. Que mistério tem essa canção?
Nunca tentei explicar tudo. Mas sempre fiquei meio invocado com esse trem aí. Trem tudo bem; mas azul? Por quê?
Não que eu entenda de jazz, mas é só dar uma googleada e logo aparece que “Blue train” é um álbum de John Coltrane, um dos mais famosos saxofonistas do jazz, gravado em 1958. A melodia nada tem a ver com o “Trem azul” nativo, criação do Lô Borges, com letra do Ronaldo Bastos, gravada creio que pela primeira vez no Clube da Esquina, esse diamante da música popular brasileira, lançado em 1972.
Existia um trem de cor azul por trás dessas duas referências? Certo que sim. O trem, esse meio de transporte que o rodoviarismo brasileiro sufocou, aliado com a pressão da indústria automobilística e a falta de planejamento de longo prazo, para nem falar da falta de respeito para com a gente comum. Sim, senhor: gente comum anda de trem por tudo, onde ele existe. Trem de passageiros para ir e vir das periferias aos centros, a trabalho, e para viajar distâncias maiores, a passeio. Previsível, com horários certos, acessível, ecologicamente muito melhor que a loucura em que vivemos. O trem e seu irmão urbano, o metrô. Que falta nos fazem. Na Alemanha, em 1951, foi inaugurada uma linha de trens que veio a receber o nome de (mais um google) “Blauer Enzian”, o que daria em português “Genciana azul”, e mais um passo estamos na Violeta de Genciana, que nomeia um agente antisséptico e antimicótico e uma cor de tintura de cabelo. Esse trem azul alemão deve seu nome a uma associação entre a cor do vagão e a flor da violeta que havia na região.
Mas temos o “Trem azul”. A quase desaparição dos trens na vida real das classes confortáveis brasileiras não impede que a gente viaje nos trilhos da canção. O sol na cabeça, o vento carregando as coisas que a gente esqueceu de dizer.
LUÍS AUGUSTO FISCHER, PROFESSOR DE LITERATURA E ESCRITOR