TÉCNICAS DE PROCEDURALIZAÇÃO
APLICADAS AO BIODIREITO
O desenvolvimento das ciências biomédicas e da biotecnologia no século XXI é um fato inegável e desejado pela euforia científica biológica já mencionada anteriormente. Os efeitos benéficos desse desenvolvimento justificam bem a manutenção dos recursos destinados à pesquisa nas ciências da vida, bem como a expectativa social em relação a elas. Apenas a título de exemplo, em um século, a expectativa de vida humana ao nascer aumentou de aproximadamente 50 anos para mais de 80 em um grande número de países17 – embora os problemas basilares já conhecidos e recorrentes ainda impeçam o melhor desenvolvimento dessa expectativa globalmente, tais como o escasso acesso a tratamento médico, baixa qualidade de água potável disponível, saneamento básico etc.
Esse desenvolvimento não veio, e tampouco virá, desprovido de questões polêmicas que demandarão questionamentos em busca de uma resposta de qual conduta correta a se tomar, bem como os limites permitidos ao desenvolvimento e as consequências deles. Questões como o melhoramento cognitivo humano por meio do uso de neuroestimulantes levantam uma série de debates éticos, sociais e econômicos que resvalam ao direito dar a resposta para pacificar socialmente,18 ou ainda a possibilidade de patenteabilidade de embrião humano geneticamente modificado19 , o acesso à tecnologia de diagnós-
17 Disponível em: <https://data.oecd.org/healthstat/life-expectancy-at-birth.htm> e <https://www.nia.nih.gov/research/publication/global-health-and-aging/living-longer>. Acesso em: 13 dez. 2018.
18 Nesse sentido, vale conferir a opinião do Comitê Nacional de Bioética da Itália: Neuroscience and pharmacological cognitive enhancement: bioethical aspects. Disponível em: <http://presidenza.governo.it/bioetica/eng/opinions.html>. Acesso em: 28 nov. 2018.
19 Cf., nesse sentido, Oliver Brüstle v. Greenpeace, em outubro de 2011, e International Stem Cell Corporation v. Comp -
tico genético pré-implante, seus limites e o uso para questões não médicas. 20
Enquanto esta tese foi escrita, causou bastante alvoroço na mídia e nas academias científicas o anúncio feito pelo pesquisador chinês He Jiankui de que teria criado bebês geneticamente modificados resistentes ao vírus HIV. Ele teria feito as mudanças durante o tratamento de fertilidade de 7 casais, mas apenas um teria engravidado de gêmeas. A grande repercussão no meio científico internacional fez que o governo chinês se preocupasse com a manutenção da imagem de ciência ética desenvolvida e publicamente se manifestasse contrário à prática. Embora a universidade em que leciona negue que ele tenha sido preso, o cientista seguia desaparecido, levantando suspeitas de que tenha sido executado por conta da repercussão pública. 21
Ainda no sentido de edição genética, é importante mencionar sobre o estado da arte enquanto esta tese foi produzida, o CRISPR-Cas9. Do inglês Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats – ou “agrupados de curtas repetições palindrômicas regularmente interespaçadas” –, trata-se de uma técnica que se tornou “popular” pela qualidade de edição, precisão e custo do procedimento. Utiliza-se a proteína de uma bactéria e um RNA que a diretroller General of Patents, Designs and Trade Marks, em dezembro de 2014.
20 Cf. entrevista de Arthur Caplan acerca de embriões selecionados com base no gênero ao Wall Street Journal em agosto de 2015: Disponível em: <http://www.wsj.com/articles/fertility-clinics-let-you-select-your-babys-sex-1439833091>. Acesso em 28 nov. 2018.
Sobre tema, é importante mencionar ainda que em países como a Índia, o número de mulheres com menos de 6 anos para cada 1000 homens (cálculo que compõe o índice CSR – Child Sex Ratio) diminuiu nos últimos 20 anos – de 945 (em 1991) para 918 (em 2011). Cf. <http://asiapacific.unwomen.org/en/digital-library/ publications/2014/9/sex-ratios-and-gender-biased-sex-selection>. Acesso em; 19 dez. 2018.
21 Confira: <https://www.abc.net.au/news/2018-12-07/chinese-scientist-who-edited-twins-genes-he-jiankui-missing/10588528>. Acesso em: 19 dez. 2018.
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ciona para uma sequência específica da DNA. Cas9 é o gene responsável pela produção da enzima que possibilita cortar precisamente o DNA, de modo que a combinação entre as duas coisas gera a tecnologia de edição de sequências de DNA que mais tem revolucionado a biotecnologia nos últimos tempos.
Apenas para exemplificar as possibilidades, em 2015, essa técnica foi utilizada para provar que era possível suprimir o vírus HIV de células vivas de pacientes portadores. 22 Posteriormente, formaram um projeto maior, com animais cobaias que portavam o vírus em praticamente todas as suas células, e obtiveram a redução de 50% do vírus de células de todo o corpo com apenas uma injeção de CRISPR na calda. É diante da grande expectativa de pesquisas como essa que se imagina ser possível curar não apenas o HIV, mas diversas outras doenças no futuro. Em seres humanos, já foi aprovado o primeiro tratamento de câncer com a edição de DNA no começo de 2016, nos EUA. 23 Em outubro do mesmo ano, os cientistas chineses realizaram testes em pacientes com câncer de pulmão, criando células imunes modificadas pela técnica de edição CRISPR. 24
As vantagens de utilização da CRISPR-Cas9 implicam também diversas questões25 que demandam debate não apenas prévio às tentativas de uso, mas também posteriores ao desenvolvimento da técnica. Embora He Jiankui tenha ganhado repercussão midiática em 2018, três anos antes, em 2015, os cientistas da Universidade de Guangzhou, na China, aplicaram o CRISPR-Cas9 em 86 embriões humanos não
22 Confira: <https://www.nature.com/articles/srep22555>. Acesso em: 19 dez. 2018.
23 Confira: <https://www.nature.com/news/first-crispr-clinical-trial-gets-green-light-from-us-panel-1.20137>. Acesso em: 19 dez. 2018.
24 Confira: <https://www.nature.com/news/crispr-gene-editing-tested-in-a-person-for-the-first-time-1.20988>. Acesso em: 19 dez. 2018.
25 LEDFORD, H. CRISPR, The disruptor. Nature, 522, 20-24. Disponível em: <http://www.nature.com/news/crispr-the-disruptor-1.17673>. Acesso em: 19 dez. 2018.
viáveis. Eles procuravam editar o gene responsável por β -thalassaemia e, após 48 horas, 28 dos 54 embriões sobreviventes apresentaram a modificação desejada. Contudo, ao mesmo tempo, desenvolveram-se diversas outras mutações inesperadas e de consequências desconhecidas, de modo que os próprios pesquisadores questionaram os riscos do uso médico. 26 Como se tratava da primeira vez (que se tem notícias) em que se aplicou a técnica de edição genética em embriões humanos, iniciaram-se debates entre bioéticos, pesquisadores e juristas sobre aspectos éticos e legitimidade da aplicação da nova técnica em embriões humanos. Apenas para citar um caso que gera profundo debate: a possibilidade de se prevenir a surdez progressiva causada pela mutação do gene Tmcl, que leva à destruição gradativa de parte das células do ouvido interna dos mamíferos. Já se conhece a possibilidade de corrigir a mutação genética e, assim, prevenir a surdez, conforme estudo publicado na Nature,27 em dezembro de 2017. Ocorre que entre os indivíduos portadores de surdez, tal condição nem sempre é vista como uma deficiência, mas uma variabilidade da espécie humana que precisa ser respeitada, razão pela qual não aceitam a utilização de técnicas que os façam ouvir, e podem até mesmo considerar um desrespeito a adaptação por meio de leitura labial, por exemplo.
Ao se debater a formação do biodireito, fica evidente que ele é feito conforme se caminha a ciência, pois não há um modo de estabelecer um conhecimento jurídico para aquilo que desconhecemos ainda, que apenas o desenvolvimento científico futuro vivenciará e proporá como novos fatos sobre os quais serão
26 CYRANOSKI, D.; REARDON, S. Chinese scientists genetically modify human embryos. Nature. Disponível em: <https:// www.nature.com/news/chinese-scientists-genetically-modify-human-embryos-1.17378>. Acesso 22 jan. 2019.
27 Confira: <https://www.nature.com/articles/nature25164>. Acesso em: 19 dez. 2019.
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necessários discutir implicações éticas e jurídicas. Se o biodireito se faz ao caminhar, não se pode atribuir a ele apenas dois extremos, entre os quais ele pode se apoiar: um conservador, que se baseia num ideário de princípio da precaução e atribui obstáculos à liberdade de pesquisa científica;28 e um liberal, que chega aos exageros de afirmar que a principal finalidade da bioética, hoje, deveria ser: “sair do caminho”. 29
Nesse encontro entre direito e biotecnologia, as particularidades apresentadas pelo desenvolvimento do domínio da vida necessitam ser respeitadas pelo direito, em especial ao desenvolver uma área para pesquisar tais fenômenos, que é o biodireito. É preciso considerar que as biotecnologias e as ciências da vida trabalham em questões materiais complexas, cuja compreensão demanda entender não apenas sobre o que se trata, mas também a repercussão ética em que aquela técnica complexa implicará.
Com efeito, não é incomum que cientistas que não estejam sensibilizados com problemas éticos e conscientes de sua complexidade não percebam nenhuma complicação com o desenvolvimento e a aplicação de uma biotecnologia. Do mesmo modo, atores jurídicos, políticos ou éticos e regulatórios podem igualmente não compreender plenamente as funcionalidades da biotecnologia e, com isso, ter dificuldades para identificar problemas éticos.
Também é preciso considerar que aspectos antropológicos e culturais sensíveis de uma comunidade podem se alterar de forma complexa e nem sempre
28 Cf. as críticas feitas a essa formulação de pensamento, em especial quanto ao impacto sobre a liberdade de desenvolvimento científico: BARON, J. Against Bioethics, MIT Press, 2006.
29 Cf. a entrevista de Steven Pinker’s ao Boston Globe Today, relatada por Michael Cook, D isdain for bioethics ignites controversy. BioEdge 9 August 2015. Disponível em: <http://www. bioedge.org/bioethics/disdain-for-bioethics-ignites-controversy/11516>. Acesso em: 22 dez. 2018.
perceptível, especialmente quando se diz respeito à percepção de uma tecnologia e das possibilidades de sua aplicação no cotidiano, levantando novas questões que antes não eram apresentadas, ou seja, é possível que um consenso ético venha a ser questionado, implicando também a revisão das consequências jurídicas atribuídas a tal consenso, sendo necessário que legisladores e Cortes abram seus procedimentos a atores sociais mais sensíveis a tais alterações.
A atualização constante e o desenvolvimento não linear e rápido das ciências da vida e das biotecnologias também representam um desafio ao biodireito. Embora o conhecimento científico implique a replicabilidade de dados, ou seja, os resultados precisam ser testados novamente em outra pesquisa que os ratifique, não é possível que o direito aguarde a futura confirmação da cientificidade de um dado e sua operacionabilidade técnica para que só então se atente a debater as consequências jurídicas e éticas dele. Além disso, uma decisão tomada com base em um dado pode vir a se tornar obsoleta, pois esse dado não representa mais o estado da arte científica naquele tema, sendo necessário revisitar decisões judiciais para atingir as expectativas dos interessados, especialmente se pautando por estabilidade e precisão da decisão em face do desenvolvimento científico. Esses elementos determinam as particularidades que a formulação do biodireito necessita ter para lidar com as características do desenvolvimento das ciências da vida.
2.1. A abertura do biodireito
A complexidade do conhecimento das ciências da vida dificulta a compreensão das implicações éticas possíveis e, consequentemente, dos impactos jurídicos de uma nova biotecnologia. Essa peculiaridade acarreta uma formulação epistemológica do biodireito, causando, desde o começo, uma abertura do
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processo de criação do suporte normativo jurídico bem como do processo decisório.
Um exemplo da abertura no caso da criação do suporte normativo é o caso da Lei de Bioética, editada pelo Parlamento francês em 2011, que previu que “todo projeto de reforma sobre os problemas éticos e as questões sociais relevantes para o progresso do conhecimento e do domínio da biologia, da medicina e da saúde devem ser precedidos por um debate público”. As revisões ocorrem por iniciativa do Comité Consultatif National d’Ethique pour les Sciences de la vie et de la santé (CCNE), após consulta das comissões parlamentares permanentes competentes e do Office Parlementaire d’Évalution des choix scientifiques et technologiques (OPESCT). Depois dos debates, o Comitê estabelece um relatório que apresenta ao OPESCT, que procede à sua validação. 30 As revisões devem ocorrer em um intervalo de 7 anos. Dentro dos tópicos que permearam os debates ocorridos em 2018 estão:
• avanços da pesquisa nos domínios da reprodução, desenvolvimento embrionário e das células tronco, e do respeito ao embrião como uma pessoa em potencial;
• técnicas de sequenciamento e de engenharia genética e premissas éticas de uma medicina preditiva;
• doações e transplantes de órgãos;
• inteligência artificial e robôs e a responsabilidade dos profissionais de saúde em sua utilização;
• neurociência e desenvolvimento de técnicas de diagnóstico por imagem;
30 Conforme mencionou o Roselyne Bachelot em seu discurso inaugural: “(...) non seulement une considérable somme d'études, de travaux de rapports et produits par les différentes instances concernées, mais aussi du Préambule nécessaire d'une reflexion collective suscitant l'expression d'un accord ayant vocation fondé à être sur la reconnaissance de valeur spartagées”. Disponível em: <http://www.etatsgenerauxdelabioethique.fr/>. Acesso em: 22 jan. 2019.
• relação saúde/meio-ambiente e as responsabilidades científicas e técnicas do ser humano;
• procriação;
• término de vida, analisando questões como a legalização do suicídio assistido e políticas de acompanhamento para as questões em final de vida.
Outro exemplo de abertura do processo legislativo ao desenvolvimento científico e suas dimensões éticas é a regulamentação britânica à doação mitocondrial, que passou a valer em outubro de 2015. 31 A técnica da doação mitocondrial é parte do processo de FIV, permitindo alterar o DNA mitocondrial de um óvulo retirado de uma mulher que possua alguma doença genética mitocondrial com o de uma doadora saudável. Com isso, evita-se a transferência da doença por meio da exclusão da linhagem genética materna.
Diante da complexidade da questão, levando em conta que alguns especialistas consideram a prática ainda como insegura e insuficientemente testada, o Parlamento britânico procedeu com uma série de passos que visavam a apurar tanto a informação científica disponível quanto as opiniões éticas. Foi nomeado um comitê de especialistas pelo Human Fertilisation and Embryology Authority, em 2011, 2012 e 2014, com o objetivo de analisar os dados levantados, além de requisitar especificamente a opinião do Nuffield Councilon Bioethics (um órgão filantrópico independente do Reino Unido, mantido pelo Nuffield Foundation, pelo Medical Research Council e pelo Wellcome Trust para examinar questões bioéticas), para então abrir consultas públicas on-line. 32 No
31 MCLEAN, S.A.M. Mitochondrial DNA transfer. Some reflections from the United Kingdom, BioLaw Journal, 2015, II, 81. 32 Cf. CRAVENAT, L. et al., Research in to Policy: A Brief History of Mitochondrial Donation, Stem Cells. Feb. 2016, n. 34, v. 2, p. 265-267. Mais informações em: <http://www.hfea.gov. uk/9935.html>. Acesso em: 22 jan. 2019.
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mesmo sentido, em 2009, o diretor do órgão equivalente ao Ministério Público britânico iniciou uma consulta pública antes de decidir as condições pelas quais não processaria pessoas que cometiam o crime de assistência ao suicídio. 33 Também para questões relacionadas à reprodução humana, a Human Fertilization and Embriology Act, de 1990, teve por base o Relatório de Warnock, de 1984, enquanto na Espanha, a Ley de Reproducción Humana Asistida trouxe, em suas várias versões, as recomendações da Comisión Palacios, inicialmente, e, posteriormente, da Comisión Nacional de Reproducción Humana Asistida
Essas experiências demonstram a vantagem da abertura do procedimento de criação do texto normativo por novos atores, com sensibilidade técnica necessária e mediante participação popular, uma forma de proceduralização do biodireito que permite a abertura da nomogênese. Uma experiência distinta que serve para comparar com a abertura é a opção italiana, que não possui nenhum canal técnico-científico estruturado para auxiliar o Parlamento. Por exemplo, a Lei 40/2004, sobre reprodução medicamente assistida, é um caso paradigmático sobre o problema de uma legislação que não considera informações científicas em seu processo de criação, resultando em um texto normativo com pouca efetividade em sua regulação. O Tribunal Constitucional italiano já interferiu diversas vezes na interpretação legislativa para corrigir suas falhas científicas e constitucionais. 34 Por exemplo, ao se determinar a imposição de transferir ao útero todos os embriões fecundados até o número de três, a lei ignorava a literatura médica sobre os riscos à gestante e à ges-
33 Confira: <http://www.cps.gov.uk/publications/prosecution/ assisted_suicide_policy.html>. Acesso em: 22 jan. 2019.
34 Cf. Dossier: come è cambiata la legge 40 (2004-2017). Biodiritto. Disponível em: <http://www.biodiritto.org/index. php/item/480-dossier-come-%C3%A8-cambiata-la-legge-40-2004-2014>. Acesso em: 22 jan. 2019.
tação de tal procedimento. Determinando isso, a própria lei estaria arriscando a saúde de seres humanos desnecessariamente – ou seja, não haveria direito fundamental algum que fosse tutelado e estivesse em conflito com o direito à saúde da gestante para que se preferisse arriscar a implantação de todos os embriões fecundados. Assim, a lei extrapolou sua extensão normativa, criando um suporte normativo contrariamente ao conhecimento científico desenvolvido, o que levou o Tribunal Constitucional a se manifestar: “exceto quando outros direitos ou deveres constitucionais estão envolvidos, não é o legislador, via de regra, que está apto à determinar direta e especificamente qual é a prática terapêutica aceitável, em qual extensão e em quais condições”. 35
Em outra ocasião, ao se proibir um tratamento que a literatura médica entendia como eficiente, o Tribunal Constitucional italiano entendeu que o Parlamento estaria infringindo o direito fundamental à saúde, previsto no art. 32 da Constituição italiana. 36 Na fundamentação, o Tribunal Constitucional manifestou que “é importante salientar que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem repetidamente enfatizado os limites colocados pelo conhecimento científico e experimental sobre a discrição legislativa, que estão em constante desenvolvimento e na qual o estado da arte médica é baseado: isso significa que, em questões relativas à prática clínica, a regra básica deve ser a autonomia e a responsabilidade do médico que, com o consentimento do paciente, faz as escolhas profissionais necessárias”. 37
Considerando os casos supracitados, sem esquecer a experiência do Tribunal de Justiça da União Eu -
35 Dec. 282/2002, que declarou a inconstitucionalidade da Lei regional de Marche, proibindo a eletroconvulsoterapia e a psicocirurgia.
36 Decisão 151/2009: declaração de inconstitucionalidade do artigo da lei sobre a FIV que impõe a transferência “em um implante único e contemporâneo” de todos os embriões criados no procedimento.
37 Dec. 151/2009.
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ropeia (TJUE) e da Corte Europeia de Direitos Humanos, que também analisaram diversas situações envolvendo desenvolvimento médico-científico e regulação jurídica, 38 pode-se afirmar que o conhecimento científico pode preencher o conteúdo normativo do direito à saúde, atribuindo um critério que possui legitimidade constitucional para melhor interpretar o suporte normativo. As ciências da vida, nesse sentido, necessitam ser consideradas no âmbito normativo para criação da norma.
No âmbito da jurisdição constitucional, parte dessa abertura ao conhecimento científico ou a atores morais pode ser realidade por meio da figura do amicus curiae, que, no direito brasileiro, está previsto pelo art. 7.º, § 2º, da Lei de Ação Direta de Inconstitucionalidade, e que a jurisprudência do STF corretamente estendeu à ADPF por analogia a essa possibilidade. 39 Embora Samual Krislov ensine que a figura do amicus curiae seja a de ajudar a Suprema Corte a identificar os precedentes que devam ser aplicados no caso,40 o fato é que cada entidade que nessa condição se manifesta procura apresentar suas razões, sua forma de vislumbrar a categorização jurídica ao caso analisado conforme seus interesses, tanto que, para ingressar na qualidade de amicus curiae é requisito a demonstração de interesse jurídico 41 e pertinência temática com a matéria discutida.42
38 Entre alguns, citamos os seguintes: Artegodan v. Commission (ECJ 2002); Hatton and Others v. The United Kingdom (ECtHR 2003). Ainda sobre FIV, a Corte Europeia de Direitos Humanos enfatizou a importância de se considerar a velocidade e dinâmica do desenvolvimento social e científico no Case of S.H. and Others v. Austria (57813/00; november 2011).
39 Cf. ADPF 165/DF, ADPF 155/PB, ADPF 132/RJ.
40 KRISLOV, Samuel. The amicus curiae brief: from friendship toadvocacy. The Yale Law Journal, v. 72, 1963, p. 695.
41 BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 595.
42 STF, ADI 3.931, rel. Min. Carmen Lucia, j. 06.08.2008, DJU 19.08.2008.
Embora não seja equiparado à parte ou à figura do terceiro em sua compreensão tradicional no processo, discute-se a ampliação de seus poderes processuais para possibilitar que melhor representem o grupo social cujas ideias estão representadas pelo amicus 43 E essa ideia de maior participação e de maiores atores figurando como amicus curiae vai ao encontro da ideia do caráter democrático do constitucionalismo contemporâneo pluralista da qual Peter Häberle fala,44 ampliando a possibilidade de ilustração do universo interpretativo da Corte ou do juiz. Veja-se, na experiência norte-americana, o caso Webster vs. Reproductive Health Services, que poderia revisar o entendimento jurídico estabelecido por Roe vs. Wade, em 1973, sobre a possibilidade do aborto, razão pela qual a Corte Suprema recebeu, além do memorial apresentado pelo Governo, 77 outros memoriais a respeito dos mais diversos aspectos da controvérsia por parte de 25 senadores, 115 deputados federais, da Associação Americana de Médicos e de outros grupos médicos, 281 historiadores, de 885 professores de direito e de um grande grupo de organizações contra o aborto.45
Essa virtude de pluralismo trazida pelo amicus curiae foi bem regulamentada pelo novo Código de Processo Civil, mas pesquisa recente demonstra que, embora haja no direito brasileiro um certo entusiasmo teórico e jurisprudencial por meio da relevante expansão da participação dos amici curiae entre os anos 1990 a 2015, a análise empírica demonstra que expressiva parcela das decisões do STF em processos de controle concentrado com participação de amici curiae não considera, de forma explícita, os ar-
43 STF, ADI 5.022/RO, rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática do relator, j. 16.10.2013.
44 HÄBERLE, Peter. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 47-48.
45 DWORKIN, Ronald. Freedom’s Law. 2. ed. Cambridge, 1996, p. 45.
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gumentos por eles aventados – 94% dos relatórios e 70% dos votos.46
Assim, para possibilitar a realização da abertura do biodireito no Brasil, no que diz respeito à proceduralização em situações de controle concentrado de constitucionalidade na Jurisdição Constitucional, é necessário revisitar o modo como institucionalmente se realizam audiências públicas e se dialogam com os amici curiae.
2.2. A atualização do biodireito
Se a abertura do biodireito considera a utilização de meios técnico-científicos estruturados para a criação de novos enunciados no suporte normativo que sejam adequados e atualizados com o conhecimento científico disponível e que não viole direitos fundamentais, estabelecendo ou vedando condutas que os realize de forma indevida, a atualização é uma característica que o biodireito necessita ter pela peculiaridade da dinâmica de desenvolvimento não linear, mas rápido, com consequências que mudam significativamente a forma de aplicação e compreensão de terapêuticas, necessitando, também, atualizar a consequência normativa que há sobre tais técnicas.
Para dar conta de tal característica, alguns sistemas jurídicos utilizam instrumentos normativos que possibilitam velocidade de edição e temporalidade, tal como leis emergenciais, com efeitos temporários ou cláusulas de caducidade, ou ainda legislação experimental. As cláusulas de caducidade (ou sunset clauses) e as legislações experimentais costumam ser relevantes ao biodireito. As sunset clauses são textos normativos que estabelecem quando aquela regulação acabará e em quais condições isso acontecerá, a menos que haja sólidas evidências de que deve
46 FERREIRA, Débora Costa; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Amicus Curiae em números: nem amigo da corte, nem amigo da parte? Revista de Direito Brasileira v. 16, n. 7, p. 169-185, São Paulo, jan.-abr./2017.
ser renovada por outro período fixo. Para isso, estabelece-se quem são os atores jurídicos legitimados a analisar e estabelecer o fim da vigência ou a sua renovação. Já a legislação experimental são, normalmente, atos administrativos que regulamentam situações que estão fora da previsão legal por um período fixo de tempo e para um grupo determinado ou determinável de cidadãos num território específico, estando tal ato administrativo sujeito a uma avaliação periódica ou final.47
Um exemplo dessa experiência é a Autorização para Processamento de Dados Genéticos definida pela Autoridade de Proteção de Dados italiana, em 2007, que estabeleceu a validade de um ano e, desde então, anualmente, a Autorização é aprovada sem mudanças substanciais. Em algum momento, quando se observar que o processamento de dados genéticos é nocivo ou tem sido utilizado para questões não médicas, tal autorização é facilmente cancelável, protegendo os direitos fundamentais dos cidadãos italianos.
Ao lado do modelo que prevê instrumentos que conectam a efetividade do texto normativo à passagem do tempo, outro modelo possível é o que convida regularmente agentes a tecer reconsiderações ao texto normativo adotado previamente, ou que estabelece mecanismos de alteração por manifestação de alguma parte legítima para apontar que o texto se encontra desatualizado.
É exemplo desse modelo o sistema francês adotado pela Lois de Bioéthique, que prevê a revisão a cada sete anos, embora sua primeira versão, introduzida por uma opinião do Conseil d’Etat, revisse a revisão a cada 5 anos. Também a lei canadense de reprodu -
47 RANCHORDÁS, S., Sunset clauses and experimental regulations: blessingor curse for legal certainty? Statute Law Rev., 2014, 1. Disponível em: <http://slr.oxfordjournals.org/content/early/2014/02/11/slr.hmu002.abstract>. Acesso em: 22 jan. 2019.
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ção humana assistida de 2004 tem a mesma lógica, prevendo a revisão parlamentar a cada 3 anos.
Naturalmente, há um problema de previsibilidade e segurança jurídica nessa questão, afinal, espera-se que o direito seja previsível e que as instituições respeitem regras de funcionamento e aplicação. Todavia, é preciso observar o contraste entre a certeza jurídica e a necessidade de atualização do ordenamento jurídico com o conhecimento de ponta das ciências da vida e biotecnologia, que não é algo exclusivo do biodireito. Esse mesmo conflito de estabilidade e atualidade é percebido em outras áreas do conhecimento jurídico, tanto que, em 1923, Roscoe Pound menciona sua famosa afirmação: “Law must be stable, and yet it cannot stand still”.48 A favor do uso desses instrumentos jurídicos no biodireito, tem-se a dizer que, diferentemente do uso típico em condições de guerra, terrorismo ou crises econômicas, que são situações excepcionais, emergenciais ou temporárias, no que tange a regulação das ciências da vida se está tratando de uma condição regular da natureza científica desse conhecimento e das biotecnologias dele derivadas, impossibilitando a regulação de um objeto em constante mutação que não seja igualmente mutável.49
Analisando os sistemas anteriormente citados como exemplos, podemos falar da existência de dois modelos de atualização possíveis ao biodireito. No primeiro modelo, a flexibilidade da regulação está ligada diretamente com a mudança do conhecimento científico e seus paradigmas, ou seja, a lei não faz mais sentido porque seu objeto não existe mais, pois fora substituído por novos objetos mais precisos e avançados. Nesse caso, o sistema estabelece quem
48 POUND, Roscoe. Interpretations of Legal History. Cambridge University Press, 1923, I.
49 RANCHORDÁS, S., Sunset clauses and experimental regulations: blessingor curse for legal certainty? Statute Law Rev., 2014, 1. Disponível em: <http://slr.oxfordjournals.org/content/early/2014/02/11/slr.hmu002.abstract>.
são os sujeitos legitimados a apontar a desatualização da regulação jurídica diante do novo estado científico e os mecanismos pelos quais se validarão a criação de uma nova regulação ou a atualização do estatuto normativo atual.
No segundo modelo, a flexibilidade da regulação está ligada a uma revisão prevista pelo próprio ordenamento em períodos iguais e consecutivos. Não se observa aqui a desatualização científica, mas sim a possibilidade de mudança da compreensão ética e moral daquilo que está regulamentado. Nesse modelo, a regulação jurídica não está desatualizada pela perda do objeto por mudança no conhecimento científico, mas sim pela mudança da sensibilidade social e política em relação ao objeto da regulação.
A utilização dos dois modelos permite ao ordenamento jurídico uma igual preocupação com o acompanhamento do desenvolvimento científico e com as mudanças axiológicas que a sociedade apresenta com o tempo, conectando o direito não apenas à ciência, mas também às mudanças culturais. O direito não apenas se encontraria atualizado, mas também aberto ao diálogo com os diferentes atores sociais, religiosos e ideológicos para possibilitar um acordo democrático que fundamenta o direito contemporâneo. Com isso, não se estará diante de uma situação de posições vencedoras e vencidas, que é a lógica normativa usual; antes, cria condições de manter viva a pluralidade de opiniões, com um debate politicamente responsável que possibilita, inclusive, negociações e novos resultados, de modo que a argumentação se torne mais relevante que o cômputo de votos.
No âmbito da decisão judicial, também é relevante a consideração do tempo diante da possibilidade de desatualização do conteúdo decisório com o conhecimento científico acerca do objeto discutido. Diversos exemplos de revisão da decisão judicial com o
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objetivo de mantê-la atualizada são possíveis de serem citados, entre eles o caso da International Steam Cell Corporation, em que a Corte Europeia de Justiça decidiu, em dezembro de 2014, pela possibilidade de patentear partenomas, ou seja, células derivadas do processo de partenogênese, ou divisão independente de fecundação. O precedente era o caso Brüstle v. Greenpeace, que, três anos antes, decidira pela expressa exclusão dessa possibilidade. O overruling foi possibilitado pelo surgimento de novos estudos que determinavam com maior precisão a impossibilidade do desenvolvimento como embrião humano se colocado em um útero humano. 50
Tais sentenças podem ser classificadas como manipulativas, que são decisões de inconstitucionalidade que interferem diretamente na atuação do legislador, pois não apenas declara que o texto normativo emitido pelo legislador é inconstitucional, como também, em seu lugar, estabelece um novo conteúdo normativo. Não se trata de um conteúdo debatido democraticamente em algum momento pelo Legislativo, mas sim algo originário do Judiciário, que tem valor normativo até a edição de um novo texto adequado constitucionalmente. 51 São essas sentenças que permitem a atualização do direito mediante a concretização da doutrina, superando a ideia de que o controle de constitucionalidade se dá apenas como juízo sobre o texto normativo, e não sobre toda a nor-
matividade. 52 Tal como ocorreu nos exemplos mencionados sobre o controle de constitucionalidade da lei italiana de reprodução humana assistida pelo Tribunal Constitucional italiano, as sentenças manipulativas rescrevem o trecho, incorporando, por meio do dispositivo da sentença de inconstitucionalidade, um novo conteúdo. 53 A intensão não é apenas retirar do suporte normativo o texto constitucionalmente incompatível, mas também responder institucionalmente à inércia do legislador.
50 “(…) According to current scientific knowledge, a human parthenote, due to the effect of the technique used to obtain it, is not as such capable of commencing the process of development which leads to a human being… The mere fact that a parthenogenetically activated human ovum commences a process of development is not sufficient for it to be regarded as a human embryo” (Case C-364/1, International Stem Cell Corporation v. Comptroller General of Patents, Designs and Trade Marks. Judgment of 18 December 2014. Conferir também: CaseC-34/10, Oliver Brüstle v. Greenpeace, Judgment of 18 October 2011.
51 ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro, cit., p. 563.
As sentenças manipulativas podem ser divididas em dois subgrupos, conforme a atuação que possuem: aditivas e substitutivas. 54 No primeiro grupo, encontram-se aquelas sentenças que declaram a ilegitimidade constitucional de um texto normativo por não conter todo o conteúdo esperado pelo texto constitucional. Ou seja, há uma omissão parcial ou total que torna insuficiente o ordenamento jurídico vigente diante da complexidade fática apresentada pela sociedade e, no caso do biodireito, pelo desenvolvimento científico da biotecnologia. Na Alemanha, as sentenças aditivas ainda podem ser utilizadas provisoriamente como forma de o Tribunal Constitucional regular transitoriamente alguma situação urgente, com o intuito de evitar graves prejuízos em prol do bem comum, conforme § 32, 1, da BVerfGG. No segundo grupo, estão aquelas sentenças que, declarando inconstitucional a disposição normativa aprovada pelo Legislativo, irão substituí-la com uma estrutura normativa completamente nova, criando conteúdo jurídico que não passou pelo crivo democrático. A esse grupo, temos o ativismo judicial.
52 CERRI, Augusto. Corso di giuztizia constituzionale. 5. ed. Milano: Giuffrè, 2008, p. 256-257.
53 PINARDI, Roberto . L’horror vacui nel giudizio sulle leggi: prassi e tecniche decisionali utilizzate dalla Corte Constituzionale allo scopo di ovviare all’inerzia del legislatore. Milano: Giuffrè, 2007, p. 106.
54 ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro, cit., p. 564.
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Para se valer de sentenças manipulativas, Georges Abboud estabelece dois requisitos autorizadores da possibilidade de interferência do Poder Judiciário na competência nomogênica de outro Poder. O primeiro deles é a antecedência de uma decisão de inconstitucionalidade, seja em razão do conteúdo omisso da lei, seja em razão do conteúdo expresso da lei. Não é possível emitir uma decisão manipulativa se ela não for inconstitucional, pois, do contrário, o equilíbrio democrático que deve haver entre as instituições estaria prejudicado e o ordenamento jurídico seria preenchido por conteúdos sem qualquer legitimidade democrática, tornando o novo texto estabelecido pelo Poder Judiciário inconstitucional. Assim, em nosso ordenamento, somente seria cabível ao STF emitir decisões manipulativas com eficácia erga omnes em processos de controle de constitucionalidade, nos termos do art. 102, I, a, da CF. Importante, nesse aspecto, enfatizar que primeiro é preciso declarar a inconstitucionalidade – sem isso, haveria uma quebra do pacto democrático. É a partir do estabelecimento de qual a natureza da infração ao texto constitucional que se pode determinar qual forma de adição ou substituição se poderá realizar.
Por conta disso, Georges aponta para a ilegitimidade da decisão que julgou o conflito de demarcação da área indígena Raposa Serra do Sol. 55 O caso tratava-se de uma ação popular ajuizada contra a União com o objetivo de declarar nulidade de Portaria Ministerial que demarcava a área indígena em questão. O STF, ao decidir, elencou no dispositivo decisório dezenove regras gerais que toda demarcação de área indígena deveria observar. 56 Ou seja, não se tratava de questionar a inconstitucionalidade da Portaria, mas sim de dizer que ela estava ferindo patrimônio cultural; além disso, não se declarou pre -
55 ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro, cit., p. 576.
56 STF, Pet 3388/RR, Pleno, m.v., rel. Min. Carlos Ayres Britto, j. 19.03.2009, DJU 24.09.2009.
viamente os fundamentos pelo qual referida portaria seria inconstitucional. Além de quebrar o requisito, o STF legislou indevidamente ao estabelecer efeitos erga omnes em critérios que criou sem qualquer parâmetro democrático, senão por autorrefência de justo e socialmente pacificador.
O segundo requisito que autoriza o uso de decisões manipulativas consiste na natureza do conteúdo dessa decisão, pois deve ser oriunda diretamente do texto constitucional. Trata-se, portanto, de uma vedação à discricionariedade do Poder Judiciário, pois é preciso algum limite no conteúdo criado, e o parâmetro para ele sempre será a Constituição. A doutrina italiana chama esse efeito de rime obbligate, ou seja, decorre da obrigatória aplicação do texto constitucional. 57 O Tribunal não inventa nada, mas limita-se a explicar um comando que estaria implicitamente contido no texto constitucional. 58
No Brasil, as decisões manipulativas foram introduzidas recentemente, mormente por votos formulados pelo Ministro Gilmar Mendes, conforme destaca Georges Abboud, 59 especialmente apontando para o caso da análise da constitucionalidade do art. 5º da Lei de Biossegurança, que dispunha sobre a pesquisa com células tronco embrionárias,60 bem como para a análise da constitucionalidade da fidelidade partidária e para a admissibilidade da aplicação das resoluções do TSE que disciplinam os procedimentos de justificação da desfiliação partidária e da perda do cargo eletivo.61
57 CERRI, Augusto. Corso di giustizia costituzionale. 5. ed. Milano: Giuffrè, 2008, p. 262.
58 BRANCO, Ricardo. O efeito aditivo da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Coimbra: Coimbra Ed., 2009, p. 205.
59 ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro, cit., p. 584.
60 STF, ADI 3510/DF, Pleno, m.v., rel. Min. Carlos Ayres Britto, j. 28 e 29.05.2008, DJU 04.06.2008.
61 STF, ADI 39999, Pleno, m.v., j. 12.11.2008, rel. Min. Joaquim Barbosa, DJU 16.04.2009.
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No que diz respeito ao primeiro caso, que é afim a este trabalho, o Ministro Gilmar Mendes entendeu que o art. 5º da Lei 11.105/2005 regulamentava as pesquisas com células-tronco embrionárias de forma deficiente e, por isso, seria inconstitucional por violar o princípio da proporcionalidade como proibição de proteção deficiente (Untermassverbot). Analisando o estado científico das pesquisas com células-tronco, o Ministro bem observou a existência de pesquisas avançadas e eficientes para tratamentos de algumas patologias de seres humanos com células-tronco adultas, de modo que o desenvolvimento de técnicas alternativas aos embriões humanos poderia afastar, ao menos em parte, a discussão sobre a utilização delas, uma vez que, usualmente, a legislação estrangeira opta por permitir a pesquisa com células-tronco embrionárias apenas quando outros meios científicos não se mostram eficientes para a finalidade ao qual se pesquisa o emprego de célula-tronco, como uma espécie de cláusula de subsidiariedade. Essa seria apenas uma das deficiências da lei, podendo-se citar também a necessidade de instituir, na opinião do Ministro, um Comitê Central de Ética devidamente regulamentado para tais finalidades. Diante dessa deficiência, não se poderia declarar totalmente inconstitucional, pois seria possível preservar o texto do dispositivo, desde que fosse interpretado conforme a Constituição por meio de uma sentença de perfil aditivo. Assim,
5) Além das muito conhecidas técnicas de interpretação conforme a Constituição, declaração de nulidade parcial sem redução de texto, ou da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade, aferição da “lei ainda constitucional” e do apelo ao legislador, são também muito utilizadas as técnicas de limitação ou restrição de efeitos da decisão, o que possibilita a declaração de inconstitucionalidade com efeitos pro
futuro a partir da decisão ou de outro momento que venha a ser determinado pelo tribunal. (...) Portanto, é possível antever que o STF acabe por se livrar do vetusto dogma do legislador negativo e se alie à mais progressiva linha jurisprudencial das decisões interpretativas com eficácia aditiva, já adotadas pelas principais Cortes Constitucionais europeias. A assunção de uma atuação criativa pelo Tribunal poderá ser determinante para a solução de antigos problemas relacionados à inconstitucionalidade por omissão, que muitas vezes causa entraves para a efetivação de direitos e garantias fundamentais assegurados pelo texto constitucional. (...) Seguindo a linha de raciocínio até aqui delineada, deve-se conferir ao art. 5º uma interpretação em conformidade com o princípio responsabilidade, tendo como parâmetro de aferição o princípio da proporcionalidade como proibição de proteção deficiente (Untermassverbot). Conforme analisado, a lei viola o princípio da proporcionalidade como proibição de proteção insuficiente ao deixar de instituir um órgão central para análise, aprovação e autorização das pesquisas e terapia com células-tronco originadas do embrião humano. O art. 5º da Lei 11.105/2005 deve ser interpretado no sentido de que a permissão da pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias, obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro, deve ser condicionada à prévia aprovação e autorização por Comitê (Órgão) Central de Ética e Pesquisa, vinculado ao Ministério da Saúde. Entendo, portanto, que essa interpretação com conteúdo aditivo pode atender ao princípio da proporcionalidade e, dessa forma, ao princípio responsabilidade. Assim, julgo improcedente a ação, para declarar a constitucionalidade do
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art. 5º, seus incisos e parágrafos, da Lei 11.105/2005, desde que seja interpretado no sentido de que a permissão da pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias, obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro, deve ser condicionada à prévia autorização e aprovação por Comitê (Órgão) Central de Ética e Pesquisa, vinculado ao Ministério da Saúde.62
O STF também revisitou sua decisão sobre o amianto. Quando primeiramente julgou a lei federal que permitia a utilização industrial do amianto do tipo crisotila (Lei 9.055/1955), o STF não declarou a lei inconstitucional, apenas posteriormente, quando se analisou a constitucionalidade da proibição de tal uso por meio de lei estadual,63 que o STF reconheceu o entendimento do Ministro Dias Toffoli de que a lei se tornou inconstitucional, pois não havia consenso científico sobre os malefícios do amianto, nem outro material que pudesse substituí-lo. O ministro falou em inconstitucionalidade progressiva, tornando esse caso um precedente válido para viabilizar a revisão de decisões já consolidadas por meio da coisa julgada, uma vez que o estado científico do conhecimento sobre a matéria tornou-se diferente, possibilitando compreender que a decisão anterior passou a ser inconstitucional.
2.3. A prudência do biodireito
Por fim, a complexidade do encontro do direito com as ciências da vida e suas biotecnologias não esteja somente acompanhada de abertura a novos sujeitos legitimados à nomogênese e também sua periódica revisão e atualização, mas também esteja atento às considerações dos casos particulares. O suporte fático, além de complexo, apresenta variabilidades que, por menores que sejam, implicam considera-
62 STF, ADI 3.510/DF, voto do Ministro Gilmar Mendes.
63 Cf. ADI 3.406/RJ e 3.470/RJ.
ções completamente diferentes. Veja-se por exemplo o caso de recusa de um tratamento por um paciente que seja testemunha de Jeová de outro que tenha fobia de agulhas, ou ainda de um paciente que sofra de alguma doença terminal.64
Nesse sentido é que o art. 14 da lei italiana sobre reprodução humana assistida foi declarada inconstitucional ao estabelecer a proibição de criação de número de embriões maiores que o estritamente necessário para uma única e simultânea implantação, e, em qualquer caso, nunca mais que três embriões, uma vez que as chances de sucesso do tratamento de fertilidade variam em relação não apenas às características dos embriões, como também das condições biológicas específicas da mulher que está passando pelo tratamento. Diante do risco da repetição de ciclos hiperestimulados hormonalmente para o implante de cada embrião (no caso de falha de cada implantação anteriormente feita), bem como o risco de gestação de múltiplos embriões tornou a lei incompatível com o direito fundamental à saúde previsto no art. 32 da Constituição italiana. A lei não deixava nenhum espaço para a compreensão científica da medicina determinar qual o melhor método ao caso específico a ser analisado. Ao se determinar o máximo de três embriões, desconsiderando qualquer peculiaridade específica, o dispositivo tornou-se inconstitucional por ferir direitos fundamentais.65
Do mesmo modo, o desrespeito à prudência do caso concreto é observado quando a mesma lei proíbe a utilização das técnicas de fertilização in vitro por casais que não sejam comprovadamente estéreis ou inférteis. A lei, neste caso, não previu a necessidade de uso das técnicas por casais que tenham HIV, ou ainda por casais que tenham qualquer questão genética que necessitam de tal procedimento
64 GOOLD, I.; HERRING, J. Great Debated in Medical Law and Ethics. Palgrave, 2014.
65 Dec. 151, 8 de maio de 2009.
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para fazer seleção de embriões para prevenção da doença, como é o caso dos portadores da Doença de Huntington. Tal dispositivo também foi considerado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional italiano, pois estabelecia um tratamento jurídico que não permitia qualquer sustentação à proibição de uso da técnica a casos que não fossem o de infertilidade ou esterilidade.66
Assim, ainda que o texto normativo preveja técnicas de abertura e atualização do ordenamento, é preciso que a decisão judicial seja o elemento de prudência ao considerar o âmbito normativo de aplicação do suporte normativo. Detalhes que possam parecer pequenos e insignificantes representam grandes consequências quando se analisa casos envolvendo o domínio da vida, biotecnologias e o direito.67
Alguns sistemas optam pelo uso combinado de instrumentos normativos que estabelecem alguma previsibilidade genérica, e definam princípios e cláusulas abertas, que dão maior flexibilidade na interpretação e na aplicação do direito, devendo ser preenchidos com características jurídicas extraídas dos elementos fáticos. Também é possível que o ordenamento traga definições para estabelecer um patamar mínimo comum de compreensão do que a lei entende por cada objeto que está sendo regulado, facilitando, inclusive, a atualização, aplicação e distinção ao caso concreto. No caso citado do International Stem Cell Corporation, a CJE optou por não definir o conceito exato de embrião humano, mas estabeleceu guias interpretativas para a compreensão em futuras tecnologias que venham a ser desenvolvidas com células humanas, a saber, o embrião hu -
mano seria o corpo que tem “capacidade inerente de se desenvolver e vir a se tornar um ser humano”.68
3. A RESPOSTA CORRETA EM QUESTÕES QUE ENVOLVAM A JUDICIALIZAÇÃO DA BIOÉTICA
Diante das características expostas acima, a resposta juridicamente correta que se pode esperar em situação de biotecnologia deve possuir as seguintes características:
3.1. No Poder Judiciário:
Que a decisão (1) respeite a Constituição; (2) estabeleça o estado do conhecimento científico sobre o objeto sobre o qual se decide; (3) possibilite a revisão pela defasagem da base de conhecimento sobre o qual se decidiu com um novo estágio de desenvolvimento do conhecimento científico acerca do objeto; e (4) permita que representantes da comunidade científica e da sociedade civil participem da construção da decisão para tanto ajustar a interpretação do complexo suporte fático quanto a interpretação e aplicação do suporte normativo dessa complexidade.
O respeito à Constituição se deve não apenas porque fora dela não há resposta jurídica que seja aceitável, mas também porque não compete ao Poder Judiciário inovar discricionária e arbitrariamente em qualquer tema, e é a Constituição um freio a qualquer tentativa nesse sentido. A decisão judicial, portanto, deve estabelecer a correlação de fundamento, demonstrando não apenas como a resposta dada encontra fundamento constitucional, mas atribuindo qual o sentido que é dado na interpretação constitucional para que outrem, ao analisar, possa igualmen -
66 Dec. 96, 14 de maio de 2015.
67 Cf. KATZ, J. Can principles survive in situations of critical care? MOSKOPAND, J.; KOPELMAN, C. L. (eds.), Ethics and Critical Care Medicine. Dordrecht, D. Reidel Publ. Comp., 1985, 41-67.
68 Case C-364/1, International Stem Cell Corporation v. Comptroller General of Patents, Designs and Trade Marks, Judgment of 18 December 2014, p. 38
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te chegar à mesma resposta ou questionar a sua adequação.
A sentença também necessita constar uma descrição do atual estado científico do conhecimento acerca do qual se está decidindo. Isso possibilita tanto demonstrar a adequação constitucional da sentença ao caso analisado, pois uma decisão pautada num conhecimento desatualizado seria errado e até mesmo inconstitucional, tanto quanto possibilitar a solicitação de revisão da decisão quando o conhecimento ao qual se embasa seja revisitado. Tal descrição necessita ser compartilhada entre os amici curiae científicos, que demonstrarão e comprovarão o atual estado científico da tecnologia, pois não cabe ao Judiciário estabelecer o estado da ciência –e tampouco possui competência técnica para tanto.
Demonstrado o conhecimento científico sobre o qual a decisão foi tomada, e considerando que há um progresso não linear do conhecimento, a decisão necessita estabelecer as condições de revisão pela defasagem da base de conhecimento sobre o qual se decidiu para atualizá-la com o novo estágio de desenvolvimento do conhecimento científico acerca do objeto decidido, mantendo-a adequada e útil. Tal revisão pode ser solicitada por algum dos amici curiae que dialogaram com a Corte ou o juiz no momento de construção da decisão, ou ainda terceiros legitimamente interessados que comprovem tal condição.
Como se pode ver, a figura da sociedade civil é especialmente relevante em situações como a analisada, motivo pelo qual a sentença deve permitir que representantes da comunidade científica e da sociedade civil participem da construção da decisão para tanto ajustar a interpretação do complexo suporte fático quanto a interpretação e aplicação do supor-
te normativo a tal complexidade. Acerca da questão científica, já expomos. Todavia, acerca da moralidade, é necessário compreender que o juiz se manifesta como um intérprete da atribuição de moralidade ao suporte fático, e não cabe a ele fazer tal coisa – não sem retroceder a um certo “Movimento pelo Direito Livre”, em especial a escola sociológica do direito. Antes, é melhor que dê voz aos intérpretes morais da sociedade para que se manifestem acerca do modo como interpretam o suporte fático, dando espaço inclusive para as partes discutirem e encontrarem pontos de confluência sobre o qual é possível permear o caminho de construção da decisão judicial.
3.2. No Poder Legislativo:
Que a lei (1) seja criada à partir de debates da comunidade científica e sociedade civil; (2) preveja a sua revisão temporal ou quando necessária; e (3) estabeleça quem são os legitimados a revisar a lei.
A necessidade de se utilizar fomento de atores sociais científicos se deve pela necessidade de evitar que a legislação surja defasada e inútil diante do estado do conhecimento científico em questão, implicando em sua revisão judicial ou mesmo inconstitucionalidade, como foi o caso da já citada Lei italiana acerca da fertilização in vitro. A presença de atores morais já acontece naturalmente no âmbito do Poder Legislativo, e sua participação na consolidação de uma legislação envolvendo biotecnologia seria natural tanto quanto em outros temas, respeitando-se os limites de uso do conhecimento científico para instrumentalização ideológica que implique em inconstitucionalidade.
Tanto quanto a decisão judicial, a lei acerca de biotecnologia está sujeita à desatualização por conta do desenvolvimento científico, de tal forma que ela própria necessita prever a revisão periódica de ofício
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ou estabelecer o mecanismo de questionamento da atualidade da lei por legitimados da sociedade civil ou do próprio legislativo.
Nisso implica a terceira característica, que é a delegação de competência de revisão para uma comissão prevista pela Lei com membros que representem não apenas o próprio Legislativo, mas também a comunidade científica, possibilitando tal revisão de forma técnica. A revisão da adequação legislativa pela moralidade não deve ocorrer no âmbito dessa comissão, pois isso faz parte do jogo democrático ao qual representa o Poder Legislativo, não podendo servir tal comissão de subterfúgio para aproveitar a revisão e modificar arbitrariamente, implicando em inconstitucionalidade da reforma. Também a legislação precisa prever a legitimidade para solicitar a revisão não periódica, decorrente de manifesto desenvolvimento científico que implique em obsolescência legislativa.
3.3. No Poder Executivo:
Por fim, no que diz respeito em decisões da administração pública, necessário que siga o que consta quanto ao Poder Judiciário, observando-se que, sendo normalmente a composição da administração pública mais técnica e científica que representativa da sociedade civil, necessita assegurar espaço para o debate público acerca das decisões técnicas, tal como é feito no Conselho Nacional de Saúde, Conselho Nacional de Ética em Pesquisa e outros. Quanto às regulações emitidas pelos órgãos da administração pública, eles naturalmente têm a característica de ágil mutabilidade para melhor se adequar ao desenvolvimento científico. Ainda assim, necessário prever mecanismos pelo qual a comunidade científica e a sociedade civil possam questionar a adequação científica de tal regulação diante do desenvolvimento do conhecimento sem a necessidade de judicializar a questão.
4. CONCLUSÃO
Os saltos do desenvolvimento biotecnológico e as mudanças sociais orgânicas ou relativas ao próprio conhecimento adquirido pelo desenvolvimento científico implicam em transformações que desafiam a capacidade do Direito em resolver problemas de forma técnica, não ideológica e com a melhor técnica jurídica disponível.
No presente texto, pudemos observar alguns mecanismos que possibilitam adequar as técnicas jurídicas disponíveis aos desafios citados. Revisitamos também a casuística em que foram aplicados.
Diante do hiato entre o desenvolvimento da sociedade e seu conhecimento científico e o desenvolvimento do próprio Direito, é preciso que se reconheça que o Biodireito potencialmente sempre está desatualizado, e as respostas jurídicas podem se tornar um problema ainda maior que os problemas que pretendem resolver, daí ser necessário que se avalie a inclusão de tais técnicas ao decidir.
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ANAMNESE DO SOFRIMENTO HUMANO – BASES DO APRENDIZADO DA COMUNICAÇÃO COMPASSIVA PARA ASSISTÊNCIA DE PESSOAS COM DOENÇAS QUE AMEAÇAM A CONTINUIDADE DA VIDA
Ana Claudia de Lima Quintana Arantes
Médica geriatra, escritora, professora universitária. Graduação e Residência médica em Geriatria pela FMUSP. Pós-graduação em Psicologia – Intervenções em Luto pelo Instituto 4 Estações de Psicologia. Especialização em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium e pela Universidade de Oxford. Fundadora e Presidente da Associação Casa do Cuidar. Sócia e conselheira da Casa Humana, assistência domiciliar de alta performance em Cuidados Paliativos.
Contato: atendimento@acqa.com.br / (11) 99343-1663
Resumo
As diversas situações analisadas pela Bioética representam um desafio ao Direito: como dar uma resposta que observe tanto a segurança jurídica quanto à expectativa social de justiça diante do rápido avanço do conhecimento científico e seus novos dilemas, bem como a apropriação e percepção pela sociedade?
Diante da insuficiência das técnicas jurídicas positivistas de decisão jurídica e nomogênese, o presente artigo estuda a aplicação de técnicas da proceduralização judicial em situações de análise bioética. 02
INTRODUÇÃO
Globalmente mais de 29 milhões (29.063.194) de pessoas morreram de doenças necessitando de cuidados paliativos. O número estimado de pessoas que precisam de. os cuidados paliativos no final da vida são de 20,4 milhões. A maior proporção, 94%, corresponde a adultos, dos quais 69% têm mais de 60 anos e 25 têm entre 15 e 59 anos. Apenas 6% de todas as pessoas que precisam de cuidados paliativos são crianças. (1,2). Os cuidados paliativos melhoram a qualidade de vida dos pacientes e de suas famílias que enfrentam problemas associados a doenças com risco de morte, sejam físicas, psicossociais ou espirituais e a cada ano, estima-se que 40 milhões de pessoas precisam de cuidados paliativos, 78% delas vivem em países de baixa e média renda. No mundo todo, apenas 14% das pessoas que precisam de cuidados paliativos o recebem atualmente. Regulamentos excessivamente restritivos para prescrição e acesso a morfina e outros medicamentos controlados essenciais negam acesso a alívio adequado da dor e cuidados paliativos de qualidade a essas pessoas. A necessidade de serem oferecidos durante todo o percurso de uma doença que a ameaça a vida é um dos propósitos dos Cuidados Paliativos descritos pela Organização Mundial de Saude (3) .
A necessidade global de cuidados paliativos continuará a crescer como resultado da crescente carga de doenças não transmissíveis e do envelhecimento da população. Os cuidados paliativos precoces reduzem internações desnecessárias e o uso de serviços de saúde. Segundo a Organização Mundial de Saúde, em 2017,
“Os cuidados paliativos são uma abordagem que melhora a qualidade de vida dos pacientes e de suas famílias que enfrentam o problema associado a doenças com ris-
co de vida, através da prevenção e alívio do sofrimento por meio da identificação precoce e avaliação e tratamento impecáveis da dor e de outros problemas físicos. , psicossocial e espiritual.” (2)
O Brasil tem um dos piores níveis de atendimento em cuidados paliativos do planeta: 1 serviço de Cuidados Paliativos para cada 13 milhões de brasileiros (3). Portanto, temos muito que aprender sobre como lidar com o sofrimento humano. Pensamos que o tratamento oferecido as doenças permite o alcance de suprimento de todas as necessidades de um ser humano que adoece, pois o raciocínio básico é o de reestabelecer a condição biológica de normalidade. Mas a pessoa que adoece e se permite experimentar a consciência de sua finitude, talvez próxima, traz a percepção de mundo extraordinário jamais experimentada antes. A pessoa que adoece se torna uma outra pessoa a medida que vai vivenciando seus tempos de fragilidade. Se puderem ter acesso ao alivio de seus sofrimentos inerentes ao processo de adoecimento, especialmente na doença oncológica, devem ter acesso a cuidados paliativos durante seu tratamento (5). A individualização do cuidado promove uma aproximação humana entre o medico e seu paciente. Eric Cassel descreve:
… alguns pacientes encontram seus médicos apenas no momento da morte ou na admissão no hospital com sua doença fatal, mas outros conhecem seus médicos há anos. Em tais relacionamentos de longo prazo, cada paciente não é apenas uma pessoa para o m édico, mas ele é uma pessoa para seus pacientes (4).
O atendimento médico dos pacientes requer compreensão aprofundada da fisiopatologia e do comportamento das doenças. Os médicos tamb ém devem conhecer e entender as pessoas doentes e saudáveis e estar cientes da multiplicidade de in -
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fluências em suas vidas e ações. As habilidades do médico incluem basicamente o m étodo clínico: histórico, exame físico, descrição, pensamento clínico, julgamento, diagnóstico, terap êutica e prognóstico (4).
Poderíamos então refletir sobre o quanto o cuidado paliativo pode nos trazer de volta ao propósito real da nossa prática como médicos. Talvez a melhor forma de apresentar o conceito correto de cuidados paliativos é explicar o que não são cuidados paliativos. Em nossa cultura, paliativo é um termo relacionado a cuidados inconsistentes, medidas provisórias e sem resultado efetivo. É muito comum verificar que os médicos pensam que cuidados paliativos são para pacientes moribundos aos quais não há mais “nada a fazer”. No entanto, pallium vem do latim e quer dizer manto, cobertor. Os cuidados paliativos dizem respeito aos cuidados integrais ao paciente, com prioridade no controle de sintomas de desconforto e sofrimento que podem acontecer durante o processo de diagnóstico e de tratamento de uma doença grave, como o câncer. Sendo assim, poderiam ser melhor definidos como cuidados de proteção – proteção contra o sofrimento causado pela doença ou por seu tratamento. Oferecem não apenas a possibilidade de suspensão de tratamentos fúteis, mas a realidade tangível da ampliação da assistência. (6)
Por muito tempo, e talvez ainda por mais tempo do que gostaríamos, ainda se pensa que cuidados paliativos acontecem apenas nos últimos momentos da vida, quando a frase “não há mais nada a fazer” assombra os piores pesadelos das pessoas que cuidam de um ser humano, especialmente quando estamos no tempo da fase final de doenç a grave e incurável. Quando se tem uma condição de doença que vai levar a pessoa à morte como um trajeto natural da evolução daquela doença, como um câncer
que não vai ter cura, uma demência que vai progredir, uma doenç a cardíaca, neurológica, pulmonar, renal ou até mesmo infecciosa, temos então momentos de vida com extremo sofrimento em todas as suas dimensões: física, emocional, familiar, social e espiritual (6). Tendo em vista o desafio de avaliação da percepção do sofrimento em todas estas dimensões, uma ferramenta que possa guiar o profissional de saude em busca desta informações pode contribuir para a melhora na qualidade da assistência que podemos oferecer a estes pacientes.
Na medicina convencional, o aprendizado mais frequente se direciona a ensinar que o mais importante é a doença que a pessoa tem. No cuidado paliativo no entanto, temos a oportunidade de nos abrir para aprender o mais valioso: o que importa é quem é a pessoa que tem a doença e o como ela vive esta experiência precisa ser ouvido atentamente, compassivamente. O paciente não deseja um profissional que não se importe com seu sofrimento, mas também não pode se submeter aos cuidados de alguém que pensa por ele e escolhe o que deseja em seu lugar. Na faculdade de medicina aprendi muito sobre as doenças, mas quase nada sobre o que as pessoas sentem quando estão doentes.
JUSTIFICATIVA
Quando pensamos das habilidades necessárias ao profissional de saúde que se propõe a cuidar de pessoas em terminalidade, entendemos que para este preparo estamos diante de algo muito valioso, pois precisamos de coragem e uma atenção organizada e planejada para ouvir suas necessidades a partir de seu próprio ponto de vista e então oferecer cuidados para essas pessoas com base no que avaliaram como importante e ao mesmo tempo entrar em contato com este sofrimento de maneira compassiva, mas que não nos destrua como seres humanos tão vulneráveis a finitude quanto nossos
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pacientes. A organização de um roteiro que permita o acesso a experiência do sofrimento pode ser uma ferramenta muito útil no percurso de identificação dos níveis de sofrimento, bem como as perspectivas de planejamento de intervenções sobre o alivio dos sofrimentos identificados. A necessidade de estabelecer um caminho de comunicação que permita o acesso a experiencia que o paciente vivência pode auxiliar de fato nos melhores resultados da abordagem e cuidados paliativos. Aqui então se justifica o aprendizado da compaixão como primeira ferramenta na elaboração deste processo de comunicação entre medico/profissional de saúde e seu paciente/família. Em 2018, Marchetti estuda uma escala de breve compaixão para o contexto brasileiro (9) e identifica uma definição da compaixão como uma sensibilidade individual para identificar o sofrimento do outro, seguida por um desejo de aliviá-lo (10). A permissão para morrer tornou-se um fardo. A literatura científica já foi capaz de demonstrar que os profissionais da saúde apresentam deficiências frente à identificação e ao manejo de sintomas em cuidados paliativos. Um estudo antigo, mas muito importante, publicado na revista JAMA, em 1995, chamado SUPPORT, demonstrou deficiências no tratamento da dor, na comunicação entre médicos e famílias, e no uso de terapias em mais de 10.000 pacientes em estado grave e hospitalizados (7). O cuidado paliativo então se revela não mais como sendo a prática automatizada de suspender tratamentos médicos, mas sim como a arte de ampliar o cuidado, para que essa pessoa que tem uma doença possa ter alívio desse sofrimento em todos os aspectos (6).
OBJETIVO
Elaborar um protocolo de avaliação do sofrimento humano à pessoas com doenças que ameaçam a continuidade da vida, a partir do aprendizado da comunicação compassiva.
Neste contexto sobre definição de compaixão encontramos informações valiosas sob o questionamento de Goetz:
O que é compaixão? A compaixão pode ser concebida como um estado de preocupação pela sofrimento ou necessidade não atendida de outro, aliada ao desejo de aliviar esse sofrimento (8). Uma experiência de compaixão definida dessa maneira envolve vários componentes distintos: 1. Consciência de um antecedente (isto é, sofrimento ou necessidade em outro indivíduo); 2. Sentir-se “comovido” isto é, ter uma experiência física subjetiva que geralmente envolve excitação involuntária de ramos do sistema nervoso autônomo; 3. Avaliações do próprio sentimento corporal, papel social e habilidades no contexto do sofrimento; 4 Julgamentos sobre a pessoa que está sofrendo e o contexto situacional e 5. Engajamento dos sistemas neurais que dirigem a afiliação social e o cuidado e motivam a ajuda (11).
Embora muitas pessoas acreditem que esse domínio da palavra compaixão esteja dentro do espaço religioso, não podemos aprisionar o espaço de sua abrangência apenas dentro de uma percepção unilateral como a religião. Então deveríamos nos envolver com um projeto de comportamento, de sentimento e ação a respeito do sofrimento de uma pessoa que está sob nossos cuidados. Uma vez que fica claro que a morte está próxima, o paciente é colocado em quase absoluto abandono, aguardando o desfecho final ao preço de intensos sofrimentos físico e existencial.
REVISÃO DE LITERATURA
Considerando que a expressão do comportamento compassivo pode ser considerado com algo natural do comportamento humano, Daniel Golleman esclarece alguns pontos relevantes da pesquisa em
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neurociência a respeito da compaixão: Praticamente desde o nascimento, quando um bebê vê ou ouve outro chorando, ele começ a a chorar como se tamb ém estivesse aflito. Mas raramente chora quando ouve uma gravação do próprio choro. Depois de cerca de catorze meses de vida, os beb ês não apenas choram ao ouvir outro chorar, mas tamb ém tentam aliviar de alguma forma o sofrimento do outro beb ê Quanto mais velha a criança vai ficando, menos chora e mais tenta ajudar. Embora as pessoas também possam ignorar alguém em apuros, essa insensível frieza parece sufocar um impulso mais primordial e automático de ajudar o semelhante em aflição. Quanto mais tomamos parte do sentimento dela, maior nossa vontade de ajudá-la. É provável que esse instinto de compaixão potencialmente ofereç a benefícios na adequação evolutiva — definida de forma apropriada em termos de “sucesso reprodutivo”, ou seja, quantos dos filhos vivem para ter sua própria prole. H á mais de um século, Charles Darwin propôs que a empatia, o prelúdio para a ação compassiva, é um poderoso auxí lio à sobrevivência na caixa de ferramentas da natureza. (12) A medicina clínica e os médicos estão cada vez mais perdidos nas relações com seus pacientes por causa dos problemas de uma prática médica cada vez mais centrada na doença e dominada pela ciência. O principal problema é, simplesmente, que quando as pessoas estão doentes, a doença afeta todas as partes, e se a atenção é prestada apenas ou mesmo principalmente à fisiopatologia, à doença ou ao corpo, então os outros aspectos e as particularidades da doença receberão atenção inadequada e o impacto da doença poderá continuar indefinidamente. Às vezes, parece que quando os m édicos abordam pacientes sintomáticos, eles procuram apenas uma doenç a. O interesse no paciente ou na doença do paciente, polidez, compaixão, funções burocráticas, por mais importantes que sejam, pode parecer para um observador da
medicina e sua prática estar fora de questão; encontrar uma doença é o que conta (13). Os médicos do hospital podem ter até mesmo gráficos e protocolos para informar o nome do paciente, idade, diagnóstico e talvez até o status da famí lia. Às vezes, existem notas legíveis do gráfico que ter outros fatos pessoais e familiares e uma história útil da doença e do hospitalização até o momento. Outros médicos podem ter que começar do zero. Isso é não necessariamente uma desvantagem. Descobrir o nome de um paciente e as informações pessoais básicas fatos fornece a oportunidade para o curador, em apenas alguns momentos, fazer uma impress ão como aberta, atenciosa, gentil, interessada e também focada. Nas raízes da prática da medicina encontramos alguma harmonia entre a ciência e o sacerdócio místico que envolvia os poderes do médico em avaliar e curar doenças. Apesar disso, a arte de prever o futuro ainda não se tornou suficientemente científica a ponto de especializar o médico no exercício de prognosticar. Esta avaliação busca reforços constantes em escalas, protocolos, sinais e sintomas que podem identificar o processo de morte em fases precoces, mas ainda envolve julgamentos fisiológicos e sociais bastante complexos. Mesmo que a morte seja um fenômeno biológico claramente identificado, as percepções do significado, tempo e circunstâncias em que o processo de morrer e a morte se sucedem ainda permanecem num conhecimento pouco estabelecido e ensinado. o do paciente e de sua família. Quanto ao sofrimento decorrente de uma doença que ameaça a vida, é recentemente, teria sido dito que o medicamento começa com o doença. Mesmo no final do século XX, foram as doenças e as ciências médicas que foram considerados os mais importantes - eram o assunto e o objeto da medicina. Agora, à medida que a profissão evolui, é o paciente que ocupa o centro do palco. Outros dizem que não é o paciente, mas a pessoa do paciente que conta. Freqüentemente, a
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medicina centrada no paciente e a medicina centrada na pessoa são mencionadas como se fossem as mesmas. A confusão entre pessoa e paciente é parcialmente uma resultado da tend ência geral em que as pessoas se vêem como indivíduos independentes e em parte uma consequência da bioética contemporânea em que os pacientes compartilham todas as exigências morais das pessoas e, portanto, são equivalentes. Começaremos com o que pode parecer até mesmo uma transgressão, pois entender o sofrimento dos pacientes com lágrimas, medo paralisante, negação de verdades inaceitáveis e falhas de coragem são coisas geralmente desejadas a serem mantidas longe da vida cotidiana. Pelo menos então, médicos como profissionais não são os mesmos que pacientes como pessoas. Sabemos o suficiente sobre a doença para perceber que ela muda as pessoas - muda seus desejos, preocupações e interesses para assuntos relacionados ou alterados pela doenç a. Doenç as graves crônicas como câncer, derrame, insuficiência cardíaca, artrite reumatóide, colite ulcerosa ou doenç a pulmonar crônica mudam a vida de os pacientes costumam irreparavelmente. Pacientes como esses são pessoas que podem ser autônomas e ainda diferentes de pessoas saudáveis. O ser de uma pessoa é sempre o ser de uma pessoa no mundo - e mais ainda - em um mundo particular. Mundos particulares são particulares porque cada uma é constituída de significados diferentes. Os pacientes que cuidamos terão que agir em resposta à sua doença, suas deficiências de função, nossas ações diagnósticas e terap êuticas e todas as coisas que acontecem no caminho de melhorar, se melhorarem. Isso significa conhecer um muito sobre os pacientes e o que as coisas significam para eles (14). O objetivo do clínico e da medicina clínica é restaurar o funcionamento da pessoa doente, para que metas e propósitos possam ser alcançados e o bem-estar restaurado. Para atingir esses objetivos, os mé -
dicos exigem todo o conhecimento dos pacientes que descrevi anteriormente aqui. Os profissionais de saúde devem aprender a desenvolver seu relacionamento com os pacientes, um relacionamento amoroso e especial (14). Os profissionais de saúde deveriam buscar recursos, informações necessárias, habilidades e competências para tornar o paciente um ser humano completo, mesmo diante da morte. O conhecimento flui em uma direção através da conexão compassiva, para que os médicos possam saber qual é o problema que o paciente sente ser o mais importante em sua vida e na outra direção para alcançar os objetivos terap êuticos do controle de sua doença. E por este caminho, no cuidado terap êutico o vínculo permite efetivamente ajustar ou moldar as ações médicas técnicas dos médicos ao paciente. Esse tipo de conhecimento, através da compaixão, distingue os cuidadores profissionais daqueles que apenas se importam. Ele diferencia os cuidados médicos com base em boas intenções ou empatia sem escrúpulos e aquela fundamentada no amor dos médicos pelos pacientes. (13). A elaboração de um plano de cuidados deve ser fundamentada nas queixas do paciente, caracterizando-se detalhadamente cada sintoma, com descrição de intensidade, duração, fatores de melhora e fatores de piora, sintomas associados e impacto sobre a funcionalidade. (15,16). E sendo a identificação da experiência do sofrimento descrito pelo paciente, a partir de uma conexão compassiva com os profissionais de saúde envolvidos nestes cuidados, o conteúdo mais importante a ser avaliado antes do planejamento de intervenções que propiciem a melhor experiência de dignidade possível na vida da pessoa que vai morrer.
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DIGNIDADE HUMANA E OS GRUPOS VULNERÁVEIS
O Brasil, ao longo de suas Constituições, vivenciou uma série de transformações que compreendem a evolução dos mais variados direitos. No tocante aos direitos e garantias fundamentais não foi diferente. Estes, embora formalmente contemplados nas Constituições que outrora vigoraram, figuram como marco da promulgação da Constituição Federal de 1988, ante a consagração do seu princípio norteador, a dignidade da pessoa humana.
O Estado Democrático Social de Direito, impreterivelmente, se agrega à institucionalização dos direitos e garantias fundamentais, sendo, pois, sua condição de subsistência sendo que os direitos humanos, ora positivados, são destacados desde o preâmbulo da Constituição Federal e na sequência, despejados em direitos e garantias fundamentais, foram elencados no Título II da Constituição, contemplando suas diversas dimensões, o que demonstra a Constituição Federal estar em consonância com os principais tratados internacionais sobre os direitos humanos, bem como com a Declaração de 1948. Além do extenso rol de direitos e garantias individuais contidos em seu art. 5º, os direitos fundamentais encontram-se espalhados ou difundidos no texto constitucional.
Os direitos humanos de grupos vulneráveis, submissos à opressão de segmentos sociais, foram e estão sendo conquistados por meio muitas de lutas. Tanto o Brasil quanto outros países promovem e protegem a dignidade da pessoa humana como um dos principais pilares de seu ordenamento jurídico ao defenderem o princípio da igualdade. Acreditamos que, através dele, diminuem as desigualdades sociais e melhoramos o desenvolvimento pleno do ser humano.
Se somos iguais todos temos direito à liberdade com autonomia de decisões para que trilharmos nossas suas vidas da forma que bem entendemos, em busca da nossa felicidade. E, nesse contexto, a vida das pessoas dos grupos minoritários e vulneráveis deve ser tratada pela sociedade, sem preconceito e com a mesma importância dos demais. O Ministro Ayres Britto. Brasil (2017) afirmou, no seu Voto como Relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277. 2011, que:
“...preconceito é um conceito prévio; uma formulação conceitual antecipada ou engendrada pela mente humana fechada em si mesma e por isso carente de apoio na realidade. Logo, juízo de valor não autorizado pela realidade, mas imposto a ela. E imposto a ela, realidade, a ferro e fogo de uma mente voluntarista, ou sectária, ou supersticiosa, ou obscurantista, ou industriada, quando não voluntarista, sectária, supersticiosa, obscurantista e industriada ao mesmo tempo. Espécie de trave no olho da razão e até do sentimento, mas coletivizada o bastante para se fazer de traço cultural de toda uma gente ou população geograficamente situada. O que a torna ainda mais perigosa para a harmonia social e a verdade objetiva das coisas. Donde René Descartes ao emitir a célebre e corajosa proposição de que “Não me impressiona o argumento de autoridade, mas, sim, a autoridade do argumento”, numa época tão marcada pelo dogma da infalibilidade papal e da fórmula absolutista de que “O rei não pode errar” (The king can do no wrong”). Reverência ao valor da verdade que também se lê nestes conhecidos versos de Fernando Pessoa, três séculos depois da proclamação cartesiana: “O universo não é uma ideia minha. A ideia que eu tenho do universo é que é uma ideia minha”.
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Assim, excluída qualquer possibilidade de preconceito, devemos sempre defender a dignidade do indivíduo pois ela o protege e lhe confere outros direitos. Ao ser desrespeitada, ele deixa de ser pessoa humana e sofre violências. A dignidade da pessoa humana garante-lhe “a proteção de sua integridade física, psíquica e moral pelo fato de possuir a condição humana, podendo, no entanto, ser-lhe extirpada quando da prática de atos que violem sua condição de sujeito” (CARDIN; ROCHA, 2014, p. 157).
A dignidade da pessoa deve ser defendida com toda intensidade e humanidade. É a categoria do afeto, como pré-condição do pensamento, o que levou Max Scheler a também ajuizar que “O ser humano, antes de um ser pensante ou volitivo, é um ser amante” com justiça social.
Justiça Social, segundo Young (1990), deve eliminar a dominação e opressão. Algumas teorias a restringe à distribuição de benefícios e encargos entre os membros da sociedade. Para ela, embora as questões distributivas sejam importantes para uma concepção satisfatória de justiça, é um erro reduzir a justiça social apenas à distribuição porque a restringe à alocação de bens materiais como como coisas, recursos, renda e riqueza, ou na distribuição de cargos, especialmente empregos.
Justiça social vai além: respeita e trata a todos, e também os grupos vulneráveis, com igualdade e, portanto, dignidade.
4. INTERSECCIONALIDADE
Collins (2019) diz que a interseccionalidade é um método de investigação e crítica dos direitos humanos que foi implantada nos níveis mais altos da diplomacia internacional a partir do WCAR de 2001 pois a ONU (entre outras, organizações de direitos humanos e justiça social) o incorporou a ponto do título da
conferência, “Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Relacionada” que enfatizou a “intolerância relacionada” ao ligar o racismo às suas interseções com a pobreza, discriminação de gênero, imigração e homofobia. Após décadas de luta para obter o reconhecimento dos impactos de gênero do racismo, xenofobia e violência, esta reunião foi a primeira conferência patrocinada pela ONU contra racismo que incluiu “intolerância relacionada”.
A interseccionalidade está alinhada com as prescrições das políticas da ONU para direitos iguais e anti-discriminação e já aparece nos ideais da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 que aduz que “ ... todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos...,e a todos os direitos e liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, como raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou outra, origem nacional ou social, propriedade, nascimento ou outro status”.
Assim, com esse método os movimentos sociais abordam os problemas associados à desigualdade social global e reconhecem as variações de relações de poder, de raça, casse, gênero, sexualidade, religião, idade, capacidade e categorias e cidadania.
O Artigo 119 do Fórum de ONGs 2001 reconhece que:
“... em cada pessoa, seja homem ou mulher, existe em uma estrutura de identidades múltiplas - com fatores como raça, classe, etnia, religião, orientação sexual, identidade do gênero, idade, deficiência, cidadania, identidade nacional, contexto geopolítico, saúde, incluindo HIV / AIDS, e qualquer outro status- são todos determinantes nas experiências de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerâncias relacionadas. Uma abordagem interseccional destaca a maneira em
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que há é uma situação de interação de discriminação como resultado de múltiplas identidades”
A interseccionalidade basicamente significa levar em conta a forma como diferentes sistemas de opressão - raça, classe, deficiência, orientação sexual – se relacionam. E um novo modelo institucional para medir as desigualdades múltiplas ou complexas geradas pelas diferenças de gênero, raça, deficiência, sexual orientação, religião ou crença, idade. A abordagem considerar as maneiras pelas quais outras áreas podem moldar suas preocupações distintas. A interseccionalidade empurra os limites da crítica social das desigualdades para examinar as conexões entre raça, classe e gênero.
A visibilidade crescente e muitas vezes contestada da interseccionalidade nas redes sociais oferece oportunidades imponentes para examinar as intersecções de classe, raça, sexualidade, gênero e idade em ação.
serve como limite e fundamento do domínio político do Estado.
Assim, eles representam valores essenciais, que são explicitamente ou implicitamente retratados nas Constituições ou nos tratados internacionais.
Um dos grupos vulneráveis dentre vários outros (tais como o das mulheres, os LGBTQUIA+, o dos negros), o das pessoas com deficiência, experimentou uma evolução do conceito a partir da construção deste em razão da absorção e afirmação dos direitos desses indivíduos enquanto parte da sociedade e necessitados de serem considerados ou inseridos nela.
5. DOS DIREITOS HUMANOS COMO
PARADIGMA VALORATIVO DO RECONHECIMENTO DE INDIVÍDUOS DE GRUPOS VULNERÁVEIS
COMO SUJEITOS DE DIREITO
Como já se abordou acima, os direitos humanos consistem em um conjunto de direitos considerado indispensável para uma vida humana pautada na liberdade, igualdade e dignidade. São os direitos essenciais e indispensáveis à vida digna.
Esses direitos s ão inerentes à condição humana, a qual se consubstancia na dignidade humana. Esta significa o núcleo valorativo do direito constitucional contemporâneo: o ser humano é indispens ável e
Nessa perspectiva, observa-se que o conceito de pessoa com deficiência começa a ser construído após as grandes guerras mundiais, ocorridas nas décadas de 1910 e 1930. Os Estados envolvidos nesses conflitos bélicos buscaram formas de proteção aos indivíduos vitimados por atrocidades cometidas durante o curso de tais eventos, notadamente aqueles que se tornaram inválidos fisicamente, com amputação de membros ou perda de algum dos sentidos (visão ou audição) e, ainda, aqueles que sofreram com pesquisas científicas, sem nenhuma observância de regras morais ou éticas.
A Sociedade das Nações (1919) e, logo após, a Organização das Nações Unidas (1948), criaram normativas internacionais (entendimentos, tratados, convenções etc.) que determinariam o desenvolvimento de políticas públicas para prevenção e tutela dos direitos de pessoas então consideradas inválidas. A Organização das Nações Unidas (1975) estabeleceu o conceito de que
1. A expressão “pessoa deficiente” designa qualquer pessoa incapaz de satisfazer por si própria, no todo ou em parte, as necessidades de uma vida normal individual e/ou social, em resultado de deficiência, congê -
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nita ou não, nas suas faculdades físicas ou mentais.
Esse conceito, considerado já um avanço à época, denotava muito do entendimento de que as condições das próprias deficiências estavam vinculadas tão somente ao físico, na sua acepção de movimento, motricidade, ou às faculdades mentais. Contudo, esse conceito não abarcava pessoas com outros tipos de deficiências, que igualmente possuíam dificuldade de satisfazerem suas necessidades de vida diária. Entretanto, abarcou a ideia dessas deficiências serem congênitas ou adquiridas, afastando-se aquele entendimento de que somente aquelas pessoas com deficiências adquiridas poderiam submeter-se à tutela estatal ou à sua assistência.
A evolução do conceito perpassou pela amplificação da análise da realidade e das dificuldades que pessoas não consideradas normais – estas consideradas como sendo aquelas sem qualquer tipo de deficiência –, passaram a ter para buscarem aquele ideal legal de “vida normal individual e/ou social.” Um dado importante a ser mencionado é que, nos Estados Unidos da América (1990), a Lei 101-336, de 26 de julho de 1990, estabeleceu o conceito de disability como sendo “uma redução física ou mental que limita substancialmente uma ou mais de suas principais atividades diárias” Consigna-se aqui a ideia de somente serem consideradas, para fins de políticas públicas de inclusão ao mercado de trabalho, pessoas que possuam somente reduções físicas ou mentais, limitadoras de suas atividades diárias de maneira substancial.
A União Européia, ainda preocupada com consequências de atrocidades cometidas durante as grandes guerras, além de assolada com problemas humanitários recorrentes até os dias atuais, estabeleceu uma interpretação convencional, através da análise da Convenção das Nações Unidas sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência de 2007 (BRASIL, 2009), considerando que a deficiência
[...] deve ser entendida no sentido de que visa uma limitação, que resulta, designadamente, de incapacidades físicas, mentais ou psíquicas, cuja interação com diferentes barreiras pode impedir a participação plena e efetiva da pessoa em questão na vida profissional em condições de igualdade com os outros trabalhadores”, considerando que estas incapacidades, de acordo com a definição do art. 1.º, n.º 2, da Convenção, devem ser “duradouras”.
Destarte, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, de 30 de março de 2007 (BRASIL, 2009), apresenta o seguinte conceito
Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.
Houve, portanto, uma ampliação do conceito em questão no sentido de abarcar a ideia da sensorialidade (por exemplo, as pessoas com deficiência visual ou auditiva). Mas, ainda, não se conseguiu absorver nos conceitos até aqui colacionados, um nível de abrangência capaz de reunir todas as pessoas com quaisquer tipos de deficiências de modo que assim possam ser consideradas como pessoa com deficiência.
Neste sentido, é possível afirmar que a consolidação de um tratado ou de uma convenção internacional tem sentido na perspectiva de propugnar-se aos Estados participantes um desafio de adoção de políticas públicas locais e internacionais com a finalidade de possibilitar às pessoas com deficiência o pleno gozo de todos os direitos humanos e liberdades
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fundamentais, observando-se a dignidade de sobrevivência e corrigindo-se as profundas desvantagens sociais, promovendo-se a sua participação na vida econômica, social e cultural, em igualdades de condições. Neste aspecto, a Lei n.º 13.146, de 06 de julho de 2015, no Brasil (2015), estabeleceu o conceito de pessoa com deficiência como sendo aquela que
Art. 2º [...] tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
A mencionada legislação brasileira veio regulamentar a Convenção das Nações Unidas sobre Direito das Pessoas com Deficiência de 2007 (BRASIL, 2009), internalizada no ordenamento jurídico com status de Emenda Constitucional, na sistemática do § 3.º, do art. 5.º, da Constituição Federal (BRASIL, 1998), à qual Luiz Alberto David Araújo apresenta argumento de que
[...] o fundamento da lei é a Convenção, que é norma de equivalência à Constituição. Os novos avanços encontraram na lei o seu instrumental secundário. A lei apenas cumpriu o dever de o Estado Brasileiro implementar a defesa e proteção desse grupo. Ela apenas detalhou, esmiuçou aquilo com o que nosso país, orgulhosamente, havia se comprometido na esfera internacional. (apud SILVA, 2015, p. 3)
Neste aspecto, portanto, a República Federativa do Brasil, através do texto do art. 2.º, da Lei n.º 13.146/2015 (BRASIL, 2015), amplia ainda mais o conceito, especificamente com o disposto em seu § 1.º, que estabelece:
§ 1º A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará:
I - os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;
II - os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;
III - a limitação no desempenho de atividades; e
IV - a restrição de participação.
Assim, o conceito jurídico de pessoa com deficiência estabelecido no Brasil é colmatado (pois ainda com deficiência em sua própria conceituação, não obstante a amplitude de texto) pela análise biopsicossocial do indivíduo, considerando-o não só do ponto de vista médico (se há algum impedimento físico–motor, mental, intelectual ou sensorial), mas através de outras especialidades que determinarão quais situações podem caracterizar a necessidade de uma pessoa frente às barreiras impostas pela sociedade para consecução de todas as suas atividades diárias, posto ser um indivíduo (que, muitas vezes, não possui nenhum dos tipos expressos no “caput” do artigo 2.º, da Lei n.º 13/146/2015) que se sente como uma pessoa com deficiência.
Esse grupo de pessoas, como será visto abaixo, não possui algum tipo de deficiência física-motora (possuem todos os membros), não possuem nenhum tipo de deficiência mental (ressalvadas as anomalias congênitas associadas), não possuem nenhum tipo de deficiência intelectual nem aquelas sensoriais. Daí a necessidade de se amplificar o conceito, para que não se caia em interpretações literais ou incompatíveis com a realidade.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no último censo, realizado em 2010, demonstrou que 45,6 milhões de brasileiros declararam ter
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pelo menos um tipo de deficiência. Entretanto, somente foram perguntadas se essas deficiências eram dos tipos: visual ou auditiva (sensoriais), motora (física) ou mental/intelectual. (LOSCHI, 2012)
Esta pesquisa demonstra a necessidade de estabelecerem-se políticas públicas de acessibilidade e de inclusão, tanto quanto um padrão jurídico e social de reconhecimento de pessoas portadoras de deficiências que demonstre ser satisfatoriamente aberto, concreto e abrangente, de modo a englobar indivíduos que declaram de si para si serem portadores de algum tipo de deficiência, esclarecendo, a partir de seus próprios sentimentos, vivências e trajetórias de vida, seus projetos pessoais e reais necessidades ante outros indivíduos, a lei e a sociedade como um todo. Como será visto, para determinadas situações da vida diária, a pessoa com deficiência (seja ela de que tipo for), não necessita nem de acessibilidade, nem de inclusão. Ela precisa de um tratamento igualitário, sem necessidade de facilitação, mas somente de aceitação.
O direito a inclusão da pessoa com deficiência é estabelecido como status de direito fundamental, notadamente por ter sido inserido no ordenamento jurídico interno através da regra estabelecida na sistemática do § 3.º, do art. 5.º, da CF1988 (BRASIL, 1988).
Essa inclusão, na verdade, busca equiparar as pessoas com deficiência às pessoas sem quaisquer impedimentos de acesso as oportunidades e desenvolvimento pessoal, através do princípio da igualdade, na perspectiva da igualdade substancial, pois
O implemento efetivo da igualdade só se dará se, no tratamento legal, bem como por instituições públicas ou privadas ou mesmo entre indivíduos privados, pessoas que possam ser enquadradas como diferentes forem tratadas de modo desigual
o suficiente para que as diferenças sejam suprimidas e possa ser compreendido que o resultado é a igualdade. (OLIVEIRA, OLIVEIRA, 2019, p. 22)
NISHIYAMA e LAZARI (2020) observam que
o texto constitucional prevê sobre a ‘integração’ daquelas pessoas. Os significados de integração e inclusão são diferentes [...]. [...], na integração as pessoas com deficiência são incorporadas na sociedade desde que elas consigam se adaptar por meios próprios e na inclusão elas fazem parte da sociedade, sem que haja divisão em grupos. Na inclusão as barreiras atitudinais são suplantadas, pois há uma conscientização de que todos fazem parte de um grupo único, pessoas com deficiência ou não, e com igualdade nos direitos e responsabilidades. Já na integração, a sociedade acolhe as pessoas com deficiência sem que haja uma mudança para recebê-las.
Assim, o conceito do art. 2.º, do Estatuto Brasileiro da Pessoa com Deficiência (BRASIL, 2015), não pode ser interpretado de forma estanque. Da mesma forma, não pode ser tido unilateralmente como última ratio em matéria de determinação de políticas públicas, pois, considerar-se somente a acessibilidade e a inclusão como formas de erradicação da desigualdade, é fazer, ao contrário, o próprio objetivo da lei. (RALA; CAMPOS, 2018)
6. DA EDUCAÇÃO EM DIREITO COMO DIREITO FUNDAMENTAL E PARADIGMA PARA MUDANÇA DA CULTURA DE DISCRIMINAÇÃO
A Organização Mundial da Saúde conceitua saúde como sendo um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade (OMS,
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1946). A Constituição Federal da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988 (CF1988), preceituou, em seu artigo 196, o direito à saúde como direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1988).
A saúde no Brasil é direito fundamental do indivíduo (BRASIL, 1988, art. 6.º), iluminado sob o prisma da dignidade da pessoa humana, devendo ser garantida pelo Estado, no sentido de ser franqueado o acesso universal e igualitário as ações e serviços para sua promoção, prevenção e recuperação.
À essas ações, sugere-se a consideração da educação em direitos como instrumento necessário para a garantia do direito à saúde integral ao indivíduo, destinada a estabelecer o equilíbrio em seu bem estar físico, mental e social.
A educação é direito fundamental social (BRASIL, 1988, art. 6.º) e visa o pleno desenvolvimento da pessoa, para prepará-la ao exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, conforme dispõe o artigo 205, da Carta Fundamental (BRASIL, 1988).
Educação em direitos, concordando com esses objetivos constitucionais, em atendimento tanto ao princípio da dignidade da pessoa humana (BRASIL, 1988, art. 1.º, inciso III) como a um dos objetivos fundamentais da República, que é promover o bem de todos, sem quaisquer modalidades de preconceitos ou outras formas de discriminação (BRASIL, 1988, art. 3.º, inciso IV), possui natureza permanente, visando o estabelecimento de uma cultura, a ser compartilhada e estar inserida no processo educacional, para respeito aos direitos e liberdades fundamentais do ser humano, desenvolvimento de sua personali -
dade e senso de dignidade, e promoção a participação de todos em uma sociedade livre (ONU, 1997).
BENEVIDES (2000) sugere que a educação em direitos surge a partir de três pontos essenciais: uma educação permanente, continuada e global, que se volte para uma mudança social, inculcando valores e necessidade de compartilhamento dos conhecimentos entre educadores e educandos.
A educação em direitos deve focar na conscientização acerca da realidade da condição da pessoa com deficiência, do seu processo de reabilitação, identificando a realidade de sua condição após esse processo e demonstrando a extensão de suas sequelas e seus comprometimentos tanto físicos como psicológicos, visando, com isso, preparar o indivíduo em reabilitação (e sua família) a modificar atitudes e valores, e mudar as situações de conflito e de privações de direitos, facilitando então o seu reconhecimento voluntário como pessoa com deficiência.
Conceitua-se burden of care como sendo os problemas físicos, emocionais, sociais ou financeiros relacionados ao processo de tratamento de uma determinada doença. A redução dessas situações correlatas que surgem durante o processo de reabilitação ou habilitação da pessoa com deficiência, tem relação direta com a busca do implemento de qualidade de vida a esse indivíduo, em atendimento a garantia do seu direito à saúde pleno.
O direito fundamental à saúde da pessoa com deficiência, resulta de um dado direito fundamental de onde se reivindica e legitima a universal necessidade de se obter e usufruir de bens e serviços para o seu bem-estar. (ZULLO, 2013, p. 134)
Como direito humano, o direito à saúde é universal, destinado a todos, como instrumento de promoção
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do equilíbrio da saúde mental, física e social do indivíduo e deste com a sociedade e o meio ambiente.
A educação em direitos é instrumento de disseminação do conceito de direitos humanos e, por conseguinte, do direito fundamental à saúde. O inciso VIII do parágrafo 4.º do art. 18 da Lei Brasileira de Inclusão (BRASIL, 2015), estabelece como política pública o direito da pessoa com deficiência e de sua família de receberem informações adequadas e acessíveis sobre sua condição de saúde. Ainda, nessa mesma perspectiva, o parágrafo 3.º do art. 18, da mencionada legislação, observa que aos profissionais que prestam assistência à pessoa com deficiência, especialmente em serviços de habilitação e de reabilitação, deve ser garantida capacitação inicial e continuada.
Essa capacitação é diretriz do sistema de saúde brasileiro, com o objetivo de prover recursos humanos capacitados, com profissionais atualizados e qualificados, tanto na rede de atenção básica, quanto nos serviços de atenção especializada e de reabilitação (física, auditiva, visual e intelectual), potencializando o atendimento às pessoas com deficiência. (BARCELLOS, 2019, p. 76)
Nessa senda de análise, através do reconhecimento do princípio da autonomia, a pessoa com deficiência tem direito fundamental à educação em direitos, a partir da própria equipe de profissionais de saúde que atuam direta ou indiretamente em seu processo de habilitação ou reabilitação, como forma de afastar ou reduzir o burden of care.
A redução ou o afastamento de barreiras atitudinais e/ou comportamentais é facilitada pelo treinamento dos profissionais de saúde, capacitando-os inclusive a respeito dos direitos das pessoas com deficiência, possibilitando a elas reconhecerem-se ou não como
tal, para poderem exigir ou usufruir desses direitos, de forma autônoma e consciente.
O direito à saúde deve ser garantido integralmente a todos, como dever do Estado. Entretanto, à essa integralidade, os agentes de saúde devem considerar o tratamento igualitário e integral, com a oitiva das necessidades do indivíduo, principalmente aquele com deficiência, associado ao tratamento respeitoso, com dignidade, qualidade e acolhimento, para que a pessoa com deficiência possa ser incluída em seu contexto social, delineando e atendendo suas demandas e necessidades, através da educação em direitos e o reconhecimento da autonomia do indivíduo, afastadas e/ou reduzidas as barreiras que eventualmente as impossibilitam de participação integral na sociedade.
CONCLUSÃO
A interseccionalidade se expandiu além da estrutura de direitos civis para uma estrutura de direitos humanos dentro de um contexto transnacional. O envolvimento da interseccionalidade e dos direitos humanos têm implicações potenciais para estimular a verificação de violações dos direitos humanos. O método avaliar as discriminações decorrentes de fatores sociais que as influenciam de maneira global através de diferentes variáveis como gênero, raça, cor, sexo, religião e etnia.
Nos grupos vulneráveis as escolhas pessoais não são respeitadas e suas autonomias são afetadas pelo preconceito e pela discriminação que sofrem mesmo com identidades invisíveis.
Conclui-se que a análise com a interseccionalidade é a melhor maneira para medir as possíveis diferenças e discriminações de grupos minoritários e/ou vulneráveis.
Os esforços para desenvolver programas de direitos humanos devem envolver questões de intersec -
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cionalidade como forma de investigação crítica das desigualdades de minorias e grupos excluídos. Seria um grande erro olhar apenas para locais formais, como direitos humanos ou locais de políticas públicas semelhantes, ou revistas acadêmicas e conferências de ensino superior, para avaliar o impacto real e potencial da utilização da interseccionalidade. A vitalidade digital da interseccionalidade fornece ampla evidência de seu significativo apelo e utilidade para uma nova geração de estudiosos de múltiplas marginalizações sociais.
Aplicação de critérios para comparar as opressões sem reduzi-las a uma essência comum ou que alegue que um é mais fundamental do que outro. Pode-se comparar as maneiras pelas quais uma determinada forma de opressão aparece em diferentes grupos. Pode-se comparar as combinações de grupos de opressão experiência, ou a intensidade dessas opressões. Assim, com esses critérios pode-se afirmar de forma plausível que um grupo é mais oprimido do que outro sem reduzir todas as opressões a uma única escala. As pessoas e comunidades que historicamente foram mais privadas de seus direitos nas instituições sociais são as mesmas que facilitam o surgimento da interseccionalidade. Da mesma forma, e talvez com base neste legado, os mesmos indivíduos e grupos que enfrentam discriminação e injustiça em um contexto global criticam a injustiça social contemporânea. E eles estão fazendo isso acontecer contando, em grande parte, com o uso habilidoso das novas mídias digitais.
Observou-se que um dos grupos vulneráveis dentre vários outros (tais como o das mulheres, os LGBTQUIA+, o dos negros), o das pessoas com deficiência, experimentou uma evolução do conceito a partir da construção deste em razão da absorção e afirmação dos direitos desses indivíduos enquanto parte da sociedade e necessitados de serem considerados ou inseridos nela. Delineou-se a necessidade de estabelecerem-se políticas públicas de acessibilidade e de inclusão, tanto quanto um padrão jurídico e social de reconhecimento de pessoas portadoras de deficiências que demonstre ser satisfatoriamente
aberto, concreto e abrangente, de modo a englobar indivíduos que declaram de si para si serem portadores de algum tipo de deficiência, esclarecendo, a partir de seus próprios sentimentos, vivências e trajetórias de vida, seus projetos pessoais e reais necessidades ante outros indivíduos, a lei e a sociedade como um todo. Para determinadas situações da vida diária, a pessoa com deficiência (seja ela de que tipo for), não necessita nem de acessibilidade, nem de inclusão. Ela precisa de um tratamento igualitário, sem necessidade de facilitação, mas somente de aceitação.
Assim, através do reconhecimento do princípio da autonomia, a pessoa com deficiência tem direito fundamental à educação em direitos, a partir da própria equipe de profissionais de saúde que atuam direta ou indiretamente em seu processo de habilitação ou reabilitação, como forma de afastar ou reduzir o burden of care. A redução ou o afastamento de barreiras atitudinais e/ou comportamentais é facilitada pelo treinamento dos profissionais de saúde, capacitando-os inclusive a respeito dos direitos das pessoas com deficiência, possibilitando a elas reconhecerem-se ou não como tal, para poderem exigir ou usufruir desses direitos, de forma autônoma e consciente.
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O MÍNIMO EXISTENCIAL E A RESERVA DO POSSÍVEL DIANTE DA INTEGRALIDADE E DA UNIVERSALIDADE DO DIREITO À SAÚDE À LUZ DE R. DWORKIN E J. RAWLS
Palavras-chave
Direito à Saúde. Mínimo Existencial. Reserva do Possível. John Rawls. Ronald Dworkin
Ana Carolina Falqueiro de Souza
Discente do Curso de Direito ITE/Bauru. E-mail: anacfalqueiro@gmail.com.
Thiago Munaro Garcia
Professor Doutor e Mestre em Direito pelo Centro Universitário de Bauru, mantido pela Instituição Toledo de Ensino. Professor da disciplina de direito empresarial da ITE/Bauru e da Universidade Paulista - UNIP, campus Bauru. Professor convidado em diversos cursos de pós-graduação para as disciplinas de direito empresarial e direito processual civil. Advogado. Diretor Secretário da 21º Subseção da OAB - Bauru.
Resumo
Primeiramente, é válido destacar que os direitos sociais não se efetivam pelo mero reconhecimento e adjudicação pelo Poder Judiciário, mas diante de políticas públicas eficientes que demandam um planejamento de recursos financeiros e conhecimentos técnicos específicos. À vista do exposto, o presente artigo tem como escopo analisar o fenômeno do mínimo existencial e a reserva do possível diante da garantia constitucional do direito fundamental à saúde pública. Através da análise dos julgamentos da Suprema Corte, buscou-se adentrar a implementação das teorias na jurisdição brasileira. A temática discutida no presente estudo justifica-se por tratar de temas e conceitos que permeiam as discussões doutrinárias e jurisprudenciais sobre a judicialização dos direitos sociais e a aproximação da reserva do possível e mínimo existencial. Nesse sentido, utilizou-se o método de abordagem dedutivo e o método de procedimento monográfico, com a vertente metodológica de abordagem qualitativa, comum no ramo jurídico, por se tratar da sociabilidade, do ser social, não se podendo enxergar o direito senão no contexto da sociedade. Por fim, quanto às técnicas de pesquisa, apontam-se a bibliográfica e a documental, de documentação indireta, a partir do auxílio de livros e doutrina, sob o viés dos filósofos Dworkin e Rawls.
04
A Constituição, em seu artigo 1º, inciso III, assegura a todos os cidadãos brasileiros a dignidade da pessoa humana. Já no artigo 5º, § 2º, verifica-se que os direitos e garantias expressos no texto constitucional não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados. Nesse viés, o direito à saúde é um direito social constitucionalmente garantido, com previsão no artigo 6º da Carta Magna, decorrente do direito à vida. A Constituição Federal disciplina que é dever do Estado garantir, mediante políticas públicas, sociais e econômicas a defesa e garantia da redução de doenças e seus agravos, além do acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde.
O direito à saúde está intrinsecamente ligado à garantia do direito à dignidade humana e o direito à vida. Entretanto, mesmo consolidado constitucionalmente como dever do Estado e direito de todos, por muitas vezes é olvidado pelo próprio prestador, se tornando necessário para sua garantia a tutela jurisdicional, que se utiliza de meios coercitivos para que o direito à saúde seja efetivamente cumprido. A sistemática da judicialização da saúde, na qual apenas aqueles que tiverem acesso ao Poder Judiciário terão a garantia do direito à saúde, se torna uma das principais defesas dos entes federados: o postulado da reserva economicamente possível.
Para a elaboração da presente pesquisa foram utilizados os métodos de análise analítico e dedutivo, de forma a permitir um estudo sob o prisma técnico e também sob o prático-axiológico, bem como o método empírico, através das técnicas documental e jurisprudencial, por meio de busca de dados através dos sítios eletrônicos dos Tribunais e de órgãos públicos para a obtenção de dados oficiais no que toca aos gastos públicos.
As divergências acerca da temática decorrem da natureza prestacional do direito à saúde e da aplicação do que se denomina reserva do possível e mínimo existencial sob a ótica da teoria da justiça de J. Rawls e R. Dworkin. Ao analisar tais teorias, verifica-se que não se pode aplicar indiscriminadamente a teoria da reserva do possível no tocante ao direito à saúde, uma vez que esse faz parte do mínimo existencial. Infere-se que o direito à saúde, como direito fundamental incluso no conceito de mínimo existencial, não pode ser obstaculizado pela alegação de falta de condições orçamentárias.
2. DA UNIVERSALIDADE E INTEGRALIDADE DO DIREITO À SAÚDE
O direito à saúde foi historicamente instituído por meio da Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948 e, posteriormente, previsto no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, vez que está estritamente vinculado com a efetividade do direito à dignidade humana e dos direitos sociais. Nesse ínterim, o termo “saúde” é definido no preâmbulo da Constituição da Organização Mundial de Saúde como o “completo bem estar físico, mental e social”, transpondo a mera percepção de saúde como apenas falta de doença.
Constitui-se, portanto, um direito humano assegurado no âmbito internacional e, no âmbito nacional, um direito fundamental da pessoa humana, cuja situação topográfica na Carta Magna se encontra no Capítulo próprio endereçado aos direitos fundamentais. No mesmo sentido, Amartya Sen acrescenta:
Equidade na saúde não pode se preocupar somente com a saúde, isoladamente. (...). Equidade na saúde com certeza não se refere apenas ao acesso à saúde, muito menos ao enfoque ainda mais restrito do acesso aos serviços de saúde. Na verdade, equidade na saúde como conceito tem um alcance e uma relevância extremamente amplos (SEN, 2000, p. 74).
55 1.
INTRODUÇÃO
À vista do exposto, sob a ótica do princípio da integralidade, as necessidades específicas de cada grupo social devem ser atendidas na medida de seu respectivo grau de complexidade da política pública.
Dessa forma, o Sistema de Saúde existente no Brasil deriva das lutas sociais desses grupos, preconizando a solidariedade e a justiça igualitária (MATTOS, 2006, p. 45). À luz desse princípio, podemos concluir a vedação ao Sistema de Saúde à adoção de medidas experimentais:
Os (...) calcado em critérios de segurança e eficiência do tratamento pleiteado que, em sentido mais amplo, reportam-se às noções de economicidade. A vedação a tratamentos experimentais ou carentes de prova científica robusta e contundente no que diz com a segurança do medicamento e sua eficácia, que também alcança os tratamentos aprovados para uso diverso daquele pretendido, insere-se nesse contexto, não se podendo elastecer de modo desproporcional os riscos impostos ao Estado e à sociedade sem qualquer limitação, mormente em homenagem aos princípio da prevenção e da precaução (CANOTILHO, 2013, p. 1937).
A integralidade visa conferir a maior abrangência possível no atendimento da rede pública de saúde, atendendo ao princípio da universalidade no atendimento. Sob a perspetiva de Mattos, a integralidade possui diversas vertentes, podendo ser interpretada pelo viés político, abarcando os valores sociais e a intervenção do Estado; sob o viés da medicina, no qual o princípio atenderia a padronização dos atendimentos; e sob o viés organizacional do Estado, de divisão de tarefas e competências dos entes federados (MATTOS, 2006, p. 43).
Nessa conjuntura, atrelado ao princípio da gratuidade, o princípio da universalidade garante a todos os residentes ou não no brasil, ainda que em trânsito no
território nacional, que eventualmente necessitem de atendimento a fim de manter o gozo de seu bem-estar, o direito à saúde como premissa universal. Decorrente disso, está a prestação da isonomia como base, necessitando aplicar a universalidade correspondente às desigualdades, permitindo, portanto, determinada garantia da efetivação do direito à saúde equivalente aos indivíduos detentores de características circunstanciais semelhantes (CANOTILHO, 2013, p.1936).
À vista do exposto, diante da perspectiva do direito à saúde atrelado aos princípios da universalidade e integralidade, faz-se necessário a introdução das problemáticas acerca do tema, que se substancia na alegação da reserva do possível no âmbito da saúde, como parte do mínimo existencial.
3. PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL: O ORÇAMENTO PÚBLICO E A EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS
A reserva do possível, também denominada “tese da reserva do possível”, ou “cláusula da reserva do possível”, tem sido atrelada às prestações públicas no tocante aos direitos sociais enumerados como deveres do Estado no artigo 6º da Carta Magna. Tal instituto vem sendo o principal argumento de defesa das esferas estatais em ações que veiculam prestações em face do sistema público de saúde. A definição científica da reserva do possível, como teoria, princípio ou cláusula vem sendo discutida pela doutrina e jurisprudência.
Nessa perspectiva, a classificação como teoria está atrelada às hipóteses cuja natureza decorre de uma sistematização a fim de se analisar uma premissa, porém, a reserva do possível não é aplicável para obtenção de conclusões falsas ou verdadeiras. Ainda, os denominados princípios, para Alexy (1997), detêm uma carga de abstração e generalidade que permi -
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tem sua incidência como um catalisador normativo, de maneira diversa, a reserva do possível não contém um valor moral a fim de conduzir a otimização da incidência de uma regra. Por fim, o termo cláusula é utilizado no campo negocial para indicar artigos regentes na negociação, não se comunicando com as características da reserva do possível.
Nesse sentido, a discussão acerca da classificação da reserva do possível não obsta sua aplicação ou adoção. Seu conceito, segundo Ricardo Pires Calciolari (2012, p. 166), surgiu em 1972, por meio do julgamento proferido pela Corte Suprema da Alemanha em uma ação que discutia o direito à concessão de vaga no curso superior de medicina em uma universidade pública.
Nesse cenário, a Corte Suprema se manifestou acerca da compatibilidade entre as normas estaduais que restringiam o direito ao acesso ao ensino superior e a Constituição Alemã, adentrando a análise proporcional entre os direitos que eram fornecidos pelo Estado e o número de cidadãos a quem era proporcionado o gozo dos direitos, devendo ser otimizada nos limites do orçamento público destinado a essa finalidade. Desse modo, o quantum exigido deveria corresponder àquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade.
Segundo Antônio Alberto Machado (2017, p. 115), referida Corte fixou o entendimento que o Estado não teria a obrigação de custear, de forma indiscriminada, todo e qualquer direito social pleiteado nos casos em lide, desde que os cidadãos comprovassem que, se atentando aos recursos do Estado disponíveis, estaria conferindo a efetividade aos direitos reivindicados em juízo. Em contrapartida à Corte Alemã, que alega a reserva do possível como forma de valoração social norteadora dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, o judiciário brasileiro tem utilizado do mesmo postulado, porém, como justificativa
de limitar a concretização de direitos sociais e como forma de controle do orçamento público.
Nesse sentido, acerca da problemática orçamento e garantias constitucionais Fernando Scaff afirma:
Ocorre que os recursos são escassos e as necessidades infinitas. Como o sistema financeiro é um sistema de vasos comunicantes, para se gastar de um lado precisa-se retirar dinheiro de outro. Assim, seguramente, mais verbas para o ensino fundamental pode implicar em menos verbas para o ensino superior; e a mesma disputa financeira pode ocorrer no custeio da saúde pública. Nestes casos, a discricionariedade do legislador está presente (SCAFF, 2010, p. 29).
A aplicação da reserva do possível tem como escopo garantir o melhor custo benefício nas escolhas públicas, observadas as limitações financeiras dos entes. Assim, tratar os direitos com seriedade é reconhecer a escassez dos recursos públicos (GALDINO, 2002, p. 210), analisando as possibilidades mínimas de efetivação dos direitos fundamentais, porém, garantindo-se o mínimo existencial.
Pode-se compreender o mínimo existencial como todo conjunto de prestações materiais indispensáveis para assegurar a cada pessoa uma vida condigna, como preceito da dignidade humana proposto por I. W. Sarlet. Assim, de acordo com Sarlet e Figueiredo (2008, p. 20), não seria possível a quantificação do mínimo existencial de uma forma única e definitiva, tendo em vista sua alteração conforme lugar, tempo, padrão socioeconômico vigente, esfera econômica e financeira, expectativas e necessidades. De acordo com tal premissa, deve-se garantir a dignidade da pessoa humana, e sua fruição de todos os direitos fundamentais, incluindo, ainda, o mínimo existencial sociocultural.
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EXISTENCIAL E A RESERVA DO POSSÍVEL NO DIREITO À SAÚDE
Ronald Dworkin e John Rawl são frequentemente classificados como liberais igualitários e buscaram apresentar uma teoria de justiça alternativa à concepção utilitarista, cujo conceito de justiça estaria atrelado à maior felicidade do maior número de pessoas. Na concepção de Dworkin, a igualdade de bem-estar, cuja origem advém da conceituação da teoria da justiça, está em dissonância com a igualdade de recursos. Na perspectiva do autor, não há de se chegar em uma sociedade em que todos tenham um mesmo nível de bem-estar, tendo em vista os gostos e concepções distintas entre os indivíduos. Assim prevê:
Os gostos dispendiosos são constrangedores para a teoria de que a igualdade significa igualdade de bem-estar precisamente porque acreditamos que essa igualdade, considerada em si e fora das questões de eficiência, condena, em vez de recomendar, a compensação por gostos dispendiosos deliberadamente cultivados (DWORKIN, 2005, p. 65).
O autor traz em suas obras o igualitarismo liberal, formado através de conjuntos determinados de metas políticas construtivas e derivadas, que integra uma forma de moralidade política. Dentro dessa temática, que parte do princípio da teoria da justiça dworkiniana, a igualdade de recursos ou teoria da justiça distributiva citada pelo autor sugere uma distribuição dos recursos que vai além da distribuição simétrica.
Assim, Dworkin pauta sua teoria na igualdade de recursos, na qual pressupõe que as pessoas devem iniciar suas buscas por bens com recursos iguais e a partir daí devem arcar com os custos de suas escolhas. Entretanto, deve-se incorporar o princípio da
utilidade, afastando a tese utilizada pelo Supremo Tribunal Federal de que não se deve analisar questões econômicas ao tema saúde pública, vez que o extremo dessa premissa levaria o Estado à falência. Dentro dessa temática, é válido citar o pensamento que vai de encontro com tal ideologia, dos juristas Ferraz e Vieira, no qual a Corte Suprema ao alcançar tudo a todos, acaba concedendo tudo a alguns, deixando outros com pouco ou nada (FERRAZ E VIEIRA, 2009, p. 223).
Sob a perspectiva de Rawls (1971, p. 60), a teoria da justiça está pautada na igualdade de direitos e na igualdade social e econômica, integra a primeira virtude para as instituições sociais, cuja distribuição de bens se torna indispensável para que um cidadão viva com dignidade. Assim, a justiça assegura a inviolabilidade dos direitos que visam garantir o mínimo existencial e que, portanto, estão fora de negociações políticas ou de variações segundo interesses sociais. Nesse passo, só há justiça entre iguais.
Sob a perspectiva do autor, enfatizando o princípio da prioridade da justiça sobre a eficiência e o bem-estar, sua concepção leva à aproximação da justiça com o Estado Social, ao dispor que a justiça deve trazer o maior benefício possível para os menos favorecidos o que, na aferição das desigualdades econômicas e sociais existentes, o maior benefício possível aos menos favorecidos significa maior vantagem a toda a coletividade.
Os autores defendem a relativização da reserva do possível quando da análise conjunta com o mínimo existencial, criando-se “direitos subjetivos a prestações”. Nessa perspectiva, tem-se que deve prevalecer a vida e a dignidade da pessoa humana sobre objeções quanto à reserva do possível (SARLET, 2008. p. 37). Adentrando às demandas relativas ao direito à saúde, a reserva do possível se aproxima do preceito de que a observância dos princípios da uni -
58 4. A INTERAÇÃO
DO MÍNIMO
versalidade e integralidade não traduzem a gratuidade das prestações materiais, entretanto, não podendo ir de encontro com a plena eficácia do mínimo existencial, que deve ser garantido, inclusive, jurisdicionalmente.
5. A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO
À SAÚDE NO STF: O ARGUMENTO DO MÍNIMO EXISTENCIAL E RESERVA DO POSSÍVEL
O presente tópico visa analisar e levantar alguns julgamentos ilustrativos da Corte Suprema acerca da efetivação do direito à saúde e a alegação do mínimo existencial e reserva do possível. Dentro desta perspectiva, o STF adentra à temática na década de 1990, com os pedidos de recursos de medicamentos para o combate ao HIV no Rio Grande do Sul. A partir da análise do julgado do AI 238328 AgR/ RS, de 1999, vê-se que a ratio decidendi do julgado não destrincha a temática, apenas cita o dispositivo constitucional referente às obrigações do Estado:
“No mais, reporto-me aos fundamentos da decisão atacada. Saúde “é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.”
No mesmo período, não se discutia nas decisões as políticas distributivas ou a afetação orçamentária do Estado. Somente após a década de 2000 a Corte passa a adentrar de maneira mais profunda, em razão do crescente número de processos envolvendo, a temática direito à saúde, entretanto, ainda não havia uma tutela coletiva de tal direito fundamental garantido constitucionalmente. É o que se verifica da decisão do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 271286, julgado no ano de 2000:
[...] Na realidade, o reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, deu efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (art. 5o, caput, e 196), representando, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade.
(...)
O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.
(...)
Não basta, portanto, que o Estado meramente proclame o reconhecimento formal de um direito. Torna-se essencial que, para além da simples declaração constitucional desse direito, seja ele integralmente respeitado e plenamente garantido, especialmente naqueles casos em que o direito – como o direito à saúde – se qualifica como prerrogativa jurídica de que decorre o poder do cidadão de exigir, do Estado, a implementação de prestações positivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional.
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Cumpre destacar que o entendimento “consolidado” da época ressalta o direito à saúde como direito fundamental e que deveria ser tutelado e efetivado de forma plena pelo Estado. Ainda, caso houvesse omissão quanto a sua realização pelo Estado, desde que de forma arbitrária e desviante, o Poder Judiciário deveria atuar a fim de garantir o direito fundamental constitucionalmente consagrado.
Entretanto, a partir de 2007, a perspectiva dos julgadores passa a se voltar ao princípio da separação dos poderes e os limites orçamentários dos Estados, assim, justificando os indeferimentos da concessão gratuita de medicamentos ou tratamentos médicos pleiteados sob alegadas premissas. Entretanto, tais posicionamentos se tornam fundamentos excepcionais na atualidade, tendo em vista o posicionamento do Supremo Tribunal Federal favorável à intervenção judicial na política de distribuição de recursos da área da saúde. O confronto entre a reserva do possível e o mínimo existencial sob o viés da garantia do direito à saúde pode ser demonstrado no seguinte gráfico:
Gráfico 1. Quantidade de itens e valor dos medicamentos adquiridos pelo governo federal entre 2000 e 2021 (valores reais a preços de 2022)1
A partir da análise do gráfico podemos concluir que houve um progressivo aumento do valor das compras federais de medicamentos desde 2008. A judicialização tem se tornado um dos fatores que justificam tal aumento, na qual os cidadãos ingressam
1 Fonte: Sistema Integrado de Administração de Serviços Gerais (SIASG). NEGRI, Fernanda de; MELLO, Carlos Eduardo de; MOURTHE, Adriano Cabral Linhares. Aquisições de medicamentos pelo governo federal, 2023. https://www.ipea.gov.br/cts/ pt/central-de-conteudo/artigos/artigos/370-evolucao-das-aquisicoes-de-medicamentos-pelo-governo-federal-nas-ultimas-duas-decadas. Acesso em 7 nov. 2023
com pedido judicial para obter o acesso de medicamentos não disponíveis ou não fornecidos gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde.
Nesse sentido, a partir de uma análise em conjunto das teorias ora em debate com as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, percebe-se que os mais favorecidos pelas políticas de acesso à saúde são os que possuem capital social econômico acima da média, enquanto os desprovidos de qualquer tipo de recurso e acesso aos medicamentos ou tratamentos médicos pleiteados ficam à mercê das longas esperas da rede pública de saúde do país.
Em síntese, o argumento que prevalece hodiernamente é de se garantir a necessidade de intervenção do Estado para assegurar condições mínimas de saúde aos cidadãos brasileiros hipossuficientes.
Em diversos precedentes a Corte tem resguardado o direito à saúde em detrimento a argumentos da reserva do possível e questões orçamentárias. Nas palavras do Ministro Celso de Mello no julgamento da medida cautelar da Pet. 1.246 SC, em 1997:
Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da República (art. 5o, caput,), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: o respeito indeclinável à vida.
Nessa perspectiva, no teor do voto proferido pelo Ministro Edson Fachin no julgamento da ADPF 4066, em 2017, a fundamentação versa acerca da reserva do possível, cujos apontamentos ponderam as limitações orçamentárias do Estado e os custos da efetivação de direitos, concluindo que a limitação
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de recursos existe é uma contingência que não se pode ignorar. Nesse sentido, afirma o magistrado:
[...] Seria possível, neste ponto, sustentar que a garantia do direito à saúde devesse levar em conta um ideal de distribuição que permitisse maximizar as chances de acesso aos bens primários, como se fosse possível, em uma instância deliberativa ideal, cobrir os interlocutores com um “véu de ignorância” acerca da real distribuição dos bens. Mesmo nesse cenário ideal, é preciso reconhecer que as pessoas têm visões diferentes sobre os bens que entendem necessários, pois os bens são necessários para uma finalidade. Noutras palavras, uma meta para a garantia do direito à saúde, construída a partir da teoria de John Rawls, poderia, ao fim, legitimar a ideia de ser lícito ao Estado decidir, autonomamente, sobre o destino das pessoas, invertendo o enfoque dos fins (liberdade) para um problema relativo aos meios (a saúde).
(...)
Contrariamente a essa perspectiva, é possível sustentar que o direito à saúde é “uma demanda ética sobre a equidade em saúde” (RUGER, Jennifer. Toward a Theory of a Right to Health: Capability and Incompletely Theorized Agreements. Yale Journal of Law & Humanities. V. 18. N. 18, p. 278), ou seja, todos têm o direito de reivindicar para si o acesso à melhor proteção à saúde, como se a proteção reivindicada pudesse ser formulada por todos. Se essa proposta tem, de um lado, a vantagem de, com Dworkin, levar o direito à saúde a sério, na medida em que permite às pessoas formular suas demandas éticas à luz do Direito; de outro, ela adverte que o papel do Estado não é um simples “sim ou não” à demanda que lhe foi apresentada.
Com efeito, o papel do Estado é não apenas fornecer um mínimo, aquilo que qual -
quer pessoa tem direito a lhe exigir, mas também o de elaborar um difícil cálculo relativamente à distribuição dos bens, levando em conta, porém, que as pessoas têm diferentes visões sobre a própria distribuição. Trata-se, portanto, de não apenas prover o mínimo, mas também de garantir a participação das pessoas nos procedimentos alocativos.
Vê-se, assim, que o direito à saúde é integrado por um “mínimo existencial” e – para as demais demandas que dele possam emergir – pela participação no processo alocativo. Essa definição implica afastar a tradicional visão de que os direitos sociais, o direito à saúde particularmente, são direitos de segunda geração ou são direitos que não podem ser garantidos por um provimento judicial. Há que se advertir, por fim, que a cláusula da reserva do possível, que tem origem na jurisprudência alemã e é amplamente reconhecida na jurisprudência dos Tribunais brasileiros, não constitui, em si, um óbice para realização dos direitos sociais: ela é, em verdade, uma definição do limite da adjudicação. Esse limite, no entanto, não advém propriamente da finitude dos recursos do Estado, mas de uma possível sindicabilidade da decisão alocatória.
Entretanto, a alegação da reserva do possível não pode servir como justificativa para a inércia estatal que comprometa a efetivação do direito à saúde e as condições mínimas necessárias a uma existência digna e essencial à própria sobrevivência do indivíduo. De modo que, quando configurada tal violação, caberá a intervenção do Poder Judiciário.
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Infere-se, portanto, que os direitos fundamentais, mais especificamente o direito à saúde, interferem diretamente na maneira como os indivíduos utilizam seu direito de liberdade na coletividade. Assim, a precariedade da assistência a direitos fundamentais pelo Estado tem como consequência a injustiça dada pela relativização do direito de liberdade plena. Diante do panorama traçado, a hipótese que se eleva é a de que o direito à saúde, apesar de configurar um direito fundamental de todos e um dever do Estado, na realidade apresenta condições bastante distintas daquela inicialmente idealizada pelo legislador Constituinte Originário.
Em síntese, no presente artigo, buscou-se analisar o fenômeno da assim chamada judicialização da saúde a partir de dois aspectos: o da reserva do possível, como possível limitador do controle jurisdicional, e o mínimo existencial sob a perspectiva de Rawls e Dworkin. Para tanto, ambos os filósofos adotam uma linha de pensamento liberal com vistas à proteção de direitos fundamentais e sociais da pessoa humana.
Por conseguinte, a teoria da reserva do possível e a alegação do mínimo existencial, entendidas como limite fático à concretização dos direitos fundamentais, não podem ser alegadas como justificativa de uma não concretização, pois o não cumprimento da parcela mínima de cada direito fundamental social configuraria uma lesão ao núcleo essencial. A prestação deficitária dos serviços incumbidos ao sistema de saúde pública resulta na redução do indivíduo a ser meramente vivente, ocasionada pela impossibilidade de desenvolvimento humano e dignidade. Desse modo, a reserva do possível apresenta cunho eminentemente capitalista, vinculando a possibilidade de efetivação de um direito garantidor do mínimo existencial à capacidade orçamentária.
A vinculação dos direitos sociais com a garantia de um mínimo existencial e a reserva do possível na jurisdição brasileira passou e ainda passa por uma série de controvérsias, que integram a pauta das discussões acerca da garantia do direito fundamental e a perspectiva orçamentária do Estado. Ademais, devemos relembrar que o Estado é um ente regido e criado exclusivamente pela vontade da coletividade, verdadeiros titulares do Poder, apenas sendo possível a verdadeira efetivação do direito à saúde se as políticas públicas forem efetivas e os serviços forem prestados de forma plena, garantindo vida e dignidade aos indivíduos.
Desse modo, infere-se que o direito à saúde não constitui um fim em si mesmo, sendo possível a distinção das competências e atribuições de cada ente do Estado no papel de garantidor da saúde, materializando a norma constitucional programática que atribui ao Poder Estatal o dever à saúde.
REFERÊNCIAS
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MACHADO, Antônio Alberto. Elementos da teoria dos direitos fundamentais. 1. ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2017.
62 6. CONCLUSÃO
MATTOS, Ruben de Araújo. PINHEIRO, Roseni. Org. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde Rio de Janeiro: UERJ, IMS: ABRASCO, 2006.
RAWLS, John (1971). A Theory of Justice. Cambridge and London, Harvard University Press.
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Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4066, Requerente: Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho - ANPT e Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho - ANAMATRA. Relator(a): ROSA WEBER. Brasília, 24 de agosto de 2017. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2607856>. Acesso em: 02. nov. 2023.
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JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE: OS DESAFIOS DIÁRIOS PARA IMPLEMENTAÇÃO DOS PRECEITOS CONSTITUCIONAIS
Palavras-chave
Judicialização da saúde. Sistema Único de Saúde. Políticas públicas de saúde. Supremo Tribunal Federal.
Nilo Kazan de Oliveira
Nilo Kazan de Oliveira. Doutor e Pós-Doutorando junto à UNESP. Professor de Direito Administrativo e Processo Civil junto a Anhanguera Educacional. Procurador do Município de Bauru-SP.
Guilherme Bittencourt Martins
Mestre em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos, pelo Centro Universitário de Bauru mantido pela Instituição Toledo de Ensino - ITE - Bauru-SP (2015) ; Pós-Graduado em Formação de Professores para a Educação Superior Jurídica (2013), pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Possui Graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Bauru - Instituição Toledo de Ensino - ITE - (2010). Possui Licenciatura em Sociologia pela Faculdade Anhanguera. Atualmente é Coordenador da Pós-Graduação Lato Sensu em MBA em Gestão Jurídica Criminal e Compliance do Grupo Educar Mais - Defensoria do Brasil. É Coordenador do Curso de graduação em Direito da Faculdade Anhanguera de Bauru-SP ; Professor da Graduação e da PósGraduação da Faculdade Anhanguera de Bauru Resumo
O presente artigo foi produzido a partir da análise das recentes decisões sobre o tema da judicialização da saúde junto ao Superior Tribunal de Justiça. Em especial na última década, houve incremento significativo da interferência do Poder Judiciário nas políticas públicas sanitárias. O crescente aumento da judicialização está ligado à capacidade de sustento do próprio Sistema Único de Saúde, gerando a necessidade de busca por alternativas para se garantir o mínimo assistencial, de acordo com a Constituição de 1988. Essa perspectiva culmina com os recentes precedentes do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria, que serão abordados no presente artigo.
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Após a promulgação da atual Constituição brasileira em 1988 o sistema de assistência à saúde ganhou relevo junto à sociedade. Com base principalmente na definição constitucional de que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, grandes avanços vêm sendo conquistados em direção à democracia sanitária, com importante contribuição do Poder Judiciário. Assim, a Justiça está aberta a toda a população brasileira, e mesmo para cidadãos de origem estrangeira, consolidando o fenômeno da judicialização, naqueles casos em que a gestão administrativa da saúde é ineficaz.
A judicialização consolida-se como a propositura de ações em face do Estado, representado pelo Poder Executivo – Federal, Estadual, Distrital ou Municipal, no sentido de implementar políticas públicas de fornecimento de medicamentos, insumos e realização de procedimentos cirúrgicos, demonstrando uma ineficiência gerencial do Poder Público em fazer valer os preceitos constitucionais.
De acordo com dados estatísticos oficiais levantados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 2008 a 2017 houve um incremento de aproximadamente 130% no número de casos judiciais. Desde a Constituição de 1988, o acesso à saúde passou a ser o protagonista das políticas públicas nacionais, com um orçamento para 2019 no montante de 122,60 bilhões de reais. Os gastos aumentam, porém os recursos não aumentam na mesma proporção, como é possível concluir pela análise dos dados do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos de Saúde (Siops).
Nessa esteira, deve-se fazer um análise mais aprofundada sobre as políticas públicas em saúde, estudando sua segurança, acurácia, eficácia e custo-efetividade, além de comparar alternativas já vigentes
com as novas tecnologias, concluindo se vale a pena ou não as implantar, do ponto de vista sanitário, social, ético e econômico. Nem sempre o que é novo gera benefícios para a saúde das pessoas e das comunidades. Deve-se levar em consideração que a indústria farmacêutica, empresas e profissionais, dentro do sistema capitalista neoliberal, visam lucro.
Para implementar novas tecnologias em saúde foi desenvolvido no Brasil um sistema de avaliação criteriosa: a Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS), que utiliza evidências de revisões sistemáticas, estudos clínicos, avaliações socioeconômicas e pesquisas de programas para tomar decisões no campo da saúde individual e coletiva.
Em 2006, foi criada a Comissão de Incorporação de Tecnologias do Ministério da Saúde (Citec). Com a Lei 12.401/2011, que modificou a Lei 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde), a Citec foi ampliada e intitulada Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec). Foram modificados os membros participantes de modo a incluir representantes do Ministério da Saúde, gestores dos estados e municípios e do Conselho Nacional de Saúde (CNS); processos de consulta pública foram abertos e determinaram-se prazos para análise e recomendação.
O Poder Executivo tenta cumprir seu papel na administração da saúde pública, porém as necessidades individuais muitas vezes se sobrepõem às populacionais, cabendo ao Poder Judiciário verificar, em última instância, de que forma o direito à saúde do demandante deve ser efetivado pelo Estado. As normas jurídicas definem as responsabilidades de cada ente federado ante as demandas da população. As decisões judiciais são as que determinam o cumprimento, dimensionando a real extensão do direito à saúde no Brasil, seus problemas e implicações.
O sistema de freios e contrapesos (Checks and Ba-
65 1.
INTRODUÇÃO
lance System) – pautado na harmonização entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário por meio de mecanismos de controle – é fundamental, visto que muitas regras e soluções já estão previstas pela Constituição, leis e normas infralegais.
Nota-se uma heterogeneidade da judicialização nas diversas regiões do Brasil, com diferenças na propositura das ações, coletivas ou individuais, e no demandante, advogado privado ou público. Vários fatores determinam essa heterogeneidade, como desenvolvimento econômico da região, incidência de determinadas doenças e recursos públicos, entre outros.
Com a crescente demanda na área da saúde, a literatura menciona mecanismos que dão amparo técnico ao julgador, como os Núcleos de Avaliação de Tecnologia em Saúde (Nats) e da Conitec, que viabilizam o controle dos medicamentos e o acesso a evidências científicas. Em 2016 foi expedida a Resolução 238/2016, do CNJ, estabelecendo a obrigatoriedade dos Nats em todos os estados.
Assim como a Previdência Social encontra-se em crise, sendo necessárias reformas que estão em discussão, também a assistência à saúde em breve entrará em evidência. O SUS, pautado nos princípios da universalidade, equidade e integralidade, é em teoria um dos sistemas de saúde mais justos e democráticos do mundo. Contudo, se consideramos o contexto de desigualdade social, o tamanho da população (mais de 210 milhões de habitantes em estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística para 2019), o envelhecimento da população e demandas que vão desde saneamento básico até tratamentos estéticos de ponta, é preciso reconhecer que os recursos financeiros disponíveis são finitos. Portanto, devemos desde já propor alternativas para que a implementação do SUS não seja afetada.
Para isso, um dos pilares principais deve ser o princípio da equidade.
Há uma conjugação de fatores externos e internos, como burocracia enraizada na gestão pública, conchavos políticos e casos de corrupção em todos os poderes. É necessário otimizar a gestão sanitária para harmonizar o fluxo do SUS com os princípios, regras e normas constitucionais, conseguindo assim uma gestão que concilie as bases constitucionais e o acesso à saúde.
2. JUDICIALIZAÇÃO NA AMÉRICA LATINA
Não é somente o Brasil que enfrenta o problema da judicialização, presente também em vários países da América Latina, independente da cobertura populacional do sistema de saúde. O Chile se diferencia de outros países pelo fato de que os processos envolvem mais a iniciativa privada – por exemplo, seguradoras de saúde. A Argentina, em que cada província define o direito ao acesso à saúde, é heterogênea, mas também enfrenta o problema da judicialização. Já a Colômbia é a que mais se assemelha ao Brasil, com ações voltadas ao governo, pois, por lei, o Estado tem obrigação de fornecer saúde à população, com princípios parecidos com os do SUS.
As dificuldades dos quatro países citados são semelhantes, como a influência do marketing da indústria farmacêutica e o desafio financeiro de garantir acesso a medicamentos. Segundo estudo qualitativo que avaliou a judicialização da saúde nesses países, o aspecto positivo desse fenômeno seria a pressão do Judiciário sobre o Executivo para que cumpra suas obrigações. Já o impacto negativo seria o financiamento de tratamento sem comprovação de eficácia e segurança.1
1 VARGAS-PELAES, Rover MRM, Soares L, Blatt CR, Mantel-Teeuwisse AK, Rossi FA et al. Judicialization of access to medicines in four Latin American countries: a comparative quali -
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A maioria dos países que têm um sistema de saúde universal garante o direito ao acesso aos serviços de saúde, e não à saúde de fato, o que torna o processo de judicialização no Brasil diferente do cenário internacional2 . Em nosso país, em que o acesso à saúde um direito constitucional, a grande maioria das ações leva a resultados favoráveis para os pacientes, muitas vezes onerando o sistema público. Em estudo sobre casos judiciais em Pernambuco, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, 97,8% das decisões foram favoráveis aos usuários 3 .
Apesar de o SUS abranger todo o território nacional, há diferenças regionais importantes, inclusive no processo de judicialização. Um estudo no estado do Rio Grande do Sul afirma que os principais autores de ações judiciais relacionadas ao fornecimento de tratamento são de classes menos favorecidas financeiramente e idosos, e a maioria das ações estão relacionadas a medicamentos já regulamentados nos formulários governamentais 4
Outro estudo, que avaliou ações entre 2005 e 2010 no Distrito Federal, também mostrou que a maioria dos demandantes era de baixa renda, em ações realizadas com auxílio da Defensoria Pública e solicitações provenientes do setor público. Segundo esse levantamento, a maioria das ações tinha como objeti -
tative analysis. Int J Equity Health [Internet]. 2019 [acesso 19 dez 2019];18(1):68. DOI: 10.1186/s12939-019-0960-z
2 RAMOS RS, Gomes AM, Oliveira DC, Marques SC, Spindola T, Nogueira VP. Access the Unified Health System actions and services from the perspective of judicialization. Rev Latinoam Enfermagem [Internet]. 2016 [acesso 19 dez 2019];24:e2689. DOI: 10.1590/1518-8345.1012.2689
3 TRAVASSOS DV, Ferreira RC, Vargas AMD, Moura RNV, Conceição EMA, Marques DF, Ferreira EF. Judicialização da Saúde: um estudo de caso de três tribunais brasileiros. Ciên Saúde Colet [Internet]. 2013 [acesso 19 dez 2019];18(11):3419-29. 2013. DOI: 10.1590/S1413-81232013001100031
4 BIEHL J, Socal MP, Amon JJ. The judicialization of health and the quest for state accountability: evidence from 1,262 lawsuits for access to medicines in Southern Brazil. Health Hum Rights [Internet]. 2016 [acesso 19 dez 2019];18(1):209-20. Disponível: https://bit.ly/372SJGP
vo a disponibilização de vaga de tratamento em serviço de terapia intensiva, divergindo da maioria dos estudos, em que a maior parte das ações solicita fornecimento de medicamentos 5 .
Já outra pesquisa, que avaliou a judicialização no estado de Minas Gerais entre os anos de 1999 e 2009, chegou à conclusão de que esse processo não atingiu os municípios mais vulneráveis, favorecendo perfis socioeconômicos mais privilegiados, não sendo, portanto, uma boa ferramenta para o cumprimento do princípio da equidade 6
O processo de judicialização da saúde vem crescendo nos últimos tempos, não só no Brasil, mas em diversos países, principalmente da América Latina. Estudam-se os motivos desse processo, atribuído ao estágio de desenvolvimento do país ou região, ou mesmo ao modelo de atenção à saúde. Assim, da análise dos artigos existentes sobre a judicialização da saúde, restam alguns desafios a serem estudados a fim de se otimizar o acesso equitativo da população.
3. A JUDICIALIZAÇÃO E A EQUIDADE
Conforme a Lei 8.080/19907, que gere os regramentos do artigo 196 da Constituição Federal, o SUS se sustenta em três grandes princípios: universalidade, integralidade e equidade. A universalidade pauta-se
5 DINIZ D, Machado TRC, Penalva J. The judicialization of health in the Federal District of Brazil. Ciên Saúde Colet [Internet]. 2014 [acesso 19 dez 2019];19(2):591-8. DOI: 10.1590/141381232014192.23072012
6 LOPES LMN Acurcio FA, Diniz SD, Coelho TL, Andrade EIG. (Un)Equitable distribution of health resources and the judicialization of health care: 10 years of experience in Brazil. Int J Equity Health [Internet]. 2019 [acesso 19 dez 2019];18(1):10. DOI: 10.1186/ s12939-019-0914-5
7 BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 18055, 20 set 1990 [acesso 19 dez 2019]. Disponível: https://bit.ly/2PFqk3J
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em um acesso aos serviços de saúde sem discriminação, abrangendo toda a população. A integralidade tem como objetivo promover a saúde nacionalmente, de forma ampla e intersetorial, possibilitando a prevenção, a cura e a reabilitação. E, por fim, o princípio da equidade busca tratar as diferenças de forma diversa, em busca de igualdade e justiça.
Pelos dados obtidos através do portal do CNJ, a judicialização está voltada principalmente aos medicamentos nacionais, que os entes públicos não fornecem à população. Em torno de 80% da judicialização corresponde a medicamentos. Os motivos para o não fornecimento são vários, mas o principal é que o administrador segue regras do próprio Ministério da Saúde, determinando qual medicamento deve ser fornecido, em quais situações – segundo parâmetros do Código Internacional de Doenças (CID-10) – e por qual esfera – municipal, estadual ou federal.
A maioria dos tratamentos solicitados em ações judiciais não foi incorporado pela ATS. Muitos são exorbitantemente caros e com alternativas já disponíveis na rede pública; porém, por via judicial, são disponibilizados, onerando todo o sistema público de saúde. Muitas vezes, o dinheiro gasto com o fornecimento de um único medicamento seria suficiente para fornecer muitos outros para uma quantidade muito maior de pacientes. Entra aqui o questionamento e o julgamento: o que seria justo? Fornecer tudo a todos, como afirma a Constituição? Mas isso é possível? É necessário? Não haveria alternativas? Como exemplo, foi realizado um estudo no estado do Rio de Janeiro sobre ações judiciais para fornecimento de um tratamento para crianças com tetraparesia. Em sua maioria, as solicitações foram deferidas, gerando um gasto de mais de 500 mil reais anuais, em um deslocamento não previsto de verba pública que pode impactar os princípios de equidade e integralidade do SUS, dado o alto custo do tratamento, voltado a uma parcela pequena de pacientes 8 .
8 MORAES DS, Teixeira RS, Santos MS. Profile of the judicialization of the Therasuit Method and its direct cost in the scope of the state of Rio de Janeiro. Rev Bras Epidemiol [Internet].
Já existem regras que determinam a inclusão de tecnologias no SUS conforme parecer da Conitec, mas, como a cada dia surgem novos medicamentos, acaba sendo difícil fazer uma avaliação mais ampla de tudo o que pode ser usado no tratamento dos pacientes. A análise de novos medicamentos a serem incorporados demandam estudo e análise burocrática, em especial para garantir eficácia e segurança aos usuários.
Em 2019, uma revisão que considerou toda a América Latina chegou à conclusão de que os estudos realizados até o momento são inconsistentes para afirmar que a judicialização prejudica a meta de equidade. Além disso, a revisão ressalta os interesses econômicos da indústria farmacêutica, a capacidade do Estado e o comportamento dos prescritores, advogados e juízes como variáveis que devem ser consideradas para uma avaliação adequada9
Discute-se se a judicialização garante o direito constitucional do cidadão, que não recebe o que lhe é devido por conta da má administração pública, e portanto seria uma forma de defender e garantir os princípios básicos do SUS e garanti-los; ou se, em contrapartida, transgride o dito popular de que o direito de um termina quando começa o direito do outro, ou seja, quando uma decisão para o benefício de um indivíduo prejudica outros, faltando recursos financeiros para os demais, passa a não ser mais justa.
4. ALTERNATIVAS PARA O CONTROLE DA JUDICIALIZAÇÃO NO BRASIL
4.1. Direito à saúde escalonado: possibilidade × necessidade
Segundo dados do IBGE, o rendimento mensal real domiciliar per capita em 2017 foi de R$ 1.271,00. Con -
2019 [acesso 19 dez 2019];22:e190006. DOI: 10.1590/1980549720190006
9 ANDIA TS, Lamprea E. Is the judicialization of health care bad for equity? A scoping review. Int J Equity Health [Internet]. 2019 [acesso 19 dez 2019];18(1):61. DOI: 10.1186/s12939-019-0961-y
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tudo, sabemos que a distribuição de renda é heterogênea, seja entre as regiões do país ou dentro de uma mesma cidade10 . Até o segundo trimestre de 2018, eram 23,3 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, com rendimentos abaixo de R$ 232,00 por mês11 . Muitos dependem exclusivamente do SUS, outros têm condições de pagar um convênio médico, e outros ainda, por opção pessoal, preferem o serviço particular. Todos têm o direito à saúde, mas enquanto alguns conseguem se sustentar, outros mal têm o que comer.
Sugere-se uma coordenação do SUS pautada na equidade, para que o os fármacos, insumos, órteses, próteses e congêneres sejam fornecidos à população de forma escalonada, em uma proporção de possibilidade × necessidade. Assim se realizaria um racionamento proporcional do acesso à saúde: quem pode mais – financeiramente – recebe menos do Estado; e quem pode menos, recebe mais.
Assim como o direito do cidadão de ter auxílio, em suas demandas individuais, de um defensor público, e portanto não ter gastos com um advogado particular, é baseado na renda da família e nos bens, o direito à saúde poderia ser escalonado. O parâmetro adotado pela Defensoria Pública da União para auxiliar os necessitados é atualmente pautado no valor de 2 mil reais mensais per capita12. Assim, poderia haver um parâmetro equitativo de distribuição do acesso à saúde com base no rendimento bruto mensal. A exceção seriam os casos de urgência e emergência, que não entram em discussão, devendo o 10 PNAD Contínua: 10% da população concentravam quase metade da massa de rendimentos do país em 2017. Agência IBGE Notícias [Internet]. 11 abr 2018 [acesso 20 dez 2019]. Disponível: https://bit.ly/35P72P2
11 Pobreza e desigualdade aumentaram nos últimos 4 anos no Brasil, revela estudo. FGV [Internet]. Políticas públicas; 10 set 2018 [acesso 19 dez 2019]. Disponível: https://bit.ly/2MemPyT
12 BRASIL. Defensoria Pública da União. Resolução nº 134, de 7 de dezembro de 2016. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 82, p. 122, 2 maio 2017 [acesso 19 dez 2019]. Disponível: https://bit.ly/35H0vWl
atendimento ser dispensado sem qualquer distinção para preservação da vida.
4.2. Embasamento jurídico
Já se passaram 20 anos desde a promulgação da Constituição Federal e, ao longo desse lapso temporal, seu conteúdo foi ampliado em mais de 40%, conforme informação do site do Planalto Federal. Inicialmente foi impossível ao legislador constituinte calcular os impactos oriundos da Constituição como um todo e, em especial, do direito à saúde. Assim, é inegável a necessidade de adequação, sem que haja aniquilamento, em concordância com o conceito de mutação constitucional.
A mutação constitucional é a adequação do sentido da norma constitucional aos padrões atuais de aplicabilidade, sem modificação formal em seu texto; ou seja, uma modificação do entendimento, da interpretação da Constituição, que a adeque às necessidades atuais. Outro termo jurídico que pode ser utilizado é a “ponderação de interesses constitucionais”, que sopesa todas as normas constitucionais sem o aniquilamento de qualquer uma delas, de acordo com a aplicabilidade, especialmente dentro dos princípios balizadores do SUS, de acordo com o artigo 198 e a Lei 8.080/1990. Trata-se de uma nova ótica para os mesmos princípios, com foco no bem-estar e na saúde coletiva acima do indivíduo.
Devem ser respeitados os princípios incorporados no ordenamento jurídico, encampados pelo STF, como o mínimo existencial, a parcela mínima de direitos fundamentais que o Estado deve garantir à população. Em contrapartida, há o conceito de reserva do possível, ou seja, o Estado arcando com o máximo que lhe é permitido financeiramente, evitando aplicar escolhas trágicas e a ingerência do Poder Judiciário nas políticas públicas, deixando-a como
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última alternativa13 . Assim, os direitos essenciais da população são preservados até o limite em que o Estado pode assegurá-los sem prejudicar os demais cidadãos. Se for um caso de preservação da vida, por exemplo, o Estado deve suprir; se for um caso de qualidade de vida ou prevenção, é discutível, de acordo com os parâmetros da ATS.
A sistemática criaria uma cláusula de barreira para o acesso à saúde, mas estaria longe de suprimir qualquer direito. Haveria uma alocação dos princípios que subsidiam o SUS, com mais eficácia e eficiência na gestão sanitária. A medida propiciaria a desjudicialização e o controle administrativo, evitando todos os ônus do processo, como gastos administrativos e sucumbenciais – valor dispendido pelo custo do processo. No sistema jurídico, essencialmente burocrático, um processo gera gastos com advogado ou defensor público, com a ação e todo o funcionalismo público, com a resposta do procurador do município, estado ou União, com o trabalho do juiz e seus assessores e com sucumbências. Este é um tipo de gasto do sistema que não costuma ser discutido e poderia ser evitado.
4.3. Adequação de gestão
4.3.1. Via administrativa
Uma das alternativas, já descrita como efetiva, é o fornecimento de medicamento por via administrativa, com ferramenta que realize avaliação socioeconômica. Contudo, deve-se intensificar a fiscalização, pois apesar de este ser um bom método, com boas alternativas de medicamentos já regulamentados e aprovados na ATS, os critérios socioeconômicos muitas vezes são burlados14 .
As portarias do Ministério da Saúde poderiam ser aperfeiçoadas a fim de disciplinar a responsabilidade de cada ente de forma mais ampla. Atualmente, existem as portarias Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) e Relação Municipal de Medicamentos (Remume), que tentam delimitar quais os medicamentos são de atribuição de cada ente federal. Ainda falta regramento preciso para que o sistema administrativo seja eficaz quanto ao acesso à saúde, delimitando, por exemplo, o valor de medicamentos de alto e altíssimo custo.
4.3.2. Avaliação de Tecnologias em Saúde aplicada à avaliação jurídica
A atuação jurisdicional deveria ser balizada por avaliação especializada, feita por profissional qualificado na área correspondente, com o objetivo de propiciar ao julgador subsídios para que saiba exatamente como proceder. Seriam fornecidas informações sobre substituição de fármacos, levando em consideração seu princípio ativo, com evidências científicas comprovadas, para levar à melhor decisão. Esta foi a principal estratégia identificada por estudo que avaliou a judicialização na América Latina e no Caribe, abordando o aspecto de geração de evidência científica útil para a tomada de decisões segundo a necessidade da população15
Especificamente no Uruguai, o Ministério da Saúde tomou a iniciativa de organizar mesas-redondas incluindo juízes e organizadores das Avaliações de Tecnologia em Saúde (ATS), qualificando e informando advogados de defesa para manejar tais tecnologias. Com isso, o governo passou a ganhar 25%
dicines? BMC Public Health [Internet]. 2019 [acesso 20 dez 2019];19(1):212. DOI: 10.1186/s12889-019-6529-3
13 BARCELLOS AP. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar; 2002. p. 236.
14 CHAGAS VO, Provin MP, Amaral RG. Administrative cases: an effective alternative to lawsuits in assuring access to me -
15 PINZÓN-FLÓREZ CE, Chapman E, Cubillos L, Reveiz L. Prioritization of strategies to approach the judicialization of health in Latin America and the Caribbean. Rev Saúde Publica [Internet]. 2016 [acesso 20 dez 2019];50:56. DOI: 10.1590/S15188787.2016050005728
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dos casos que lhes eram demandados, mesmo não diminuindo o número total de casos16 .
4.3.3. Banco de dados: e-NatJus
Já existem sistemas virtuais únicos, de fácil acesso, contendo banco de dados, como o Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (e-NatJus)17 – banco de dados atrelado ao CNJ que poderia ser ampliado, viabilizando amplo acesso, tanto do gestor público quanto do Poder Judiciário.
4.3.4. Combate à corrupção
Há ainda um fator externo, talvez o mais relevante: a corrupção em todas as esferas de poder, que tem origem cultural, social e econômica. Ela acaba consumindo a democracia e todas as suas instituições. O combate à corrupção envolve ética, moral e principalmente educação. Esse é um trabalho árduo, e não se consegue resultados em curto espaço de tempo, infelizmente. É preciso que cada um faça a sua parte: o paciente, que é o requerente, o advogado, o profissional da saúde, o pesquisador. O desafio é pensar na coletividade acima do individual.
5. AS RECENTES DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DO SUPERIOR TRIBUNAL
DE JUSTIÇA
Nos últimos anos, os tribunais superiores passaram a rever a questão da solidariedade entre os entes públicos para fornecimento de medicamentos. Em 2018, a concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS passou a exigir também os seguintes requisitos: 1) laudo do médico assistente fundamentando a imprescindibilidade ou
16 ALEMAN A, Perez Galan A. Impact of health technology assessment in litigation concerning access to high-cost drugs. Int J Technol Assess Health Care [Internet]. 2017 [acesso 20 dez 2019];33(4):411-4. DOI: 10.1017/S0266462317000575
17 Sistema e-NatJus. Conselho Nacional de Justiça [Internet]. 17 dez 2019 [acessado 20 dez 2019]. Disponível: https://bit.ly/2tyCKl6
necessidade do medicamento e ineficácia do tratamento com os fármacos fornecidos pelo SUS; 2) incapacidade financeira do paciente em arcar com os custos do tratamento; e 3) registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), observados os usos autorizados pela agência18
Recentemente, em 2019, o presidente do STF, Dias Toffoli, proferiu decisão liminar para suspender a obrigação do ente público municipal de fornecer medicamento de altíssimo custo para tratamento de doença rara e genética. Diante da discussão, surgiu a seguinte tese, apreciada em plenário para fins de repercussão geral – em questões relevantes na seara econômica, política, social ou jurídica:
1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais.
2. A ausência de registro na Anvisa impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.
3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos:
I – A existência de pedido de registro do medicamento no Brasil, salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras;
II – A existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior;
II I– A inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.
18 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Declaração no Recurso Especial nº 1.657.156-RJ (2017/0025629-7). Primeira seção. Relator: Benedito Gonçalves. Diário da Justiça Eletrônico [Internet]. Brasília, 21 set 2018 [acesso 20 dez 2019]. Disponível: https://bit.ly/33BFrC7
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4. As ações que demandem o fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão ser necessariamente propostas em face da União19
Diante dos posicionamentos recentes dos tribunais superiores, a regulação constitucional e as normas infraconstitucionais conduzem à conclusão de que, na gestão da saúde, a responsabilidade dos municípios limita-se à atenção básica, e a extrapolação desse limite interfere diretamente na gestão, tanto nas políticas públicas sanitárias quanto nas demais políticas públicas locais.
A solidariedade instituída no artigo 23, II da Constituição Federal20 deve ser interpretada de forma sistêmica, ordenando uma organização regionalizada e hierarquizada que defina as competências e atribuições da União, estados e municípios, respeitando assim a divisão entre entes públicos e o teto de gastos, em porcentagem em relação ao orçamento.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do conhecimento do impacto da judicialização e da inviabilidade do SUS da maneira como vem sendo conduzido, é necessário aperfeiçoar os critérios para fornecimento de medicamentos pela via administrativa e judicial, otimizando a gestão sanitária.
Os desafios são diversos, levando-se em conta a própria sistemática da Constituição Federal de 1988, que é extremamente paternalista e garantista, prometendo muito mais do que o Estado pode cumprir. O artigo 198 da Constituição Federal e 77 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)
19 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 657.718. Julgado mérito de tema com repercussão geral. Relator: Marco Aurélio. STF [Internet]. 22 maio 2019 [acesso 20 dez 2019]. Disponível: https://bit.ly/2QcmNZM
20 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça [Internet]. Brasília [acesso 19 dez 2019]. Disponível: https://bit.ly/33ErOlx
determinam um gasto de recursos próprios pelo ente municipal na esfera de não menos do que 15% de seu orçamento (na prática o gasto chega a superar 50% em alguns municípios). Portanto, a Constituição previu um valor mínimo de gasto, mas sem fixar um valor máximo. Inevitavelmente, a conta não fechará, e a judicialização acaba sendo uma alternativa, que por sua vez causa ingerência ao violar a separação dos poderes (art. 2 da Constituição Federal).
Os poderes, seja na esfera municipal, estadual ou federal, devem ter ações complementares, e não de sobreposição. As decisões judiciais relacionadas à saúde devem ser pautadas por discussões com embasamento científico, visando o bem maior da vida para o cidadão, mas não em detrimento de grande parte da população, pois desse modo o princípio da administração pública seria ferido. A demanda atual é a cooperação entre os poderes para o bem-estar geral.
É preciso buscar alternativas para que o SUS cumpra sua função constitucional, com parâmetros bem definidos e sem utopias, dando a cada cidadão o que lhe é de direito, na medida de sua equidade. De nada adianta uma Constituição paternalista sem aplicabilidade. Como apontado neste artigo, a via administrativa, a melhor preparação da avaliação jurídica, com participação da ATS, bancos de dados ampliados e disponíveis para diversos setores e o combate à corrupção são algumas das soluções para o problema.
REFERÊNCIAS
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Palavras-chave
Violência. Animais. Agressão doméstica
Fabricio Rasi de Almeida Prado Médico Veterinário, Doutor, Discente do curso de Direito UNINOVE - Bauru – SP - BRASIL – fabriciorasi@ yahoo.com.br
Gabrielle Barbosa Augusto
Discente do curso de Medicina Veterinária da FGP – Pederneiras - SP – BRASIL - gabrielle_bora@hotmail. com
Resumo
Objetivo deste trabalho foi correlacionar as semelhanças da violência contra os animais com a agressão doméstica. Forma de crueldade animal e de como ela se correlaciona com a violência doméstica, tendo o médico veterinário a sua importância para a denúncia e a quebra do ciclo das agressões. Atos agressivos contra semoventes apresentados na infância, indica problema com sociopatia ou um reflexo da criança em replicar atos que são cometidos contra ele. Crianças que cometem crueldade contra animais na infância, poderão ser adultos violentos e futuros agressores domésticos. Crueldade animal dentro de um ambiente familiar, é um sinal da existência de violência doméstica.
ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE VIOLÊNCIA CONTRA ANIMAIS E AGRESSÕES DOMÉSTICAS
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Apesar do código de processo civil brasileiro considerar os animais como semoventes, o que divergem dos pensamentos dos animalistas, os animais têm feito cada vez mais parte dos seios familiares. Quando falamos em violência doméstica é muito provável que se houver animais em casa os mesmos também sofram algum tipo de abuso, seja ele físico, psicológico ou sexual.
Segundo números levantados pelo IBGE e atualizados pela inteligência comercial do Instituto Pet Brasil, em 2018 foram contabilizados no país 54,2 milhões de cães; 39,8 milhões de aves; 23,9 milhões de gatos; 19,1 milhões de peixes e 2,3 milhões de répteis e pequenos mamíferos. A estimativa de animais de companhia no Brasil é de 139,3 milhões.
A lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 dispõe sobre maus-tratos a animais e o caracteriza como crime ambiental sujeito a pena de multa e reclusão, a mesma foi atualizada no ano de 2020 onde quem cometer esse crime será punido com 2 a 5 anos de reclusão, multa e proibição da guarda.
Conforme a Resolução nº 1236, a violência contra os animais pode ser classificada de três formas:
A) Maus tratos
Qualquer ato direto ou indireto, comissivo ou omissivo, que intencionalmente ou negligência provoque dor ou sofrimento desnecessário ao mesmo.
B) Crueldade
Qualquer ato intencional que provoque dor ou sofrimento desnecessário intencional ao animal.
C) Abuso
Qualquer ato intencional, comissivo ou omissivo, que implique no uso desapropriado, indevido, excessivo, incorreto de animais causando prejuízo dá ordem fí -
sica e/ou psicológica, incluindo atos como abuso sexual.
Parente et al. (2020), verificou que a família não está ligada unicamente ao afeto e a convivência entre seres humanos, mas, também, entre vínculos estabelecidos entre humanos e animais. Atualmente, os animais são considerados como membros da família.
Leal et al. (2017), cita a teoria de link onde baseia na ideia de adultos que violentam animais, são agressores de crianças ou mulheres. Crianças que praticam violência contra os animais tem grandes chances de que quando adultos se torne agressivos e as que sofrem quais quer tipo de agressão em casa tendem a refletir os atos em seus animais.
Os médicos veterinários desempenham um papel importante na quebra de ciclos em violências domésticas. Ao identificar casos de maus tratos animais, o veterinário deve reportar as autoridades, deste modo, podendo livrar uma pessoa que esteja em situação de agressão.
Objetivo deste trabalho foi correlacionar as semelhanças da violência contra os animais com a agressão doméstica.
2. MATERIAIS E MÉTODOS
Para a construção deste artigo científico foi consultado diversos trabalhos acadêmicos e realizado pesquisas bibliográficas sobre a teoria de link onde foi correlacionado a crueldade animal com violência doméstica. Diferentes artigos, livros e demais itens de base de dados como Scielo, Google scholar, resoluções, leis e pesquisas em acervos de universidades brasileiras.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Nas últimas décadas com o aparecimento das famílias multiespécie, núcleo familiar humano em convivência compartilhada com seus animais de estima-
76 1. INTRODUÇÃO
ção, tivemos uma associação com os maus tratos, nomeada de link. A teoria nos mostra que os mesmos agressores de animais também são os que praticam a violência doméstica.
Devemos tratar o maus-tratos com animais como a “ponta do iceberg”, pois ele pode ser o primeiro sinal de alerta para violência e abusos sexuais dentro e fora das residências. O agressor pode machucar ou matar o animal no intuito de ferir psicologicamente a potencial vítima ou até mesmo para controle emocional da mesma.
Padilha (2011), no seu estudo sobre a correlação da crueldade com animais com a violência doméstica contra mulheres, verificou no total de 435 mulheres onde mostrou que há ocorrência simultânea de violência animal em 50% dos casos analisados de agressões domésticas, ela ainda verificou que a violência física foi a mais praticada contra eles.
Em trabalho, de autoria de Frank Ascione, intitulado Relatório de Mulheres Agredidas por seus Companheiros e Crueldade de seus Filhos com os Animais de Estimação, realizado em 1996, propôs uma nova linha de pesquisa, voltada efetivamente para as mulheres que eram vítimas de violência por parte de seus companheiros. Nesta pesquisa ela visou observar 03 situações, sendo elas:
1. A relação dos animais de estimação e a agressão do companheiro à mulher, em uma amostra pesquisada entre mulheres que procuraram abrigos após serem agredidas pelos companheiros.
2. A ameaça constante de lesões aos animais de estimação, pelo companheiro que agredia ou ameaçava a mulher.
3. Evidências de crueldade animal praticadas pelos filhos das mulheres agredidas.
Durante a pesquisa foi entrevistadas 38 mulheres que estavam há poucos dias em abrigos específicos para mulheres agredidas pelos respectivos companheiros. 68 % das mulheres tinham mais de um animal de estimação, 71% das mulheres informaram que seus companheiros haviam tentado ferir ou matar 01 ou mais de seus animais de estimação. Destas 38 mulheres 22 tinham filhos onde 32 % delas relataram que eles haviam machucado ou matado seus animais de estimação (Nassaro 2013).
Contribuindo para a pesquisa sobre a teoria de link no Brasil, Nassaro (2013) verificou que um terço dos autores de crimes contra animais também cometeram outras infrações sendo entre elas: Ameaça, lesão corporal, roubo, abusos e homicídios, mas, metade dos delitos relacionado com agressão de outras pessoas.
Henriques (2009), pesquisou formas para identificar um psicopata através do testemunho de terceiros. Assim, sendo possível observar através dos relatos, o comportamento de um possível agressor durante a sua infância, se era agitado e mentiroso, se praticava atos de crueldade com os animais, como era em relação sociais, se seu comportamento na adolescência evoluiu para fugas e iniciou a praticar delitos, até se tornar um adulto com problemas psicológicos. O pensamento apresentado pelo mesmo condiz com o que ficou conhecido como a tríade de John MacDonald (Figura 1), que através de seus estudos no ano de 1963 descreveu a tríade sociopata, que se baseava em crianças que apresentavam repetidas vezes casos de enurese, atos de crueldade animal e de incendiários. O mesmo revela que tais comportamentos podiam prever futuros homicidas e agressores.
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Pesquisadores Daniel S. Hellman e Nathan Blackman (1966) analisaram 84 prisioneiros condenados por crimes violentos e não apenas por homicídio, foram analisados sobre suas infâncias e adolescências, eles concluíram que os três comportamentos mencionados nas tríades, quando presentes de forma simultânea em crianças e adolescentes, poderiam indicar pessoas violentas no futuro, mas não necessariamente homicidas. Helmann e Blackman determinaram que a presença da tríade na infância ou adolescência podem ser um prognóstico de comportamento antissocial violento futuro, ou seja, quanto mais cedo forem detectadas a tríade, mais cedo se evitará crimes violentos no futuro. (Pereira 2022; Nassaro 2013).
Segundo dados da Delegacia Eletrônica de Proteção Animal a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo em 2021, as denúncias de maus tratos contra animais cresceram 15,60% em relação ao ano anterior, entre os meses janeiro a novembro de 2021 foram registradas 16.042 denúncias e, no mesmo período de 2020, 13.887.
Através de dados coletados dos Estados limites com o Estado de São Paulo, 2021, o número de queixas crime realizadas nas delegacias eletrônicas de proteção animal referente a maus tratos, apresentam divergências entre os números de ocorrências, variando de 600 a 16 mil queixas crimes. O Estado do Mato Grosso do Sul é o que apresenta o menor número de queixas e o Estado de São Paulo apresenta o maior número de casos. Demais Estados como Paraná e Rio de Janeiro apresentam altos índices de queixas, segundo e terceiro respectivamente.
Conforme demonstrado no gráfico abaixo:
Gráfico 1: Denúncias de maus tratos animais 2021
Em pesquisa realizada por Tapia em 1997, foi utilizado 18 crianças e adolescentes de idades entre 05 e 14 anos da Seção de Psiquiatria Infantil da Universi -
dade do Missouri, os quais apresentavam reconhecido histórico de crueldade animal, estas foram selecionadas seguindo critérios de persistência em crueldade animal, mesmo que outros comportamentos violentos também estivessem presentes. O mesmo observou que as crianças e adolescentes apresentavam, além de registros de crueldade animal, de forma concomitante ou não, alguns dos 11 comportamentos que ele indicou como transtornos comportamentais, quais sejam, encoprese, eram mentirosos, destrutivos, excessivamente interessados em sexo, sádicos, temperamentais, sofriam pe -
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Figura 1: Tríade sociopata por John MacDonald.
sadelos, cometiam bullying e roubavam, durante a pesquisa constatou-se que nenhuma das 18 crianças apresentou a Tríade Comportamental completa, porem em todas elas estavam presentes ao menos 02 desses comportamentos da tríade, um deles era necessariamente a crueldade animal (Nassaro 2013).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Crianças que cometem crueldade contra animais na infância, poderam ser adultos violentos e futuros agressores domésticos.
Crueldade animal dentro de um ambiente familiar, é um sinal da existência de violência doméstica.
Maus-tratos aos animais possuem a mesma dinâmica envolvendo o controle imposto pelo agressor doméstico.
REFERÊNCIAS
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Palavras-chave
Criogenia humana. Autonomia do paciente. Bioética.
Vitor Pereira Brito
Advogado, Pós graduando em Direito Médico e Hospitalar, membro da Comissão Especial de Direito Médico da OAB/SP, Conselheiro da Jovem Advocacia da OAB/SP.
Resumo
A criogenia humana permite a vitrificação dos fluidos corporais, impedindo o envelhecimento e a deterioração do corpo humano, mantendo-o nas mesmas condições para reanimação futura. Embora tal procedimento seja considerado como experimento cientifico, muitos pacientes em fase terminal de doenças graves estão sendo submetidos à técnica e um dos objetivos é garantir por meio do avanço da ciência e da tecnologia que o cadáver volte à vida. Ainda que tal técnica não possa ser feita no Brasil, a criogenia é realizada no Arizona, Estados Unidos, com pouco mais de 200 (duzentos) corpos criopreservados. Sobre tal temática e com base no princípio da bioética, busca- se discutir a autonomia do paciente e seu poder decisório quanto à destinação dos seus restos mortais e sua liberdade de escolha quanto ao seu real destino.
CRIOGENIA E O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DO PACIENTE
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INTRODUÇÃO
A Criada por Robert Ettinger em 1970, a criogenia humana é uma técnica ainda com resultados incertos, mas que visa a ressuscitação do ser humano por meio de temperaturas baixíssimas. Mesmo sem comprovação científica, aumenta de forma gradativa os adeptos à tecnologia.
No Brasil, tal tema encontra-se em verdadeira lacuna jurídica, isso porque nosso ordenamento jurídico não possui previsão legal para a utilização da criogenia humana e tampouco há vedação à adoção do procedimento.
Ainda muito recente no ordenamento jurídico pátrio, a criopreservação tem guarida no princípio libertário, garantindo ao indivíduo a tomada de decisões e a prevalência da sua vontade.
Dessa forma, garantir a autonomia do paciente é proteger o direito à liberdade e os direitos da personalidade, podendo o ser humano decidir o destino do seu corpo post mortem.
O presente artigo aborda as atuais políticas médicas com base no princípio da bioética, respeitando a autonomia do paciente na utilização da criogenia humana e analisando a decisão do Tribunal brasileiro. Por fim, baseia-se toda problemática na filosófica liberal, respeitando a autonomia de vontade do paciente.
CRIOGENIA E A BIOTECNOLOGIA
A criogenia é a preservação de seres humanos em temperaturas baixas, que busca com o avanço da ciência e das tecnologias trazer pessoas de volta à vida com saúde. Embora nova, a técnica apresentada possui credibilidade em razão dos avanços científicos.
A criopreservação blinda o tecido cerebral, fazendo com que os danos aos neurônios sejam imperceptí-
veis, tal técnica sem dúvidas é um avanço biotecnológico.
Para garantir a vitrificação do corpo humano ou de parte dele é necessário que os fluidos corporais sejam mantidos num estado semelhante ao de vidro, ou seja, nem sólido, nem líquido.
Conforme a Rede D’or para garantir tal estado é necessário fazer suplementação com antioxidantes e vitaminas durante a fase terminal da doença, para diminuir as lesões nos órgãos vitais; arrefecer o corpo, após declarada a morte clínica, com gelo e outras substâncias frias. Este processo deve ser feito por uma equipe especializada e o mais rápido possível, para manter os tecidos saudáveis, especialmente o cérebro; injetar anticoagulantes no corpo para impedir que o sangue congele; transportar o corpo para o laboratório de criogenia onde será guardado. Durante o transporte, a equipe faz compressões torácicas ou utiliza uma máquina especial para substituir o batimento do coração e manter o sangue circulando, permitindo levar o oxigênio para todo o corpo; remover todo o sangue no laboratório, que será substituído por uma substância anticongelante preparada especialmente para o processo. Esta substância impede que os tecidos congelem e sofram lesões, como aconteceria se fosse sangue; guardar o corpo em um recipiente hermeticamente fechado, onde a temperatura será reduzida lentamente até atingir os -196 °C.1
Infere-se, portanto, que o estudo e debate de tal biotecnologia devem ser levados em consideração em razão dos impactos sociais que a criogenia humana traz.
1 CRIOGENIA HUMANA: O QUE É, COMO FUNCIONA E OBSTÁCULOS. Disponível em https://www.tuasaude.com/criogenia-humana/
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CRIOGENIA E O JULGAMENTO DO STJ
O nosso ordenamento jurídico não possui qualquer previsão sobre a criogenia humana, estabelecendo apenas o conceito padrão da morte no artigo 6º2 do Código Civil brasileiro.
Nota-se que a criogenia para ser realizada é preciso que ocorra após a parada cardiorrespiratória, o que impossibilitaria tal procedimento no Brasil.
Ocorre que, no ano de 2012 o Poder Judiciário brasileiro enfrenta o seu primeiro caso sobre criogenia humana. Na ocasião, o
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (processo, n. 0057606-61.2012.8. 19.0001 ) julgou o caso do engenheiro Luiz Felippe de Andrade Monteiro, posto que desde a sua morte as suas filhas travaram um embate judicial por discordarem da criogenia do cadáver do pai. A filha mais nova respeitando a vontade do seu pai providenciou o corpo do de cujus para ser criopreservado nos Estados Unidos, as duas outras herdeiras por sua vez, não concordaram com tal procedimento, o que levou ao debate jurídico.
O Superior Tribunal de Justiça, julgou o tema no seguinte sentido:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ORDINÁRIA. 1. DISCUSSÃO TRAVADA ENTRE
IRMÃS PATERNAS ACERCA DA DESTINAÇÃO DO CORPO DO GENITOR.
ENQUANTO A RECORRENTE AFIRMA QUE O DESEJO DE SEU PAI, MANIFESTADO EM VIDA, ERA O DE SER CRIOPRESERVADO, ASRECORRIDAS
SUSTENTAM QUE ELE DEVE SER SEPULTADO NA FORMA TRADICIONAL (ENTERRO). 2. CRIOGENIA. TÉCNICA
2 Art. 6 o A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva.
DE CONGELAMENTO DO CORPO HUMANO MORTO, COM O INTUITO DE REANIMAÇÃO FUTURA. 3. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL SOBRE O PRO -
CEDIMENTO DA CRIOGENIA. LACUNA NORMATIVA.NECESSIDADE DE INTEGRAÇÃO DA NORMA POR MEIO DA ANALOGIA (LINDB, ART. 4º). ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO QUE, ALÉM DEPROTEGER AS DISPOSIÇÕES DE ÚLTIMA VONTADE DO INDIVÍDUO,COMO DECORRÊNCIA DO DIREITO AO CADÁVER, CONTEMPLA DIVERSAS NORMAS LEGAIS QUE TRATAM DE FORMAS DISTINTAS DEDESTINAÇÃO DO CORPO HUMANO EM RELAÇÃO À TRADICIONAL REGRA DO
SEPULTAMENTO. NORMAS CORRELATAS QUE NÃOEXIGEM FORMA ESPECÍFICA PARA VIABILIZAR A DESTINAÇÃO DO CORPO HUMANO APÓS A MORTE, BASTANDO A ANTERIOR MANIFESTAÇÃO DE VONTADE DO INDIVÍDUO. POSSIBILIDADE DE COMPROVAÇÃO DA VONTADE POR QUALQUER MEIO DE PROVA IDÔNEO. LEGITIMIDADE DOS FAMILIARES MAIS PRÓXIMOS A ATUAREM NOS CASOS ENVOLVENDO A TUTELA DE DIREITOS DA PERSONALIDADE DO INDIVÍDUO POST MORTEM.
4. CASO CONCRETO: RECORRENTE QUE CONVIVEU E COABITOU COM SEU GENITOR POR MAIS DE 30 (TRINTA) ANOS, SENDO A MAIOR PARTE DO TEMPO EM CIDADE BEM DISTANTE DA QUE RESIDEM SUAS IRMÃS (RECORRIDAS), ALÉM DE POSSUIR PROCURAÇÃO PÚBLICA LAVRADA POR
SEU PAI, OUTORGANDO-LHE AMPLOS, GERAIS E IRRESTRITOS PODERES. CIRCUNSTÂNCIAS FÁTICAS QUE PERMITEM CONCLUIR QUE A SUA MANIFESTAÇÃO É A QUE MELHOR TRADUZ A REAL VONTADE DO DE CUJUS.
5. CORPO DO GENITOR DAS PARTES QUE JÁ SE ENCONTRA SUBMETIDO
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AO
PROCEDIMENTO DA CRIOGENIA
HÁ QUASE 7 (SETE) ANOS. SITUAÇÃO
JURÍDICA CONSOLIDADA NO TEMPO.
POSTULADO DA RAZOABILIDADE. OBSERVÂNCIA. 6.RECURSO PROVIDO... (REsp 1693718/RJ, Rel. Ministro MARCOAURÉLIO BELLIZZE,
TERCEIRA TURMA, julgado em 26/03/2019, DJe04/04/2019.
Nota-se que, embora exista lacuna no ordenamento jurídico brasileiro, o STJ de forma acertada julgou o tema embasando-se na autonomia de vontade do de cujus que em vida expressou o desejo de ser criopreservado, valendo-se o princípio da autonomia.
A BIOÉTICA COMO CIÊNCIA
Van Rensselaer Potter conceitua a bioética como “c iência da sobrevivência humana”, ainda, na sua obra Bioethics : bridge to the future destaca que a sobrevivência do ser humano depende da ética de forma fundamentada no conhecimento biológico, sendo, portanto, a própria bioética.
Já em 1974 foi criada a Comissão Nacional para a Proteção dos Seres Humanos em Pesquisa Biomédica e Comportamental, tal comissão teve profunda importância, pois criou princípios éticos com o objetivo de proteger o ser humano.
Em 1979 já com a publicação do Belmont Report foram definidos os princípios bioéticos, sendo respeito às pessoas, beneficência e justiça.3
No mesmo ano de 1979 o princípio do respeito às pessoas foi renomeado como princípio da autonomia, incluindo ainda um quarto princípio bioético denominado não-maleficência.
3 Three basic principles, among those generally accepted in our cultural tradition, are particularlyrelevant to the ethics of research involving human subjects: the principles of respect of persons, beneficence and justice.
A autonomia do paciente rompe de forma clara o que ficou conhecido como “paternalismo médic o” Krau 4 sobre o princípio da autonomia do paciente Mauro Roberti conclui que “o princípio da autonomia está sendo respeitado quando as decisões de cada influências” (ROBERTI, 2007, p. 65).
O princípio bioético da autonomia de vontade também está garantido no artigo 5ª caput da nossa Carta Magna com tamanha importância a resolução nº 2217/2018 do CFM, estabelece que:
Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal (CFM, 2018, s.p.).
Assim, o princípio da autonomia do paciente concede-lhe tanto a escolha em não querer algum tipo de tratamento para a sua doença, como também permite destinar o fim do seu corpo.
Dito isso, a autonomia do paciente não está apenas ligada ao seu poder de escolha; mas também tem ligação direita com a sua liberdade e dignidade humana.
Por tanto, o respeito à autonomia do paciente é sobre tudo o respeito das suas decisões, liberdade e escolha.
Perfaz-se, portanto, que a criogenia humana está ligada de forma direta com a autonomia do paciente, não ferindo nenhum princípio bioético (beneficência, não-maleficiência e justiça) não existe qualquer óbice bioética que impeça tal procedimento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O campo destacado aqui é a realização da vitrificação baseada na autonomia de vontade e a ausência de óbice bioética que impeça o procedimento de criogenia humana.
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Embora o Brasil não tenha dispositivos que regulem o tema, mostra-se necessário trazer à discussão que, o Superior Tribunal de Justiça baseou-se nos direitos da personalidade, reconhecendo a vontade do de cujus quanto à destinação do seu corpo post mortem.
Portanto, assegurar o direito de escolha do paciente sobre querer ou não realizar um tratamento médico é também garanti-lo tomadas de decisões sobre o prolongamento da sua vida por meio da criopreservação do seu corpo, ou parte dele.
REFERÊNCIAS
MÉDICO COMO ARQUITETO DA ESCOLHA: PA-
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CRIOGENIA DO CORPO HUMANO: UMA REALIDADE A SER ALCANÇADA? Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/criogenia-do-corpo-humano-uma- realidade-a-ser-alcancada
<Acesso 25 de outubro de 2023>
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União n. 191- A, de 5 de Out de 1988
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Palavras-chave
Doenças raras. políticas públicas. Direito à saúde. Garantia.
Jhessica Bueno da Silva Cantaluppi
Pós-graduanda em Direito Médico e da Saúde. Advogada devidamente inscrita nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil sob o nº 448.159. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Bauru, mantido pela Instituição Toledo de Ensino – ITE. http://lattes.cnpq.br/0030825967472483. jhessicacantaluppi@adv. oabsp.org.br.
Resumo
A Constituição Federal de 1988, vigente atualmente, trouxe especial relevância ao direito da saúde. A efetivação dele, por vezes, se dá através da execução de Políticas Públicas. Por sua vez, as doenças raras, que atingem 13 (treze) milhões de brasileiros, possuem a previsão de uma Política Nacional, instituída pela Portaria nº 199, de 30 de janeiro de 2014, a fim de garantir-lhes o direito à saúde. A previsão legislativa traz, além de objetivos gerais e específicos, a atribuição de responsabilidades ao Ministério da Saúde, às Secretaria de Saúde dos Estados e do Distrito Federal e às Secretaria de Saúde dos Municípios. Contudo, o que é visto, na prática, é a tamanha dificuldade de ter acesso ao diagnóstico precoce, bem como ao tratamento especializado, que possuem maior contemplação em centros de referências, que são localizados em grandes centros, excluindo as cidades interioranas, e, consequentemente, os habitantes delas. É necessário que o tema seja amplamente discutido entre o Poder Público, os pacientes e seus familiares, bem como os profissionais de saúde e a sociedade em geral, já que a falta de acesso à informação e o estigma para com os pacientes ainda está presente entre a população brasileira 08
O DIREITO À SAUDE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS EM PROL ÀS PESSOAS COM DOENÇAS RARAS NO BRASIL
1. INTRODUÇÃO
O direito à saúde, no Brasil, encontra amparo nos artigos 196 a 200 da Constituição Federal. Tal direito não faz acepção de pessoa, nem mesmo de diagnóstico. Sendo assim, os pacientes com doenças raras, podem angariar a garantia de direitos. Contudo, é necessário assegurar-lhes o tratamento digno através de políticas públicas.
O propósito da pesquisa encontra guarida na necessidade de conhecer as políticas públicas vigentes no Brasil, que possuem o condão de garantir os direitos das pessoas com doenças raras, especialmente o direito à saúde.
2. O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL
Antes de adentrar ao tópico, mas não esquivando-se do tema, cabe destacar a previsão do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em seu artigo 12, adotado pela ONU (Organização das Nações Unidas), no ano de 1966 (ONU, 1966):
§1. Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental.
§2. As medidas que os Estados-partes no presente Pacto deverão adotar, com o fim de assegurar o pleno exercício desse direito, incluirão as medidas que se façam necessárias para assegurar:
1. A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o desenvolvimento são das crianças.
2. A melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente.
3. A prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais
e outras, bem como a luta contra essas doenças.
4. A criação de condições que assegurem a todos assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade.
No Brasil, o direito à saúde ganhou ainda mais relevância após a promulgação da Constituição Federal de 1988, já que, segundo Alves e Cardoso (2016, p. 27):
A partir de 1988, [...] a Constituição Federal passou a gozar não apenas da supremacia formal que sempre teve, mas também de uma supremacia material, axiológica, potencializada pela abertura do sistema jurídico e pela normatividade de seus princípios.
As constituições passadas não previam tantos direitos como a atual Constituição da República, que prevê diversos mecanismos tendentes a proteger os cidadãos brasileiros. Cabe transcrever, então, a previsão do artigo 196 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988):
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Ao se falar em direito à saúde no Brasil, não se pode deixar de lado a criação do Sistema Único de Saúde, conhecido como SUS. No ano de 1986, com a realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde, foram traçadas as linhas de atuação que contribuíram para e criação do SUS, considerado, hoje, um marco histórico no Brasil (ALVES; CARDOSO, 2016, p. 31).
A Lei nº 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde) surgiu para regulamentar o funcionamento do SUS e esta-
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belecer diretrizes para sua operação, prezando por sua universalidade de acesso, bem como pela atenção integral, controle social e desconstrução da centralização político-administrativo (ALVES; CARDOSO, 2016, p. 32-33). No mesmo ano, surge a Lei nº 8.142 tratando sobre a gestão do SUS.
Possivelmente, o principal meio de efetivação do direito à saúde é a garantia do fundas políticas públicas, que, por vezes, pode ser o primeiro caminho para acesso a esta garantia constitucional.
3. CONCEITO DE POLÍTICA PÚBLICA
Política Pública pode ser definida como o conjunto de ações governamentais que visam proteger ou assegurar direitos de determinado grupo social, através do desenvolvimento de mecanismos hábeis à efetivação dessas garantias.
Segundo Alves e Cardoso (2016, p. 35):
O direito à saúde no Brasil é concretizado através de Políticas Públicas implementadas pelo Poder Público. Por Políticas Públicas entende-se o conjunto de programas, ações e atividades desenvolvidas pelo Estado, diretamente ou indiretamente, com a participação de entes públicos ou privados, que visam assegurar determinado direito de cidadania. Voltadas ou não à saúde, ainda que relacionadas a proporcionais direitos, não nascem como norma jurídica, carregando sua índole de escolha pública, indissociável da sua própria existência.
Vale destacar que há diferença entre política de Estado e política de governo, de acordo com Bucci (2006, apud OLIVEIRA, 2022):
A política pública tem um componente de ação estratégica, isto é, incorpora elementos sobre a ação necessária e possível naquele momento determinado, naque -
le conjunto institucional, e projeta-os para o futuro próximo. No entanto, há políticas cujo horizonte temporal é mediado em décadas – são as chamadas ‘políticas de Estado’ – e há outras que se realizam como partes de um programa maior, são das ditas ‘políticas de governo’.
Alves e Cardoso destacam, ainda, a problemática sobre as Políticas Públicas que versam sobre saúde no Brasil, atualmente, e, também falam sobre a escassez de recursos para sua aplicação (2016, p. 75):
Uma questão difícil de aceitar é que mesmo a saúde, que caracteriza um dos bens mais importantes na vida do ser humano, tem preço e, portanto, limite. O Poder Público dispõe de escassos recursos para serem alocados à saúde, de modo que as escolhas da Administração Pública, inclusive em outras áreas, são capazes de repercutir na prestação desse serviço tão essencial. Quanto à escassez de recursos, cabe mencionar uma didática distinção: utiliza-se a expressão ‘escassez relativa’ quando relacionada ao tanto de recurso que a Administração Pública aloca para a área da saúde, em comparação com as demais áreas de sua atuação. Por seu turno, a expressão ‘escassez absoluta’ relaciona-se a como os recursos destinados exclusivamente à saúde devem ser utilizados para atender às diversas necessidades da população.
No caso das pessoas com doenças raras, destaca-se a Portaria nº 199, de 30 de janeiro de 2014, que instituiu a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, que atribui aos entes federativos responsabilidades para com tais indivíduos, a qual será analisada oportunamente.
4. CONCEITO DE DOENÇAS RARAS
Hoje, existem aproximadamente 13 (treze) milhões de brasileiros diagnosticados com doenças raras (TEIXEIRA, 2022). O mês de fevereiro é dedicado à conscientização delas. Alguns exemplos de diagnósticos considerados raros são: doença de Crohn,
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hemofilia, esclerose múltipla (EM), esclerose lateral amiotrófica (ELA), entre outros.
Pode ser considerado como Doenças Raras o conjunto de condições patológicas, em sua maioria crônicas, que não são encontradas com frequência na sociedade, que, agrupadas, tornam-se expressivas. Este grupo de doenças é composto por anomalias congênitas, erros inatos do metabolismo e da imunidade, deficiências intelectuais, entre outras doenças, tendo, em sua maioria, o envolvimento de fatores genéticos. Estão associadas, ainda, outras etiologias, como fatores nutricionais e ambientais, assim como medicamentos e agentes teratogênicos, por exemplo. Estima-se a existência de ao menos 6.000 (seis mil) doenças raras espalhadas pelo mundo (OLIVEIRA, 2022).
4.1. Principais desafios enfrentados pelas pessoas com doenças raras no acesso à saúde
O primeiro problema a ser enfrentado é a falta de acesso à informação, pois não há ampla divulgação da Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, que será oportunamente analisada na presente pesquisa, impossibilitando que as pessoas busquem seus direitos.
Além disso, a concentração de centros de referência em grandes cidades, fazem com que o tratamento integral não chegue aos interiores, e, consequentemente, desampara as pessoas que não residem nas capitais. É preciso que haja investimento público para a criação de mais centros de referência, possibilitando o tratamento integral da pessoa diagnosticada com doença rara.
A falta de informações sobre doenças raras entre profissionais de saúde e o público em geral ainda é uma grande questão a ser trabalhada no Brasil. Em
se tratando dos profissionais de saúde, se há desinformação, há empecilho no diagnóstico precoce, que, por sua vez, é primordial para o sucesso do tratamento, além de evitar sequelas ou o agravamento da doença. O paciente que tem acesso rápido e preciso sobre o diagnóstico, pode iniciar o tratamento mais cedo, e, consequentemente, terá mais autonomia em sua vida diária, dependendo do seu quadro de saúde.
Saber lidas com as pessoas com doenças raras é primordial não apenas para os profissionais de saúde, mas também para a população em geral. Deve-se tratar os pacientes como pessoas possuidoras de direitos que são. O diagnóstico de doença rara não é um impedidor do desenvolvimento do indivíduo, o que paira na imaginação da população. É importante quebrar o estigma e trazer à tona os milhares de casos de pessoas com doenças raras, que, além de enfrentar seus desafios diários, são engajadas em causas sociais e ajudam outras pessoas a lidarem com o diagnóstico.
5. POLÍTICA NACIONAL DE ATENÇÃO INTEGRAL ÀS PESSOAS COM DOENÇAS RARAS
A Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, que surgiu com a Portaria nº 199, de 30 de janeiro de 2014, possui objetivos gerais, sendo eles: reduzir a mortalidade, contribuir para a redução da morbimortalidade, contribuir para a redução das manifestações secundárias e contribuir para a melhoria da qualidade de vida das pessoas (BRASIL, 2014).
Já com relação aos objetivos específicos, são eles: (a) a garantia de universalidade, integralidade e equidade das ações e dos serviços de saúde, consequentemente reduzindo a morbidade e mortalidade das pessoas com doenças raras; (b) o estabeleci -
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mento de diretrizes de cuidado às pessoas com doenças raras; (c) a garantia de atenção integral aos pacientes na RAS (Rede de Atenção à Saúde); (d) a ampliação do acesso universal e regulado dos raros da RAS; (e) garantia de acesso aos meios diagnósticos em tempo oportuno, mantendo o acesso aos meios para diagnóstico e terapia disponíveis conforme a necessidade; (f) a qualificação da atenção às pessoas diagnosticadas com doenças raras (BRASIL, 2014).
Alguns princípios instituídos pela Portaria Nacional são os seguintes: atenção humanizada e centrada nas necessidades das pessoas; promoção do respeito às diferenças e aceitação de pessoas com doenças raras, com enfrentamento de estigmas e preconceitos; articulação intersetorial e garantia de ampla participação e controle social etc (BRASIL, 2014).
O capítulo IV da PNAIPDR atribui as “responsabilidades” do Ministério da Saúde e das Secretarias de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que ficam assim definidas, nos artigos 8º ao 11 (BRASIL, 2014):
Art. 8º São responsabilidades comuns do Ministério da Saúde e das Secretarias de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em seu âmbito de atuação:
I - garantir que todos os serviços de saúde que prestam atendimento às pessoas com doenças raras possuam infraestrutura adequada, recursos humanos capacitados e qualificados, recursos materiais, equipamentos e insumos suficientes, de maneira a garantir o cuidado necessário;
II - garantir o financiamento tripartite para o cuidado integral das pessoas com doenças raras, de acordo com suas responsabilidades e pactuações;
III - garantir a formação e a qualificação dos profissionais e dos trabalhadores de saúde de acordo com as diretrizes da Política de Educação Permanente em Saúde (PNEPS);
IV - definir critérios técnicos para o funcionamento dos serviços que atuam no escopo das doenças raras nos diversos níveis de atenção, bem como os mecanismos para seu monitoramento e avaliação;
V - garantir o compartilhamento das informações na RAS e entre as esferas de gestão;
VI - adotar mecanismos de monitoramento, avaliação e auditoria, com vistas à melhoria da qualidade das ações e dos serviços ofertados, considerando as especificidades dos serviços de saúde e suas responsabilidades;
VII - promover o intercâmbio de experiências e estimular o desenvolvimento de estudos e de pesquisas que busquem o aperfeiçoamento, a inovação de tecnologias e a disseminação de conhecimentos voltados à promoção da saúde, à prevenção, ao cuidado e à reabilitação/habilitação das pessoas com doenças raras;
VIII - estimular a participação popular e o controle social visando à contribuição na elaboração de estratégias e no controle da execução da Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras;
IX - contribuir para o desenvolvimento de processos e métodos de coleta, análise e produção de informações, aperfeiçoando permanentemente a confiabilidade dos dados e a capilarização das informações, na perspectiva de usá-las para alinhar estratégias de aprimoramento da gestão, disseminação das informações e planejamento em saúde; e
X - monitorar e avaliar o desempenho e qualidade das ações e serviços de preven -
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ção e de controle das doenças raras no país no âmbito do SUS, bem como auditar, quando pertinente.
Art. 9º. Compete ao Ministério da Saúde:
I - prestar apoio institucional às Secretarias de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios no processo de qualificação e de consolidação da atenção ao paciente com doença rara;
II - analisar, consolidar e divulgar as informações provindas dos sistemas de informação federais vigentes que tenham relação com doenças raras, que devem ser enviadas pelas Secretarias de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e utilizá-las para planejamento e programação de ações e de serviços de saúde e para tomada de decisão;
III - definir diretrizes gerais para a organização do cuidado às doenças raras na população brasileira;
IV - estabelecer, através de PCDT, recomendações de cuidado para tratamento de doenças raras, levando em consideração a incorporação de tecnologias pela CONITEC, de maneira a qualificar o cuidado das pessoas com doenças raras;
V - efetuar a homologação da habilitação dos estabelecimentos de saúde que realizam a atenção à saúde das pessoas com doenças raras, de acordo com critérios técnicos estabelecidos previamente de forma tripartite; e
VI - disponibilizar sistema de informação para registro das ações prestadas no cuidado às pessoas com doenças raras em todos os serviços de saúde, seja na atenção básica ou especializada, ambulatorial ou hospitalar.
Art. 10. Às Secretarias de Saúde dos Estados e do Distrito Federal compete:
I - pactuar regionalmente, por intermédio do Colegiado Intergestores Regional (CIR) e da Comissão Intergestores Bipartite (CIB) todas as ações e os serviços necessários para a atenção integral às pessoas com doenças raras;
II - definir estratégias de articulação com as Secretarias Municipais de Saúde com vistas à inclusão da atenção e do cuidado integral às pessoas com doenças raras nos planos municipais, estadual e planejamento regional integrado;
III - apoiar tecnicamente os Municípios para organização e implantação do cuidado para as pessoas com doenças raras;
IV - realizar a regulação visando à garantia do atendimento local, regional, estadual ou nacional às pessoas com doenças raras, de acordo com as necessidades de saúde;
V - analisar os dados estaduais relacionados às doenças raras produzidos pelos sistemas de informação vigentes e utilizá-los de forma a aperfeiçoar o planejamento das ações e a qualificar a atenção prestada às pessoas com doenças raras;
VI - definir os estabelecimentos de saúde de natureza pública, sob sua gestão, que ofertam ações de promoção e prevenção e que prestam o cuidado às pessoas com doenças raras, em conformidade com a legislação vigente;
VII - apoiar os Municípios na educação permanente dos profissionais de saúde a fim de promover a qualificação profissional, desenvolvendo competências e habilidades relacionadas às ações de prevenção, controle e no cuidado às pessoas com doenças raras;
VIII - efetuar e manter atualizado o cadastramento dos serviços de saúde sob sua gestão no sistema de informação federal vigente para esse fim e que realizam a
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atenção à saúde das pessoas com doenças raras, de acordo com critérios técnicos estabelecidos em Portarias específicas do Ministério da Saúde; e
IX - planejar e programar as ações e os serviços necessários para atender a população de acordo com a contratualização dos serviços, quando for de gestão estadual.
Art. 11. Compete às Secretarias Municipais de Saúde:
I - pactuar regionalmente, por intermédio do Colegiado Intergestores Regional (CIR) e da Comissão Intergestores Bipartite (CIB) todas as ações e os serviços necessários para a atenção integral das pessoas com doenças raras;
II - planejar e programar as ações e os serviços de doenças raras, assim como o cuidado das pessoas com doenças raras, considerando- se sua base territorial e as necessidades de saúde locais;
III - organizar as ações e serviços de atenção para doenças raras, assim como o cuidado das pessoas com doenças raras, considerando- se os serviços disponíveis no Município;
IV - planejar e programar as ações e os serviços necessários para atender a população e operacionalizar a contratualização dos serviços, quando não existir capacidade própria;
V - planejar e programar as ações e os serviços necessários para atender a população de acordo com a contratualização dos serviços, quando de gestão municipal;
VI - realizar regulação visando à garantia do atendimento local, regional, estadual ou nacional às pessoas com doenças raras, de acordo com as necessidades de saúde;
VII - realizar a regulação entre os componentes da rede de atenção à saúde, com definição de fluxos de atendimento à saúde para fins de controle do acesso e da garantia de equidade, promovendo a otimização de recursos segundo a complexidade e a densidade tecnológica necessárias à atenção à pessoa com doenças raras, com sustentabilidade do sistema público de saúde;
VIII - realizar a articulação interfederativa para pactuação de ações e de serviços em âmbito regional ou inter-regional para garantia da equidade e da integralidade do cuidado;
IX - implantar o acolhimento e a humanização da atenção de acordo com a Política Nacional de Humanização (PNH);
X - analisar os dados municipais relativos às ações de prevenção e às ações de serviços prestados às pessoas com doenças raras, produzidos pelos sistemas de informação vigentes e utilizá-los de forma a aperfeiçoar o planejamento das ações locais e a qualificar a atenção das pessoas com doenças raras;
XI - definir os estabelecimentos de saúde de natureza pública, sob sua gestão, que ofertam ações de promoção e prevenção e que prestam o cuidado às pessoas com doenças raras, em conformidade com a legislação vigente;
XII - efetuar e manter atualizado os dados dos profissionais e de serviços de saúde que estão sob gestão municipal, públicos e privados, que prestam serviço ao SUS no Sistema do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES); e
XIII - programar ações de qualificação para profissionais e trabalhadores de saúde para o desenvolvimento de competências e de habilidades relacionadas às ações de prevenção e de controle das doenças raras.
Tal previsão na PNAIPDR, qual seja, a atribuição de responsabilidades a cada ente federativo, funcionam como uma bússola, na prática, já que as organiza-
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ções civis, pacientes e familiares, tem acesso transparente à competência de cada um, de forma que, assim, podem cobrar seus direitos, o que, de certa forma, contribui para o controle social.
O Manifesto de Cuiabá precedeu a PNAIPDR, oportunidade em que várias associações de familiares e pacientes com síndromes genéticas se reuniram, no ano de 2011, destacando o papel do controle social, embora ele não tenha sido tão contemplado na referida Política (MOREIRA at al, 2018).
Fonseca (2014, p. 06) identifica duas situações no cenário brasileiro de Políticas Públicas de doenças raras, sendo elas: em primeiro lugar, a escassez de indicadores epidemiológicos sobre o tema, e, em segundo lugar, a adoção de ações voltadas para atenção às pessoas diagnosticadas com doenças raras.
Vale destacar que um dos objetivos específicos da PNAIPDR é a garantia de acesso aos meios diagnósticos em tempo oportuno. Ao falar em diagnóstico, é imperioso mencionar que, quando esse é tardio, pode acarretar danos ao paciente. Desse modo, é necessário que o Poder Público amplie o acesso ao diagnóstico precoce.
Outro grande problema deve-se ao fato de que, embora o SUS ofereça tratamento integral às pessoas com doenças raras, este se dá em poucos centros de referência, localizados em grandes cidades. Sendo assim, a normativa da PNAIPDR, na prática, muitas vezes tem sido “seletiva”, pois as pessoas com doenças raras que residem longe de um centro de referência, nem sempre conseguem o acesso ao tratamento, além das filas de espera para passarem pelas terapias multidisciplinares.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O problema a ser enfrentado é a falta de acesso à informação, pois não há ampla divulgação da Política
Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, impossibilitando que as pessoas busquem seus direitos. Além disso, a concentração de centros de referência em grandes cidades, fazem com que o tratamento integral não chegue aos interiores, e, consequentemente, desampara as pessoas que não residem nas capitais.
Portanto, se faz necessária a criação de um banco de dados, a nível nacional, para mapear quem são as pessoas com doenças raras, qual a faixa etária, quais os diagnósticos, a localização geográfica delas, entre outros dados que devem ser captados, facilitando não apenas o armazenamento dos dados para fins estatísticos, mas principalmente para levar assistência médica, jurídica e psicossocial para os pacientes.
Outra medida importante a ser tomada, é o investimento direcionado à criação de mais centros de referência para atendimento de pessoas com doenças raras, mas não um atendimento genérico, ao contrário disso, é necessário ofertar assistência multidisciplinar aos pacientes com doenças raras, e, ainda, facilitar a integração de cuidados de saúde.
Por fim, imperioso mencionar que a criação de leis protegendo os direitos dos raros é medida importantíssima, em complementação à PNAIPDR.
É necessário que haja a colaboração entre governo, profissionais de saúde, pacientes e organizações da sociedade civil, para a construção de uma sociedade inclusiva e que efetivamente garante o direito à saúde independente de diagnóstico.
Não se pode deixar de lado, ainda, o estigma para com as pessoas diagnosticadas com doenças raras. Os raros são muitos e diariamente provam sua resiliência, coragem e determinação. São possuidores de direitos e devem ser vistos pelo Poder Público.
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REFERÊNCIAS
JUDICIALIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS: UMA RECONSTRUÇÃO DO OBJETIVO DO DIREITO À SAÚDE NO CENÁRIO BRASILEIRO
Palavras-chave
Direito na Área da Saúde. Judicialização da Saúde. Sistema Único de Saúde
Gabrieli Roque de Castro
Aluna do 10° período do curso de enfermagem das Faculdades Integradas de Jau – FIJ, E-mail: gabrieli.roque. castro@gmail.com
Elias Felipe Pinto
Aluno do 10° período do curso de direito das Faculdades Integradas de Jau – FIJ, E-mail: eliasfelipe00@hotmail.com
Resumo
Aos direitos sociais foram atribuídas força legal com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Com a previsão literal do direito a saúde como um direito social, devendo sua execução atingir a todos os cidadãos brasileiros. Em razão dessa previsão o Sistema Único de Saúde foi instituído pela Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, criando um cenário de esperança na garantia integral do acesso e manutenção ao direito a saúde. Contudo, com o decorrer do tempo, a busca pela garantia do direito à saúde no contexto brasileiro, demonstrou-se uma jornada incessante e multifacetada, que abrange aspectos históricos significativos que corroboraram para o fornecimento gratuito de serviços de saúde em todo território nacional. Com o sucateamento do fornecimento básico ao acesso a saúde, prenota-se a ausência do Estado em cumprir com suas atribuições em fornecer medicamentos, insumos, consultas, e demais matérias ou serviços voltados efetivamente ao acesso a saúde em suas diversas formas. Assim, a busca pela compreensão profunda do direito à saúde segue como um processo contínuo. A dinâmica entre aspectos normativos e práticos requer um diálogo constante entre os setores jurídico, político e social. Nota-se a necessidade de estudos que sirvam como um ponto de partida para discussões mais aprofundadas sobre o direito à saúde, políticas mais eficazes e, em última instância, que garantam a promoção de um sistema de saúde mais acessível, equitativo e sustentável em prol de toda a sociedade brasileira. 09
INTRODUÇÃO
Desde os primórdios da humanidade o modelo curativista tem evoluído e se transformado em diversos determinantes cruciais da qualidade de vida e sobrevivência humana. Com a introdução do aspecto jurídico na intervenção dos direitos sociais, em suma no acesso ao direito à saúde, tem-se buscado a eficácia e eficiência da aplicabilidade e garantia desses direitos (Pinheiro Bezerra; Esposito Sorpreso, 2016).
No presente século, a saúde transcende a mera ausência de doenças, e se transforma em uma perspectiva mais ampla, o direito à saúde foge de suas perspectivas e abrangem direitos que decorrem do mesmo, incorporando fatores que vão além do campo da medicina, como alimentação adequada, moradia digna, saneamento básico, ambiente saudável, trabalho digno, renda justa, educação, atividade física, transporte, lazer e acesso aos bens e serviços essenciais (Seidl; Zannon, 2004).
A busca incessante pela garantia do direito à saúde no contexto brasileiro é uma jornada única e multifacetada, que abrange aspectos históricos significativos que corroboraram para o fornecimento gratuito de serviços de saúde em todo território nacional (Brasil, 2012).
Durante a República Velha, período esse que ocorreu entre os anos de 1889 e 1930, os hospitais eram rarefeitos e, em sua maioria, de caráter privado, com um foco notadamente curativo e exclusivo apenas de uma parcela da população. O surgimento da Previdência Social pelo Decreto Legislativo nº 4.682, de 24 de janeiro de 1923, marcou uma mudança importante ao introduzir o cuidado com a saúde como parte das políticas públicas (Andrade et al., 2018).
Porém, a virada histórica da saúde no Brasil veio com a Conferência em Alma-Ata (1978), lançando bases para um novo paradigma: a saúde como um
dever do Estado. O fim da ditadura e a posterior realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde em 1986 consolidaram essa visão, levando à criação do Sistema Único de Saúde (SUS) em 1988 por meio da Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990. Um marco na história das políticas públicas de saúde no Brasil e uma vitória do povo (Mendes, 2004).
Decorrente de tais direitos e previsões da Carta Magna, o Sistema Único de Saúde (SUS), considerado o maior sistema público de saúde no mundo, vem enfrentando significativos desafios na oferta de cobertura pelo programa. Com o emergente aumento de demanda, ficando todo, senão a maioria do atendimento à saúde sob responsabilidade sua, ainda que por meio de ministérios e secretarias, o acesso a saúde sofre com o sucateamento, alta nas demandas e falta de repasses ou convênios que forneçam os recursos por parte do Estado, recursos esses que se demonstram cada vez mais escassos (Freitas; Fonseca; Queluz, 2020).
Diante desse problema que pode ser resumido na presença de demanda superior ao que pode ser ofertado pelo sistema de saúde, ainda que sendo responsabilidade do Poder Executivo a gestão e o controle das medidas administrativas para a manutenção do sistema, surge em razão das ações oriundas do poder judiciário, o termo judicialização como um fenômeno marcante e significativo, visando solucionar, ainda que temporária e individualmente o problema, oriunda da má administração pública de recursos exclusivamente destinados a promoção da saúde. Quando a saúde não é prontamente fornecida à população, os recursos judiciais se tornam uma ferramenta essencial para a garantia desse direito (Dallari, 2013).
Logo, a judicialização do direito à saúde trouxe à tona uma série de questões e debates, incluindo a questão da sustentabilidade do sistema, a alocação
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de recursos e a necessidade de encontrar um equilíbrio entre as demandas individuais e a gestão coletiva da saúde pública (Ventura et al., 2010).
Assim, o presente estudo busca desvelar a complexidade intrínseca na garantia ao direito à saúde no contexto brasileiro, explorando a conexão entre os aspectos normativos e práticos. A análise dos fundamentos teóricos, da busca dos cidadãos ao amparo em decisões judiciais face a administração do Poder Executivo, visando a garantia a saúde por meio de caminho alternativo ao fornecido pelo Estado. Tecendo compreensões para a compreensão da construção e reconstrução desse direito por meio da força de decisões normativas judiciais, obrigando e coagindo o Poder Executivo no fornecimento ao acesso garantia a saúde, atuando na linha tênue na interferência dos poderes, cogitando o risco na harmonia dos mesmo face a garantia dos direitos constitucionais.
DESENVOLVIMENTO
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o direito à saúde recebe uma atribuição mais garantista, para além de uma simples disposição normativa, inserindo-se profundamente como um dos direitos essenciais do indivíduo. Além disso, ele se estende para operar como um princípio fundamental que orienta a estruturação da sociedade. A evolução das interpretações trazidas pela jurisprudência e o desenvolvimento contínuo das análises doutrinárias sobre essa cláusula constitucional evidenciam uma crescente conscientização em relação ao papel intrínseco da saúde na efetivação plena da cidadania (Brasil, 2023).
O direito à saúde, que abrange diversos aspectos, como a redução do risco de doença e de outros agravos, visando o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e re -
cuperação, ainda que resumido em poucas palavras, vai muito além de uma simples disposição normativa, inserindo-se profundamente como um dos direitos essenciais do indivíduo. Além disso, ele se estende para operar como um princípio fundamental que orienta a estruturação da sociedade, a preservação deste direito esta objetivamente relacionada com o ser humano enquanto cidadão de direitos. A Constituição não somente estabelece meramente o direito à saúde em seus parâmetros e abrangências, mas também estabelece o arcabouço legal que regula o relacionamento entre o cidadão e o Estado nessa esfera crucial.
A evolução das interpretações trazidas pela jurisprudência e o desenvolvimento contínuo das análises doutrinárias sobre essa cláusula constitucional evidenciam uma crescente conscientização em relação ao papel intrínseco da saúde na efetivação plena da cidadania.
Vista a concretização dos direitos previsto na Constituição Federal, o Estado com advento da Lei nº 8.080/90 instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS), visando garantir o acesso a saúde na modalidade prática em todo o território nacional, ficando a cargo do Estado fornecer orçamento e demais condições necessárias garantir o direito fundamental a saúde, direito explicito de todo ser humano.
Entretanto, apesar de o legislador ter redigido de forma exemplar a lei que a cria e rege, com o emergente aumento de demanda, ficando todo, senão a maioria do atendimento à saúde sob responsabilidade do SUS, ainda que por meio de ministérios e secretarias, o acesso a saúde sofre com alguns aspectos, como, o sucateamento, a alta nas demandas, e a falta de repasses ou convênios que forneçam os recursos por parte do Estado, percebe-se que esses recursos se demonstram cada vez mais escassos.
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Diante da inercia do Estado em corrigir e mitigar os erros, somada a frustação dos cidadãos na restrição do acesso a saúde, restou-se necessário a busca por vias distintas que visem a resolução do problema com a garantia do direito, logo, encontram amparo em decisões judiciais, visando a garantia a saúde por meio de caminho alternativo ao fornecido pelo Estado, decisões que repercutem na construção e reconstrução desse direito por meio da força de decisões judiciais que pressionam o executivo ao fornecimento ao acesso e garantia a saúde em meio a uma sociedade que aspira a conciliar os princípios constitucionais com as necessidades do povo.
Dito isso, a perspectiva constitucional da judicialização desempenha um papel central na concretização do direito à saúde. O Poder Judiciário, integrante do sistema de equilíbrio de poderes delineado pelo legislador, surge como uma contraposição às possíveis lacunas administrativas e políticas na prestação de serviços de saúde. A função contra majoritária desempenhada pelo judiciário, ao se envolver na proteção desse direito, manifesta-se como um instrumento de preservação dos valores democráticos e da dignidade inerente ao ser humano.
A judicialização não apenas possibilita a retificação de injustiças individuais, mas também estabelece precedentes que orientam a formulação de decisões em âmbitos mais abrangentes, moldando as políticas públicas em sintonia com as necessidades da coletividade (Fuhrmann, 2014).
De acordo com a Constituição Federal, os municípios são obrigados a destinar 15% do que arrecadam em ações de saúde. Para os governos estaduais, esse percentual é de 12%. Já o Governo Federal tem um cálculo um pouco mais complexo: tem que contabilizar o que foi gasto no ano anterior, mais a variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB). Então essa variação é somada ao que se gastou no ano an -
terior para se definir qual o valor da aplicação mínima naquele ano. Assim, fica evidenciado que o SUS é financiado com os impostos do cidadão – ou seja, com recursos próprios da União, Estados e Municípios e de outras fontes suplementares de financiamento, todos devidamente contemplados no orçamento da seguridade social.
Entretanto, cada vez resta mais evidente a falha na prestação dos serviços a saúde, seja no fornecimento de medicamento, na realização de exames, cirurgias ou na simples consulta médica.
Diante desta falha, essa desassistência, abre evidente margem para que a população recorra cada vez mais ao judiciário, que provocado pelos princípios que o regem, saindo da inércia, não resta outra solução no cumprimento de suas atribuições, a não ser, reconhecer a necessidade na prestação dos serviços e a evidente violação aos direitos outrora garantidos, nada mais resta em defesa dos direitos, sentenciar em face da garantia, coagindo o Estado a fornecer o acesso a saúde de forma individual, conforme as demandas emergem. Visando, ainda que subjetivamente a igualdade ao acesso a saúde.
Entretanto, apesar de a judicialização do acesso a saúde sanar o problema de forma temporária, existem dois fatores que devem ser levados em conta, o primeiro remete a independência e harmonia dos três poderes, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, uma vez que um poder interferir nas atribuições do outro, pode resultar em problemas futuros que podem desaguar de forma prejudicial na manutenção da democracia. Em segundo, ao aumento nas demandas judiciais que visam o acesso a saúde podem ocasionar na paralisar do judiciário, haja vista as ações autônomas e individuais, causando assim também o sucateamento do Poder Judiciário.
Logo, percebe-se a necessidade de o Poder Executivo retomar as rédeas e cumprir com suas atribui -
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ções, garantindo o acesso integral e igualitário aos direitos sociais.
Por fim, no contexto brasileiro, o direito à saúde adquire substância na esfera das obrigações do Estado. A concretização efetiva desse direito ultrapassa meras declarações de intenção, requerendo a edificação de uma estrutura coerente capaz de concretizá-lo. A análise da jurisprudência desvenda uma interação complexa entre os princípios constitucionais e as exigências da realidade social. A emergência de casos paradigmáticos ressalta a tensão entre o acesso abrangente e a limitação dos recursos, destacando a importância de equilibrar a imperatividade dos direitos com as restrições pragmáticas (Ferraz, 2019).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Restou, demonstrado no presente trabalho, a evidente a falha do Executivo na prestação dos serviços públicos no setor do acesso a saúde, o desacerto do Estado como um todo em cumprir com as diretrizes normativas e constitucionais no fornecimento e acesso irrestrito a saúde.
Permanece assim, aos necessitados, que carecem de auxílio do Estado, que vale salientar contribuíram e contribuem com impostos e taxas direitas e indiretas aos cofres do Estado e não tem o retorno devido como deveria ser, resta recorrer ao Poder Judiciário que emerge com um salvador, proferindo sentença com força de coação e multas para que o Estado, seja a União, o Estado, o Distrito Federal ou os municípios cumpram com seu papel e forneçam o direito aqui citado.
Ou ainda, salienta-se a necessidade do Poder Executivo, por meio de uma gestão eficaz e eficiente, cumprir com suas atribuições sem a necessidade de encurralamento do poder judiciário, que resulta muitas vezes, no pagamento de multas pela falta do
acesso a saúde, a necessidade de cumprir com a decisão judicial e os gatos com honorários de sucumbência. Fatores que se esgotam, quando em tese, poderiam ser resolvidos pelo Estado.
Assim, a busca pela compreensão profunda do direito à saúde segue como um processo contínuo. A dinâmica entre aspectos normativos e práticos requer um diálogo constante entre os setores jurídico, político e social. Nota-se a necessidade de estudos que sirvam como um ponto de partida para discussões mais aprofundadas sobre o direito à saúde, políticas mais eficazes e, em última instância, que garantam a promoção de um sistema de saúde mais acessível, equitativo e sustentável em prol de toda a sociedade brasileira.
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Edição 44 Ano 2023