Revista Científica da ESA: Temas do Direito Civil Contemporâneo - Ed. 45

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T EMAS DO DIREITO CIVIL CONTEMPORÂNEO

OAB SP (Gestão 2022/2024)

Conselho Seccional

Presidente: Maria Patrícia Vanzolini Figueiredo

Vice-Presidente:

Leonardo Sica

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Tesoureiro:

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Conselheiros Efetivos:

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Antonio Ivo Aidar

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Carlos César Simões

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Carlos Figueiredo Mourão

Carmen Dora de Freitas Ferreira

Celia Regina Zapparolli Rodrigues de Freitas

Claudia Maria Soncini Bernasconi

Claudio Cardoso de Oliveira

Coriolano Aurélio de Almeida Camargo Santos

Cristiano Joukhadar

Daniela da Cunha Santos

Débora de Paula

Eduardo Ferrari Geraldes

Eginaldo Marcos Honorio

Fernanda Matias Ramos

Fernando Peixoto de Araujo Neto

Flavia Filhorini Lepique

Flávia Mariana Mendes Ortolani

Flávio Murilo Tartuce Silva

Flavio Paschoa Junior

Francisco Jorge Andreotti Neto

Gisela da Silva Freire

Guilherme Hansen Cirilo

Guilherme Magri de Carvalho

Gustavo Granadeiro Guimarães

Haroldo Francisco Paranhos Cardella Helcio Honda

Irapuã Santana do Nascimento da Silva

Isabela Castro de Castro

João Vinícius Manssur

José Chiachiri Neto

Juliana Fernandes de Marco

Katia Maria Louro Cação Araujo

Kelly Greice Moreira

Leandro Godines do Amaral

Ligia Maura Fernandes Garcia da Costa

Lívio Enescu

Luciana Barcellos Slosbergas

Luiz Alberto Bussab

Luiz Fernando Sá e Souza Pacheco

Manoel Alcides Nogueira de Sousa

Manuela Tavares

Marcela Carinhato Almeida Prado de Castro Valente

Marcelo Luis Roland Zovico

Márcia Rocha

Marcio Cezar Janjacomo

Marcio Gonçalves

Maria Cecilia Pereira de Mello

Mariana Arteiro Gargiulo

Marília Constantino Vaccari Polverel

Miriam Saeta Francischini

Mizael Conrado de Oliveira

Mônica Aparecida Gonçalves

Natália de Vincenzo Soares Martins

Nercina Andrade Costa

Nilma de Castro Abe

Otavio Pinto e Silva

Priscila Akemi Beltrame

Rebeca de Macedo Salmazio

Ricardo Rui Giuntini

Ricardo Vita Porto

Roberta Guitarrari Azzone Colucci

Rodrigo Lemos Arteiro

Rosa Ramos

Sarah Hakim

Thaís Proença Cremasco

Vianei Aparecida Titoneli Principato

Yeda Costa Fernandes da Silva

Conselheiros Suplentes:

Ad emar Pinheiro Sanches

Afonso Paciléo Neto

Alcenilda Alves Pessoa Aleksander Mendes Zakimi

Alexandre Soares Louzada

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Ana Laura Teixeira Martelli

Ana Paula de Almeida Santos

Ana Paula Menezes Faustino

André Aparecido Barbosa

Andreia Capucci

Arão dos Santos Silva

Awdrey Frederico Kokol

Bruna Fernanda dos Santos Umberto

Carla Cristiane Hallgren Silva

Cesar Amendolara

Charlene Aparecida Francisco da Silva

Claudia Duarte e Trinca

Daliana Cristina Dias Leite

Daniel Amorim Assumpção Neves

Daniel da Silva Castelo Oliveira

Diego Tavares

Élida de Souza Silva

Erazê Sutti

Erick Anselmo Barbosa

Eudécio Teixeira Ramos

Ezequias Alves da Silva

Fabiano Reis de Carvalho Fabio Paulo Reis de Santana

Fabio Rodrigues Goulart

Fernando Jorge Neves Figueiredo

Flávia de Oliveira Santos do Nascimento

Flávio Marques Alves

Glaudecir José Passador

Gonçalo Batista Menezes Filho

Heloisa Helena Cidrin Gama Alves

Jesualdo Eduardo de Almeida Júnior

João Carlos Rizolli

Jocelino Pereira da Silva

José Fabiano de Queiroz Wagner

José Umberto Franco

Josué Justino do Rio

Juliana Abrusio Florêncio

Julianelli Caldeira Esteves Stelutte

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Leandro Affonso Tomazi

Leisa Boreli Prizon

Leopoldo Luis Lima Oliveira

Luciana Monteiro Cossermelli Tornovsky

Lucimara Ferreira de Sousa

Luís

Maria

Nelci

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Néria

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Tatiana Giorgini Fusco Cammarosano

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Membros Honorários Vitalícios

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Diretoria ESA OAB SP (GESTÃO 2022/2024)

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Diretor ESA OAB SP:

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Advocacia Pública:

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Arbitragem:

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Ciências Criminais:

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Contencioso Estratégico:

William Santos Ferreira

Coordenador Cientifico:

Carlos Eduardo Nicoletti Camillo

Coordenador Geral das Áreas Geográficas:

Sérgio Carvalho de Aguiar Vallim Filho

Coordenador Pedagógico:

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Direito da Pessoa Com Deficiência:

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Direito cde Família: Marcelo Truzzi Otero

Direito de Seguro e Resseguro:

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Direito Desportivo:

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Direito do Consumidor:

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Direito do Terceiro Setor:

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Direito e Regulação:

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Direito Previdenciário:

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Direito Processual Civil:

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Direito Processual do Trabalho

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Direito Processual Penal:

Thamara Duarte Cunha Medeiros

Direito Tributário:

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Direito, Diversidade e Gênero:

Tainá Góis

Direitos Humanos:

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Dogmática do Direito Penal:

João Paulo Orsini Martinelli

Filosofia e Sociologia do Direito:

Viviane Vidigal Castro

Mediação:

Celia Regina Zapparolli Rodrigues de Freitas

Prevenção e Solução Extrajudicial De Litígios:

Fernanda Tartuce Silva

Privacidade e Proteção de Dados: Ricardo Freitas Silveira

Recuperação Judicial e Falência:

Ivan Lorena Vitale Junior

Responsabilidade Civil:

Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade Nery

Teoria Geral do Direito:

Nehemias Domingos de Melo

Violência Doméstica e Gênero:

Bruna Soares Angotti Batista de Andrade

Sumário

1. A SIMULAÇÃO NOS VINTE ANOS DE CÓDIGO CIVIL DE 2002 E A SUA APLICAÇÃO

JURISPRUDENCIAL

Flávio Tartuce

30

3. O VENCIMENTO ANTECIPADO DA OBRIGAÇÃO E A SUA INFLUÊNCIA NA AFERIÇÃO DO MARCO INICIAL DO FATO JURÍDICO DA PRESCRIÇÃO: NOTAS A UMA DECISÃO JUDICIAL

Marcos Catalan

48

5. MEDIAÇÃO E FRANCHISING

Fernanda Tartuce

70

7. DA RESPONSABILIDADE CIVIL À RESPONSABILIDADE POR DANOS: RAZÕES PARA A MUDANÇA DE COMO COMPREENDER O INSTITUTO

Pablo Malheiros da Cunha Frota

27

2. IMPRESSÕES SOBRE O EXERCÍCIO DA AUTONOMIA

PRIVADA NO CONTEXTO DO DIREITO PROCESSUAL CONTEMPORÂNEO

Rosa Nery

38

4. RESPONSABILIDADE POR DANO DECORRENTE DE VIOLAÇÃO À FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO: NOTAS AO DECIDIDO PELO STJ AO JULGAR O RECURSO ESPECIAL 1.295.838/ SP

André Luiz Arnt Ramos

63

6. AVANÇOS TECNOLÓGICOS NA SAÚDE, CONFLITOS E PAPEL DA JUNTA MÉDICA

Angélica Carlini

8. O ABANDONO AFETIVO E A RESPONSABILIDADE CIVIL

Cláudia Stein Vieira

9. PREVIDÊNCIA PRIVADA E A INCOMUNICABILIDADE DOS VALORES DEPOSITADOS PARA FINS DE PARTILHA DE BENS NO DIVÓRCIO

Debora Brandão

10. QUESTÕES POLÊMICAS SOBRE A IRREPETIBILIDADE DOS ALIMENTOS NO DIREITO DE FAMÍLIA

Carlos E. Elias de Oliveira

Edição 45 Ano 2024

ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA

São Paulo, OAB SP - 2024 COORDENAÇÃO TÉCNICA

COORDENADOR GER AL

Adriano de Assis Ferreira

COORDENADOR ACADÊMICO

Erik Chiconelli Gomes

COORDENADOR AUDIOVISUAL

Ruy Dutra

PROJETO GRÁFICO

Apresentação

É com grande entusiasmo que apresentamos a edição número 45 da Revista Científica da ESA/OABSP, uma compilação que reúne uma variedade de análises profundas e discussões sobre temas essenciais no direito civil e processual contemporâneo. Nesta edição, destacamos artigos que vão desde a análise da simulação no Código Civil e a autonomia privada no direito processual até questões complexas como a responsabilidade por danos, a eficácia da mediação em franchising, e as inovações no processo de partilha de bens. Os autores, especialistas renomados em suas áreas, oferecem contribuições valiosas e propostas para adaptações normativas que refletem. Esta edição da Revista tem a coordenação geral do Prof. Flavio Tartuce, Diretor Geral da ESA/ OABSP e Conselheiro Seccional da OABSP.

Elaborado por ele, nosso coordenador, o primeiro artigo comemora os vinte anos do Código Civil de 2002, focando em um dos seus institutos mais intrigantes: a simulação. O autor inicia com uma revisão histórica do conceito de simulação, traçando sua evolução desde as origens do direito até sua consolidação no Código Civil atual. Flávio Tartuce classifica a simulação em absoluta e relativa, onde a primeira implica em um negócio jurídico completamente fictício e a segunda envolve um negócio jurídico válido que oculta outro devido a alguma ilicitude.

O texto avança ao discutir a aplicabilidade e interpretação jurisprudencial deste conceito ao longo dos últimos anos, analisando casos emblemáticos em que a simulação foi alegada, revelando como os Tribunais têm abordado o tema em decisões recentes.

11. OS HERDEIROS LEGATÁRIOS NO DIREITO CIVIL CONTEMPORÂNEO: AMPLIAÇÃO DA LIBERDADE DE TESTAR E PROTEÇÃO DOS VULNERÁVEIS

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka

12. TÉCNICAS DE ACELERAÇÃO DA PARTILHA NO CPC/2015

Ricardo Calderón

Rubia Duarte

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Rua Cincinato Braga, 37, 13º andar

São Paulo/ SP

Tel. .55 11.3346.6800

Pubicação Trimestral

ISSN - 2175-4462

Direitos - Periódicos.

Ordem dos Advogados do Brasil

Essa análise crítica ajuda a entender a relevância da categoria nas dinâmicas jurídicas contemporâneas e propõe direções para futuras interpretações e aplicações práticas desse conceito, considerando os desafios impostos por novas formas de transações comerciais e tecnológicas.

O segundo artigo aborda as impressões sobre o exercício da autonomia privada no direito processual contemporâneo, por Rosa Maria de Andrade Nery. Este texto explora a crescente preferência por Tribunais arbitrais e a autonomia na escolha do Direito aplicável, trazendo à tona uma discussão sobre racionalidade econômica e conhecimento jurídico. Rosa Nery explora a mudança paradigmática no Direito Processual, com especial enfoque na escolha dos tribunais arbitrais como mecanismo preferencial de resolução de litígios por entidades empresariais. Aborda também a autonomia das partes na eleição do direito aplicável nos procedimentos arbitrais, uma prática que reflete uma busca por eficiência e rapidez, contrastando com a morosidade percebida no Judiciário tradicional.

1 Pós-Doutorando - FDUSP. Doutor e Mestre em História Econômica na Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Economia do Trabalho (Unicamp) e Direito do Trabalho (USP). Bacharel em Ciências Sociais, Direito e História (USP). Coordenador de Cursos Livres (Extensão) e do Grupo de Pesquisa e Estudos na Escola Superior de Advocacia (ESA/OABSP).

O artigo destaca ainda a “racionalidade econômica” que motiva essa escolha, investigando como as empresas ponderam custos e benefícios ao decidir por sistemas de governança jurídica alternativos, como a arbitragem. Rosa Nery também questiona se o conhecimento econômico deveria influenciar o conhecimento jurídico, propondo uma análise crítica sobre a capacidade do Judiciário e dos economistas em interpretar e aplicar o direito em contextos econômicos complexos.

O terceiro artigo analisa a indenização antecipada da obrigação e sua influência na aferição do marco inicial do fato jurídico da prescrição, escrito por Marcos Catalan. Ele detalha como as mora e condições contratuais específicas podem precipitar a prescrição de obrigações.

Marcos Catalan se aprofunda no impacto do vencimento antecipado das obrigações sobre o início da contagem do prazo de prescrição, uma questão de significativa importância prática e teórica no Direito Civil. Enfoca como a mora e outras condições contratuais, como cláusulas de vencimento antecipado sob condições suspensivas, podem alterar drasticamente a dinâmica dos contratos e a gestão de riscos jurídicos associados.

O artigo investiga a jurisprudência e a doutrina sobre o tema, oferecendo uma visão detalhada de como diferentes interpretações afetam os direitos e deveres das partes envolvidas. Catalan utiliza exemplos práticos e análises de decisões judiciais para ilustrar as consequências do vencimento antecipado nas estratégias de litígio e nas práticas contratuais, argumentando pela necessidade de uma compreensão mais clara e sistematizada para evitar surpresas jurídicas e garantir a segurança das transações.

O quarto texto, por André Luiz Arnt Ramos, do Estado do Paraná, aborda a responsabilidade por dano resultante de violação à função social do contrato, revisando decisões do STJ e propondo reflexões sobre a evolução desse princípio.

André Arnt dedica-se a estudar como a função social do contrato, um princípio fundamental do Código Civil de 2002, tem sido interpretado e aplicado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). O texto revisa uma série de decisões judiciais que elucidam a evolução desse princípio, especialmente no que tange à responsabilidade por danos quando há violação dessa função. O autor argumenta que a função social do contrato não apenas restringe a liberdade contratual em nome do interesse coletivo, mas também impõe deveres de conduta que, se violados, podem resultar em responsabilização civil.

O artigo também discute casos específicos onde a violação da função social resultou em danos, e como o judiciário tem respondido a esses casos, oferecendo uma perspectiva crítica sobre as tendências interpretativas e a eficácia dessas decisões na promoção de uma sociedade mais justa e equilibrada. O autor sugere que essa abordagem evolutiva pode melhorar o entendimento jurídico e prático desse princípio, propondo uma reflexão sobre como essas normas podem ser melhor aplicadas para proteger tanto interesses individuais quanto coletivos.

O quinto artigo, de Fernanda Tartuce, professora da nossa Escola, explora a mediação e o franchising, apresentando a mediação como uma ferramenta eficaz para resolver disputas nesse contexto, com ênfase na negociação direta e na inclusão de cláusulas de mediação.

A jurista explora a mediação como uma ferramenta estratégica na resolução de conflitos no contexto de franchising. O trabalho apresenta uma análise detalhada de como a mediação pode ser eficazmente incorporada nas relações entre franqueadores e franqueados, áreas frequentemente tensas devido à natureza das expectativas e obrigações contratuais que caracterizam essas parcerias. Discute-se as vantagens da mediação, incluindo a preservação de relações comerciais, a rapidez na resolução de disputas e a redução de custos legais.

A autora destaca a importância da inclusão de cláusulas de mediação nos contratos de franchising, o que pode proporcionar um caminho pré-estabelecido para a resolução de disputas antes que elas escalem para litígios mais formais. Também oferece um olhar sobre a negociação direta como um complemento à mediação, enfatizando como essas práticas podem levar a resultados mais harmoniosos e mutuamente benéficos.

O sexto artigo, escrito por Angélica Carlini, analisa a crescente judicialização na saúde pública e suplementar no Brasil, um específico que impacta níveis de pacientes, médicos, operadoras de saúde e o judiciário. No artigo “Avanços Tecnológicos na Saúde, Conflitos e Papel da Junta Médica”, Carlini discute como a mediação, especialmente através do uso das juntas médicas, evoluiu de tentativas iniciais modestas para se tornar uma abordagem sistematizada e eficaz para a resolução de conflitos no setor de saúde.

O artigo detalha como a segurança do paciente deve ser a principal prioridade e como a operação dos planos de saúde suplementar deve ser administrada para proteger tanto a saúde quanto os recursos financeiros dos beneficiários. Carlini argumenta que o uso de uma junta médica, composta por médicos escolhidos pelas partes envolvidas com base em credibilidade e especialização, pode ser uma solução estratégica para desafogar o sistema judiciário de casos que poderiam ser resolvidos por meio de consenso técnico e médico.

O sétimo artigo, de Pablo Malheiros da Cunha Frota propõe uma nova compreensão da responsabilidade civil, agora vista como responsabilidade por danos, discutindo a recuperação da tutela do consumidor no Brasil.

O jurista do Distrito Federal propõe uma revisão conceitual da responsabilidade civil no Brasil, sugerindo uma transição para uma visão mais ampla de “responsabilidade por danos”. O artigo discute como essa perspectiva pode melhorar a tutela do consumidor, proporcionando uma proteção mais efetiva em face de danos causados por práticas comerciais e industriais. Frota examina a legislação atual e a interpretação dos tribunais, identificando lacunas e ineficiências que podem ser melhoradas através de uma compreensão renovada de responsabilidade que enfatiza a reparação de danos como um meio de justiça social e econômica.

São analisados casos práticos onde a aplicação do conceito tradicional de responsabilidade civil não atende adequadamente às necessidades dos consumidores afetados e sugere modificações legislativas e judiciais que poderiam implementar uma mudança efetiva. Argumenta o autor que essa abordagem não apenas proporciona um ambiente mais justo para os consumidores, mas também incentiva práticas empresariais mais responsáveis e éticas.

O oitavo artigo, por Cláudia Stein Vieira, também docente da nossa ESA/OABSP, enfoca o abandono afetivo e a responsabilidade civil, oferecendo uma análise crítica sobre como o direito aborda a falta do dever de cuidado em relações familiares.

Stein Vieira aborda um tema de profunda relevância social e jurídica: o abandono afetivo e suas implicações no âmbito da responsabilidade civil. Este artigo investiga como o Direito Brasileiro responde à falta do dever de cuidado que os pais devem aos filhos, contextualizando a discussão dentro dos paradigmas de direitos da personalidade e dignidade humana. A autora analisa a jurisprudência recente que estabelece que o abandono afetivo pode, sim, configurar um ato ilícito, passível de compensação por danos morais.

O texto explora a complexidade do tema, destacando que o abandono afetivo é diferente da simples ausência de amor ou afeto; trata-se da negligência do dever de cuidado, proteção e suporte emocional. A autora desafia a visão tradicional, propondo que a abordagem jurídica deve ser sensível ao impacto psicológico e emocional do abandono, ao mesmo tempo que deve evitar a mercantilização das relações familiares.

O nono artigo, por Débora Brandão, trata da previdência privada e a incomunicabilidade dos valores depositados para fins de partilha de bens no divórcio, analisando os aspectos legais e contratuais relevantes.

A Desembargadora do Tribunal Bandeirante explora a natureza jurídica da previdência privada no contexto de partilhas de bens em processos de divórcio. Este artigo detalha como os planos de previdência são tratados pela legislação brasileira, especialmente no que se refere à sua caracterização como bens comunicáveis e incomunicáveis no regime matrimonial. Brandão analisa decisões judiciais e doutrinas relevantes para entender como os tribunais têm interpretado a questão da divisibilidade desses fundos.

O texto esclarece as distinções entre planos de previdência abertos e fechados, discutindo as implicações dessas diferenças para os cônjuges em caso de separação. A autora argumenta pela necessidade de um entendimento mais claro e consistente sobre esses produtos financeiros, sugerindo que a jurisprudência precisa evoluir para abordar adequadamente as nuances desses planos, especialmente em face das modernas configurações familiares e financeiras.

O décimo texto, de Carlos E. Elias de Oliveira, consultor legislativo do Senado Federal, discute questões polêmicas sobre a irrepetibilidade dos alimentos no direito de família, abrindo debate sobre aspectos controversos do tema.

Ele trata de um dos temas mais debatidos no direito de família: a irrepetibilidade dos alimentos. Este artigo discute as condições sob as quais as prestações alimentícias podem ser reclamadas de volta, abordando o princípio da irrepetibilidade e suas exceções. Carlos Elias examina a jurisprudência e a doutrina, destacando casos em que a devolução de valores alimentícios foi exigida, e analisa os argumentos jurídicos e éticos que circundam essas situações.

O autor explora diferentes cenários, como a redução retroativa de pensões alimentícias e as situações em que um pagador pode buscar reembolso de alimentos indevidamente pagos. Oliveira propõe uma reflexão sobre como o direito pode equilibrar a necessidade de proteção ao alimentado com a justiça para o alimentante, especialmente em casos em que a dependência alimentar foi mal interpretada ou explorada.

O décimo primeiro artigo, desenvolvido pela Professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, que compõe o Conselho Curador da nossa ESA, aborda os herdeiros legatários no Direito Civil contemporâneo, questionando a permanência das regras de sucessão e a necessidade de proteger vulneráveis.

Neste trabalho, a jurista revisita as normas de sucessão para herdeiros necessários, também conhecidos como herdeiros legatários, sob uma perspectiva crítica e contemporânea. A Professora Giselda Hironaka questiona a adequação e relevância das regras tradicionais de sucessão em um contexto moderno, onde as estruturas familiares e as concepções de patrimônio e legado têm evoluído significativamente.

Examina também a fundamentação histórica e social da reserva legítima — a porção de bens que, por lei, deve ser reservada aos herdeiros necessários — e argumenta que esses fundamentos podem não mais corresponder às realidades e necessidades atuais das famílias. Propõe a jurista uma reflexão sobre a possibilidade de flexibilizar essas normas, aumentando a liberdade de testar e permitindo uma maior autonomia individual na disposição dos bens após a morte.

Entretanto, ela também enfatiza a importância de manter proteções para membros vulneráveis da família. A autora sugere que a legislação precisa encontrar um equilíbrio entre a liberdade de disposição dos bens e a proteção dos interesses de herdeiros que possam estar em situações de vulnerabilidade, de modo a evitar desamparo ou injustiças.

Por fim, no décimo segundo e último artigo, Ricardo Calderón, do Paraná, foca em estratégias legais introduzidas pelo Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015) que visam acelerar o processo de partilha de bens. O autor destaca como essas inovações podem contribuir para a eficiência processual e reduzir o tempo de litígio em casos de sucessão.

Calderón detalha várias técnicas processuais, como o arbitramento de compensação pelo uso exclusivo de bem comum e o encorajamento do uso de mediação e conciliação para resolver disputas sobre a partilha. O texto examina a aplicação prática dessas técnicas, utilizando exemplos e análises de casos para demonstrar como elas podem efetivamente reduzir a complexidade e a duração dos processos de partilha.

Além disso, o autor analisa os desafios enfrentados na implementação dessas técnicas e propõe soluções para superar obstáculos, como a resistência cultural à mediação e a falta de conhecimento especializado entre profissionais do direito. Calderón argumenta que a adoção mais ampla dessas técnicas poderia não apenas acelerar processos individuais, mas também aliviar o sistema judiciário como um todo, melhorando a gestão de casos de partilha de bens.

Como se pode perceber, esta edição da Revista da ESA traz importantes temas para a prática da advocacia do Direito Privado, com grande repercussão para a atuação de advogados e advogadas, de acordo com o papel institucional da nossa Escola. Desejamos a todos, assim, bons estudos e importantes reflexões a todos os leitores e leitoras.

São Paulo, 22 de abril de 2024.

A SIMULAÇÃO NOS VINTE ANOS DE CÓDIGO CIVIL DE 2002 E A SUA APLICAÇÃO JURISPRUDENCIAL

Palavras-chave

Direito Civil. Direito Contratual. Simulação. Nulidade absoluta.

Flávio Tartuce

Pós-Doutor e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Contratual em São Paulo (IBDCONTSP). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Conselheiro seccional da OABSP e Diretor da ESAOABSP. Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

Resumo

Este artigo pretende a analisar o instituto da simulação, com grande incidência para os contratos, e sua aplicação prática no âmbito da jurisprudência superior brasileira, nos mais de vinte anos de vigência do Código Civil de 2002. Assim, há uma abordagem do seu conceito e do seu novo tratamento na codificação privada em vigor, como causa de nulidade absoluta dos negócios jurídicos. Traz, ainda, o estudo da sua classificação em nulidade e relativa e a viabilidade de uma parte alegar a sua presença em face da outra. Por fim, o trabalho aborda o enquadramento do instituto da reserva mental, com reduzida incidência prática no Brasil, como simulação.

1. O NOVO TRATAMENTO DA SIMULAÇÃO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002

Como é notório, a simulação recebeu um novo tratamento pelo Código Civil de 2002, no seu art. 167, o que vem sendo amplamente debatido pela civilística nacional e aplicado pela nossa melhor jurisprudência nesses já mais de vinte anos de vigência da codificação privada. Trata-se de um clássico instituto jurídico com grande repercussão para os contratos em geral.

A primeira dúvida que existe em relação ao instituto é se ele constitui um vício social do negócio jurídico ou causa para a sua nulidade absoluta. A primeira dúvida que existe em relação ao instituto é se ele constitui um vício social do negócio jurídico ou causa para a sua nulidade absoluta. Como primeira corrente, entendendo que a simulação ainda continua sendo um vício social do negócio jurídico, podem se citados

Maria Helena Diniz,1 Sílvio de Salvo Venosa 2 e Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho. 3

Não se justifica a mudança de seu enquadramento só pelo fato de o instituto não estar inserido no capítulo da Parte Geral que trata dos vícios ou defeitos do negócio jurídico (arts. 138 a 165 do Código Civil de 2002). A sua conceituação, como se verá, continua sendo de um vício social, até porque repercute na ordem pública, diante da correspondente nulidade absoluta do negócio jurídico

Entretanto, essa conclusão está longe de ser pacífica. A título de exemplo, , Inácio de Carvalho Neto, 4

Paulo Lôbo5 e Francisco Amaral 6 entendem que a simulação deixou de ser um vício social do negócio jurídico. Para o último doutrinador, a simulação acaba “resultando da incompatibilidade entre esta e a finalidade prática desejada concretamente pelas partes, que desejariam, na verdade, atingir o objetivo diverso da função típica do negócio”.7 Assim, aduz que a simulação atinge a causa negocial

Seja como for, como ponto fulcral para este texto, a realidade é que a simulação não gera mais a nulidade relativa ou a anulabilidade do negócio jurídico, como estava previsto na codificação privada anterior. Consoante o art. 147, inc. II, do Código Civil de 1916, seria anulável o ato jurídico “por vício resultante de erro, dolo, coação, simulação, ou fraude (art. 86 a 113)”. Além disso, a norma anterior consagrava, em seu art. 178, § 9º, inc. V, letra b, um prazo decadencial de quatro anos para a correspondente ação anulatória do ato jurídico, a contar do “do dia em que se realizar o ato ou o contrato”.

Na vigente codificação privada, o art. 167, caput, do Código Civil é peremptório ao prever que “é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”.

A hipótese é de nulidade textual pois a lei prevê expressamente a nulidade absoluta do negócio jurídico, conforme o art. 166, inc. VII, primeira parte, da codificação privada.

A opção pela nulidade absoluta é clara também pelo fato de o seu art. 171, inc. II, não mais elencar a simulação ao lado de outros vícios do negócio jurídico, como hipótese de nulidade relativa. 8 Ademais, não

1 DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 195.

2 VENOSA, Sílvio de Salvo. Código Civil interpretado São Paulo: Atlas, 2010. p. 187.

3 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. v. I, p. 402.

4 CARVALHO NETO, Inácio de. Curso de direito civil brasileiro Curitiba: Juruá, v. I, p. 433, 2006.

5 LÔBO, Paulo. Direito civil Parte geral. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 306.

6 AMARAL, Francisco. Direito civil Introdução. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 531.

7 AMARAL, Francisco. Direito civil Introdução. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 531.

8 CC/2002. “Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico: (...). II – por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores”.

há mais previsão de incidência do prazo decadencial de quatro anos para a ação anulatória, novamente pela falta de menção no art. 178 do CC/2002.9 Nesse contexto, sigo a ideia de não aplicação de qualquer prazo para a correspondente ação declaratória de nulidade absoluta em decorrência da simulação. Tenho afirmado, na linha da melhor doutrina, que a simulação passou a ser relacionada a normas cogentes, ou de ordem pública.

2. CONCEITO DE SIMULAÇÃO, AS POSSIBILIDADES DE SUA ALEGAÇÃO E SITUAÇÕES CONCRETAS DE SEU ENQUADRAMENTO

Na simulação há um desacordo entre a vontade declarada ou manifestada e a vontade interna. Em suma, há uma discrepância entre a vontade e a declaração; ent re a essência e a aparência. Tem-se o “parece, mas não é”. Exatamente nesse sentido, como está na clássica obra de Caio Mário da Silva Pereira, “consiste a simulação em celebrar-se um ato que tem aparência normal, mas que, na verdade, não visa ao efeito que juridicamente devia produzir”.10 Ou, como sempre afirmou Orlando Gomes, “a simulação existe quando em um contrato se verifica, para enganar a terceiro, intencional divergência entre a vontade real e a vontade declarada pelas partes. Com a simulação, visa-se a alcançar fim contrário à lei”.11

Na simulação, as duas partes contratantes estão combinadas e objetivam iludir terceiros. Como se percebe, há um vício de repercussão social, equiparável à fraude contra credores, mas que gera a nulidade absoluta e não a mera anulabilidade ou nulidade relativa do negócio celebrado, conforme a inovação constante do antes transcrito art. 167, caput, do vigente Código Civil. A presença do vício social, atrelado a nulidade absoluta, justifica plenamente a tão citada correlação com normas cogentes ou de ordem pública quando houver o vício da simulação.

Anteriormente, a simulação somente viciava o negócio jurídico quando houvesse clara intenção de prejudicar terceiros, objetivando o enriquecimento sem causa. Mas esse entendimento não pode mais prevalecer, na minha opinião doutrinária. Segundo o Enunciado n. 152, aprovado na III Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, “toda simulação, inclusive a inocente, é invalidante”. Dessa forma, reputo que não tem mais qualquer repercussão prática a classificação anterior de simulação maliciosa e inocente a última tida anteriormente como aquela que não trazia a intenção de prejudicar terceiros. Em havendo simulação de qualquer espécie, o ato é nulo de pleno direito, por atentar contra a ordem pública, como vício social.

simulação inocente, enquanto tal, não leva à anulabilidade do ato porque não traz prejuízo a terceiros. O ordenamento não a considera defeito”.13

Com o devido respeito aos ilustres juristas e professores, penso de forma contrária, pois na simulação a causa da nulidade está relacionada com a repercussão social condenável do ato, e não com a intenção das partes. A presunção de dano social, em suma, faz-se presente na simulação.

Em reforço, anote-se que o atual Código Civil não reproduziu o art. 103 do Código Civil de 1916, segundo o qual a simulação não se consideraria defeito quando não houvesse intenção de prejudicar a terceiros ou de violar disposição de lei. Esta é outra razão para dizer que não há que se falar mais em simulação inocente Esse entendimento é confirmado, entre outros, pelo saudoso Zeno Veloso, para quem “o Código Civil de 2002 não repetiu o preceito, não traz essa ressalva. Seja inocente ou maliciosa, a simulação é sempre causa de nulidade do negócio jurídico”.14 Assim, está totalmente justificado, do ponto de vista técnico, o teor do Enunciado n. 152, da III Jornada de Direito Civil.

Conforme as suas corretas justificativas, a simulação pode inclusive ser alegada em sede de embargos de terceiro:

9 CC/2002. “Art. 178. É de quatro anos o prazo de decadência para pleitear-se a anulação do negócio jurídico, contado: I – no caso de coação, do dia em que ela cessar; II – no de erro, dolo, fraude contra credores, estado de perigo ou lesão, do dia em que se realizou o negócio jurídico; III – no de atos de incapazes, do dia em que cessar a incapacidade”.

10 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Volume I. Introdução ao Direito Civil. Teoria Geral de Direito Civil. Atualizadora e colaboradora: Maria Celina Bodin de Moraes. 34. ed.. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 543. 11 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil Coordenador e atualizador: Edvaldo Brito. atualizadora: Reginalda Paranhos de Brito. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 305

Apesar de esse entendimento ter prevalecido na III Jornada de Direito Civil está longe de ser pacífico. Para Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, a simulação inocente não pode nulificar o negócio jurídico, pois, “não havendo intenção de prejudicar a terceiros ou mesmo de violar a lei, não parece producente invalidar o negócio jurídico”.12 No mesmo sentido pensa Sílvio de Salvo Venosa, para quem “a

12 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito civil. Teoria geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 427.

Em todos os casos, não há a necessidade de uma ação específica para se declarar nulo o ato ou o negócio jurídico simulado. Assim, cabe o seu reconhecimento incidental e de ofício pelo juiz em demanda que trate de outro objeto. Nesse sentido, na VII Jornada de Direito Civil, realizada em 2015, aprovou-se proposta estabelecendo que a simulação prescinde de alegação de ação própria, o que contou com o nosso apoio quando da plenária final do evento (Enunciado n. 578).

“Com o advento do Código Civil de 2002 e o fortalecimento do princípio da boa-fé nas relações jurídicas, o ‘vício social’ da simulação passou a receber tratamento jurídico distinto daquele conferido aos demais vícios do negócio jurídico. Diferentemente das consequências impostas aos negócios jurídicos que contenham os vícios do erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão e fraude contra credores, os quais podem ensejar a anulação do negócio (arts. 171, II, 177 e 182, CC), no caso do negócio jurídico simulado, a consequência será a de nulidade (arts. 167, 166, VII, 168 e 169, CC). Ocorre que ainda tem sido frequente, no âmbito dos tribunais, aplicar-se à simulação tratamento jurídico análogo àquele conferido à fraude contra credores, invocando-se, inclusive, a Súmula 195 do STJ (editada em 1997). (...). Assim, tratando-se de hipótese que gera a nulidade absoluta do negócio, aplica-se o disposto nos artigos 168, caput e parágrafo único, e 169 do mesmo diploma legal, os quais estabelecem, inclusive, que o juiz deverá se pronunciar a respeito de hipótese de nulidade ‘quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos e as encontrar provadas’, pronunciando-se, portanto, de ofício”.

13 VENOSA, Sílvio de Salvo. Código Civil interpretado. São Paulo: Atlas, 2010. p. 190.

14 VELOSO, Zeno. Invalidade do negócio jurídico. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 92.

De todo modo, para o conhecimento da simulação de ofício, há a necessidade de oitiva das partes, diante da vedação das decisões-surpresa introduzida no vigente Código de Processo Civil, em prol do contraditório e da boa-fé objetiva processual. Nos termos do art. 10 do Estatuto Processual de 2015, “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”.

Para encerrar o tópico, é interessante expor os casos concretos em que geralmente se tem o enquadramento da simulação. Na realidade portuguesa, como explica José de Oliveira Ascensão, é frequente a prática de negócios simulados e “são hipóteses socialmente típicas: 1) A fraude fiscal, pela qual se declara um valor inferior ao real para diminuir as percepções tributárias. 2) A fraude contra os credores, pela qual o devedor finge dispor dos seus bens para evitar que, em caso de inadimplência, os credores os possam penhorar. 3) A fraude contra os preferentes, pela qual se declara um valor superior ao real para evitar que um terceiro venha preferir. 4) A alienação de partes sociais a testas de ferro, que permite aparentar pluralidade de sócios nas sociedade”.15

Já na realidade brasileira, Orlando Gomes aponta os seguintes casos típicos: a) celebrar um contrato oneroso para mascarar um contrato gratuito; uma venda para disfarçar uma doação; b) estipular um contrato com uma pessoa que não é a parte verdadeira, como doar à concubina figurando outrem como donatário; c) atribuir a um contrato outro nomen juris para fraudar o Fisco, ou declarar dados falsos; d) fraudar os credores fingindo alienar um bem”.16

Observa-se que as situações usuais são próximas, na realidade portuguesa e na brasileira, sendo certo que este breve texto trará outras situações concretas em que a simulação se faz presente.

3. DA CLASSIFICAÇÃO DA SIMULAÇÃO

EM ABSOLUTA E RELATIVA

Sem prejuízo da regra do seu caput, a respeito do reconhecimento da nulidade absoluta do negócio jurídico, o art. 167, § 1.º, do Código Civil de 2002, em seus três incisos, consagra situações em que pode ocorrer a simulação.

De início, há a previsão de negócios jurídicos que visam a conferir ou a transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem ou transmitem, presente a simulação subjetiva Têm-se, popularmente, os negócios jurídicos celebrados com testas de ferro laranjas, cítricos, homens de palha ou espantalhos. Melhor tecnicamente, há o negócio jurídico celebrado com interposta pessoa, ou seja, aquele que não é o verdadeiro negociante.

Seguindo há que se reconhecer a simulação de negócios que contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira, modalidade de simulação objetiva, em que a discrepância se faz presente no objeto do negócio jurídico. Cite-se, sem prejuízo dos exemplos antes ventilados, a hipótese de contrato de prestação de serviços celebrado para esconder uma relação de emprego submetida às normas trabalhistas da CLT, o que igualmente é tão comum em nosso País.

Por fim, com certo rigor, reconhece-se a simulação de negócios jurídicos cujos instrumentos particulares forem antedatados ou pós-datados, outra hipótese de simulação objetiva Nesse contexto, qualquer instrumento particular ou contrato celebrado entre partes privadas com data errada pode ser considerado nulo por simulação.

Sem prejuízo desses casos, em outros a simulação pode estar presente todas as vezes em que houver uma disparidade entre a vontade manifestada e a vontade oculta. Isso faz com que o rol previsto no art. 167 do Código Civil seja meramente exemplificativo (numerus apertus), e não taxativo (numerus clausus).

to a inoponibilidade do negócio simulado frente a terceiros de boa-fé regra que não existia no Código Civil de 1916, e que veio em boa hora, afim de facilitar o tráfego jurídico e a circulação de bens e negócios, tão caros ao Direito Privado.

Interpretando esse dispositivo, pode-se dizer que o princípio da boa-fé objetiva envolve ordem pública, a exemplo do que ocorre com a função social do contrato, pois nos termos do art. 2.035, parágrafo único, do Código Civil de 2002, “nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”. Isso porque, como reafirmado neste artigo, o ato ou negócio jurídico simulado é nulo, envolvendo ordem pública, sendo o caso de nulidade absoluta. Ora, para que o ato seja válido perante terceiros de boa-fé, a boa-fé objetiva deve também ser um preceito de ordem pública. Pois se assim não fosse, não poderia a boa-fé vencer o ato ou negócio jurídico simulado.

os autores citados neste texto, a simulação pode ser classificada em absoluta e relativa.

Na simulação absoluta há situação em que na aparência se tem determinado negócio, mas na essência a parte não deseja negócio algum. Como exemplo, ilustre-se a situação em que um pai doa imóvel para filho, com o devido registro no Cartório de Registro de Imóveis, mas continua usufruindo dele, exercendo os poderes do domínio sobre a coisa. Mesmo o ato sendo praticado com intuito de fraude contra credores, prevalece a simulação, por envolver ordem pública, sendo nulo de pleno direito. Advirto, contudo, que não me filio ao entendimento de que nesse caso haveria a inexistência do negócio jurídico praticado, pois não sou adepto da teoria da inexistência.

15 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil. Vol. 2. Ações e Fatos Jurídicos. 3. ed. – São Paulo: Saraiva, 2010, 16 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Coordenador e atualizador: Edvaldo Brito. atualizadora: Reginalda Paranhos de Brito. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 302.

De todo modo, não se pode esquecer que o § 2.º do mesmo comando codificado ressalva os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado, mantendo relação direta com o princípio da boa-fé objetiva. Traz esse precei -

O art. 167, §2º, do Código Civil em vigor, além da boa-fé objetiva, também é consagrador da ideia de conservação do negócio jurídico, o que é retirado de outros tantos comandos da codificação privada em vigor. E, nos vinte anos de sua vigência, estar-se-á estabelecendo uma ligação direta entre essa preservação da autonomia privada e a citada função social do contrato. Por toda a doutrina que assim o reconhece, cito o Enunciado n. 22, aprovado na I Jornada de Direito Civil, in verbis “a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas”.

Pois bem, tendo em vista o teor do art. 167 do Código Civil, e os entendimentos doutrinários de todos

Na simulação relativa por sua vez, o negociante celebra um ato na aparência (negócio simulado), mas na essência almeja um outro negócio (dissimulado), conforme muitos dos exemplos aqui já citados. Essa é a hipótese tratada expressamente pelo art. 167 do Código Civil. Essa modalidade, mais comum de ocorrer na prática, pode ser subclassificada em duas categorias.

Na s imulação relativa subjetiva o vício social acomete o elemento subjetivo do negócio, pessoa com que este é celebrado, exatamente como previsto no antes analisado art. 167, § 1.º, inc. I, do Código Privado de 2002. A parte celebra o negócio com uma parte na aparência, mas com outra na essência, entrando no negócio a figura do testa de ferro laranja ou homem de palha, que muitas vezes substitui somente de fato aquela pessoa que realmente celebra o negócio jurídico ou contrato.

Já na simulação relativa objetiva o vício social acomete o elemento objetivo do negócio jurídico celebrado, o seu conteúdo, conforme os incisos II e III do

mesmo comando, igualmente aqui expostos. Celebra-se um negócio jurídico, mas na realidade há uma outra figura obrigacional, sendo mascarados os seus elementos verdadeiros. Como outra ilustração, aqui antes ventilada, para burlar o fisco, determinada pessoa celebra um contrato de comodato de determinado imóvel, cobrando aluguel do comodatário. Na aparência, há um contrato de empréstimo, mas na essência, trata-se de uma locação.

Como foi destacado, o art. 167, caput, do CC/2002 reconhece a nulidade absoluta do negócio jurídico simulado, mas prevê que subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma. O dispositivo trata da simulação relativa, aquela em que, na aparência, há um negócio; e na essência, outro. Dessa maneira, percebe-se na simulação relativa dois negócios: um aparente (simulado) e um escondido (dissimulado). Eventualmente, esse negócio camuflado pode ser tido como válido, no caso de simulação relativa. Segundo o Enunciado n. 153 do Conselho da Justiça Federal e do Superior Tribunal de Justiça, aprovado na III Jornada de Direito Civil “na simulação relativa, o negócio simulado (aparente) é nulo, mas o dissimulado será válido se não ofender a lei nem causar prejuízo a terceiros”.

Completando, na IV Jornada de Direito Civil, aprovou-se o Enunciado n. 293, pelo qual “na simulação relativa, o aproveitamento do negócio jurídico dissimulado não decorre tão somente do afastamento do negócio jurídico simulado, mas do necessário preenchimento de todos os requisitos substanciais e formais de validade daquele”. Para exemplificar, ilustre-se mais uma vez com o comum caso em que um proprietário cede um imóvel a outrem celebrando, na aparência, um contrato de comodato. Mas, por detrás dos panos é cobrado aluguel, havendo uma locação.

Aplicando a regra comentada e o teor do enunciado doutrinário em estudo, o comodato é inválido, mas a locação é válida, desde que não ofenda a lei ou os direitos de terceiros e tenha todos os requisitos de validade, previstos no art. 104 do Código Civil: a) partes capazes, b) objeto lícito, possível e ao menos determinável; e c) forma prescrita e não defesa em lei. Mais uma vez, com esse entendimento, há a busca pela conservação negocial, pela manutenção da autonomia privada.

Em todos os casos, não importa mais a diferenciação acima construída e sem prejuízo de outras teses defendidas pela doutrina, o negócio celebrado é nulo, pelo fato de a simulação envolver preceitos de ordem pública. Dessa forma, é forçoso concluir que a classificação apontada perde a sua importância prática. Pelo sistema anterior, considerava-se a simulação relativa como causa de anulabilidade ou nulidade relativa, e a simulação absoluta, de nulidade absoluta.

4. DA POSSIBILIDADE DE UMA

PARTE ALEGAR A SIMULAÇÃO

EM FACE DA OUTRA.

Outro tema de grande relevância a respeito da simulação nos mais de vinte anos de vigência do Código Civil está relacionado à possibilidade de a parte que participou do negócio jurídico alegar a presença desse vício social contra a outra. Nesse campo, na jurisprudência, enorme foi a contribuição do Ministro Paulo Dias Moura Ribeiro em julgados por ele relatados no âmbito do Superior Tribunal de Justiça.

Desde o início de vigência do Código Civil de 2002 sempre sustentei que a simulação pode ser sim alegada por terceiros que não fazem parte do negócio, mas também por uma parte contra a outra, conforme reconhece o Enunciado n. 294 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na IV Jornada de Direito

Civil, em 2006 Nos seus termos, “sendo a simulação uma causa de nulidade do negócio jurídico, pode ser alegada por uma das partes contra a outra”.

Assim, fica superada a regra que constava do art. 104 do Código Civil de 1916, segundo a qual, na simulação, os simuladores não poderiam alegar o vício um contra o outro, pois ninguém poderia se beneficiar da própria torpeza. Não foi sem razão que o Código Civil de 2002 não a reproduziu, sendo certo que a regra não mais tem incidência, pois a simulação, em qualquer modalidade, passou a gerar a nulidade do negócio jurídico, sendo questão de ordem pública; a prevalecer inclusive sobre eventual alegação da presença de um comportamento contraditório da parte que alega a simulação, mesmo tendo participado do ato. Em outras palavras, a nulidade absoluta relativa à simulação prevalece sobre o venire contra factum proprium non potest

Como primeiro julgado de destaque relatado pelo Ministro Moura Ribeiro, esse entendimento foi adotado pela Terceira Turma do STJ, citando o enunciado e a minha posição doutrinária. Conforme trecho da sua ementa, que merece destaque:

“Com o advento do CC/02 ficou superada a regra que constava do art. 104 do CC/1916, pela qual, na simulação, os simuladores não poderiam alegar o vício um contra o outro, pois ninguém poderia se beneficiar da própria torpeza. O art. 167 do CC/02 alçou a simulação como causa de nulidade do negócio jurídico. Sendo a simulação uma causa de nulidade do negócio jurídico, pode ser alegada por uma das partes contra a outra (Enunciado n. 294/ CJF da IV Jornada de Direito Civil). Precedentes e Doutrina. O negócio jurídico simulado é nulo e consequentemente ineficaz, ressalvado o que nele se dissimulou (art. 167, 2ª parte, do CC/02)” (STJ, REsp 1.501.640/SP, 3.ª Turma, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 27.11.2018, REPDJe 07.12.2018, DJe 06.12.2018).

Em 2021, surgiu outro acórdão no mesmo sentido, envolvendo a compra e venda do famoso quadro “A Caipirinha”, da artista Tarsila do Amaral e mesma relatoria. Como nele consta, “o art. 167 do CC/02 alçou a simulação como motivo de nulidade do negócio jurídico. Em sendo assim, o negócio jurídico simulado é nulo e consequentemente ineficaz, ressalvado o que nele se dissimulou (art. 167, 2ª parte, do CC/02). É desnecessário o ajuizamento de ação específica para se declarar a nulidade de negócio jurídico simulado. Dessa forma, não há como se restringir o seu reconhecimento em embargos de terceiro. Simulação que se configura em hipótese de nulidade absoluta insanável. Observância dos arts. 167 e 168, ambos do CC/02” (STJ, REsp n. 1.927.496/SP, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 27/4/2021, DJe de 5/5/2021). O decisum igualmente reconhece a viabilidade jurídica de a parte que participou do negócio alegar a simulação contra a outra parte, sempre ressalvados os direitos de terceiros, na forma do previsto no art. 167, §2º, da vigente codificação privada.

Como último julgado a se destacar, a simulação foi reconhecida em caso em que foi operada em detrimento da partilha de bens. Houve a efetivação de negócios jurídicos considerados como “de fachada”, para os fins de se prejudicar credores do grupo empresarial e familiar devedor. Nos termos da relatoria do Ministro Moura Ribeiro, que cita a tese do capitalismo humanista, da qual é adepto, “o capital precisa ter alma, cheiro bom, perfume e ser humanista com a dignidade que lhe é inerente”. Ademais, sobre a simulação, afirma-se que é “causa de nulidade (não de anulabilidade), do negócio jurídico e, dessa forma, como regra de ordem pública que é, pode ser declarada até mesmo de ofício pelo juiz da causa (art. 168, parágrafo único, do CC/02). (...). Nesse sentido, o art. 167 do CC/02 é claro ao prescrever que é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dis-

simulou, se válido for na substância e na forma. (...).

Enunciado n.º 294 da IV Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal pontuou que sendo a simulação uma causa de nulidade do negócio jurídico, pode ser alegada por uma das partes contra a outra. (...)”. (STJ, REsp n. 1.969.648/DF, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 18/10/2022, DJe de 21/10/2022).

A tese que ora de debate deve ser confrontada com a tramitação e entrada em vigor da Lei da Liberdade Econômica (Lei n. 13.874/2019), que tem incidência restrita para os contratos paritários, sobretudo os de natureza empresarial. Trata-se de uma das normas mais debatidas nos últimos anos em nosso País e que trouxe importantes impactos para o Direito Privado Brasileiro.

Pois bem, um dos dispositivos mais criticados da Medida Provisória n. 881 – que depois foi convertida na citada norma -, era o inciso VIII do seu art. 3.º, ao expressar que constituiria direito de toda pessoa, natural ou jurídica, essencial para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal, “ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, hipótese em que nenhuma norma de ordem pública dessa matéria será usada para beneficiar a parte que pactuou contra ela, exceto se para resguardar direitos tutelados pela administração pública ou de terceiros alheios ao contrato”.

Em suma, percebia-se uma valorização excessiva da vontade individual, o que afastaria até a possibilidade de alegação de normas de ordem pública de uma parte sobre a outra nos negócios jurídicos tidos como empresariais Assim, caso convertida a regra

em norma jurídica, cairia por terra a tese que aqui se defende e aplicada pelo Ministro Moura Ribeiro.

A principal razão da crítica à previsão anterior dizia respeito à constatação de que muitos desses negócios são de adesão, com conteúdo imposto por uma das partes e sem margem de negociação e estipulação do conteúdo da avença. Sabe-se que a grande maioria dos contratos civis enquadra-se nessas situações, inclusive alguns negócios empresariais, podendo ser citadas, apenas para ilustrar, a locação imobiliária não residencial, com intuito comercial; a locação em shopping center ou em centros de compras (box); a representação comercial; a agência; a distribuição e a franquia. Como já apontava em textos anteriores sobre a Medida Provisória, por esse comando, uma parte, inclusive o aderente, não poderia fazer uso de normas de ordem pública que poderiam lhe socorrer contra abusos contratuais praticados pelo outro negociante.

Tal problema foi muito bem observado na audiência pública realizada no Congresso Nacional em 21 de junho de 2019, para debate da conversão da Medida Provisória n. 881 em lei, pelo Professor Rodrigo Xavier Leonardo, que citou o exemplo da inclusão em contrato de regra contratual relativa à prescrição diversa da lei, em afronta ao art. 192 do Código Civil, e que não poderia ser alegada pela parte que a introduziu, caso essa mudança legislativa fosse efetivada.17

Ainda sobre a questão central da mudança do texto, como também já anotava em artigos anteriores que escrevi, se o objetivo da Medida Provisória foi o de tutelar o pequeno empresário, nesse ponto a projeção distanciava-se dos seus objetivos, pois poderiam prevalecer os interesses de grandes empresas perante os aderentes contratuais, por exemplo. No -

17 Consoante o art. 192 do Código Civil de 2002, “os prazos de prescrição não podem ser alterados por acordo das partes”.

ta-se que a regra anterior não diferenciava contratos empresariais paritários e de adesão. Adotando essa nossa posição, o Senador Rodrigo Pacheco sugeriu a supressão da regra, por meio da Emenda n. 169, cuja redação principal era a seguinte:

“Suprima-se o inciso VIII do art. 3.º da Medida Provisória n. 881, de 30 de abril de 2019. JUSTIFICAÇÃO. A Medida Provisória n. 811, de 2019, que institui a ‘Declaração de Direitos de Liberdade Econômica’, promove mudanças importantes no Direito Privado. Por isso, ela já despertou várias dúvidas e inquietações entre os mais respeitados juristas da contemporaneidade, caso de Anderson Schreiber, Flávio Tartuce, Marco Aurélio Bezerra de Melo e Pablo Stolze Gagliano. Além do mais, tivemos a oportunidade de ouvir o Professor Flávio Tartuce, que, após diálogo com outros dos maiores civilistas brasileiros da atualidade, apontou alguns aspectos técnicos e de mérito que estão a respaldar esta emenda e outras emendas que ora apresentamos”.

Destaco que, no total, foram vinte e três as emendas propostas pelo Senador Pacheco, após ouvir as nossas sugestões, minhas e dos juristas citados acima. Sobre essa emenda, especificamente, acabou por ser adotada outra solução, intermediária, qual seja a de um aperfeiçoamento legislativo, com um novo texto.

Conforme a sua redação atual, muito melhor do que a anterior e contando com o meu apoio quanto ao seu objeto, constitui direito de toda pessoa, natural ou jurídica, para a concretização da liberdade econômica, (...) ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública (art. 3.º, inc. VIII, da Lei n. 13.874/2019).

Pela norma em vigor, uma excessiva valorização do clausulado e da força obrigatória da convenção passa a atingir expressamente os negócios empresariais paritários, o que já vinha ocorrendo no plano da jurisprudência superior. Fala-se, assim, em intervenção mínima em tais negócios jurídicos, como passou a prever o art. 421, parágrafo único, do Código Civil, também incluído pela Lei da Liberdade Econômica: “nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”.

A exceção de proteção feita ao pacta sunt servanda diz respeito justamente a normas de ordem pública, que podem mitigá-lo ou relativizá-lo, o que há tempos é defendido por civilistas de gerações diversas, inclusive por mim. Na verdade, pode-se dizer que a ideia de autonomia privada – de valorização do direito de autorregulamentação contratual, sempre com respeito às normas de ordem pública – acabou por ser positivada nesse art. 3.º, inc. VIII, da Lei da Liberdade Econômica.

Em suma, se não houve a supressão total desse “problemático dispositivo”, pelo menos a sua redação ficou de acordo com a correta aplicação da ideia de autonomia privada, sem trazer grandes inovações com repercussões práticas diretas a respeito daquilo que se concebia anteriormente sobre esse importante princípio contratual.

Assim, penso eu, fica mantida a possibilidade de a parte que participou do negócio jurídico simulado alega-lo contra a outra, entendimento que me parece ser o majoritário hoje, não só na doutrina como na jurisprudência superior, com destaque para os acórdãos relatados pelo Ministro Paulo Dias Moura Ribeiro.

RESERVA MENTAL COMO HIPÓTESE DE SIMULAÇÃO.

A encerrar este artigo, algumas palavras devem ser ditas a respeito da categoria da reserva mental e o seu enquadramento como simulação na realidade jurídica brasileira.

Tenho entendido que a reserva mental ou reticência essencial, prevista no art. 110 do Código Civil de 2002, quando ilícita e conhecida do destinatário, é vício social similar à simulação absoluta gerando a nulidade do negócio jurídico. Consoante esse dispositivo, com redação de difícil compreensão por muito, “a manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento”. Destaque-se que não havia dispositivo semelhante na codificação anterior, de 1916.

Como anotam e definem Jones Figueirêdo Alves e Mário Luiz Delgado, “entende-se por reserva mental a emissão intencional de uma declaração não querida em seu conteúdo. Se o declarante diz o que não pretende e o destinatário não sabia que o declarante estava blefando, subsiste o ato. Na hipótese inversa, quando o destinatário conhecia o blefe, é óbvio que não poderia subsistir o ato, uma vez que ambas as partes estavam sabendo que não havia intenção de produzir efeitos jurídicos. O destinatário não se enganou, logo não poderia querer obrigar declarante, quando sabia que aquela não era a sua manifestação de vontade”.18 Na mesma linha, ensina Anderson Schreiber que “o negócio jurídico consiste, essencialmente, em uma declaração de vontade destinada a produzir efeitos legais. Caso a declaração não corresponda ao efetivo conteúdo da vontade do agente, que propositalmente subtrai sua real

18 ALVES, Jones Figueirêdo; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil anotado São Paulo: Método, 2005. p. 82.

intenção do conhecimento da contraparte, configura-se a reserva mental ou reticência”.19

Resumindo, a reserva mental opera de dois modos, a depender da situação concreta. e a outra parte dela não tem conhecimento da reticência, o negócio jurídico é plenamente válido, o que tem relação com a conservação do negócio jurídico. Porém, se a outra parte conhece a reserva mental, o negócio é nulo, pois o instituto é similar à simulação, na posição doutrinária que sigo. Não se negue que alguns autores, entendem que a hipótese é de incidência da teoria da inexistência, vertente que não sigo, pois tanto o Código Civil de 1916 com o Código Civil de 2002 não a adotaram, procurando resolver os vícios do negócio jurídico no seu plano da validade.

Como defendem Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, na reserva mental, o propósito pode ser tanto de prejudicar o declaratário – o outro negociante –, quanto terceiros. 20 Para esses doutrinadores, assim, ato atingido pela reserva mental seria inexistente, não nulo.

Reafirmo, contudo, a posição acadêmica a qual estou filiado, no sentido de que a reserva mental ilícita gera nulidade absoluta do negócio jurídico pela presença de uma simulação, como quer Maria Helena Diniz. 21 Do mesmo modo entendendo pela nulidade, leciona Sílvio de Salvo Venosa:

“Quando a reserva mental é de conhecimento do declaratário, a situação em muito se aproxima da simulação, do acordo simulatório, tanto que, nessa hipótese, parte da doutrina equipara ambos os institutos. No entanto, o que caracteriza primordialmente a reserva mental é a convicção do

19 SCHREIBER, Anderson. Código Civil Comentado. Doutrina e Jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 3ª Edição, 2021, p. 86.

20 NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado 3. ed. São Paulo: RT, 2005. p. 228.

21 DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 154.

declarante de que o declaratário ignora a mentira. Todavia, se o declaratário efetivamente sabe da reserva e com ele compactua, os efeitos inelutavelmente serão de simulação, com aplicação do art. 167”. 22

Igualmente, Álvaro Villaça Azevedo, meu Mestre na graduação nas Arcadas, afirma que “a reserva mental conhecida pelo destinatário considera-se simulação, sendo, portanto, nulo o negócio jurídico simulado, nos termos do art. 167, caput, 1.ª parte, do atual Código Civil”. 23 Por fim, destaco as lições de Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho, com os seguintes dizeres, e a quem estou totalmente filiado:

“Apesar de a doutrina tradicionalmente reconhecer que a reserva mental, havendo anuência do outro contraente, converte-se em negócio simulado, sujeito à declaração de nulidade, MOREIRA ALVES, autor da Parte Geral no Anteprojeto do Código Civil, sustenta que, neste caso, o negócio jurídico é inexistente: ‘Da reserva mental trata o art. 108705, que a tem por irrelevante, salvo se conhecida do destinatário, caso em que se configura hipótese de ausência de vontade, e, consequentemente, inexistência do negócio jurídico’. Com a devida vênia, este não é o nosso entendimento.

Exteriorizada a reserva mental, o destinatário, que anuiu com o desiderato do agente, passa a atuar ao lado do simulador, objetivando atingir fim não declarado e proibido por lei. Trata-se de típica hipótese de simulação. Até porque o negócio existirá e surtirá efeitos frente a terceiros, ainda que não sejam aqueles originariamente declarados e aparentemente queridos, até que se declare judicialmente a sua nulidade”. 24

22 VENOSA, Sílvio de Salvo. Código Civil interpretado São Paulo: Atlas, 2010. p. 122.

23 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral do Direito Civil Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2012, p. 183.

24 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil Volume 1. Parte Geral. São Paulo: 24ª Edição, 2022, Saraiva, p. 164.

Quanto à efetividade prática da reserva mental, penso ainda ser ainda muito reduzida, pela dificuldade em se aplicar o instituto, distante da nossa tradição e diante da intrincada redação do art. 110 do vigente Código Civil. De todo modo, sempre são citadas as ilustrações de por Nelson Nery e Rosa Maria de Andrade Nery. 25 Vejamos : a) declaração do autor de uma obra literária que anuncia que o produto da venda de seus livros será destinado a uma instituição de caridade. Entretanto, o único objetivo é aumentar a venda das obras. Se os compradores dos livros têm conhecimento da reserva, a venda pode ser nulificada; b) Declaração do testador que, com o objetivo de prejudicar herdeiro, faz disposição em benefício de quem se diz devedor, o que não é verdade; c) um homem visando exclusivamente ter relação sexual com uma mulher diz que a tomará como esposa; d) uma pessoa declara verbalmente a outra vender-lhe certo bem móvel para enganá-lo, julgando erradamente que a lei sujeita essa venda a escritura pública, pelo qual será nulo o contrato por vício de forma; e) estrangeiro em situação irregular no País casa-se com mulher brasileira para não ser expulso pelo serviço de imigração. Se a mulher sabe dessa omissão feita, o casamento será nulo. Se não sabe, o casamento permanece válido e f) promessa de mútuo feita a um moribundo insolvente como motivo de consolo. Os exemplos são interessantes para a compreensão do instituto. Todavia, em uma análise crítica, percebe-se que a reserva mental teve pouca aplicação prática nesses mais de vinte anos de Código Civil. Surgiu como grande novidade, mas repercutiu muito pouco, ao contrário do instituto da simulação propriamente dito, que ainda continua tendo muita aplicação prática.

25 NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado 3. ed. São Paulo: RT, 2005. p. 229.

6. REFERÊNCIAS

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AMARAL, Francisco. Direito civil : introdução. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

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AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral do direito civil : parte geral. São Paulo: Atlas, 2012.

CARVALHO NETO, Inácio de. Curso de direito civil brasileiro. Curitiba: Juruá, 2006. v. I.

DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito civil: teoria gera l. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. v. 1: Parte geral; 24. ed. 2022.

GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Coordenador e atualizador: Edvaldo Brito. Atualizadora: Reginalda Paranhos de Brito. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

LÔBO, Paulo. Direito civil: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2009.

NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 3. ed. São Paulo: RT, 2005.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil Atualizadora e colaboradora: Maria Celina Bodin de Moraes. 34. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. v. I: Introdução ao direito civil. Teoria geral de direito civil.

SCHREIBER, Anderson. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

TARTUCE, Flavio. Manual de Direito Civil São Paulo: Método, 13ª Edição, 2023.

VELOSO, Zeno. Invalidade do negócio jurídico 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Código Civil interpretado. São Paulo: Atlas, 2010.

IMPRESSÕES SOBRE O EXERCÍCIO DA AUTONOMIA

PRIVADA NO CONTEXTO DO DIREITO PROCESSUAL CONTEMPORÂNEO

Palavras-chave

Arbitragem. Autonomia. Precedentes. Segurança Jurídica.

Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade Nery

Professora Associada de Direito Civil da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

A crescente tendência entre as empresas, de escolher os tribunais arbitrais como forma de solução dos litígios que envolvem seus interesses, traz à baila a realidade de que, em muitos casos, as partes escolhem – e querem escolher – o direito aplicável ao processo arbitral, antes de sua instauração, dando ensejo à aplicação, até mesmo, de direito anacional e de normas de origem não estatal,1 para diversos casos de prestação de jurisdição no território nacional.

Há, por assim dizer, nos bastidores desses casos, o implemento de uma certa “racionalidade econômica” 2 que tenderia a superar a acusação que frequentemente se faz ao Judiciário brasileiro, de que este não teria conhecimento para julgamento de certas questões econômicas e financeiras, muito embora se possa devolver a provocação, indagando-se se os economistas conhecem a lei.

A pergunta que se impõe, nesse contexto de rica discussão, é se uma tal possibilidade – de escolha pelos litigantes do direito aplicável para a solução de determinado e específico caso –, à luz do princípio da igualdade de todos, chegaria a ser impeditivo de as partes invocarem em seu favor as regras estatais, e de ordem pública, de limites legais à excussão de seus bens ou de revisão dos contratos, à luz de cláusulas gerais, em tudo e por tudo, tão criadoras de soluções fora do contexto dos contratos (leis privadas) quanto o são as regras que derivam de normas de origem não estatal.

Ou, ao contrário, se as partes poderiam reivindicar dos tribunais estatais a solução encontrada pelos tribunais arbitrais para soluções que não foram pensadas pelos tribunais estatais.

Há tempos os economistas cobram do Judiciário postura capaz de superar os problemas de lentidão e de imprevisibilidade das decisões judiciais. Buscou-se um método que pudesse criar precedentes e gerar previsibilidade das decisões dos juízes.

O método implementado pelo sistema processual brasileiro, de 2015, de concentração nas mãos do STF e do STJ de mecanismos de vinculação dos outros Tribunais e dos juízes aos precedentes encontrados a partir de recursos repetitivos e de outros mecanismos processuais, de certa maneira, atende a essa reivindicação, da visão do mundo jurídico a partir do estudo de uma nova disciplina, denominada de “Direito e Economia”.

O curioso disso, entretanto, é que justamente as empresas, que tanto lutaram por uma maior previsibilidade das decisões judiciais estatais, terão a possibilidade – que o público em geral não terá – de ter acesso ao tribunal arbitral para obter a solução que, por comando de vontade, as partes queiram dar a seus particulares casos, fugindo da imposição impertinente do direito brasileiro que porventura venha a ser talhada pelo STF e STJ, a partir dos chamados recursos repetitivos ou outras formas de criação normativa que enseja a produção dos “temas”, dos quais derivam as “teses” abstratas fixadas pelos tribunais.

Mas ela não é a única. A vida privada e o patrimônio das pessoas também fomentam a vida empresarial e a circulação de riquezas e, bem por isso, devem ser cuidados pelo direito com igual desvelo.

A par da discussão – sempre aguda – sobre a constitucionalidade de o Judiciário poder editar normas com força verdadeiramente de lei, sem prévia autorização constitucional, pode-se dizer que o sistema do precedente judicial, com os enunciados de soluções e de interpretações jurídicas tomadas aprioristicamente, tem muitas vantagens e numerosos defeitos.

O mais grave deles é o engessamento de soluções: retira-se do processo o que melhor ele revela, de dialética jurídica constante, renovadora da jurisprudência e da vida social, a partir das impressões mais simples e da experiência cotidiana do exercício da judicatura em todos os rincões do país – ou torna-se mais lenta essa renovação, pela rapidez com que são julgados todos os outros casos alcançados pela força da decisão com conteúdo “vinculante”.

Para a segurança jurídica que a vida de relações exige, principalmente no que concerne ao resguardo do patrimônio da pessoa, a matéria pode fomentar situações indigestas, de desigualdade legal (uma proteção melhor e mais firme do patrimônio das empresas, em geral, no processo arbitral de grandes causas; um cuidado não tão acurado com o patrimônio da pessoa natural, nas relações triviais da vida jurídica).

tramitam nos tribunais estatais, conforme seja a forma de enfrentar a visão liberal do direito processual civil brasileiro, com a possibilidade da prática, pelas partes, dos denominados negócios jurídicos processuais (CPC 190).

Com isso as partes podem fugir à aplicação da lei, tal qual estatuída nas súmulas vinculantes e precedentes vinculantes e, ainda, escolher o tribunal para a solução de seus litígios.

Isto pode significar que a um só tempo se poderia fugir da aplicação da lei brasileira e do julgamento pelo Poder Judiciário brasileiro: apenas quando convier, submetem-se as partes à lei e ao Judiciário brasileiro. Não é preciso salientar que a hipótese pode significar quebra do princípio da igualdade de todos perante a lei, principalmente quanto ao trato de questões patrimoniais, consideradas de solução pautada pela liberdade das partes, sujeitas “à livre composição”.

Poderiam as partes que litigam em processo submetido à jurisdição estatal, à luz do CPC 190, celebrarem, por negócio jurídico, a obrigatoriedade da aplicação da lei, mas sem as amarras que os recursos repetitivos lhe dão? Poderiam postular para o caso de seu interesse patrimonial a aplicação de precedentes da jurisdição arbitral, tomados de lei anacional, ou de normas de origem não estatal?

1 Sven Schilf. Os princípios UNIDROIT, o conceito do direito e a arbitragem internacional, tradução feita por Amely Dütthorn, Abraham Lincoln Ferreira de Morais e Nina Côrtes da Veiga em cooperação com o autor, do Capítulo 2 do livro Allgemeine Vertragsgrundregeln als Vertragsstatut, São Paulo: Marcial Pons Editora do Brasil, CAM-CCBC, 2015, p. 167.

2 Carlos Peña Gonzáles. Sobre los dilemas economicos y eticos de un sistema de responsabilidad civil in Alfredo Bullard e Gastón Fernandes (editores). Derecho civil patrimonial, Lima: Pontificia Universidad Católica Del Perú, Fondo Editorial 1997, p. 216.

Percebe-se um cuidado crescente – e compreensível – com o patrimônio das empresas que litigam, para que a demora, a lentidão e a imprevisibilidade dos julgamentos não se ponham como óbice à vitalidade da vida empresarial.

É importante a preocupação, não se nega.

O engessamento do pensamento jurídico e, mesmo, do direito brasileiro por consequência do denominado – impropriamente – direito jurisprudencial (súmulas vinculantes, precedentes vinculantes oriundos ou não de recursos repetitivos), pode fomentar ainda mais a escolha da lei aplicável, possível no procedimento arbitral brasileiro e quiçá nos processos que

De qualquer maneira, é sempre bom lembrar o alerta de Clóvis Beviláqua: “também o nosso Código Civil não se arreceia do arbítrio do juiz, dentro dos estreitos limites, em que o chama a revelar o direito, de acordo com os princípios gerais dominantes. A esses princípios gerais, compreendidos com a necessária latitude, não diferem da vossa livre investigação científica, senão porque traçam o círculo dentro do qual tem de se mover a inteligência do julgador”. 3

3 Discurso proferido por Clóvis Beviláqua. Dois discursos sobre um jurista (1923 - 1955), Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1956, p. 7, em 26.2.1923, em homenagem a Pontes de Miranda.

O VENCIMENTO ANTECIPADO DA OBRIGAÇÃO E A SUA INFLUÊNCIA NA AFERIÇÃO DO MARCO INICIAL DO FATO JURÍDICO DA PRESCRIÇÃO: NOTAS A UMA DECISÃO JUDICIAL¹

Por a negligência, que a parte teve, de não demandar em tanto tempo a sua coisa ou dívida, havemos por bem, que seja prescrita a ação, que tinha para demandar.

Ordenações Filipinas, Livro IV, Título 79.

no tempo –, não merecera um parágrafo, uma linha, uma nota de rodapé sequer, no relatório e voto ratificados, de forma uníssona, pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça.

1

Palavras-chave

Prescrição. Vencimento Antecipado. Obrigações Contratuais. Direito Civil. Marcos Catalan

Doutor summa cum laude pela Faculdade do Largo do São Francisco, Universidade de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Estágio pós-doutoral no Mediterranea International Center for Human Rights Research (2020-2021). Visiting Scholar no Istituto Universitario di Architettura di Venezia (2015-2016). Estágio pós-doutoral na Facultat de Dret da Universitat de Barcelona (2015-2016). Professor visitante no Mestrado em Direito de Danos da Facultad de Derecho de la Universidad de la República, Uruguai. Professor visitante no Mestrado em Direito dos Negócios da Universidad de Granada, Espanha. Professor visitante no Mestrado em Direito Privado da Universidad de Córdoba, Argentina. Professor visitante no Mestrado em Direito Civil da Universidad de Huánuco, Peru. Cofundador da Rede de Pesquisas Agendas de Direito Civil Constitucional. Advogado parecerista.

O direito fundamental social à moradia foi incorporado à Constituição da República Federativa do Brasil no crepúsculo do século XX 2 . Um direito cotidianamente usufruído – ao menos, em boa medida – quando da escorreita utilização dos instrumentos lapidados pela dogmática juscivilista, responsável, também, pelo processo de densificação teórica de um direito dos mais abstratos. Causa perplexidade, portanto, aferir que a decisão 3 inspiradora das ingênuas notas adiante alinhavadas 4 , embora, verse acerca de um dos instrumentos mais importantes na promoção do acesso à moradia no Brasil – o contrato de mútuo imobiliário, com pagamento diferido

2 Quando do advento de nossa Constituição, em 1988, o artigo 6º dispunha serem “direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Doze anos mais tarde, por força da Emenda Constitucional n. 26, passou a dispor serem “direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Atualmente, depois de ter sido alterado, em 2010, pela Emenda Constitucional n. 64 e, em 2015, pela Emenda Constitucional n. 90, dispõe que são “direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

3 STJ. Recurso Especial 1.489.784/DF. Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. j. 15.12.2015. p. 1-10.

Um julgado que, em síntese deveras apertada, reformou acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal para – afastando a conclusão contida nos embargos interpostos pelos devedores –promover a repristinação do conteúdo e dos efeitos da sentença proferida por um juízo singular que se recusara a reconhecer que a antecipação do termo inicial da obrigação – ocorrida nos exatos termos de cláusula contratual, válida e eficaz, prevista no contrato de mútuo pactuado in concreto – deveria ser qualificada, também, como o instante inicial do lapso temporal necessário à maturação do fato jurídico da prescrição 5

Uma decisão colegiada que, apesar de escorreitamente identificar a existência de diferenças no tratamento das obrigações instantâneas e de execução diferida6 – essa, a classificação adequada dos deveres de prestação gestados em um contrato de mútuo imobiliário –, foi incapaz de concluir que o fato jurídico da prescrição7 somente poderia exsurgir8 depois do transcurso individual dos muitos prazos necessários ao encobrimento das múltiplas pre -

5 Pensada, aqui, como fato jurídico em sentido amplo. Em perspectiva verticalizada, a prescrição é ato-fato jurídico. 6 STJ. Recurso Especial 1.489.784/DF. Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. j. 15.12.2015. p. 6.

1 Estas reflexões foram alinhavadas no desvelar do projeto de investigação científica intitulado Abrindo fissuras nas paredes da sociedade do espetáculo [442136/2014-5] financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico –CNPq.

4 BORNHEIN, Gerd. Metafísica e finitude Porto Alegre: Movimento, 1972. p. 109-115. “A experiência poética instaura um modo originário de ver o mundo. [...] O poeta subverte a maneira usual de ver as coisas, inserindo-as numa nova perspectiva e desempenhando um papel essencial no ato de transformação do mundo, por arrancá-lo de sua estaticidade. [...] Justamente porque a poesia subverte o modo usual de ver as coisas, a linguagem alça-se nela a uma dimensão que transcende o falar trivial”. Com lastro em tal percepção e, também, ante a impossibilidade de despir-me de mim mesmo deixando de ser aquilo que sou é que cada palavra grafada nestas páginas foi, cuidadosamente, eleita na tentativa de atribuir a elas sentidos que possam vir a ser decodificados pelo leitor.

7 Oportuno antecipar que a existência de cláusula contratual – redigida, aliás, de forma unilateral pelo mutuante, quando da concepção das condições que informariam os contratos utilizados em sua atividade econômica – prevendo o vencimento antecipado da obrigação, como será explicado, de forma minudente, mais adiante, implica noutro tratamento jurídico da questão, conduzindo à conclusão diversa daquela alcançada na decisão ora analisada.

8 E isso porque são inúmeras as situações que poderiam vir a obstar, suspender ou interromper o fluxo do prazo de maturação da prescrição. Saliente-se, ademais, que essa reflexão ignora –por ora – os efeitos havidos do advento da condição suspensiva pactuada no contrato havido em concreto.

tensões nascidas, trintídio após trintídio, consoante o contrato pactuado9 , e não, jamais, do advento do termo atado à última parcela da dívida contraída. E que, enfim, ao recorrer a um modelo pseudoautopoiético10 de justificação – identificado na reprodução acrítica de seus próprios julgados11 – foi incapaz de valorar, adequadamente, apesar da erudição supérflua12 todos os efeitos disparados pelo advento da

9 Em que pese não haver regra expressa na codificação civil brasileira versando sobre o tratamento jurídico do assunto essa parece ser a melhor resposta para a questão da prescrição da pretensão nas hipóteses de prestações periódicas. Aliás, um pouco mais de atenção à dogmática construída no Brasil durante o alinhavar da decisão analisada teria conduzido à mesma conclusão. Nossos vizinhos argentinos, antevendo potenciais conflitos interpretativos, optaram por regrar o tema nos termos do artigo 2556 do vigente Código civil: “Prestaciones periódicas. El transcurso del plazo de prescripción para reclamar la contraprestación por servicios o suministros periódicos comienza a partir de que cada retribución se torna exigible”.

10 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Da epistemologia metafísico-teológica medieval à teoria de sistemas sociais autopoiéticos. Redes - Revista Eletrônica Direito e Sociedade Canoas, v. 1, n. 1, p. 177-193, nov. 2013. p. 186. “Sistema autopoiético é aquele dotado de organização autopoiética, na qual há a (re)produção dos elementos de que se compõe o sistema e que geram sua organização, pela relação reiterativa, circular (“re-cursiva”) entre eles. Esse sistema [supostamente] é autônomo porque o que nele se passa não é determinado por nenhum componente do ambiente, mas, sim, por sua própria organização, formada por seus elementos”.

11 OST, Fraçois. O tempo do direito. Bauru: Edusc, 2005. p. 147. O texto lapidado por Ost leva a refletir sobre a relevância contida na identificação do respeito à tradição como um “processo permanente, crítico e reflexivo de revisão” apto, portanto, a garantir a consciência exata de sua singularidade e a construir pontes dialógicas que estimulem o distanciamento do pensamento de tradições alienantes, estereotipadas e autoritárias valorizadoras do argumento da autoridade em detrimento da autoridade do argumento.

12 STJ. Recurso Especial 1.489.784/DF. Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. j. 15.12.2015. p. 7. Erudição identificada, por exemplo, na passagem que afirma que [...] “o vencimento antecipado da dívida assemelha-se ao instituto da acceleration do direito anglo-americano, pois uma limitação típica da "aceleração" é que (...) o inadimplemento precisa ser confirmado, isto é, que o inadimplemento não só tenha ocorrido, mas que continue ocorrendo ao tempo do exercício do direito de considerar a dívida antecipadamente vencida. Se o inadimplemento (efetivo ou técnico) tiver sido obviado ou sanado antes do exercício do direito, o emprestador não terá mais a possibilidade de aceleração com relação àquela inadimplência”. Supérflua por ignorar que a tradição jurídica anglo-saxã é deveras distinta da tupiniquim e, portanto,

condição contida em cláusula contratual, versando sobre o vencimento antecipado da obrigação.

É nesse cenário que salta aos olhos tanto (a) a afirmação de que o vencimento antecipado da obrigação “é uma faculdade do credor e não uma obrigatoriedade [sic], de modo que [o credor] pode se valer ou não de tal instrumento para cobrar seu crédito por inteiro, antes do advento do termo ordinariamente avençado”, como (b) a assertiva que destaca que “o vencimento antecipado da dívida [é] somente uma garantia do credor” 13 , talvez, porque não se trate nem de uma faculdade à disposição do credor, nem de uma garantia14 pensada em seu favor.

Tais passagens, aliás, permitem inferir que o julgado explorado, aparentemente, concebe a relação jurídica obrigacional havida in concreto como uma relação marcada por interesses antagônicos15 – uma leitura contemporaneamente insustentável, é preciso frisar –, ignorando, portanto, todo o amadurecimento teórico que a identifica como uma relação de co -

operação16 permeada pelo dever de agir de boa-fé17 e pela normatividade que emana dos demais princípios contratuais.

Antagonismo e culpa, de um lado, de outro, cooperação, solidariedade e alteridade.

A prescrição – a questão é controversa18 não se olvida – não encontra respaldo na necessidade de sancionar aquele que não exerceu, podendo fazê-lo, a sua pretensão, tendo por fundamento a necessidade de tutela daquele “que não é devedor e pode não mais ter prova da inexistência da dívida” 19 .

Eis, aqui, uma das razões que legitimam a imposição de limites cronológicos à eficácia das pretensões20 , “ponto de vista que, de modo geral, prevalece, a respeito do assunto”, embora, como antecipado outrora, diversos autores ainda a concebam como um “cas-

16 VILLELA, João Baptista. Por uma nova teoria dos contratos. Revista Forense Rio de Janeiro, v. 74, n. 261, p. 27-35, jan./mar. 1978. p. 32.

17 E, em tal contexto, portanto, permeada pelo dever de lastrear cada conduta, identificada em concreto, às molduras gestadas na normatividade que dela pulsa.

tigo à negligência”, atado ao dormientibus non sucurrit ius21 vertente jurídica do mais ocioso dos pecados capitais22

Qualquer reflexão sobre o tema deve, ainda, transitar pelo escólio de Beviláqua, que ao ensinar que a prescrição exsurge como um “paracleto da harmonia social”23 , permite inferir que, uma vez “concebida como exceção, aproveita, também, ao devedor, ainda quando ele sabia e sabe que deve”24 , especialmente, porque as “virtudes pacificadoras do esquecimento” legitimam a necessidade de ignorar aquilo que “durou demais sem chegar a realizar”25 .

por não identificar que figuras construídas em outros contextos sociojurídicos não podem ser, simplesmente, importadas.

13 STJ. Recurso Especial 1.489.784/DF. Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. j. 15.12.2015. p. 7-9.

14 A partir do momento em que o corpo do devedor não pôde mais ser utilizado como garantia para a satisfação dos créditos de titularidade do credor, lentamente, lapidou-se um sistema de garantias. Em síntese muito apertada, os bens do devedor garantem a satisfação de suas obrigações. Eis a garantia geral que informa qualquer relação jurídica obrigacional. Há, ainda, garantias que podem ser qualificadas como especiais, divididas em reais (penhor, hipoteca) ou pessoais (fiança, aval) e, ademais, figuras que, indiretamente, são utilizadas com essa função. No Brasil, a cláusula de retrovenda pode ser pensada como um bom exemplo.

15 Tal percepção se explicita quando se afere, na leitura atenta do voto que inspira redação das linhas aqui grafadas, (a) a identificação do advento da mora e a gênese e evolução dos juros a ela atrelados como fatos, exclusivamente, imputáveis ao devedor, (b) a refutação da possibilidade de recorrente ao duty to mitigate the loss diante da proibição da assunção de exceções havidas da própria torpeza. Ambas as passagens aqui analisadas podem ser encontradas em: STJ. Recurso Especial 1.489.784/DF. Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. j. 15.12.2015. p. 9.

18 THEODORO JUNIOR, Humberto. Comentários ao novo código civil: dos atos jurídicos lícitos. 2. ed. v. 03, t. 02, Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 166. Equivoca-se o autor “por pressupor a prescrição uma forma de abandono ou renúncia [duas figuras deveras distintas] por parte do titular [...]” consoante as razões descritas nas notas de rodapé adiante grafadas. O mesmo equívoco informa as reflexões de MOTA PINTO, Carlos Alberto da. Teoria geral do direito civil. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 1996. p. 376 como se pode perceber no seguinte excerto: “A prescrição arranca, também, da ponderação de uma inércia negligente do titular do direito a exercitá-lo, o que faz presumir a renúncia ou, pelo menos, o torna indigno da tutela do Direito, em harmonia com o velho aforismo dormientibus non succurrit ius”.

19 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado parte geral. t. 06, Rio de Janeiro: Borsoi, 1955. p. 100. “Tal fundamento espúrio, de penalidade, viera das Ordenações Manuelinas (Livro IV, Título 80), [chegando às Ordenações Filipinas, nos termos da epígrafe que inaugura este texto]; pois não no tinha o direito anterior a elas”.

20 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado parte geral. t. 06, Rio de Janeiro: Borsoi, 1955. p. 100-101. Oportuno lembrar, uma vez mais, com o maior civilista do século XX, que a prescrição é uma ferramenta do direito positivo e que, por isso, consequentemente, “atribuir-lhe natureza de renúncia ou de fixação de renúncia, orça por se degradar o instituto, que teve origens mais conspícuas”.

Por tudo isso, é possível reafirmar que prescrição “é defesa do presente contra o passado”26 , baluarte que, uma vez construído, terá a energia e a resistência necessárias à tutela da sociedade por meio da redução de muitas das contingências até então presentes em um processo obrigacional qualquer27. E, 21 AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 300, p. 07-37, out. 1960. p. 18-22. “Compreende-se [assim] facilmente o motivo da escolha da pretensão como termo inicial do prazo de prescrição. É que o estado de intranquilidade social que o instituto da prescrição procura limitar no tempo, não resulta somente da possibilidade de propositura da ação, mas também de um fato que sempre lhe é anterior, e que pode até ocorrer sem que haja nascido a ação: a possibilidade de exercício da pretensão. Pouco, ou nada, adiantaria paralisar a ação, com o objetivo de alcançar aquela paz social, se a pretensão permanecesse com toda sua eficácia”.

22 NOLL, João Gilberto. Canoas e marolas. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999. p. 09-105.

23 BEVILAQUA, Clovis. Teoria geral do direito civil. Campinas: RED, 2003. p. 279.

24 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral. t. 06, Rio de Janeiro: Borsoi, 1955. p. 104.

25 OST, Fraçois. O tempo do direito Bauru: Edusc, 2005. p. 158-181.

26 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral. t. 06, Rio de Janeiro: Borsoi, 1955. p. 103.

27 CARVALHO SANTOS, João Manoel de. Código civil brasileiro interpretado: parte geral. 6. ed. v. 03, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1958. p. 372. “E se o credor permanece inerte, sem providenciar para [sic] o efetivo exercício de seu direito, estabelece-se uma incerteza, uma situação de dúvida que a ordem

se, talvez, não imponha desligar o passado28 , exige, ao menos, que a força do Direito se desvincule dele, perdoando-lhe “tudo em troca dos imensos serviços que presta à sociedade”29

O Direito se apropria da quietude, da inércia que se arrasta no tempo 30 ao fazer sua opção.

Reflexões que dão legitimidade à afirmação de que, como uma particular espécie de fato jurídico, a prescrição se forma a partir dum determinado suporte fático composto por eventos e ações humanas. O suporte fático da prescrição é complexo, envolvendo eventos (o transcurso do tempo) e ações humana (a inação do titular de uma determinada situação jurídica ativa). [...] O fluir do tempo, entremeado por um termo inicial e um termo final fixado pela Lei, no entanto, não é suficiente para configurar a prescrição. Além da fluência do tempo, mostra-se necessária a ocorrência de uma inação do titular de uma situação jurídica ativa (direito/pretensão/ação) 31

Em síntese precisa, enfim, pode ser afirmado que o fato jurídico da prescrição foi emoldurado enquanto “ato-fato lícito caducificante em cujo suporte fático se encontra (a) a titularidade de um direito, de uma pretensão (e, eventualmente, de uma ação de direito material), (b) a inação do titular e (c) a passagem do tempo” 32

jurídica condena. E por condená-la, não tolerando que permaneça este estado contrário aos interesses superiores da ordem pública, é que impõe um termo, fazendo tal estado cessar”.

28 OST, Fraçois. O tempo do direito. Bauru: Edusc, 2005. p. 131185.

29 FERREIRA COELHO, Antônio. Código civil dos Estados Unidos do Brasil: comparado, anotado e analysado. v. 10, Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, 1927. p. 281.

30 BEVILAQUA, Clovis. Teoria geral do direito civil. Campinas: RED, 2003. p. 278.

31 LEONARDO, Rodrigo Xavier. A prescrição no código civil brasileiro: ou o jogo dos sete erros. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná Curitiba, n. 51, p. 101-120, 2010. p. 102-103.

32 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. A prescriti-

É necessário imergir, ainda mais, no enfrentamento do tema.

Identificado que o exercício da pretensão pode ser limitado, no tempo, pela prescrição 33 , é preciso explicitar, que uma vez operada, enquanto ato-fato jurídico, ela não induzirá à extinção da pretensão, quiçá do direito que poderia vir a ser exigido e não pode mais sê-lo, limitando-se, tão somente, a inviabilizar o exercício de um direito subjetivo, por meio do encobrimento da eficácia da pretensão nele contida34

Pretensão 35 , aliás, é oportuno esclarecer, que consiste no poder atribuído ao credor de exigir uma prestação – um dar, fazer ou não fazer prometidos ou impostos ao devedor – e que nasce no vencimento da obrigação 36 , não na violação de um direi -

bilidade das ações (materiais) declaratórias: notas à margem da obra de Agnelo Amorim Filho. In ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de; CUNHA, Leonardo Carneiro da; MIRANDA, Daniel Gomes de (Org.). Prescrição e decadência: estudos em homenagem a Agnelo Amorim Filho. v. 01, Salvador: Juspodium, 2013. p. 488.

33 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral. t. 06, Rio de Janeiro: Borsoi, 1955. p. 103.

34 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. Três problemas sobre a prescrição no direito brasileiro: primeiro esboço. In ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; CAMPOS, Alyson Rodrigo Correia (Org.). Do direito civil I v. 01, Recife: Nossa Livraria, 2013. p. 822.

35 LEONARDO, Rodrigo Xavier. A prescrição no código civil brasileiro: ou o jogo dos sete erros. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, n. 51, p. 101-120, 2010. p. 106. Apesar de inspirar-se na codificação germânica, “o Código Civil Brasileiro [...] está muito longe de ser uma mera reprodução do modelo alemão, a começar pelo fato de que em seu texto não se encontra uma definição do que vem a ser a pretensão que seria supostamente extinta pela prescrição. Enquanto o BGB definiu expressamente a pretensão como o “direito de exigir de outrem uma ação ou omissão”, o Código Civil Brasileiro limita-se a dispor que a pretensão nasceria da violação de um direito, sem estipular o que se deve compreender pelo termo pretensão”.

36 AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista dos Tribunais São Paulo, n. 300, p. 07-37, out. 1960. p. 20-21. “O Código Civil alemão introduziu em seu texto, exatamente na seção que trata da prescrição, o conceito de pretensão (Anspruch), que é extremamente útil na prática: "o poder de exigir de outrem uma prestação" (§ 194). E acrescentou, no

to, como, imprecisamente, foi grafado no Código civil brasileiro 37

Desde o momento em que é possível exigir o adimplemento, haverá pretensão. E, desde o exato instante temporal em que se materializa tal possibilidade, a inércia do credor movimenta o lento fluxo do prazo necessário à caracterização da prescrição, redundando (ou não) na sua gênese. E é assim desde Theodosio 38

Daí que, se o titular da pretensão precisou reclamar, buscando haver seu crédito, podendo reclamar antes, isso comprova que a pretensão, também, nascera antes 39 no silêncio não interrompido e mantido por aquele que possuía o poder de exercê-la40 , assertiva que conduz, indelevelmente, a concluir que a decisão recortada para análise peca, também, por entender não ter havido a prescrição. E peca porque, se, nas obrigações contratuais, o prazo para exigir o pagamento começou a fluir com o advento do termo 41 – o que permite inferir que pretensão existirá no § 198: "A prescrição começa com o nascimento da pretensão". Acentue-se que, quando o mencionado Código, em seu 194, fala [sic] em "poder de exigir”, está subentendido que é o poder de exigir extrajudicialmente (tendo em vista a possibilidade de realização espontânea do direito por parte do sujeito passivo) e não o poder de exigir por via judicial”.

37 “Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206”.

38 FERREIRA COELHO, Antônio. Código civil dos Estados Unidos do Brasil: comparado, anotado e analysado. v. 10, Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, 1927. p. 263. “O imperador Theodosio, em 424, em uma constituição que se tornou célebre, declarou que as ações, que até então eram perpétuas, se extinguiriam depois de trinta anos, a contar do dia em que o direito se tornasse exigível”. Limitar-nos-emos à reprodução dessa nota histórica – ignorando, de forma consciente, toda a mutação havida do labor do tempo em momentos díspares da História havida desde então – diante do objeto que informa este opúsculo e do espaço disponível para alinhavá-lo.

39 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral. t. 06, Rio de Janeiro: Borsoi, 1955. p. 96.

40 SAVIGNY, Friedrich Carl von. Sistema del derecho romano actual. t. 03, Madrid: P. Góngora y Compañía, 1879. p. 194.

41 Por absoluta falta de espaço, não serão exploradas as situações nas quais existe condição ou encargo ou, ainda, aquelas

exato instante em que o direito subjetivo possa ser exigido 42 –, uma vez abreviado o vencimento da dívida, enquanto efeito produzido quando da vivificação da cláusula contratual imposta aos devedores 43 , abreviou-se, também, o marco inicial da prescrição da pretensão.

“A obrigação se tem de cumprir por um ato positivo do devedor [e] desde o momento em que ele não o cumpriu [...] a prescrição se iniciou, isto é, um estado contrário ao direito particular do credor começou a formar-se”44 . Assim, “se a exceção é de prescrição, exatamente, para o cômputo do prazo, se toma como dies a quo o dia da mora”45

A peculiaridade da situação sob análise está atada ao dúplice fator eficacial conectado à exigibilidade das prestações, contratualmente, modelado. O primeiro, responsável pela gênese dos sucessivos termos para o pagamento das 240 parcelas em que foi fracionada a dívida. O segundo, sucessivo, contendo condição suspensiva que, uma vez havida na seara fenomenológica, absorveria – como, de fato, absorveu – o ajuste anterior, legitimando o credor a exigir o pagamento de toda a dívida.

nas quais não há termo, condição ou encargo atado ao ato ou negócio jurídico do qual pulsa a relação jurídica obrigacional. 42 BERNARDES DE MELLO, Marcos. Teoria do fato jurídico plano da validade. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 237. Afirma, ainda, com precisão, o icônico professor alagoano que “quem pode ser violada é a pretensão, porque contém exigibilidade, nascendo daí a ação de direito material” e a pretensão”.

43 Afinal, os contratos de mútuo imobiliário nascem da adesão às condições gerais de contratação estipuladas, de forma unilateral, pelas mesmas sociedades empresárias que, dentre outras atividades, são responsáveis pelo fornecimento do crédito habitacional.

44 BEVILAQUA, Clovis. Teoria geral do direito civil. Campinas: RED, 2003. p. 284-285.

45 LEONARDO, Rodrigo Xavier. A prescrição no código civil brasileiro: ou o jogo dos sete erros. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná Curitiba, n. 51, p. 101-120, 2010. p. 111. “Se a prescrição extinguisse realmente a pretensão, fulminando-a em moldes peremptórios, a renúncia seria um ato jurídico capaz de conferir uma ressurreição daquilo que já foi extinto. Isso parece incoerente e sem sentido”.

A mora no pagamento de algumas parcelas, nos termos da cláusula subordinada à condição suspensiva, ao colori-la, produziu o vencimento antecipado da obrigação. Assim, o advento da condição contratualmente pactuada provocou, exatamente, aquilo que havia sido previsto no contrato 46 . Uma cláusula que, enquanto tal, vincula, ata, liga, conecta ambas as partes. Também, por isso, a possibilidade atribuída ao credor de exigir o adimplemento do todo não pode ser separada dos ônus que a antecipação do vencimento carrega consigo. Daí, que a cláusula que versa acerca do vencimento prematuro da obrigação vincula, também, a antecipação do termo inicial que poderia levar – como de fato, levou – à maturação da prescrição.

E, mesmo que a alteração legislativa havida nas opções equivocadas 47, promovidas pelo direito processual tupiniquim48 imponha a revisitação da moldura

46 BERNARDES DE MELLO, Marcos. Teoria do fato jurídico: plano da eficácia. 3. ed. v. 01. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 35. Afinal, ainda que possa se questionar como se deve significar a vontade, fato é que a “vontade dos figurantes do negócio jurídico, segundo a amplitude do poder de autorregramento que lhe[s] assegura o sistema jurídico, constitui o elemento que mais pode influir no surgimento, modificações e duração da eficácia jurídica. A possibilidade ampla de se estabelecerem condições e termos nos negócios jurídicos revela o quanto pode a vontade em relação à eficácia. Não que a gere só por si; não que possa alterar ou impedir que a eficácia cogentemente prevista pela lei se realize; mas, naquele âmbito em que o sistema lhe reconhece o poder de autorregrar-se, constitui dado suficiente a regulá-la”.

47 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. Três problemas sobre a prescrição no direito brasileiro: primeiro esboço. In ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; CAMPOS, Alyson Rodrigo Correia (Org.). Do direito civil I. v. 01, Recife: Nossa Livraria, 2013. p. 830. “Sobre o erro crasso de política legislativa que representa a alteração, pervertedora de milenar tradição legislativa, incompatível com várias outras disposições do sistema, inconstitucional por violação ao princípio da liberdade e orientada por motivos de duvidosa procedência, remete-se o leitor a trabalho prévio, escrito à época da alteração legal”.

48 Em fevereiro de 2006 – moldada por um pragmatismo despido de preocupações com a perfeição more geometrica que inspira e vivifica a dogmática do direito civil da Modernidade –, entrou em vigor a Lei 11.280, alterando a redação do artigo 219 do Código de processo civil então vigente, para autorizar que a prescrição possa ser reconhecida de ofício pelos magistrados. Hodiernamente, parece relevante destacar, que os artigos 332

delineadora da exceção da prescrição 49 tal fato não altera, em nada, a imprecisão que informa a decisão aqui analisada.

Ao contrário, explicita-a50

Infelizmente.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. A prescritibilidade das ações (materiais) declaratórias: notas à margem da obra de Agnelo Amorim Filho. In ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de; CUNHA, Leonardo Carneiro da; MIRANDA, Daniel Gomes de (Org.). Prescrição e decadência: estudos em homenagem a Agnelo Amorim Filho. v. 01, Salvador: Juspodium, 2013.

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LEONARDO, Rodrigo Xavier. A prescrição no código civil brasileiro: ou o jogo dos sete erros . Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná Curitiba, n. 51, p. 101-120, 2010.

e 487 – ambos do Código de processo civil vigente – versam acerca do tema. As duas regras, aparentemente, emergem em um cenário que permite antever alguma contradição. Eis a sua redação: Art. 332. Nas causas que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da citação do réu, julgará liminarmente improcedente o pedido que contrariar: [...] § 1° O juiz também poderá julgar liminarmente improcedente o pedido se verificar, desde logo, a ocorrência de decadência ou de prescrição. Art. 487. Haverá resolução de mérito quando o juiz: II – decidir, de ofício ou a requerimento, sobre a ocorrência de decadência ou prescrição. [...] Parágrafo único. Ressalvada a hipótese do § 1° do art. 332, a prescrição e a decadência não serão reconhecidas sem que antes seja dada às partes oportunidade de manifestar-se. Não há espaço, aqui, para maior digressão. Recupere-se, apenas, que a opção grafada no apontado artigo 332 despreza a advertência formulada por um dos mais brilhantes civilistas do Brasil e que aponta que, “ao conhecer de ofício a prescrição, o juízo pode desconhecer circunstâncias de interrupção, de suspensão ou de impedimento do prazo prescricional, ou até mesmo de renúncia do credor à prescrição, forçando o autor a se servir de recursos processuais para que sua demanda possa ter prosseguimento”. LEONARDO, Rodrigo Xavier. A prescrição no código civil brasileiro: ou o jogo dos sete erros. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná Curitiba, n. 51, p. 101-120, 2010. p. 113.

49 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral. t. 06, Rio de Janeiro: Borsoi, 1955. p. 100. “No código civil brasileiro e na ciência jurídica, escoimada de teorias generalizantes, prescrição é a exceção, que alguém tem, contra o que não exerceu, durante certo tempo, que alguma regra jurídica fixa, a sua pretensão ou ação”.

50 Tendo por lastro o direito vigente no Brasil – e que precisa ser levado a sério –, a prescrição operada na hipótese recortada para análise – vide Recurso Especial 1.489.784/DF – deveria ter sido decretada de ofício no juízo singular. Ocorre que, tendo o Tribunal estadual corrigido o equívoco interpretativo, o Superior Tribunal de Justiça parece ter optado por valorar tradição de legitimidade duvidosa – ao repetir decisões por ele construídas – em detrimento do enfrentamento da sofisticada argumentação da tese que optou – com base no argumento da autoridade –por reformar.

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. Três problemas sobre a prescrição no direito brasileiro: primeiro esboço. In ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; CAMPOS, Alyson Rodrigo Correia (Org.). Do direito civil I v. 01, Recife: Nossa Livraria, 2013.

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RESPONSABILIDADE POR DANO DECORRENTE DE VIOLAÇÃO À

FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO: NOTAS AO DECIDIDO PELO STJ AO

JULGAR O RECURSO ESPECIAL 1.295.838/SP

Palavras-chave

Função social do contrato. Responsabilidade por Danos. Direito Civil contemporâneo.

André Luiz Arnt Ramos

Doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR, com experiência pós-doutoral concluída na mesma instituição. Associado ao Instituto dos Advogados do Paraná e ao Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil. Co-fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Professor universitário e advogado. Contato: andre@arntramos.adv.br.

Resumo

O texto analisa e comenda o acórdão pelo qual o Superior tribunal de Justiça, por sua Terceira Turma, julgou o Recurso Especial número 1.295.838/SP. A partir de revisão de literatura e da aplicação da metodologia de análise de decisões, aponta aspectos positivos e negativos das razões informadoras do julgamento, com ênfase à construção paulatina do sentido contemporâneo da função social do contrato, consagrada legislativamente pelo artigo 421 do Código Civil. Propõe, ao final e sob o pálio da acepção de segurança jurídica como exigência de coerência normativa, caminhos para exploração da referida normativa e do entendimento referendado pela Corte.

INTRODUÇÃO

A função social do contrato é consagrada pelo artigo 421 do Código Civil Brasileiro. Sem embargo de sua qualificação como preceito de ordem pública, o conteúdo prescritivo da função social do contrato é ainda bastante nebuloso. E a literatura jurídica, muito embora conte com contribuições importantes para seu desvendar, titubeia diante do desafio de delimitar o sentido do preceito à luz do Direito Civil brasileiro contemporâneo. A despeito desse estado de coisas, há importantes decisões judiciais que, mesmo implicitamente, sistematizam as diferentes concepções existentes na comunidade especializada e auxiliam a aclarar os limites e potencialidades da função social do contrato. É o caso do acórdão pelo qual a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça julgou o Recurso Especial 1.295.838/SP.

Este artigo se dedica a analisar e comentar as razões da decisão, sob o pálio da concepção coerentista de segurança jurídica. Persegue tal desiderato mediante recurso à metodologia de análise de decisões, delineada por Freitas Filho e Moraes Lima1 Mais especificamente, o texto busca (i) organizar informações relativas à decisão no contexto do Direito Civil brasileiro contemporâneo; (ii) verificar, nele, a (in) coerência dos porquês do ato decisório; e (iii) produzir uma explicação da (im)propriedade da decisão, a partir da interpretação dos argumentos que lhe sustentam.

Para tanto, o texto se divide em duas seções. A primeira descreve o estado da função social do contrato na comunidade jurídica especializada. A segunda descreve a decisão, delimitando os fatos da causa e as razões de decidir. Demonstra, ainda, que, mesmo sem alusão expressa à função social do contrato,

o Superior Tribunal de Justiça ofereceu importante contribuição ao entendimento do tema na contemporaneidade. Adiante, seguem-se apontamentos conclusivos.

1. FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO, ESSA VELHA DESCONHECIDA

A civilística brasileira debate com fervor o alcance de leituras funcionais dos institutos fundamentais de Direito Civil 2 Embora haja adeptos e críticos delas, da chamada constitucionalização, do emprego de enunciados deliberadamente indeterminados, e de tantos outros tópicos polêmicos, sua suscitação é inescapável. A reconsideração do fundamento, do sentido e da finalidade de contrato, propriedade e família – bem assim de institutos como a responsabilidade que os cortam transversalmente – varia em intensidade e conteúdo, ao sabor das preocupações e vieses de cada interlocutor.

Particularmente no tocante à função social do contrato, normativamente exigida pelo artigo 421 do Código Civil, três grandes argumentos se confrontam.

O primeiro, rotulado de solidarista esquadrinha a função social como limite e exigência de contributos direcionados à coletividade. Dela é ilustrativa a posição, dentre tantos outros, de Lôbo, que afirma a supremacia dos interesses sociais sobre os individuais, especialmente no que tange ao exercício de liberdades econômicas, seja em perspectiva estática 3 , seja em senso de dinamicidade 4 Isto é: a renovação con -

2 A propósito: “Do Direito Civil aos direitos civis fundamentais, a estrutura cede passo à função.” (FACHIN, L. E. Direito Civil sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 95).

3 Isto é, com relação à propriedade, a respeito de cuja função social Lôbo anota: “A função social é incompatível com a noção de direito absoluto, oponível a todos, em que se admite apenas a limitação externa, negativa. A função social importa limitação interna, positiva, condicionando o exercício do próprio direito. Lícito é o interesse individual quando realiza, igualmente o interesse social” (LÔBO, P. L. N. Constitucionalização do Direito Civil. Revista de Informação Legislativa Brasília, a. 36, n. 141, pp. 99-109, 1999, p. 105).

1 FREITAS FILHO, R. e MORAES LIMA, T. Metodologia de análise de decisões – MAD. Univ. JUS Brasília, n. 21, p. 1-17, jul./dez. 2010.

4 Ou seja, com relação ao contrato, cuja função social, segundo o mesmo autor: “determina que os interesses individuais das partes do contrato sejam exercidos em conformidade com os

ceitual dos institutos fundamentais de Direito Civil, imprimida por este corte funcional, se volta à eliminação, daqueles, de tudo o que seja eliminável desde o prisma do interesse coletivo 5

O segundo, afeito a determinadas leituras de Direito e Economia, como as referendadas por Timm 6 e Sztajn7, acena para a correspondência quase integral entre a função econômica e a função social dos institutos de Direito Civil em geral e do contrato em especial. Assim e em resumo, sua função social se resumiria a reduzir custos de transação e lubrificar as engrenagens do mercado. Este viés, que desponta triunfante no texto da Lei da Liberdade Econômica, é marcado pela ênfase aos indivíduos, nos custos de transação, nas externalidades de atividades econômicas e nas consequências (deletérias)8 da atuação do Estado na economia.

O terceiro, enfim, acolhe apreensões dos anteriores e as enfeixa em argumento bifronte pela promoção de liberdade(s) e na preservação de garantias institucionais 9 Por um lado, então, delineia a função social interesses sociais, sempre que estes se apresentem. Não pode haver conflito entre eles, pois os interesses sociais são prevalecentes” (LÔBO, P. L. N. Direito Civil Contratos. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 67).

5 Cf., neste quadrante: FACHIN, L. E. Função social da posse e a propriedade contemporânea uma perspectiva da usucapião imobiliária rural. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1988, pp. 17-21.

6 V. TIMM, L. B. Direito, mercado e função social. In: TIMM, L. B. O Novo Direito Civil ensaios sobre o mercado, a reprivatização do direito civil e a privatização do direito público. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

7 V. SZTAJN, R. Mercados e a função social do contrato. Revista de Direito Empresarial. São Paulo, v. 12, pp. 19-33, nov./dez. 2015. 8 Esta percepção é sintetizada pela seguinte passagem: “Consequentemente, por meio do modelo econômico de contrato, pode-se perceber que o modelo solidarista (paternalista) de direito contratual não é capacitado para alcançar o seu propósito de bem-estar na sociedade, vez que poderá, aleatoriamente, beneficiar alguns indivíduos, mas, proporcionalmente, prejudicar muitos outros mais. A intensificação da proteção legal de uma das partes (locatários, por exemplo) traz em seu bojo, geralmente, um aumento total de custos ao mercado (locação, no caso). Estes custos terminam sendo repassados aos sujeitos atuantes do lado da demanda (...), os quais pagarão um preço mais alto” (TIMM, L. B. Direito contratual brasileiro: críticas e alternativas ao solidarismo jurídico. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 204). 9 V. PIANOVSKI RUZYK, C. E. Institutos fundamentais de Direito

como um direcionamento da liberdade contratual à maximização de liberdade s E isso engloba tanto a liberdade negativa dos contratantes quanto as liberdades positiva e substancial suas e de todos os afetados, em caráter mais ou menos imediato, pela contratação entabulada. De outra banda, traz consigo deveres de proteção e promoção às garantias institucionais10 , como ressaltam Penteado11, Klein12 e Salomão Filho13

Civil e liberdade(s): repensando a dimensão funcional do contrato, da propriedade e da família. Rio de Janeiro: GZ, 2011, e ARNT RAMOS, A. L. Segurança jurídica e indeterminação normativa deliberada: elementos para uma Teoria do Direito (Civil) Contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2021. 10 “As garantias institucionais têm características bem distintivas. Em primeiro lugar, todas elas são a um tempo destinadas à proteção do interesse de cada indivíduo e de sua coletividade, seja ela numericamente determinável ou não. Mais, ainda, em todas elas o interesse institucional é jurídica e economicamente destacável do interesse individual. Juridicamente, na medida em que a lei, ou a doutrina, se encarregam de estabelecer instrumentos protetores especiais e diversos dos instrumentos protetores dos interesses privados para esses especiais interesses (...). Economicamente, porque a proteção da referida garantia institucional deve representar uma utilidade para a coletividade que não se confunda com a utilidade individual e também inconfundível com a utilidade pública. (...) Finalmente, os interesses institucionais devem ser dotados de reconhecimento jurídico e social. Basta o reconhecimento constitucional dos interesses (por exemplo: meio ambiente, defesa da concorrência) para que sua proteção como garantia institucional seja imperiosa (desde que obviamente presentes os requisitos mencionados anteriormente)” (SALOMÃO FILHO, C. Função social do contrato: primeiras anotações. Revista dos Tribunais v. 823, pp. 67-86, mai. 2004, p. 73-74).

11 “O contrato insere-se em um sistema maior de trocas e de estratificação de tendências sociais e, deste modo, pode ser visto sob o prisma de elemento que deve atender a certas garantias institucionais, sob pena de ineficácia. (...) O princípio da função social do contrato permite a tutela difusa pelo judiciário das garantias institucionais. Liberta a tutela de interesses supra-individuais da tutela administrativa ou da casuística prevista em lei” (PENTEADO, L. C. Efeitos contratuais perante terceiros São Paulo: Quartier Latin, 2007, pp. 269-270).

12 “O princípio da função social de contratar traz para dentro da relação contratual os interesses sociais juridicamente protegidos, como o meio-ambiente e os consumidores. Deste modo, qualquer avença entre dois empresários que afete interesses como os dos consumidores, trabalhadores, meio ambiente, concorrência, entre outros, pode ser questionada por entidades representativas destes interesses” (KLEIN, V. A economia dos contratos uma análise microeconômica. Curitiba: CRV, 2015, p. 168).

13 “o sentido da justificação do contrato a partir de sua função social está em reconhecer que o contrato (...) é um instrumento de organização social e econômica. Como tal deve ter em conta

À luz dessa última perspectiva, pode-se dizer que a avaliação do cumprimento da função social do contrato se verifica pelo contributo que oferece à vivência de liberdades em sociedade, as quais se asseguram, também, pelo resguardo às garantias institucionais. Nesta qualidade, tutela não apenas o que é de cada um, mas também o que se protege ou afirma com mirada transindividual. Esta recondução a categorias usuais no seio da comunidade jurídica e permissivas de delimitação do alcance da normativa da função social do contrato pode contribuir para sua fundamentação e operabilidade para além das partes.

Tal desenho traz consigo o desafio de calibrar, com altivez e assertividade, as consequências impostas da disfuncionalidade contratual. Nem poderia ser diferente, pois “a função (...) aponta para um ‘porto’ que deve ser visado pela navegação dos titulares de direito. O desvio de rota (disfunção) é coibido”14 . Ela se verifica, em miúdos, sempre que um contrato implicar ou agravar déficits de liberdades, refugar o incremento delas em concreto ou mesmo agredir garantias institucionais. Três caminhos de enfrentamento, então, se desenham.

Em primeiro plano, face à inafastabilidade do artigo 2.035, parágrafo único, do Código Civil15 o contrato ou convenção particular que contrariar sua função social e macular, reduzir ou claramente deixar de promover liberdades ou garantias institucionais careceos interesses – não particulares, mas institucionais – que o cercam” (SALOMÃO FILHO, C. Função social do contrato: primeiras anotações..., p. 79).

14 PENTEADO, L. C. Direito das Coisas 2ª Ed., revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 198 15 “Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045 , mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.

Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”.

rá em absoluto de validade. A disfunção integral da avença, portanto, importa sua nulidade – argumento facilmente extraível do texto legal e desenvolvido, mesmo antes da entrada em vigor do Código Civil, por Nalin16

A disfunção de certa(s) cláusula(s) ou consequência(s) da avença que não maculem sua razão de existir, por outro lado, comportam simples revisão, com remoção da porção inválida, em prol da conservação dos negócios jurídicos (também da confiança negocial e da segurança visada pelas partes e pelo contexto em que se contrata). Novamente, trata-se de direta aplicação de dispositivos legais específicos e ou técnicas consagradas, como a redução ou a conversão do negócio, ao modo esboçado pela comunidade jurídica especializada17

Em segundo plano, disfuncionalidades não originárias ou circunstanciais, podem comportar enfrentamento pontual segundo os critérios coerentistas da função como liberdade, complementados pelo resguardo às garantias institucionais. Deste modo, em vez de medidas drásticas que interferem na totalidade do contrato ou de precipitadas cominações em abstrato, avaliações concretas podem conduzir à ineficácia de cada aspecto disfuncional – consequ16 “E, para o contrato, seria oportuno e correto mencionar uma "ablazione", assim como para a propriedade, inserindo a sua vers ão patológica num dos já consagrados segmentos da teoria da invalidade do negócio jur dico, ou seria necess ário um reenquadramento do tema? Em brev ssimas considerações, creio que a matéria transite em nível de nulidade virtual, cuja efic ácia, mesmo sem um texto que a torne expressa, mas por forç a da gravidade da les ão que consigo traz, implique a nulidade absoluta do contrato. Entretanto, em razão dos interesses coletivos que o contrato possa trazer consigo, caberá ao intérprete definir a conseqüência por tamanha violação, sem perder de vista, ademais, uma desejada conservação dos efeitos do negócio jurdico, quando poss vel for” (NALIN, P. A função social do contrato no futuro Código Civil Brasileiro. Revista de Direito Privado São Paulo, v. 12, pp. 50-60, out./dez. 2002, p. 56).

17 V. OLIVEIRA, C. E. E. Considerações sobre os planos dos fatos jurídicos e a “substituição do fundamento do ato de vontade”. Textos para discussão Brasília, n. 270, fev. 2020.

ência vislumbrada , e.g., por Haddad18 e Penteado19 , como característica marcante da aplicação da função social do contrato. Isto é: o contrato e a operação econômica por ele revestida se preservam na maior extensão possível, ressalvados seus componentes avessos, negatórios ou prejudiciais a liberdades ou a garantias institucionais.

Até aqui, ressalvadas as defesas as vezes reducionistas de uma ou outra solução aventada, há pouco ou nada de novo. Em rigor, elas exprimem duas gradações do remédio costumeiramente prescrito para os negócios ilícitos20 . Há, todavia, um terceiro plano de consequências juridicamente admissíveis. E é ele que interesse mais especialmente a esta investigação: o enfrentamento da disfuncionalidade pela via do Direito de Danos. Assim, eventual esterilidade das consequências de invalidade ou ineficácia do contrato face à configuração de dano antijurídico pelo inadimplemento de dever obrigacional ou pela eficácia detrimental a liberdades das partes ou de terceiros, ou mesmo de garantias institucionais, permite cogitar do remédio da reparação civil21 A depender da configuração da ofensa e de sua intensidade, todo o ferramental da Responsabilidade por Danos se

18 Ressalvadas pequenas dissintonias com o texto do artigo 2.035, parágrafo único, do Código Civil, o autor paulista sustenta: “No que toca à função social do contrato, parece certo que não se deve cogitar de reflexos de sua violação no plano da validade, já que ela não tem raízes na parte geral. A afirmação de nulidade, de fato, só poderá ter lugar se o desrespeito à função social do contrato coincidir com uma ou mais das hipóteses taxativas de nulidade previstas nos arts. 166 e 167 do Código Civil. Todavia, se há incidência desses últimos dispositivos legais, não há motivos ou utilidade em se invocar a função social do contrato. Assim, o eventual descumprimento dessa função deve ser tratado no plano da eficácia” (HADDAD, L. G. Função social do contrato um ensaio sobre seus usos e sentidos. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 114-115).

19 PENTEADO, L. C. Direito das Coisas..., p. 216.

20 GOMES, O. Introdução ao Direito Civil 19ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 439.

21 V. BRASILEIRO BORGES, R. C. Reconstrução do conceito de contrato: do clássico ao atual. In: HIRONAKA, G. M. F. N. e TARTUCE, F. Direito Contratual temas atuais. São Paulo: Método, 2007, p. 35.

porá à disposição da reparação ou compensação do dano suportado pela(s) vítima(s), observada a tríade deontológica fundamental da tutela prioritária da vítima, máxima reparação e solidariedade social22 .

2. RESPONSABILIDADE POR DANOS

DECORRENTES DE CONTRATOS

DISFUNCIONAIS. OU: A LIBERDADE

CONTRA AS LIBERDADES

A função social do contrato, ao exigir contributos em prol de liberdade(s) e garantias institucionais, impõe deveres aos agentes econômicos. Vincula, portanto, seu comportamento, que, se desviante, incorrerá em antijuridicidade e poderá ensejar sanção 23 . Essa contrariedade ao Direito pode estar no próprio agir ou em seu resultado danoso, o que, na presença dos demais elementos do juízo de responsabilidade (nexos de imputação e causalidade), resultará em consequência reparatória. É dizer: a violação aos deveres decorrentes da função social do contrato, se danosa, pode ativar a maquinaria da responsabilidade por danos 24 . A propósito:

Enquanto ato ilícito, a ação contrária à função social da qual resulte dano enseja, por óbvio, a responsabilidade civil. Trata-se da díade dever primário – dever secundário sobre a qual se fundamento a responsabilidade, na qual o primário é o dever estabelecido em lei ou negócio jurídico, e o secundário é o dever de indenizar (reparar e compensar) os danos causados 25

22 V. CATALAN, M. J. A morte da culpa na responsabilidade contratual 2ª Ed. Indaiatuba: Foco Jurídico, 2019, p. 41, e CUNHA FROTA, P. M. Responsabilidade por danos e a superação da ideia da responsabilidade civil: reflexões. In: ROSENVALD, N. e MILAGRES, M. (Coords.). Responsabilidade Civil: novas tendências. Indaiatuba: Foco Jurídico, 2017, pp. 211-212.

23 V. GRAU, E. Notas sobre a distinção entre obrigação, dever e ônus. RFDUSP São Paulo, v.77, pp.177-183, 1982.

24 SILVESTRE, G. F. A responsabilidade civil pela violação à função social do contrato São Paulo: Almedina, 2018, p. 225 e ss.

25 SILVESTRE, G. F. A responsabilidade civil pela violação à função social do contrato..., p. 229.

Dada a maleabilidade das normativas conformadoras do modelo brasileiro de responsabilidade por danos, não é raro que haja variações acerca da caracterização e da categorização do dano decorrente de contrato disfuncional. Silvestre, em tese dedicada ao tema, cogita de sua caracterização como dano social, à luz da concepção sustentada por Junqueira de Azevedo. Seria assim pois “o que pretende o art. 421 é o desenvolvimento de um bom contrato, aqui entendido como aquele que oferece a garantia à sociedade de que sua causa e o desenvolvimento socioeconômico”26 . Sua violação, então, ostentaria a mais alta gravidade. Com isso, o autor acomoda o desbloqueio de cargas punitivas ao juízo de responsabilidade – tema que desperta paixões e disputas pelo próprio viés do Direito Civil, se de acesso27 ou sancionatório 28 . À parte os diferentes vetores passíveis de discussão, há convergência quanto à premissa de que a disfunção contratual pode ensejar responsabilização por dano.

Neste prisma, muito embora nem sempre seja empregado o sintagma “função social do contrato” e conquanto sua invocação nominal pelos Tribunais acuse alcance reduzidíssimo de seu sentido social29 ,

26 SILVESTRE, G. F. A responsabilidade civil pela violação à função social do contrato..., p. 235. A passagem é assim complementada pelo autor: “A função social do contrato pretende assegurar: uma ética solidarista para o contrato enquanto instrumento de circulação de riquezas; a preservação da confiança nas relações econômicas; o ‘jogo limpo’ entre as partes e terceiros, e terceiros e as partes; e uma exemplar e correta contratação, tanto na fase de tratativas quando na fase de execução”.

27 V. LORENZETTI, R. L. Fundamentos do Direito Privado Tradução de Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 1998, p. 86 e ss.

28 V. FEIJÓ, A. N. Direito Civil punitivo do dano moral punitivo à causa de multa civil. Curitiba: Juruá, 2019, passim

29 Estudo realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro a respeito da aplicação dos princípios contratuais pelo Tribunal de Justiça local acusam que em 68% das decisões que invocaram a função social do contrato, seu uso se restringiu a “mera menção na fundamentação”, bem assim que em 16% dos casos, a referência ao sintagma consta apenas da ementa do julgado. É dizer: em 84% dos casos analisados fez-se tudo menos aplicar a função social como normativa – o que é dado alarmante, mesmo

convém discutir exemplos de concretização do argumento apresentado. Isto é: casos de responsabilização ancorados na tensão entre a liberdade exercida na contratação e suas repercussões aflitivas para liberdades outras ou para os arranjos normativo-institucionais que lhes servem de habitat

Merece destaque, nesta esteira, o acórdão pelo qual o Superior Tribunal de Justiça, por sua Terceira Turma e sob relatoria original da Ministra Nancy Andrighi, julgou o Recurso Especial 1.295.838/SP. Discutia-se, na ocasião, a possibilidade de responsabilização civil da administradora do Shopping Popular 25 de Março, em São Paulo, pelas sistemáticas violações à concorrência e à propriedade industrial perpetradas por seus locatários 30

A administradora fora condenada pelas instâncias ordinárias a responder solidariamente pela contrafação da marca “Track & Field”, ao fundamento de que oferecia espaço para a perpetuação de ilícitos notoriamente conhecidos. Interpôs, então, recurso especial, no qual arguia: (i) que apenas os locatários poderiam responder pelas atividades desenvolvidas – o que, a primeira vista, guarda simetria ao desenho legal do contrato de locação; e (ii) que lhe faleceria “o poder de coerção, de polícia, de titularidade do Estado, para exercer a fiscalização sobre a existência ou se comparado aos demais princípios do Direito dos Contratos. O mesmo, ao levantar todos os casos julgados pelo Tribunal Fluminense com menção à função social do contrato entre 2014 e 2016, acusa que em nada menos que 95% das decisões ela foi invocada com o escopo de proteger direitos de um dos contratantes. Os 5% restantes se distribuem entre o resguardo da coletividade (3%) e de terceiros (2%) – v. Cf. TERRA, A. M. V., KONDER, C. N. e CRUZ GUEDES, G. S. Boa-fé, função social e equilíbrio contratual: reflexões a partir de alguns dados empíricos. In: TERRA, A. M. V., KONDER, C. N. e CRUZ GUEDES, G. S. (Coords.). Princípios contratuais aplicados: boa-fé, função social e equilíbrio contratual à luz da jurisprudência. Indaiatuba: Foco, 2019, p. 13-15. 30 Consta do voto da relatora: “Cinge-se a controvérsia a verificar (...) a possibilidade de se atribuir à administradora do ‘Shopping 25 de Março’ a responsabilidade pela comercialização de produtos contrafeitos da marca ‘Track & Field’, nos espaços por ela alugados”

não de contrafação da marca da recorrida e impedir a venda, exposição ou depósito de produtos dos lojistas nessa situação”.

O voto da relatora, neste particular, principia pela caracterização do arranjo contratual do “Shopping 25 de Março” como um simples aglomerado de lojas.

Isto é: em consonância com decisões pretéritas da Corte, não se poderia considerar existente locação em shopping center, caracterizada pelo maior poder de ingerência do locador nas atividades dos locatários. À vista disso e dos limites à ingerência dos particulares sobre negócios alheios, inclusive na locação em shopping center31, não seria possível superar os limites da responsabilidade do locador em contratos usuais de locação comercial:

49. Nesse contexto, não se vislumbra que medidas poderiam ter sido adotadas pela CALINDA para reprimir a contrafac ão da marca “Track & Field”, perpetrada pela LIANG PRESENTES, que locava um dos espacos do “Shopping 25 de Marco”.

50. Na condic ão de administradora, a CALINDA não pode exigir dos lojistas que exibam as notas fiscais de compra das mercadorias expostas, tampouco detém qualificac ão técnica para avaliar a originalidade desses produtos.

51. Ainda que a venda de produtos falsificados naquela região seja notória, essa circunsta ncia não autoriza a CALINDA a pressupor que todo e qualquer locatário –efetivo ou potencial – seja um falsificador.

52. Repise-se que, na qualidade de locadora, a sua responsabilidade se restringe aos elementos necess ários à perfeita execuc ão do contrato de locac ão, isto é estabelecimento comercial devidamente constituído, com objeto social ícito e sócios ido neos.

31 A repetição e a aparente contradição, neste ponto, refletem o modo com que construído este dictum do voto.

53. Nesse sentido, não consta dos autos nenhuma informac ão de que as empresas instaladas no Shopping 25 de Marco e/ou seus sócios tivessem qualquer pende ncia frente ao Poder Público que impedisse a celebrac ão dos contratos de locac ão.

54. Ademais, sendo notória a prática da atividade ilícita, cabe à administrac ão pública agir de forma eficaz e ostensiva, reprimindo-a. (...) a fiscalização acerca dessa condição compete precipuamente ao Poder Público e não aos locadores ou administradores dos espaços.

Adiante, o voto discorre sobre a função social do contrato. Identifica-a como instrumento de resguardo à coletividade 32 . Em seguida, anota que haveria violação à função social se fosse verificável “a extrapolação abusiva e ilegal dos resultados que usualmente se espera dessa modalidade de contratação”, bem como eventual abuso por parte do locador, “na tentativa de incrementar seus ganhos financeiros, em detrimento de terceiros e da própria sociedade”. Assim, como as instâncias ordinárias consignaram que os locativos tinham valor fixo, de modo que o sucesso ou fracasso comercial das lojas é irrelevante para o resultado auferido pela locadora, “não há como pressupor tenha CALINDA se beneficiado de um maior volume de vendas derivado da comercialização de produtos contrafeitos”.

Ademais, o voto anota que conquanto a contrafação tenha atingido níveis alarmantes, “a eliminação dos produtos contrafeitos do mercado não pode ter como contrapartida a afronta ao princípio constitucional da livre iniciativa, impondo ônus que tolham a liberdade de desenvolvimento das empresas”. À vista disso e no entender do voto inaugural, a locadora não teria incorrido em violação à função social do 32 Diz o voto: “cabe ao Juiz se sobrepor aos direitos e interesses fixados no instrumento, sopesando se não está em jogo algum valor social que deva ser preservado, hipótese em que o fiel da balança deve pender para o lado da coletividade”.

contrato. Não poderia, por conseguinte, ser responsabilizada pelo comércio, em suas dependências, de produtos falsificados.

O voto da Ministra relatora não convenceu o Ministro Sidnei Beneti, que inaugurou divergência. Em primeiro lugar, o subscritor do voto dissidente aponta para a inadmissibilidade do recurso, face ao óbice da Súmula 7 do Superior Tribunal de Justiça. Esse umbral da Jurisdição Extraordinária, embora mereça ser escovado a contrapelo, à luz da literatura jurídica contemporânea 33 figurou na dissidência como obiter dictum. A tal registro se seguiu um argumento de mérito, no sentido de que o concurso da administradora à continuidade da exploração comercial de produtos falsificados ou contrabandeados importa sua sujeição a medidas de responsabilidade. A propósito:

devem-se afastar as alegacões de infringência dos dispositivos legais alegados pela Recorrente por ter esta, sim, responsabilidade pelo que se passa nos “Stands”, em geral locados por períodos fugazes, pelos quais, em seu estabelecimento, realiza-se o comércio ilegal de produtos falsificados da marca da Autora e de outras, ou puramente contrabandeados.

Foge à realidade objetiva faticamente firmada – e, ademais, notória em termos de São Paulo e, mesmo, em termos de informação pública nacional – a exculpação da ora Recorrente por atividades de lojistas contrafatores “icto oculi” à vista dos 33 É o que anota Tepedino: “Reflexo ainda dessa ideologia da subsunção mostra-se o entendimento jurisprudencial, consolidado nos Tribunais Superiores, pelo qual o simples reexame de provas não justifica os Recursos Especial e Extraordinário. (...) Tal entendimento jurisprudencial, forjado pela compreensível preocupação de reduzir o número de processos nos Tribunais Superiores, certamente causa embaraço aos eminentes julgadores, os quais dificilmente poderiam explicar a atuação jurisdicional sem a indispensável análise dos fatos concretos e de suas circunstâncias traduzidas no material probatório. (...) não há interpretação jurídica sem qualificação do fato, cujo exame, portanto, se faz imprescindível e insuperável” (TEPEDINO, G. O papel atual da doutrina do Direito Civil entre o sujeito e a pessoa.

In: TEPEDINO, G., BROCHADO TEIXEIRA, A. C. e ALMEIDA, V. (Coords). O Direito Civil entre o sujeito e a pessoa Estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2016, p. 29-30).

produtos contrafeitos e dos anúncios de suas vendas, com preços que por si sós já evidenciam a todos a falsificação, fato que não poderia ser aceito como razão de isenção de responsabilidade do próprio “Shopping Center” – de cujos atos constitutitivos, aliás, consta expressamente a autorização dos lojistas para realização de atos de inspe ção e controle visando à lisura do exercício das atividades.

Em reforço à solução emprestada, o Ministro assinala que a questão não era nova naquele órgão fracionário do Superior Tribunal de Justiça: a mesma administradora fora condenada virtualmente pelos mesmos fatos em decisão mantida quando do julgamento do Recurso Especial 1.125.739/SP. O voto divergente anota, também, que, à época, pendiam de julgamento Embargos de Divergência interpostos em face deste acórdão. Eles foram inadmitidos ante à ausência de similitude suficiente entre os julgados confrontados – decisão depois sustentada no julgamento de Agravo Regimental e de Embargos de Declaração 34 . Por tudo isso, a divergência negou provimento ao Recurso Especial da locadora. E contou com adesão dos demais componentes do quorum de julgamento.

O julgado em comento resultou, portanto, em controle da adequação do contrato à Ordem Econômica, mediante chancela de responsabilidade solidária da locadora por concurso às atividades lesivas à concorrência e à marca “Track & Field”. Embora o voto dissidente não contenha menção expressa ao sintagma “função social do contrato”, seus contexto e direcionamento consubstanciam tutela de garantias institucionais (concorrência) e de liberdades (econômicas da titular da marca “Track & Field”), por via reparatória e contra contratos de locação disfuncionais35

34 V. STJ, EDcl no AgRg nos EREsp 1.116.208/PE. 2º Seção, Rel.: Min. Antonio Carlos Ferreira. J.: 11/12/2013. DJe 17/12/2013. 35 SILVESTRE, G. F. A responsabilidade civil pela violação à função social do contrato..., p. 320-321.

CONCLUSÃO

O enunciado normativo deliberadamente indeterminado da função social do contrato, previsto pelo artigo 421 do Código Civil Brasileiro, parece vocacionado ao mistério. Nada obstante, a civilística brasileira contribui sobremaneira para o aclaramento de seu sentido, mediante leituras as mais variadas que, embora rivalizem em certos aspectos, podem ser complementares.

Apesar da aparente babelização do tema, a pluralidade de concepções acerca da função social do contrato, somada a prudentes exercícios de judicatura, oportuniza múltiplas possibilidades de adensamento e concretização. Isso é revelado pelo acórdão discutido nas seções precedentes, em que o Superior Tribunal de Justiça, mesmo sem invocar especificamente a função social do contrato, conferiu densidade a esse preceito normativo atribuindo consequência vislumbrada pela literatura como cabível a contratos socialmente disfuncionais – i.e.: a deflagração dos mecanismos da responsabilidade por danos.

REFERÊNCIAS

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MEDIAÇÃO E FRANCHISING*

Palavras-chave

Mediação. Franchising. Negociação. Resolução de Conflitos.

Fernanda Tartuce

Doutora e Mestra em Direito Processual pela USP. Professora no Programa de Mestrado e coordenadora em cursos de especialização na Escola Paulista de Direito. Presidenta da Comissão de Soluções Consensuais de Conflitos da OAB/SP (gestão 2022-2024), da Comissão de Processo Civil do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e da comissão de Mediação Contratual do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Vice-presidente da Comissão de Mediação do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Diretora do Centro de Estudos Avançados de Processo (CEAPRO). Membra do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) e da ABEP (Associação Brasileira Elas no Processo). Advogada, mediadora e autora de publicações jurídicas.

1. MEIOS ADEQUADOS COMPOSIÇÃO DE CONFLITOS, NEGOCIAÇÃO E MEDIAÇÃO

Quem lida com conflitos reconhece que o Poder Judiciário pode não ser o cenário mais apropriado para dirimir controvérsias. A valorização da autonomia e o desejo por celeridade, dentre outros aspectos, levam a considerar que o acesso à justiça se relaciona à expansão de mecanismos consensuais, hoje entendidos em muitos contextos como Meios Adequados de Resolução de Conflitos.

Há clássicas expressões para designar as técnicas diferenciadas de tratamento de conflitos que despontam como opções à via judicial: fala-se em alternative dispute resolution (usando a sigla, no plural, ADRs), resolução alternativa de disputas (na sigla em português “RAD”) e em meios alternativos de solução de conflitos (na sigla em português “MASCs”)1

Diante da ineficiência do Estado em prestar a tutela jurisdicional - especialmente pela demora e pela restrita efetividade em termos de pacificação real das partes –, tais meios foram deixando de ser considerados “alternativos” para integrar a categoria de formas “essenciais” de composição de conflitos (jurídicos e sociológicos) ao promover a substituição da decisão do juiz por aquela resultante da atuação conjunta das partes2

Nos últimos tempos tem-se notado um upgrade com relação à pertinência dos diferentes mecanismos: a letra A na sigla “ADR” (inicialmente indicativa de alternative dispute resolution/solução alternativa de conflitos) passou a ser considerada majoritariamente como sinalizadora de “appropriate” (adequada)3

1 TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2021, p. 155.

2 FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias; TOURINHO NETO, Fernando da Costa. Juizados especiais cíveis e criminais: comentários à Lei 9.099/1995 4. ed. São Paulo: RT, 2005, p. 53.

3 TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis 6ª ed. rev.

Como explica a jurista americana Carrie Menkel-Meadow, essa evolução denota o reconhecimento de que nem todas as matérias devem ser submetidas ao mesmo tratamento, já que o processo judicial não é cabível a todos os casos: diferentes tipos e números de partes, questões, estruturas e situações jurídicas podem ditar formatos distintos para o processamento de disputas 4

É natural que, diante de controvérsias, as pessoas busquem conversar e negociar soluções? Em princípio, sim.

Negociação é a comunicação estabelecida diretamente pelos envolvidos, com avanços e retrocessos, em busca de um acordo; trata-se do mais fluido, básico e elementar meio de resolver controvérsias, sendo também o menos custoso5

Em certo sentido, a negociação é o processo de comunicação em que duas ou mais pessoas decidem sobre a distribuição de valores escassos 6 ; em outras palavras, negocia-se para se obter com o outro aquilo que sozinho não se obteria7

Pode ocorrer, porém, que as pessoas não consigam se comunicar de forma eficiente, soando inviável construir respostas conjuntas para a(s) controvérsia(s) que a(s) envolve(m) por conta de significativos entraves; a deterioração da relação, por exemplo, atual. e ampl. São Paulo: Método, 2021, p. 157.

4 “In recent years, I have labelled the progress of dispute resolution variations as ‘process pluralism,’ while others have used the label ‘appropriate’ (not alternative) dispute resolution, connoting recognition that not all matters should be subjected to the same treatment: one size of legal process does not fit all. Different kinds and numbers of parties, issues, structures […]” (MENKEL-MEADOW, Carrie. Alternative and Appropriate Dispute Resolution in Context Formal, Informal, and Semiformal Legal. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2584188. Acesso em: 21 jan. 2020).

5 TARTUCE, Fernanda; FALECK, Diego; GABBAY, Daniela. Meios alternativos de solução de conflitos. Rio de Janeiro: FGV, 2014, p. 19.

6 MOURÃO, Alessandra Nascimento S. F. et al. Resolução de conflitos: fundamentos da negociação para o ambiente jurídico. São Paulo: Saraiva (Série GVlaw), 2014, p. 24.

7 TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2021, p. 41.

pode ter gerado graves problemas de contato e comunicação 8

Ainda assim, o gestor do conflito e/ou o advogado a quem a disputa é apresentada pode perceber que há espaços para a troca de informações e a clarificação de perspectivas. Nessas situações, é recomendável contar com uma pessoa imparcial devidamente capacitada que contribuirá para a restauração da comunicação valendo-se de técnicas de mediação.

A mediação consiste no meio consensual de abordagem de controvérsias em que um terceiro imparcial atua para facilitar a comunicação entre os envolvidos e propiciar que eles possam, a partir da percepção ampliada dos meandros da situação controvertida, encontrar formas proveitosas para lidar com os impasses9

A análise da mediação como meio adequado de solução de controvérsias vem evoluindo há tempos no Brasil de forma associada a iniciativas de normatização do tema. Em germe desde 1998 (por força do Projeto de Lei 4.827/98), a produção normativa teve seu primeiro forte momento em 2010 (com a edição da Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça-CNJ) e culminou com a inclusão de um capítulo destinado aos meios consensuais no Código de Processo Civil-CPC e o advento do Marco Legal da Mediação (Lei 13.140/2015)10

Essas iniciativas normativas estão imbricadas com desejáveis mudanças de mentalidade que demandam a produção de alterações estruturais: a) nos programas de ensino destinados a formar advogados, juízes, promotores e profissionais tecnicamente capacitados para atuar como mediadores e conciliadores; b) com investimento na criação de espaços

8 TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2021, p. 46.

9 TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2021, p. 189. 10 TARTUCE, Fernanda; MARCATO, Ana Candida Menezes. Mediação no direito empresarial: possibilidades interessantes em conflitos securitários. REVISTA DE PROCESSO, v. 279, p. 513-527, 2018. Disponível em https://fernandatartuce.com.br/ mediacao-no-direito-empresarial-possibilidades-interessantes-em-conflitos-securitarios/. Acesso 14 nov. 2022.

adequados para que os procedimentos se desenvolvam contando com a devida estrutura; c) na habilitação de câmaras privadas de mediação para fazer frente a necessidades multiformes e dividir racionalmente o trabalho entre o poder público e os agentes privados que atuem em conformidade com os parâmetros normativos11

A advocacia, a Defensoria Pública e as Procuradorias também precisam estar devidamente familiarizadas com seu papel negocial para que reuniões proveitosas viabilizem, para as pessoas por elas representadas, o encontro de saídas produtivas.

Por fim, as pessoas em conflito precisam estar abertas a considerar que o exercício de sua autonomia demanda reciprocidade em relação ao reconhecimento da liberdade do outro e demanda a necessidade de escutar (mais e melhor) perspectivas diversas da sua com vistas a viabilizar o encontro de formas proveitosas.

Indicada a importância da mediação, passaremos a expor como ela pode ser utilizada de modo eficiente para atender aos interesses de pessoas envolvidas em situações conflituosas ligadas ao franchising.

2. GENERALIDADES SOBRE

MEDIAÇÃO CONTRATUAL

EMPRESARIAL

Por envolver, sem rígida delimitação, conversações e negociações facilitadas por alguém imparcial, a mediação permite que os participantes tratem oralmente de muitos assuntos que o Poder Judiciário provavelmente não alcançaria ao apreciar a disputa sob o prisma técnico-jurídico. Como o propósito da negociação facilitada é satisfazer, de forma ampla, os interesses subjacentes à atividade contratual trazidos

pelos participantes, diversos temas podem ser tratados pelos interessados12

Na vida das empresas, a mediação viabiliza a maximização de êxito quanto a três finalidades essenciais: a satisfação dos consumidores, a administração de conflitos nos negócios e a melhoria do funcionamento orgânico da instituição por aprimorar a comunicação entre seus componentes13

Reconhecida a existência do interesse mútuo de manter boas relações profissionais (especialmente se as empresas são interdependentes), diante de um episódio litigioso pode-se colher a oportunidade para trabalhar em prol da realização de ajustes no contrato também em outros pontos que se revelem pertinentes14 . A mediação revela-se, então, uma oportunidade para as partes não apenas resolverem um conflito, como também, por meio de conversações sobre a disputa, aperfeiçoarem sua atuação e promover seus interesses de forma antes não imaginada15 .

A França, país com larga tradição no uso da mediação, contou com a adoção da técnica não só de forma institucionalizada, vinculada à distribuição estatal de justiça, como também no âmbito das empresas –que passaram a contratar mediadores para tratar de problemas que as envolvessem especialmente no

que tange a relações de consumo e a situações ambientais1617

Outra importante razão pela qual a mediação pode ser essencial na vida empresarial diz respeito à origem e formação das companhias, fator que pode envolver conflitos familiares e sucessórios (indevidamente) misturados a aspectos objetivos das relações negociais1819

O mediador pode ser uma figura importante para resgatar nas partes interesses comuns (como a expansão da empresa e/ou a ampliação da rentabilidade), livrando-os de confusões decorrentes de aspectos estranhos ao pleno desenvolvimento das atividades empresariais20

3. CONTRIBUIÇÕES DA MEDIAÇÃO PARA COMPOR CONFLITOS CONTRATUAIS.

Não se pretende, ao preconizar a utilização da mediação, que haja substituição da atuação jurisdicional clássica pelo exercício de tal atividade. Em realidade, busca-se complementar as atividades de realização e distribuição de justiça ao disponibilizar mais uma ferramenta de trabalho. A mediação deve ser vista como uma atividade complementar àquela desenvolvida pelo Poder Judiciário, já que colaborará para

16 TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2021, p. 375.

11 TARTUCE, Fernanda; MARCATO, Ana Candida Menezes. Mediação no direito empresarial: possibilidades interessantes em conflitos securitários, cit.

12 TARTUCE, Fernanda; MARCATO, Ana Candida Menezes. Mediação no direito empresarial: possibilidades interessantes em conflitos securitários, cit.

13 TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2021, p. 374. O tema foi desenvolvido pela coautora nessa publicação e parte do que aqui consta remete ao conteúdo da obra.

14 TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2021, p. 376.

15 RISKIN, Leonard L. Compreendendo as orientações, estratégias e técnicas do mediador, p. 25. Disponível em https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4185803/mod_resource/content/1/ RISKIN%2C%20Leonard%20L-Padr%C3%A3o%20para%20 perplexos%20%28selec%CC%A7a%CC%83o%20p14-43%29. pdf. Acesso 14 nov. 2022.

17 SALES, Lilia Maia de Morais. Justiça e mediação de conflitos Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 117.

18 TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2021, p. 375.

19 Como vivamente manifestado por Águida Arruda Barbosa (em comunicação oral com a autora), é comum que se confundam as esferas de discussão: no almoço em família discutem-se assuntos da empresa, enquanto na sede desta são abordados assuntos relativos ao âmbito familiar.

20 TARTUCE, Fernanda; MARCATO, Ana Candida Menezes. Mediação no direito empresarial: possibilidades interessantes em conflitos securitários. REVISTA DE PROCESSO, v. 279, p. 513-527, 2018. Disponível em https://fernandatartuce.com.br/ mediacao-no-direito-empresarial-possibilidades-interessantes-em-conflitos-securitarios/. Acesso 14 nov. 2022.

resolver conflitos que podem prescindir da função jurisdicional estatal (ficando ela reservada, com maiores qualidade e celeridade, para as causas em que é necessária a atuação pública)2122 .

Certamente a mediação pode contribuir para a redução do número de demandas em curso no Poder Judiciário ao evitar conflitos que podem ser reorganizados pelos próprios contraditores que cheguem aos tribunais. Seu maior aporte, porém, é disponibilizar ferramentas hábeis para que os indivíduos resgatem sua dignidade (enquanto senso de autodeterminação) e (re)assumam a responsabilidade pelo seu destino. A partir de uma nova visão dos conflitos e de si mesmos, as pessoas poderão lidar melhor com o panorama passado (resolvendo controvérsias existentes) e com perspectivas futuras (prevenindo a ocorrência de futuras disputas mediante abordagens mais conscientes e reflexivas)23

Com o (r)estabelecimento de uma comunicação de alto nível, possibilita-se a formação de consensos genuínos quanto aos termos de eventual acordo e enseja-se o almejado cumprimento espontâneo do pacto.

Sob esse prisma, a controvérsia pode passar a ser vista não mais como mero percalço, mas como oportunidade de transformação e crescimento a

21 TARTUCE, Fernanda; MARCATO, Ana Candida Menezes.

Mediação no direito empresarial: possibilidades interessantes em conflitos securitários, cit.

22 “O Poder Judiciário continua com o pleno poder constitucional de solucionar os conflitos (monopólio jurisdicional) e a mediação, pela sua efetivação, auxiliará nessa tarefa de resolução de conflitos (principalmente daqueles conflitos que, pelas condições sociais e financeiras das partes, talvez nunca alcançassem os tribunais) evitando o número exagerado de processos nas Cortes” (SALES, Lilia Maia de Morais. Justiça e mediação de conflitos. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 67).

23 TARTUCE, Fernanda; MARCATO, Ana Candida Menezes. Mediação no direito empresarial: possibilidades interessantes em conflitos securitários. REVISTA DE PROCESSO, v. 279, p. 513-527, 2018. Disponível em https://fernandatartuce.com.br/mediacao-no-direito-empresarial-possibilidades-interessantes-em-conflitos-securitarios/. Acesso 14 nov. 2022.

partir de uma visão mais completa e abrangente das relações entre os envolvidos24

A cidadania passa a ter voz e vez, sendo ouvida e considerada parte do processo democrático de garantia de direitos. Apontando tal perspectiva, Roger Perrot destaca que a justiça consensual, mais simples e menos solene, configura uma “Justiça de proximidade” por se encontrar mais próxima das preocupações cotidianas dos indivíduos; aponta o autor, todavia, que25

“talvez se alimentem muitas ilusões acerca da eficácia dessa Justiça ‘boazinha’, em que todos chegariam a se reconciliar sob a varinha mágica de um conciliador. É decerto bom que os textos ofereçam às partes a oportunidade de conciliar-se. Mas é ilusório supor que tal orientação dará remédio a todas as dificuldades da Justiça moderna 26”.

Tal assertiva se revela correta: apenas com uma mudança de mentalidade é que tanto as partes como os profissionais jurídicos estarão prontos para se orientar segundo as diretrizes da justiça consensual. Para além das alterações legislativas, há um longo caminho a ser trilhado para que a mediação efetivamente seja considerada por toda a sociedade como meio eficiente para alcançar a tão almejada justiça 27

24 TARTUCE, Fernanda; MARCATO, Ana Candida Menezes. Mediação no direito empresarial: possibilidades interessantes em conflitos securitários, cit.

25 TARTUCE, Fernanda; MARCATO, Ana Candida Menezes. Mediação no direito empresarial: possibilidades interessantes em conflitos securitários, cit.

26 PERROT, Roger. O processo civil francês na véspera do século XXI. Tradução de José Carlos Barbosa Moreira. Revista de Processo, ano 23, n. 91, p. 205, São Paulo, jul.-set. 1998, p. 210.

27 TARTUCE, Fernanda; MARCATO, Ana Candida Menezes. Mediação no direito empresarial: possibilidades interessantes em conflitos securitários. REVISTA DE PROCESSO, v. 279, p. 513-527, 2018. Disponível em https://fernandatartuce.com.br/mediacao-no-direito-empresarial-possibilidades-interessantes-em-conflitos-securitarios/. Acesso 14 nov. 2022.

Como lembra Luiz Fernando Alongi, “usualmente a Mediação é a última instância cuja decisão está alocada às partes,”28 e em relações complexas (como as verificadas em muitos vínculos contratuais) delegar a decisão é um fator de grande risco que, estrategicamente, as empresas precisam buscar conter29

A mediação, ao permitir a contratação de profissionais capacitados e focados no favorecimento de conversas sobre a situação conflitiva, permite dosar esses riscos e buscar convertê-los em ganhos recíprocos, sem delegar a decisão a um terceiro que pode pôr tudo a perder30

Cabe, antes de prosseguir, um esclarecimento a respeito de uma falsa representação a respeito de renúncias em negociações – aí inclusas as que se desenvolvem com o auxílio de um terceiro imparcial, como a mediação – como forma de solução de conflitos. É comum pensar que ao término do procedimento terá havido concessões recíprocas, de modo que sempre haveria algo a perder31 . No entanto, trata-se de ponto há muito esclarecido pela Escola de negociação de Harvard32 : busca-se disponibilizar às partes a alternativa de negociar de forma estruturada baseando-se não em posições rígidas, mas sim nos interesses subjacentes. 33

28 ALONGI, Luiz Fernando. A utilização da mediação para solução de controvérsias relacionadas aos contratos de infraestrutura. Revista de Arbitragem e Mediação 42, 2014, p. 299-303, aqui p. 301.

29 TARTUCE, Fernanda; MARCATO, Ana Candida Menezes. Mediação no direito empresarial: possibilidades interessantes em conflitos securitários. REVISTA DE PROCESSO, v. 279, p. 513-527, 2018. Disponível em https://fernandatartuce.com.br/mediacao-no-direito-empresarial-possibilidades-interessantes-em-conflitos-securitarios/. Acesso 14 nov. 2022.

30 TARTUCE, Fernanda; MARCATO, Ana Candida Menezes. Mediação no direito empresarial: possibilidades interessantes em conflitos securitários, cit.

31 TARTUCE, Fernanda; MARCATO, Ana Candida Menezes. Mediação no direito empresarial: possibilidades interessantes em conflitos securitários, cit.

32 FISHER, Roger; URY, William; PATTON, Bruce. Getting to Yes: negotiating agrément without giving in. 3 ed. New York: Penguin Books, 2011.

33 BERGAMASCHI, André Luís; TARTUCE, Fernanda. A solução negociada e a figura jurídica da transação: associação necessá-

Ao se valerem dessa forma de solução, abre-se um leque de opções – a desafiar a criatividade das partes – para criar modos de acomodar os interesses dos envolvidos e ainda agregar valor ao que cada uma desejava inicialmente; a eclosão do conflito, especialmente no mundo empresarial, pode ser vista como oportunidade para ajustar pontos importantes das interações. 34

Há diversas experiências concretas em andamento, especialmente no campo empresarial, como bem reporta Diego Faleck: “existem diversos casos de sucesso de mediação no país em setores como seguro, resseguro, construção civil, energia, contratos comerciais, questões societárias e disputas internacionais, envolvendo grandes e importantes empresas nacionais e internacionais que atuam no Brasil e renomados escritórios de advocacia. 35”

4. PERTINÊNCIA DA MEDIAÇÃO

PARA COMPOR CONFLITOS REFERENTES AO FRANCHISING

4.1. Notas sobre a conflituosidade inerente

A ocorrência de conflitos – aqui considerados como crises nas interações humanas36- é inevitável.

Onde há pessoas, há diferenças; embora isso seja natural, nem sempre a diversidade é considerada ria? Disponível em: http://www.fernandatartuce.com.br/a-solucao-negociada-e-a-figura-juridica-da-transacao-associacao-necessaria/ Acesso em: 27 out. 2022.

34 TARTUCE, Fernanda; MARCATO, Ana Candida Menezes. Mediação no direito empresarial: possibilidades interessantes em conflitos securitários. REVISTA DE PROCESSO, v. 279, p. 513-527, 2018. Disponível em https://fernandatartuce.com.br/ mediacao-no-direito-empresarial-possibilidades-interessantes-em-conflitos-securitarios/. Acesso 14 nov. 2022.

35 FALECK, Diego. Mediação empresarial: introdução e aspectos práticos. Revista de Arbitragem e Mediação, 42, 2014, p. 263.

36 FOLGER, Joseph P. La mediación transformativa: la preservación del potencial propio de la mediación en escenarios de disputas. Disponível em: http://revistademediacion.com/wp-content/ uploads/2013/06/Revista-Mediacion-02-02.pdf. Acesso em: 10 jan. 2022.

com serenidade. Infelizmente, em diversos contextos, atitudes intolerantes vêm a lume e ensejam iniciativas aguerridas que descambam para situações negativamente controvertidas.

Tratar conflitos de forma destrutiva gera efeitos danosos - como o seu incremento e o uso de táticas de ameaça e/ou coerção-, piorando ainda mais a comunicação e alongando os impasses; além disso, quando as pessoas se engajam em um processo competitivo acabam acometidas por problemas como o empobrecimento do diálogo, a visão de que a solução só pode ser imposta pelo outro de forma fraudulenta/“esperta” e o aumento da sensibilidade quanto às diferenças (com respectiva diminuição da percepção sobre as similaridades entre os envolvidos)37

É preciso se abrir à percepção de que a ocorrência de conflitos pode ser construtiva por prevenir a estagnação, estimular o interesse e permitir a manifestação de adversidades, constituindo a raiz de mudanças pessoais e sociais; nessa perspectiva, a função criativa das controvérsias reside “na sua capacidade de gerar motivação para resolver um problema” que poderia, de outra forma, nem ser investigado 38

É difícil, porém, lidar com impasses – especialmente no calor dos acontecimentos...

Na realidade brasileira, a litigiosidade é agravada por múltiplos fatores inerentes às nossas instituições. Como lembra Kazuo Watanabe, o Estado é um grande gerador de conflitos e insatisfações (especialmente nas áreas fiscal e administrativa); além dis-

so, há incontáveis disputas em nossa sociedade tão marcada por contradições sociais, políticas, econômicas e regionais3940

É nesse contexto que se verificam os conflitos contratuais no Brasil, sendo relevante considerar aspectos específicos referentes à interação entre as partes no sistema franchising

O sistema de franquia é útil no processo de expansão das empresas (tanto de pequeno como grande porte):

Para as microempresas, a adoção do sistema de franquias permite o acesso ao crédito, bem como ultrapassar as barreiras regulamentadoras do governo e o problema da falta de mão de obra qualificada. Portanto, a expansão por sistema de franquia para as empresas menores possibilita driblar limitações de recursos. Para as maiores, essa estratégia de expansão por franquias permite alcançar mercados distantes geograficamente e testar a marca nesses novos territórios. Em ambos os casos, com baixo risco financeiro. Desta forma, constata-se que o franchising ganha impulso entre os empreendedores, que entendem como vantagem a proteção ao capital investido (risco) e a percepção da segurança na abertura de um negócio já testado e em funcionamento 41

Predomina a ideia de que o franqueador detém um negócio que, além de ser bem-sucedido, pode ser replicado; a partir de tal expectativa, milhares de

pessoas em todo o mundo aderem a essa modalidade de negócio na condição de franqueados 42

Ao celebrar contratos, as pessoas buscam atender aos seus interesses. Apesar da existência de positivos incentivos e de altas expectativas na fase inicial da contratação, fatores variados (como desgastes no convívio, insatisfação pessoal e mudança na visão sobre a melhor forma de aplicação do teor pactuado)

podem gerar impasses 43 Assim, apesar das vantagens inicialmente concebidas, insatisfações podem surgir.

É importante ter clareza sobre a situação-problema, devendo a advocacia proceder a uma apurada investigação para compreender bem a controvérsia antes de proceder à análise das estratégias relacionadas à escolha e ao uso dos meios de composição de conflitos empresariais: afinal, “a escolha do meio compositivo mais adequado depende necessariamente do conhecimento que se tem do conflito em questão. Sua resolução será tão mais efetiva quanto maior for a exatidão do diagnóstico feito 44”.

Quais são as fontes típicas de controvérsias nos contratos referentes ao franchising?

Como pontua Wander Barbosa,

37 DEUTSCH, Morton. A resolução do conflito. In: AZEVEDO, André Gomma de (org.). Estudos em arbitragem, mediação e negociação, v. 3. Disponível em https://edisciplinas.usp.br/ pluginfile.php/3927515/mod_resource/content/2/DEUTSCH-Morton-A%20resolu%C3%A7%C3%A3o%20do%20conflito-p29-42-Trecho%20indicado.pdf. Acesso 14 nov. 2022. 38 Ibidem.

39 TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2021, p. 10.

40 WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. In: Grinover, Ada Pellegrini; Dinamarco; Candido Rangel; Watanabe, Kazuo (coords.). Participação e processo. São Paulo: RT, 1988, p. 131.

41 ALBUQUERQUE, Marcos; LADEIRA, Rodrigo; LAROCCA, Maria Teresa. Conflitos potenciais na relação entre franqueadores e franqueados soteropolitanos. Revista Brasileira de Marketing – ReMark, Edição Especial, vol. 15, n. 4, novembro/2016, p. 555.

42 TOLEDO, Geraldo Luciano; PROENÇA, Cristina Proença. Fatores críticos de sucesso da franquia – uma análise sob a óptica de ex-franqueados no Município de São Paulo. Caderno de Pesquisas em Administração, São Paulo, v. 12, n. 1, janeiro/março 2005, p. 44. Disponível em https://www.revistas.usp.br/rege/ article/view/36509/39230. Acesso 14 nov. 2022.

43 TARTUCE, Fernanda. Mediação em conflitos contratuais. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2019/08/29/a-mediacao-conflitos-contratuais/. Acesso em: 21 set. 2022.

44 ALVES, Rafael Francisco. Estratégias na escolha e na utilização de meios de composição de conflitos empresariais. In: Carlos Alberto Carmona; Sidnei Amendoeira Júnior (Org.). Estratégias Processuais na Advocacia Empresarial. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 304.

Em geral, os problemas surgem quando há quebra de acordos, falta de comunicação, as expectativas em relação às vendas não se confirmam, os atrasos retardam o início das operações, gerando despesas sem a contrapartida de receitas, o suporte é considerado insuficiente ou inexistente, quando os erros de gestão cometidos pelo franqueado reduzem sua margem de lucro ou quando ele não possuía os recursos suficientes para suportar as despesas até que as operações se tornassem rentáveis 45

Em outra interessante sistematização, Melitha Novo Prado 46 apresenta listagem com as causas dos conflitos mais frequentes em redes de franquias:

Causas de Conflitos Mais Frequentes

1. Falta ou falha na comunicação entre os agentes da rede;

2. Distanciamento das partes;

3. Falta de comprometimento do franqueado;

4. Suporte insuficiente oferecido ao franqueado;

5. Análise incorreta do mercado;

6. Escolha inadequada do ponto comercial da unidade franqueada;

7. Perfil de franqueados mal delineado;

8. Processo seletivo de franqueados falho;

9. Ausência de inovação das redes;

10. Despreparo do franqueador.

As contrariedades também podem ser identificadas a partir de cada lado da interação contratual.

Para os franqueados, as insatisfações costumam estar relacionadas às dificuldades de atingir os pa-

45 BARBOSA, Wander. Receita de Sucesso para Investir em uma Franquia. Revista Brasileira de Direito Comercial, ed. 34, Abr/Maio 2020, p. 91.

46 PRADO, Melitha Novoa. Franchising na alegria e na tristeza apud MAEMURA, Marcia Mitie Durante. Análise de conflitos e soluções adotadas por franquias do setor alimentício - um estudo multicaso. 2009. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2009, p. 97.

tamares de desempenho prometidos pelo franqueador devido aos royalties pagos sobre o faturamento, sem levar em conta a lucratividade da operação e à permissão de um número demasiado de concorrentes em uma mesma região 4748

Já quanto aos franqueadores o grande desafio é manter o padrão de qualidade nas operações dos diferentes franqueados, além do fato de que nem todos eles têm vocação e/ou competência para gerenciar o negócio adequadamente (o que pode comprometer a imagem do franqueador)4950

Em interessante quadro, Clariana Ribeiro Nogueira, Ana Elisa Bressan Smith Lourenzani e Natália Dadario51 sistematizaram as fontes de conflitos indicadas por diversos autores como típicas da interação entre franqueadores e franqueados:

Autores Conflitos

• Falta de assistência;

• Má utilização da verba de publicidade;

• Conflitos de território;

• Não acompanhamento de padrões;

• Apoio inadequado;

Plá (2001)

• Falta de preparo administrativo por parte do franqueador;

• Cobrança de taxas e royalties exorbitantes;

• Submissão do franqueado às normas ou decisões do franqueador;

• Fornecimento de dados irrealistas quanto ao capital investido;

• Custos e tempo de retorno do investimento.

Bernard (1993), Schwartz (1994)

Nathan (2003)

47 ALBUQUERQUE, Marcos; LADEIRA, Rodrigo; LAROCCA, Maria Teresa. Conflitos Potenciais na Relação entre Franqueadores e Franqueados Soteropolitanos. Revista Brasileira de Marketing – ReMark. Edição Especial, v. 15, n. 4, novembro/2016, p. 555.

48 PARENTE, Juracy. Varejo no Brasil: Gestão e Estratégia São Paulo: Atlas, 2011, p. 27

49 ALBUQUERQUE, Marcos; LADEIRA, Rodrigo; LAROCCA, Maria Teresa. Conflitos Potenciais na Relação entre Franqueadores e Franqueados Soteropolitanos. Revista Brasileira de Marketing – ReMark. Edição Especial, v. 15, n. 4, novembro/2016, p. 555.

50 PARENTE, Juracy. Varejo no Brasil: Gestão e Estratégia São Paulo: Atlas, 2011, p. 27.

51 NOGUEIRA, C. R.; LOURENZANI, A. E. B. S.; DADARIO, N. Conflitos de Relacionamento entre Franqueador e Franqueados: Um Estudo em Franquias do Ramo Alimentício sob a Ótica do Franqueado na Região Administrativa de Marília (SP) Contextus - Revista Contemporânea de Economia e Gestão, v. 15, n. 3, p. 8-33, 2017.

Sherman (1993)

Vale ressaltar que essas não são ocorrências verificadas apenas no Brasil. Em pesquisa realizada na Austrália, constatou-se serem causas de conflitos na área de franchising situações relacionadas a problemas na comunicação, preocupações financeiras, escolhas comerciais e circunstâncias imprevistas; além disso, terceiras partes (como advogados, consultorias de franquia, contadores e associações de franchising foram identificados como exacerbadores dos conflitos52

Há elementos comuns a essas sistematizações de causas? A resposta é positiva.

to recebido pelo candidato, a Circular de Oferta de Franquia - COF53

Para ilustrar a hipótese, imaginemos que a recém-franqueada Euclésia esteja polemizando sobre tal tema com a franqueadora Gratiluz serviços elétricos.

A então candidata a franqueada pode não ter lido com atenção a Circular de Oferta de Franquia 54 ou então ter havido descuido da franqueadora ao deixar de entregar a ela tal documento: “muitos não o fazem, e pior, colhem do franqueado uma assinatura declarando tê-la recebido55”.

• Falta de preparo e de estrutura;

• Falta de seriedade dos franqueados.

• Falta de alinhamento entre as expectativas de ambas as partes;

• Confusão em relação aos papéis de atuação das partes;

• Existência de diferenças significativas na percepção das duas partes;

· Estado emocional do franqueado diferente no relacionamento;

• Falta de consulta ao franqueado para a tomada de decisão;

• Baixa rentabilidade do negócio.

• Recrutamento e seleção do franqueado;

• Seleção de ponto comercial;

• Pagamento de royalties e fornecimento de informações;

• Administração do fundo de propaganda;

• Supervisão e suporte;

• Controle de qualidade;

• Tratamento desigual do franqueador com os franqueados;

• Crescimento rápido.

Ao analisar vários aspectos envolvidos nos conflitos, é possível identificar que diversas situações decorrem de expectativas irrealistas fomentadas por falta de análise apurada e/ou de informações sobre circunstâncias primordiais sobre o negócio e o perfil dos contratantes - fatores que acabaram não sendo checados antes da contratação.

Conversas esclarecedoras estabelecidas a partir de uma comunicação de alto nível poderão contribuir para dirimir controvérsias? A resposta tende a ser positiva, razão pela qual é preciso entender como tal diálogo poderá ocorrer.

4.2. Possibilidade de negociação direta

Analisemos inicialmente o potencial esclarecedor de conversas estabelecidas no contexto de uma negociação direta entre as partes (com ou sem seus advogados) sobre um dos principais pontos controvertidos na interação das partes em contratos de franquia, o desconhecimento sobre taxas e obrigações financeiras. É difícil entender por que ele ocorre, já que as informações sobre o que deverá ser pago pelo franqueado durante a vigência contratual estão normalmente descritas no primeiro documen -

52 GIDDINGS, Jeffrey et al. Understanding the dynamics of conflict within business franchise systems. Australasian Dispute Resolution Journal, v. 20, n. 24, 2009, p. 24.

Pode ainda ter ocorrido o fato de a franqueado, assoberbada por novas informações, não ter conseguido compreender algum elemento contratual e optado por esclarecê-lo depois - mas acabou esquecendo de fazê-lo, dada a empolgação em começar a atuar...

Nesse caso terá havido uma falha significativa; afinal, é prudente que os franqueados tenha pleno conhecimento de suas obrigações para eventualmente questioná-las e solicitar alterações antes da assinatura do contrato56

Talvez uma boa rodada de negociação entre as partes (com ou sem representantes e/ou advogados) seja suficiente para que tais esclarecimentos venham à tona e seja retomado o curso apropriado da interação contratual.

Contudo, nem sempre uma parte confia em negociar diretamente com a outra por força do histórico negativo de interações - como tentativas anteriores de diálogo que restaram infrutíferas, às vezes com

53 BARBOSA, Wander. Receita de Sucesso para Investir em uma Franquia. Revista Brasileira de Direito Comercial, ed. 34, Abr/Maio 2020, p. 90-91.

54 BARBOSA, Wander. Receita de Sucesso para Investir em uma Franquia. Revista Brasileira de Direito Comercial, ed. 34, Abr/Maio 2020, p. 90-91.

55 BARBOSA, Wander. Receita de Sucesso para Investir em uma Franquia. Revista Brasileira de Direito Comercial, ed. 34, Abr/Maio 2020, p. 90.

56 BARBOSA, Wander. Receita de Sucesso para Investir em uma Franquia. Revista Brasileira de Direito Comercial, ed. 34, Abr/Maio 2020, p. 91

deletérias trocas de adjetivos pejorativos. Quando a disputa se instala, a conversa pode ainda acabar descambando para elementos pessoais, pautando-se por impaciência e perda de foco.

Além dos próprios contratantes, também aos advogados que os representam podem faltar conhecimentos técnicos sobre negociação, havendo preferência pelo tratamento de disputas sob o prisma contencioso. Muitas vezes o contato entre os causídicos começa com notificações permeadas de acusações que só pioram a situação.

Como se nota, os conflitos tendem a escalar e desgastar o relacionamento a ponto de comprometer o diálogo e tornar infrutífera a negociação direta.

Imaginemos então que Euclésia e Gratiluz não tenham alcançado o consenso que no fundo desejavam por conta de dificuldades de compreensão do franqueado.

Quando os envolvidos na controvérsia, apesar das diferenças, não conseguem (ainda) alcançar respostas conjuntas, mas seguem dispostos a buscar saídas consensuais, podem fazê-lo com a participação de uma pessoa imparcial que intervém para destravar a negociação.

4.3. Vantagens da mediação

O uso da mediação como meio adequado para compor conflitos insere-se em um cenário bastante desafiador dada a mentalidade dominante que direciona o encaminhamento de controvérsias majoritariamente ao Poder Judiciário ou à arbitragem.

Muitos agentes atuantes no mercado brasileiro, em certa medida, ainda resistem a usar mediação para lidar com conflitos contratuais por força: i) do desconhecimento quanto à melhor forma de usar tal meio consensual; ii) de dúvidas em relação aos custos; iii) da incerteza na escolha de mediadores capacitados; iv) da falta de conhecimento sobre experiências de sucesso57

57 TARTUCE, Fernanda; MARCATO, Ana Candida Menezes. Mediação no direito empresarial: possibilidades interessantes em conflitos securitários, cit.

Merecem destaque os contrapontos a tais causas de resistência que podem fomentar a maior adoção da mediação em tais controvérsias: i) menor duração do procedimento em comparação com a extensão de processos judiciais e arbitrais; ii) boa relação “custo-benefício-duração” que a mediação tem potencial de oferecer; iii) existência de inúmeros mediadores capacitados e câmaras privadas disponíveis; iv) possibilidade de participação dos contratantes na formatação das saídas para compor seus conflitos58 .

O fiel da balança entre os motivos contrários e favoráveis ao uso da mediação em conflitos sobre franchising certamente pende em favor de sua utilização; os critérios determinantes tendem a ser a possibilidade de clarificação sobre elementos da disputa e a chance de as próprias partes construírem conjuntamente o resultado com o maior grau de satisfação possível.

A mediação costuma ser indicada para contratos empresariais de longa duração: afinal,

“sempre que houver uma relação empresarial continuada, sendo necessário discutir apenas um aspecto específico de todo o projeto em andamento, a mediação poderá ser de grande valia. Nesse caso, o processo judicial poderá criar uma animosidade desnecessária e acabar comprometendo por completo toda a relação existente59”.

No caso da franqueada Euclésia e da franqueadora Gratiluz, uma adicional rodada de conversas poderá viabilizar os esclarecimentos necessários.

Na mediação, a pessoa imparcial que se soma ao contexto negocial (mediadora) irá atuar para que haja condições objetivas para a fluência de informa-

58 TARTUCE, Fernanda; MARCATO, Ana Candida Menezes. Mediação no direito empresarial: possibilidades interessantes em conflitos securitários, cit.

59 ALVES, Rafael Francisco. Estratégias na escolha e na utilização de meios de composição de conflitos empresariais. In: Carlos Alberto Carmona; Sidnei Amendoeira Júnior (Org.). Estratégias Processuais na Advocacia Empresarial. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 314.

ções e a ocorrência das clarificações desejadas pelas partes.

A mediação poderá favorecer o fluxo de dados para que sejam compreendidos elementos fundamentais da interação contratual: o que os valores a serem pagos remuneram, a geração de lucros e a possibilidade de benefícios com a aplicação de “recursos na melhoria constante do suporte oferecido à rede e nas inovações que ajudem a manter a competitividade da marca”60 .

Durante as conversações a franqueada poderá reconhecer que sabe não haver possibilidade de atuar em um sistema de franquias sem pagar taxas, que existe uma relação de interdependência e que o modelo deve ser lucrativo para ambas as partes.

A franqueadora, por sua vez, poderá admitir ser sua obrigação esclarecer, exaustivamente, o conteúdo desses compromissos 61, reconhecendo ter havido falhas e/ou descuidos.

Adolfo Braga Neto cita interessantes casos em que as partes celebraram acordos proveitosos por meio da mediação: a) uma franqueada pôde sair de uma rede de alimentação sem perda econômica do capital investido (tanto pela rede quanto dela mesma) pelo fato de não conseguir conviver com o cheiro do produto cuja comercialização havia iniciado; b) um franqueador que sempre recebia reclamações de um grupo de franqueados de certa região do país quanto à árdua implementação da política de marketing participou de uma mediação e, ao perceber o alcance das dificuldades, abriu-se à criação conjunta

“de mecanismos próprios para corrigir as distorções com consentimento de toda a rede”62

O contexto empresarial, pautado pela valorização do empreendedorismo, é propício a que se envidem esforços para desenhar soluções que importem em vantagens recíprocas, especialmente quando as pessoas envolvidas não se veem como concorrentes e sim como parceiras. A solução da controvérsia é encarada, sob essa perspectiva, como abertura de novas oportunidades negociais 63 .

É em razão justamente desse relevante fundamento que a mediação pode ser uma ferramenta vital para resolução de conflitos ligados ao franchising ao permitir o afastamento da sobreposição de interesses, a mediação viabiliza a harmonização dos interesses em conflito perseguindo o equilíbrio quanto a fatores como prazos, interesses das partes e critérios objetivos.

4.3. Possibilidade de inclusão de cláusula de mediação

Havendo clareza sobre os objetivos prioritários da empresa quanto à solução de seus conflitos, a escolha do meio para resolvê-los ocorre, na maioria dos casos, antes de surgir a controvérsia (o que é natural, já que disputas costumam gerar animosidade entre as partes); para evitar problemas futuros, “a escolha das técnicas é feita por meio de cláusulas inseridas nos contratos que tratam do objeto da operação. As cláusulas contratuais são, portanto, os instrumentos para a identificação das técnicas e são redigidas antes de qualquer conflito 64”.

62 BRAGA NETO, Adolfo. Conflitos em Franchising – Nova maneira de resolução – Mediação. In Coletânea de Textos publicados na Newsletterdgae – Ministério da Justiça de Portugal. Lisboa – Portugal, 2006, p. 167-169.

60 BARBOSA, Wander. Receita de Sucesso para Investir em uma Franquia Revista Brasileira de Direito Comercial, ed. 34, Abr/Maio 2020, p. 91.

61 BARBOSA, Wander. Receita de Sucesso para Investir em uma Franquia Revista Brasileira de Direito Comercial, ed. 34, Abr/Maio 2020, p. 91.

63 TARTUCE, Fernanda; MARCATO, Ana Candida Menezes. Mediação no direito empresarial: possibilidades interessantes em conflitos securitários, cit.

64 ALVES, Rafael Francisco. Estratégias na escolha e na utilização de meios de composição de conflitos empresariais.

In: Carlos Alberto Carmona; Sidnei Amendoeira Júnior (Org.). Estratégias Processuais na Advocacia Empresarial. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 308.

A crescente inclusão de cláusulas contratuais prevendo a adoção de mediação como fase inicial para compor controvérsias revela que a busca de saídas conjuntas como fase precedente à instauração de litígios tem sido considerada uma opção interessante ao trato contencioso 65

A Lei de brasileira de Mediação revela comprometimento com a boa-fé objetiva ao obrigar as partes que a contemplaram no contrato a comparecer à primeira reunião consensual 66 - embora reconheça não ser obrigatório que elas permaneçam no procedimento 67 .

O ajuste em prol do meio consensual pode ser visto como um desafio aos operadores do mercado: exige-se atuação com efetiva boa-fé por parte do franqueador visando a demonstrar ao franqueado que a cláusula de mediação se insere no contexto de buscar soluções mais justas à solução dos conflitos e não como mecanismo gerador de desigualdades entre os contratantes.

O fundamento que claramente pode favorecer esse entendimento é a autonomia; afinal, como o procedimento de mediação deve contar com adesão voluntária, ambas as partes serão protagonistas de todas as fases, inexistindo espaços para a atuação abusiva de quem quer se seja. Assim, os participantes gozarão de liberdade para apresentar suas razões, negociar seus interesses e, inclusive, finalizar o procedimento em qualquer fase, sem penalidades 68

E quando não há cláusula contratual prevendo mediação, ainda assim ela é possível? A resposta é positiva.

Muitos conflitos são levados à mediação mesmo sem previsão prévia das partes sobre o endereçamento a tal mecanismo: apesar disso ele tem lugar porque, sendo a autonomia seu princípio basilar, basta haver vontade dos contratantes para que ela seja viável.

O engajamento em meios consensuais, porém, pode ser difícil após a instalação do conflito – que geralmente causa acirramento nos ânimos e diminui tendências colaborativas entre as partes e os advogados.

Para que a mediação ocorra, será essencial o convencimento da parte adversa e de seu advogado em relação à sua adoção, como bem ressalta Rafael Alves:

Embora possa parecer trivial ou de menor importância, essa questão representa, na verdade, um dos pontos mais cruciais de todo o processo: de nada adiantará o esforço de compreensão do conflito e de escolha da técnica mais adequada para a sua resolução se a parte contrária simplesmente não aceitá-la. Para se obter o consenso, o princípio básico da tarefa de convencimento é expor ao advogado da parte contrária todas as razões que levaram à escolha de determinada técnica, mostrando como se pode ganhar em termos de eficiência na resolução de conflitos 69(...).

5. REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, Marcos; LADEIRA, Rodrigo; LAROCCA, Maria Teresa. Conflitos Potenciais na Relação entre Franqueadores e Franqueados Soteropolitanos. Revista Brasileira de Marketing – ReMark. Edição Especial, v. 15, n. 4, p. 554-565, novembro/2016. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ bitstream/ri/25117/1/Conflitos%20Potenciais%20 na%20Rela%C3%A7%C3%A3o%20entre%20 Franqueadores%20e%20Franqueados%20Soteropolitanos.pdf. Acesso em 30 mar. 2023.

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65 TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 6ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2021, p. 345.

66 Lei n. 13.140/2015, art. 2.º, § 1.º: “Na hipótese de existir previsão contratual de cláusula de mediação, as partes deverão comparecer à primeira reunião de mediação”.

67 Lei n. 13.140/2015, art. 2.º § 2.º: “Ninguém será obrigado a permanecer em procedimento de mediação”.

68 TARTUCE, Fernanda; MARCATO, Ana Candida Menezes. Mediação no direito empresarial: possibilidades interessantes em conflitos securitários, cit.

Os esforços persuasivos tenderão a valer a pena. Ao propiciar o restabelecimento de uma comunicação eficiente entre as partes, a mediação poderá ser aplicada para resgatar a vontade inicial de atender interesses comuns e ensejar a composição das situações controvertidas considerando também uma perspectiva futura para os envolvidos.

69 ALVES, Rafael Francisco. Estratégias na escolha e na utilização de meios de composição de conflitos empresariais. In: Carlos Alberto Carmona; Sidnei Amendoeira Júnior (Org.). Estratégias Processuais na Advocacia Empresarial. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 318.

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AVANÇOS TECNOLÓGICOS NA SAÚDE, CONFLITOS E PAPEL DA JUNTA MÉDICA

Palavras-chave

Mediação. Junta Médica. Conflitos Tecnológicos. Saúde Suplementar..

Angélica Carlini

Pós-Doutoranda em Direito de Seguros e Inteligência Artificial na Universidad Pontifícia Comillas – ICADE, Madrid. Pós-Doutorado em Direito Constitucional pela PUC/RS. Doutora em Direito Político e Econômico. Doutora em Educação. Mestre em Direito Civil. Mestre em História Contemporânea. Graduada em Direito. Docente do Programa de Mestrado da Escola Paulista de Direito. Docente colaboradora do Programa de Mestrado e Doutorado em Administração da Universidade Paulista – UNIP. Docente da Área de Direito de Seguros da Escola de Negócios e Seguros – ENS. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Contratual – IBDCONT. Membro da Diretoria do Comitê Iberolatinoamericano da Associação Internacional de Direito de Seguro – CILA/AIDA. Advogada, parecerista e consultora em Direito de Seguro e Responsabilidade Civil.

CONTEXTUALIZAÇÃO

A saúde suplementar existe no Brasil muito antes da Constituição Federal de 1988 e da Lei n. 9.656, de 1998, chamada de Lei de Planos de Saúde. A criação de organizações civis com ou sem fins lucrativos para amealhar recursos para serem utilizados no custeio do acesso à saúde data do início do século XX, quando autogestões foram criadas por empregados de grandes empresas e, mais tarde, nas décadas de 1950 e 1960, surgiram as empresas de medicina de grupo, as cooperativas médicas e as seguradoras foram autorizadas a operar na área de saúde.

Em 1988, quando a Constituição Federal foi promulgada a saúde suplementar no Brasil já era uma realidade e por essa razão, o artigo 199 reconheceu que atividades de saúde podiam ser exercidas pela iniciativa privada. Fazia falta, no entanto, uma legislação que uniformizasse a prestação de serviços de saúde oferecida a população, o que ocorreu em 1998, com a aprovação da Lei n. 9.656. Em 2000, a Lei n. 9961 criou a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, com poder para regular e fiscalizar as atividades de saúde suplementar no país.

A Lei 9.656, de 1998, estabelece que as operadoras de saúde deverão oferecer cobertura para todas as doenças previstas no Catálogo Internacional de Doenças – CID, da Organização Mundial de Saúde –OMS. Na atualidade, o CID da OMS se encontra em sua décima primeira versão.

Para tratamento de todas as doenças previstas no CID 11 da OMS foi determinado que as operadoras de saúde obedeceriam a um rol de procedimentos e eventos, ou seja, um catálogo com tipos de consultas, exames, cirurgias, tratamentos, medicamentos e terapias que todas as operadoras brasileiras são obrigadas a oferecer para seus contratantes, inde -

pendentemente de se tratar de plano de saúde categoria ambulatorial, hospitalar com ou sem obstetrícia ou referência.

O primeiro rol de procedimentos e eventos em saúde foi elaborado em 1998 pelo Conselho Nacional de Saúde Suplementar – CONSU, e após a criação da ANS incumbiu a agência a atualização dos procedimentos e eventos previstos no rol, o que ocorria a cada dois anos.

Em 2022, a Lei 14.307, determinou novas regras para a atualização do rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, que deverá ser feita por meio da instauração de processo administrativo e concluído em até 180 dias contados da data em que foi protocolado o pedido, prorrogável por 90 dias corridos quando as circunstâncias o exigirem.

Também em 2022, entrou em vigor a Lei n. 14.454 que criou nova redação para o artigo 10, parágrafo 13, incisos I e II, da Lei 9.656, de 1998, para determinar que em caso de tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo assistente que não estejam previstos no rol, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de saúde desde que: (i) exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou, (ii) existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, um órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.

Essa lei tornou o rol parcialmente taxativo porque será permitida a inclusão de novos procedimentos e eventos quando ocorrerem a comprovação de eficácia ou a recomendação da Conitec, ou, ainda, avaliação favorável de órgão de avaliação de tecnologias

em saúde. Porém, a prescrição por médico ou odontólogo é exigência para que seja aplicado o disposto no parágrafo 13 e, sabidamente, nem sempre as prescrições do médico assistente do paciente são aceitas pelo médico auditor da operadora de saúde suplementar.

A discordância entre os pareceres médicos – do assistente do paciente e do auditor da operadora de saúde – pode ocorrer em duas situações muito comuns: (i) quando o rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS indica uma diretriz de utilização da qual o médico assistente do paciente discorda; ou, (ii) quando o médico assistente do paciente pretende realizar um tratamento ou procedimento novo ou experimental, cuja efetividade ainda não está satisfatoriamente comprovada.

Para a área de saúde os conceitos de efetividade, eficiência e eficácia são diferentes. Efetividade é a demonstração, em condições existentes na comunidade, de que um tratamento funciona. Eficácia é a produção de um efeito desejado. E, eficiência é a razão entre a produção e o consumo (...) é a demonstração de como um tratamento pode funcionar. 1

A rigor, a Lei 14.454, de 2022 está em dissonância com o disposto no parágrafo 3º, incisos I, II e III, da nova redação dada ao artigo 10 da Lei 9.656, de 1998, pela Lei 14.307, de 2022. De fato, a mudança introduzida pela Lei 14.307, de 2022, fez com que o parágrafo 3º do artigo 10 passasse a ter a seguinte redação:

§ 3º A Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar deverá apresentar relatório que considerará:

I - as melhores evidências científicas disponíveis e possíveis sobre a eficácia, a 1 Dicionário Médico. Disponível em: https://www.xn--dicionriomdico-0gb6k.com/E/pagina4.html. Acesso em 27 de novembro de 2023.

acurácia, a efetividade, a eficiência, a usabilidade e a segurança do medicamento, do produto ou do procedimento analisado, reconhecidas pelo órgão competente para o registro ou para a autorização de uso;

II - a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às coberturas já previstas no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, quando couber; e

III - a análise de impacto financeiro da ampliação da cobertura no âmbito da saúde suplementar.

De fato, para ser incorporado ao rol da ANS o procedimento ou evento precisa apresentar as melhores evidências científicas disponíveis e possíveis sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade, a eficiência, a usabilidade e a segurança do medicamento, do produto ou do procedimento; precisa ter passado por avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às coberturas já previstas no rol; e, finalmente, precisa ter sido objeto de análise de impacto financeiro da ampliação da cobertura no âmbito da saúde suplementar.

Para solicitação individual, no entanto, basta que exista prescrição do médico assistente do paciente com evidências científicas ou, que existam recomendações pela Conitec ou órgão estrangeiro similar. A recomendação da Conitec não causa problema dado à reconhecida qualidade do trabalho técnico desse órgão; e, a indicação de órgão semelhante com reconhecimento internacional também não preocupa pelo mesmo motivo, reconhecimento da qualidade técnica dos órgãos internacionais de avaliação de tecnologia em saúde. Mas, a prescrição médica com evidências científicas incertas ou duvidosas, pode significar forte impacto para a seguran -

ça dos pacientes e também para o equilíbrio econômico financeiro da atividade de saúde suplementar.

A indústria de insumos para a saúde – medicamentos, equipamentos e dispositivos médico implantáveis – tem sido uma das mais produtivas nos últimos anos. Sua produtividade se destaca não apenas pela quantidade de novos produtos disponibilizados no mercado, mas, também, pelos robustos orçamentos publicitários e de divulgação científica que têm por objetivo engajar médicos na prescrição de seus produtos e serviços. Exemplos divulgados de forma recorrente demonstram que os meios de persuasão da indústria farmacêutica e de insumos cirúrgicos (órteses, próteses e outros dispositivos médico implantáveis), precisam ser observados com maior espírito crítico pela sociedade e pelas autoridades. 2 Também as investigações realizadas por comissões parlamentares de inquérito no Brasil podem ser fontes relevantes de pesquisa e reflexão sobre esse importante tema.

A divergência na prescrição de medicamentos e tratamentos entre médicos assistentes do paciente contratante de planos de saúde e médicos auditores dessas empresas ocorre em grande número e, quase sempre, resulta em medidas judiciais que aumentam significativamente a judicialização da saúde no país. Dados recentes do Conselho Nacional de Justiça – CNJ confirmam a tendência de judicialização individual do acesso à saúde suplementar no Brasil. 3

2 KEEFE, Patrick Radden. Império Da Dor: A Ascensão e Queda de Uma das Mais Poderosas Famílias Americanas e Seu Criminoso Império Farmacêutico. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2023. SENADO DA REPÚBLICA – CPI da Máfia das Próteses. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/produtosparasaude/temas-em-destaque/arquivos/7277json-file-1. Acesso em 28 de novembro de 2023. ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Relatório da CPI da Máfia das Próteses. Disponível em: https://www.al.rs.gov.br/download/ CPI_Pr%C3%B3teses/ANEXO_PR_0006_2016_1.pdf. Acesso em 28 de novembro de 2023. RAMOS, Pedro. A Máfia das Próteses S.Paulo: Évora, 2016.

3 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ. Es-

Reduzir a judicialização é essencial para a sustentabilidade do sistema, positivo para as operadoras de saúde suplementar, para os contratantes e para quem tem a responsabilidade do custeio dos planos de saúde, em especial as empresas que respondem pela maior quantidade de contratos no Brasil por meio dos chamados planos coletivos empresariais, que se tornaram uma forma de remuneração indireta muito bem recebida pelos trabalhadores e seus dependentes.

Um instrumento por vezes disponível para ajudar a dirimir esse tipo de disputa é a utilização de uma junta médica composta por médicos indicados pela operadora, pelo paciente e pelos médicos de ambos. A junta médica é uma ferramenta interessante para que as pessoas avancem rumo à solução consensual de tal tipo de controvérsia? A proposta do presente artigo é iniciar a análise do tema, sem qualquer pretensão de esgotá-lo.

1. JUNTA MÉDICA: MEDIDA LEGAL DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS

A junta médica é uma possibilidade para dirimir divergências técnico-assistenciais regulada pela Resolução Normativa n. 424, de 2017, da Agência Nacional de Saúde Suplementar, e aplicável aos casos que dependem de autorização prévia da operadora de saúde.

É definida pela resolução como a junta formada por profissionais médicos ou cirurgiões-dentistas com objetivo de avaliar a adequação da indicação clínica do profissional assistente que foi objeto de divergência técnico-assistencial pelo profissional da operadora e, poderá ser realizada de forma presencial ou tatísticas Processuais de Direito à Saúde. Disponível em: https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single/?appid=a6dfbee4=-bcad4861-98-ea4-5183b29247e&sheet87ff247a-22e0-4a66-ae83-24fa5d92175a&opt=ctxmenu,currsel. Acesso em 28 de novembro de 2023.

à distância, a depender das circunstâncias do caso concreto.

Não será admitida a realização de junta médica nos casos de urgência e emergência; procedimentos ou eventos não previstos no instrumento contratual e nem no rol de procedimentos e eventos em saúde; indicação de órteses, próteses e materiais especiais utilizados exclusivamente em procedimentos não cobertos pelo rol, exceto se garantidos pelo contrato; indicação de órteses, próteses ou material especial sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, ou para uso diferente daquele especificado (off-label), salvo se existirem evidências científicas reconhecidas pela Conitec ou, se a ANVISA houver emitido autorização, mediante solicitação da Conitec para uso no SUS.

É possível constatar que a resolução normativa da ANS precisa ser atualizada em conformidade com o disposto na Lei 14.454, de 2022, porque a lei flexibilizou o rol de procedimentos e eventos em saúde e determinou que, existindo comprovação de eficácia à luz das ciências da saúde baseada em evidências científicas e plano terapêutico, o tratamento ou procedimento prescrito pelo médico assistente do paciente deverá ser fornecido pela operadora de saúde, independentemente de estar incluído no rol da ANS.

A segurança do paciente precisa, necessariamente, estar em primeiro lugar quando se trata de procedimentos e eventos destinado a saúde. Nessa perspectiva, é lícito concluir que a junta médica poderá ser utilizada à luz da Lei n. 14.454, de 2022, para situações em que o tratamento ou procedimento prescrito pelo médico assistente apresente evidências científicas consideradas fracas ou inadequadas por outro profissional de área médica. Nesse impasse, um terceiro profissional deverá ser escolhido de comum acordo para opinar tecnicamente sobre a efi -

cácia, eficiência e efetividade do tratamento pretendido.

A RN 424 de 2017 determina que a junta médica deverá ser formada por três profissionais: o médico assistente do paciente, o médico auditor da operadora e o desempatador, que será escolhido de comum acordo entre os dois primeiros. O parecer do desempatador será acatado pelas partes.

Determina a norma infralegal, ainda, que a operadora de saúde será a responsável pelo pagamento dos honorários do médico que atuar como desempatador, bem como por suas despesas de viagem se necessárias.

Ao suscitar a divergência técnica e requerer a realização da junta médica a operadora deverá indicar quatro profissionais médicos com especialidade na área e, a indicação desses profissionais deverá ser realizada a partir de listas previamente disponibilizadas por conselhos profissionais, por sociedade de especialidade ou por associação médica ou odontológica de âmbito nacional e reconhecida oficialmente pelo conselho da categoria.

O médico que atuar como desempatador poderá solicitar exames complementares desde que sejam devidamente fundamentados e estejam previstos no rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS. Os custos dos exames serão suportados pela operadora e o médico desempatador deverá elaborar um parecer conclusivo, em linguagem clara e adequada.

A comunicação da decisão do médico desempatador deverá ser comunicada pela operadora de saúde para o paciente e seu médico assistente.

Respeitadas as premissas regulatórias a junta médica pode ser realizada em diferentes situações. Mas pode ser considerada um instrumento de mediação de conflito?

CONFLITOS

A Prof.ª Dra. Fernanda Tartuce 4 define mediação como

(...) meio consensual de abordagem de controvérsias em que alguém imparcial atua para facilitar a comunicação entre os envolvidos e propiciar que eles possam, a partir da percepção ampliada dos meandros da situação controvertida, protagonizar saídas produtivas para os impasses que os envolvem.

Ressalta a autora, ainda, que a mediação configura um meio consensual porque não implica a imposição de decisão por uma terceira pessoa; sua lógica, portanto, difere totalmente daquela em que um julgador tem autoridade para impor suas decisões.

O Prof. Dr. Luiz Antonio Scavone Junior5 afirma que o mediador busca neutralizar a emoção das partes, facilitando a solução da controvérsia sem interferir na substância da decisão dos envolvidos. E destaca que a mediação se torna útil quando o conflito entre as partes desborda dos interesses financeiros em discussão que, muitas vezes, são, apenas, o pretexto para disputas emocionais que extrapolam o contexto aparente do conflito.

Nessa perspectiva dos autores citados a junta médica não se constitui em um modelo clássico de mediação porque o médico escolhido pela operadora de saúde e pelo médico assistente do paciente-beneficiário, ao proferir sua opinião técnica sobre o tratamento ou procedimento recomendado por um de seus colegas e recusado por outro, acabará, certamente, em muitos casos reais, se alinhando à posição de um deles e recusando a posição do outro. Sua opinião técnica poderá, inclusive, ser diferente da opinião de seus colegas de profissão, o que criará uma outra possibilidade para ser avaliada por todos,

4 TARTUCE, Fernanda. Mediação nos Conflitos Civis. 7ª ed. Rio de Janeiro: Gen Método, 2024, p. 175.

5 SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Arbitragem, Mediação, Conciliação e Negociação. 11ª ed. Rio de Janeiro: Gen Forense, 2023, p. 265.

especialmente pelo paciente-beneficiário, na tomada de decisão.

Por outro lado, as situações de impasse entre o médico auditor da operadora de saúde e o médico assistente do paciente-beneficiário são, quase sempre, desprovidas de fundamento financeiro e carregadas de emotividade porque o paciente avalia que o tratamento ou procedimento prescrito por seu médico assistente seja, realmente, o melhor, mais seguro e, principalmente, mais eficiente para garantir a almejada cura ou melhora do estado geral de saúde. O paciente tende a confiar amplamente no seu médico assistente e a desconfiar de todas as opiniões do médico auditor da operadora, por acreditar que ele esteja mais preocupado com poupar recursos do que buscar soluções para o quadro de saúde do paciente-beneficiário do plano ou seguro saúde.

Nessa perspectiva, de um conflito com base emocional, o papel do médico indicado para a realização da junta pode ser relevante como mediador, inclusive para auxiliar seus colegas de profissão a compreenderem melhor os argumentos que utilizaram e coloca-los em perspectiva crítica com os argumentos utilizados pelo terceiro médico, agora no papel de mediador.

Diogo A. Rezende de Almeida e Fernanda Paiva 6 afirmam

Na mediação, em primeiro lugar, compete ao mediador zelar pela preservação e respeito aos princípios que a informam, tanto em sua atuação como na dos participantes e demais sujeitos envolvidos no procedimento. Em acréscimo à condução pautada na imparcialidade, na diligência e na confidencialidade, é necessário que o mediador mostre-se digno da confiança dos mediandos. Não basta sua imparcialidade intrínseca. É necessário que transmita esse sentimento aos envolvidos, o que pode ser alcançado pela própria reputação do mediador, inclusive pela forma como conduz as sessões.

6 ALMEIDA, Diogo A. Rezende de. PAIVA, Fernanda. Dinâmica da Mediação: Atores. In ALMEIDA, Tania. PELAJO, Samantha. JONATHAN, Eva (Coordenadores). Mediação de Conflitos. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 257.

Na realização de junta médica o médico é escolhido de comum acordo pelo auditor da operadora de saúde e pelo médico assistente do paciente-beneficiário, a partir da análise das competências técnicas que ele possui para opinar naquele caso específico. Não há dúvida, portanto, de que ele goza de boa reputação técnica, do contrário não seria o médico de consenso entre as partes para exercer a tarefa de opinar.

CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS

A judicialização na saúde pública e suplementar, no Brasil, tem alcançado índices muito elevados e, certamente, negativos para todos os atores sociais envolvidos, ou seja, pacientes-beneficiários de planos e seguros saúde; médicos; operadoras e seguradoras de saúde suplementar; cadeia de suprimentos; e, para todos os demais envolvidos, inclusive para o judiciário. Buscar soluções para esse problema é tarefa de todos os envolvidos, em especial porque a segurança do paciente-beneficiário deve estar sempre como principal objetivo a ser alcançado.

A mediação é uma ferramenta que em poucos anos evoluiu de tentativas quase heroicas de abnegados mediadores voluntários imbuídos apenas de bons propósitos, para um aperfeiçoamento técnico valioso, estudos sistematizados, capacitação de agentes para o exercício da atividade, pesquisa e, especialmente, inserção de novos conhecimentos e concretização de princípios informadores de enorme relevância, como a boa-fé, isonomia, imparcialidade, cooperação e busca de consenso.

Na saúde suplementar, no Brasil, a adoção de um rol de procedimentos e eventos em saúde é medida de segurança para o paciente e de boa técnica-atuarial e não um fator de minimização de custos. O fundo mutual organizado e administrado pela operadora de saúde e do qual sairão todos os recursos para o pagamento das despesas assistenciais, pertence aos próprios beneficiários que contrataram planos e seguros saúde. Ao decidir que determinadas despesas devem ser custeadas por esse fundo, a operadora de saúde suplementar está utilizando recursos

de terceiros, ou seja, de seus contratantes, perante os quais tem dois deveres prioritários: (i) proteger a segurança da saúde para que sejam utilizados apenas procedimentos e eventos cientificamente comprovados; e, (ii) proteger o fundo mutual para que os valores não sejam utilizados de forma inconsequente, porque isso determinará o percentual de aumento das mensalidades de todos os participantes do fundo mutual.

Com tão relevantes prioridades a serem cumpridas, as operadoras de saúde suplementar dispõem de um instrumento – a junta médica -, que pode cumprir o papel de mediação nas relações entre o médico do paciente-beneficiário e o médico auditor da operadora. O conflito técnico que se estabelece entre a prescrição do médico do paciente e o médico da operadora não é apenas financeiro, tem contornos emocionais decorrentes do justo anseio do paciente em se tratar e voltar a ser saudável, e aspectos da convicção pessoal dos médicos, construída ao longo de sua experiência clínica.

A presença de um terceiro médico escolhido pelas partes com base em currículo e credibilidade naquela especialidade, com autonomia para realizar consulta e solicitar exames para avaliar as reais condições do paciente-beneficiário da operadora de saúde, e para emitir uma terceira opinião é, sem dúvida, uma forma eficiente de solucionar conflitos e reduzir os números de judicialização de casos individuais no âmbito da saúde suplementar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Diogo A. Rezende de. PAIVA, Fernanda. Dinâmica da Mediação: Atores. In ALMEIDA, Tania. PELAJO, Samantha. JONATHAN, Eva (Coordenadores). Mediação de Conflitos. Salvador: Jus Podivm, 2017.

SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Arbitragem, Mediação, Conciliação e Negociação. 11ª ed. Rio de Janeiro: Gen Forense, 2023.

TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 7ª ed. São Paulo: Método, 2024.

DA RESPONSABILIDADE CIVIL À RESPONSABILIDADE

POR DANOS: RAZÕES PARA A MUDANÇA DE COMO

COMPREENDER O INSTITUTO

Palavras-chave

Responsabilidade Civil. Consumidor. Reparação de Danos. Justiça Social.

Pablo Malheiros da Cunha Frota

Pós-Doutorando em Direito na Unisinos

Doutor em Direito na Universidade Federal do Paraná.

Professor de Direito Civil e de Processo Civil da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Diretor Regional do Centro-Oeste e Presidente do IBDCONT-DF. Diretor do IBDFAM-DF.

Membro da Comissão de Direito Constitucional e da Comissão de Direito Civil do IAB. Advogado em Brasília-DF

1. INTRODUÇÃO

É uma honra e alegria imensa ser convidado pela Professora Luciana Fernandes Berlini para participar de publicação relevante na área de responsabilidade civil.

Nessa linha, o tema em apreço cuida em saber se a construção teórico-prática da responsabilidade civil está superada, a viabilizar uma gradual passagem para a perspectiva da responsabilidade por danos?

O artigo será dividido em dois tópicos, além da introdução, da conclusão e das referências, da seguinte maneira: (i) reflexão sobre a insuficiência do esteio legal e teórico-prático da responsabilidade civil no Direito Civil e Consumerista brasileiro; (ii) os pressupostos teóricos da responsabilidade por danos.

Nessa senda, para alcançar esses objetivos, utilizar-se-á um método e uma metodologia que visam robustecer o caminho e o caminhar para a edificação da análise apresentada, sem jamais se furtar em afirmar sobre a provisoriedade de qualquer discussão jurídica, pois sempre será possível um outro olhar sobre os temas aqui aludidos. O método é o fenomenológico hermenêutico:

o método fenomenológico, pelo qual se reconstrói o problema jurídico a partir de sua história institucional, para, ao final, permitir que ele apareça na sua verdadeira face. O Direito é um fenômeno que se mostra na sua concretude, mas sua compreensão somente se dá linguisticamente. Por isso, compreender o fenômeno jurídico significa compreendê-lo a partir de sua reconstrução. Não existem várias realidades; o que existe são diferentes visões sobre a realidade. Isto quer dizer que não existem apenas relatos ou narrativas sobre o Direito. Existem, sim, amplas possibilidades de dizê-lo de forma coerente e consistente.

Assim, cada caso jurídico concreto pode ter diferentes interpretações. Mas isso não quer dizer que dele e sobre ele se possam fazer quaisquer interpretações. Fosse isso verdadeiro poder-se-ia dizer que Nietzsche tinha razão

quando afirmou que “fatos não existem; o que existe são apenas interpretações”. Contrariamente a isso, pode-se contrapor que, na verdade somente porque há fatos é que existem interpretações. E estes fatos que compõem a concretude do caso podem – e devem – ser devidamente definidos e explicitados.1

Como diz Streck, a escolha pela fenomenologia representa a superação da metafísica no campo do Direito, de tal modo que uma abordagem hermenêutica – e, portanto, crítica – do Direito jamais pretenderá ter a última palavra. E isso já é uma grande vantagem, sobretudo no paradigma da intersubjetividade. 2

O referido método fenomenológico-hermenêutico envolve cada fato jurídico, por meio de uma metodologia bipartida em procedimento e abordagem. A primeira tem por lastro o procedimento monográfico e empírico, com a análise da literatura jurídica e de julgados sobre os fundamentos da responsabilidade civil. A segunda se embasa em uma linha crítico-metodológica, lastreada em uma teoria crítica3 da realidade que compreende o Direito como problema e como uma “rede complexa de linguagens e de significados”4.

1 STRECK, Lenio. Parecer Disponível em: https://www.conjur. com.br/dl/manifestacao-politica-juizes-nao-punida.pdf Acesso em 09.08.2023.

2 TRINDADE, André Karam; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Crítica Hermenêutica do Direito: do quadro referencial teórico à articulação de uma posição filosófica sobre o Direito. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), v. 9, ano 3, p. 311-326, setembro-dezembro 2017, p. 325. 3 O sentido de crítica, positiva ou negativa, para esta pesquisa não está necessariamente vinculado a uma específica linha teórica da Escola de Frankfurt, em seus vários vieses, embora deles se possam apreender ensinamentos deveras importantes, mas sim a uma perspectiva de testabilidade do sentido atribuído aos institutos jurídicos pelos intérpretes, operadores do direito e (ou) juristas, por meio das instituições (ou não) e a sua adequabilidade àquilo que se encontra na multiplicidade do real, rejeitando-se dogmas e pensando o Direito como problema. Sobre o assunto, por exemplo, SANTOS COELHO, Nuno Manuel Morgadinho. Direito, filosofia e a humanidade como tarefa Curitiba: Juruá, 2012. 4 GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza. (Re) pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática 5. ed. São Paulo: Almedina, 2020, livro eletrônico, item 3.1.

O assunto tratado no texto possui uma vertente jurídico-teórico-prática, como se exige de qualquer investigação no campo das disciplinas jurídicas. Desse modo, o raciocínio utilizado é o hermenêutico-dialógico, por meio da densificação5 dos sentidos e dos significados das categorias jurídicas no âmbito das variadas formas de expressão do Direito e que fundam os institutos jurídicos a partir dos imperativos da historicidade não linear.

Passa-se a seguir para a densificação dos assuntos pertinentes a este artigo.

2. FUNDAMENTOS BASAIS DA RESPONSABILIDADE

CIVIL E CONSUMERISTA NO DIREITO CONTINENTAL

Principia-se a análise atribuindo sentido ao significante responsabilidade civil, a fim de que o diálogo com o(a) leitor(a) seja profícuo e não se tenha dúvida do que se está a tratar. Pode-se entender, com expressiva parcela da literatura jurídica, que existe responsabilidade “quando se viola um dever jurídico original, tal como não matar outra pessoa, não tomar para si o que não lhe pertence ou não ofender a integridade de pessoa alheia”. Noutros termos, “é possível impor dever jurídico e assegurar seu cumprimento ou as suas consequências a quem tenha violado um dever”.6 Essa perspectiva, no direito continental, advém das Institutas de Gaio por meio da fórmula honeste vivere, alterum non laedere (“viver honestamente, não causar dano a outrem e dar a cada um o que é seu”).7

Dessa maneira, a ideia de responsabilidade pode ser enquadrada como uma consequência jurídica derivada de um enunciado normativo, na qual um dever jurídico originário de não lesar for violado, deflagra-se a consequência jurídica, na modalidade de sanção, imputando responsabilidade àquele que violou o dever ou ao responsável por responder por esta violação. 8

Diante disso, da responsabilidade civil, entendimento extensível às outras disciplinas jurídicas, como o direito do consumidor, empresarial, administrativo, trabalhista, entre outras, tem por sentido um dever sucessivo de reparação de danos, materiais e (ou) extramateriais, pela violação de um dever negocial ou extranegocial anterior, por fatos jurídicos danosos lícitos e ilícitos, imputáveis, subjetivamente, objetivamente ou pelo sacrifício, a quem seja responsável pela causação e (ou) pela reparação do dano. Busca-se, em regra, com a responsabilidade civil “a restauração de uma igualdade destruída; qualquer que seja o fundamento que se lhe dê – culpa ou risco – é a um resultado igualitário que se objetiva”. 9

Nessa linha, apesar das diferenças, o sistema de common law, que se divide o instituto das torts em law of torts e law of contracts,10 e o sistema de civil law exigem a ocorrência de um dano para que o instituto da responsabilidade civil se efetive, sempre sendo necessário interpretar cada sistema de maneira historicamente situada.11

8 LARRAÑAGA, Pablo. El concepto de responsabilidade. Mexico: Fontamara, 2000, p. 198.

9 VILLELA,João Baptista. Para além do lucro e do dano: efeitos sociais benéficos do risco – Repertório IOB de Jurisprudência São Paulo, nº 22/91, 2ª quinz., nov.1991, cad. 3, p. 490-499, p. 490.

A rigor, a responsabilidade civil pode ser apreendida como um juízo valorativo de moralização e de reprovação da conduta do lesante, cuja responsabilidade pode ser dele e (ou) daquele que por ele responde (ex: hipóteses do art. 932 do Código Civil – CC).12

Nesse passo, pode-se apresentar algumas características informativas e informativas da responsabilidade civil:13

a) foco no comportamento do(a) ofensor(a) ou do(a) responsável pela reparação dos danos, uma vez que o comportamento do(a) lesante é colocado em uma posição de destaque para fins de análise da causalidade e da mensuração da reparação dos danos praticados pelo responsável, como se verifica com a ideia do fortuito externo. Outro exemplo dessa prevalência da conduta do ofensor é inferido da redação do art. 944, parágrafo único, do Código Civil (CC), em que a reparação da vítima pode ser reduzida equitativamente se houver excessiva desproporção entre o grau de culpa do(a) ofensor(a)14 e os danos por ela sofridos.

Esse dispositivo legal alça a patamar prioritário não a vítima, mas o(a) lesante, sob o argumento de se evitar possível enriquecimento sem causa à parte lesada. Como reduzir a reparação sem que a vítima tenha concorrido para a ocorrência do dano, independentemente de a responsabilidade ser valorada pelo critério subjetivo, pelo critério objetivo e pelo sacrifício? Essa hipótese é mais uma comprovação de que a vítima não é priorizada por mecanismos constitutivos da responsabilidade civil e consumerista moderna e contemporânea;

portamentais baseadas no voluntarismo ou no personalismo ético, a viabilizar, por exemplo, a opção pela eficiência econômica em detrimento de outros princípios existenciais, como a dignidade da pessoa humana, que deve sempre ser densificada em cada caso concreto.15 Isso causa diversos efeitos sociais perniciosos.16

O emblemático caso do Ford Pinto pode ser destacado. O Ford Pinto foi um veículo utilitário fabricado pela montadora Ford nos Estados Unidos em 1981, porém o automóvel explodia a cada colisão sofrida em sua traseira, pois a montadora não instalou no automóvel um dispositivo de segurança que impedisse tal evento danoso. Isso porque, exercendo a ética da liberdade sob um viés utilitarista, a montadora fez o exercício contábil de avaliar o que é menos oneroso economicamente: instalar o dispositivo de segurança no tanque de combustível de cada automóvel fabricado ao custo unitário de onze dólares (estima-se que a produção foi de doze milhões e meio de veículos fabricados) ou reparar as vítimas que sofram danos decorrentes de cada acidente, aquilatando-se um custo de 200 mil dólares em caso de morte e de 97 mil dólares quando não houver acidente mortal. A média anual de acidentes nas duas hipóteses é de 180 mil sinistros.17

Obviamente que a escolha foi pela lesão a quem seja consumidor(a), tendo a fabricante sido con -

15 FREITAS FILHO, Roberto. Intervenção judicial nos contratos e aplicação dos princípios e das cláusulas gerais: o caso do leasing. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2009.

5 Sobre o tema: FREITAS FILHO, Roberto. Intervenção Judicial nos Contratos e Aplicação dos Princípios e das Cláusulas Gerais: o caso do leasing. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2009.

6 Ver por todos: MIRAGEM, Bruno. Direito civil – responsabilidade civil São Paulo: Saraiva, 2015, p. 23.

7 MIRAGEM, Bruno. Direito civil – responsabilidade civil São Paulo: Saraiva, 2015, p. 23-24.

10 WINFIELD, Percy Henri; JOLOWICZ, John Antony; ROGERS, W.V.H. Tort London: Thomson/Swet&Maxwell, 2006, p. 19. CARRÁ, Bruno Leonardo Câmara. Evolução dos Torts: do Trespass à Strict liability. In: Luciana Costa Poli; Cesar Augusto de Castro Fiúza; ElcioNacur Rezende. (Orgs.). Direito Civil. Florianópolis: FUNJAB, 2014, p. 362-385.

11 MIRAGEM, Bruno. Direito civil – responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 25. Sobre o assunto veja: DONNINI, Rogério Responsabilidade civil na pós-modernidade: felicidade, proteção, enriquecimento com causa e tempo perdido. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2015.

b) a ética da liberdade, com a liberdade sendo utilizada de maneira utilitarista, a partir de análises com -

12 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 214.

13 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 214-216.

14 BANDEIRA, Paula Greco. Notas sobre o parágrafo único do artigo 944 do Código Civil. Civilística.com Disponível civilistica. com - Ano 1. Número 2. 2012 em: Acesso em: 10dez2012.

16 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 22; PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. A responsabilidade civil por danos produzidos no curso de atividade econômica e a tutela da dignidade da pessoa humana: o critério do dano ineficiente In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueiredo (Coords). Questões Controvertidas no NCC São Paulo: Método, 2006, v. 5, p. 65-84.

17 REPRESAS, Trigo. Doctrina - Daños Punitivos. Disponível em: http://www.taringa.net/posts/apuntes-y-monografias/7348448/ Doctrina-Danos-Punitivos-_Trigo-Represas_.html. Acesso em: 14 dez.2012. SANDEL, Michael J. Justiça: O que é fazer a coisa certa Trad. Heloisa Matias e Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

denada em quase três milhões de dólares, inclusive com reparação punitiva.18 Por que não se condenou a Ford com base no lucro ilícito19 que ela obteve?

Esse comportamento se replica diuturnamente na sociedade atual, sendo, diversas vezes, mais econômico lesar a deixar de lesar, porque, em várias situações, nem condenação ocorre, como se viu, por exemplo, nas hipóteses de assalto a ônibus, em que os tribunais também entendem ser caso de fortuito externo (ex.: STJ – RESP 1.351.784 – roubo de bolsa da vítima em um vagão de trem em São Paulo, na qual não se responsabilizou a CPTM por o assalto ser causa estranha à atividade de transporte). Outro exemplo se extrai da hipótese de a seguradora não querer pagar a diferença do risco contratado ao segurado porque ele retirou o rastreador do veículo, que ele colocou por conta própria, no momento em que iria vender o automóvel, tendo o carro sido roubado por assaltantes antes da tradição do bem ao comprador.

O que dizer então do contumaz comportamento lesivo de fornecedores(as) que, diuturnamente, realizam pedidos de inscrição indevida dos nomes da pessoa humana ou da denominação social da pessoa jurídica em órgãos de restrição ao crédito, entre outros motivos? Essas práticas reiteradas corroboram a mantença da difusão danosa em sociedade, o que é extremamente nocivo, laborando para a permanente invisibilidade do Outro. 20

c) relevância da fase patológica aquela que acontece após a ocorrência do dano, conferindo-se destaque marginal aos princípios de precaução (risco de dano potencial) e de prevenção (risco de dano imi -

18 REPRESAS, Trigo. Doctrina - Daños Punitivos. Disponível em: http://www.taringa.net/posts/apuntes-y-monografias/7348448/ Doctrina-Danos-Punitivos-_Trigo-Represas_.html. Acesso em 14 dez.2012. SANDEL, Michael J. Justiça: O que é fazer a coisa certa Trad. Heloisa Matias e Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

19 ROSENVALD, Nelson. As funções punitivas da responsabilidade civil 2.ed. São Paulo: Atlas, 2014.

20 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 215.

nente), exceção feita ao direito ambiental, 21 haja vista, por exemplo, que não há nenhum dispositivo explícito no CC, no CPC e no CDC que trate da precaução, embora o art. 6º, VI, do CDC abarque a prevenção. Isso não obsta, contudo, que se utilizem tutelas inibitórias para tal mister (CDC, art. 84 e CPC/73, art. 461; NCPC, art. 497), mas o silêncio legislativo indica muito sobre como não se valorizam, como se deveria, situações relacionadas à prevenção e à precaução de danos. Saliente-se que mesmo no direito ambiental, a análise da prevenção e da precaução é retrospectiva e não prospectiva, 22 como defende D upuy 23

d) causalidade jurídica avaliada pela previsibilidade (teorias do nexo causal) presumida, ou comprovada, ou com probabilidade alta , com base nas teorias do nexo causal e naquelas que erodem o nexo de causalidade;24

e) responsabilidade somente com dano certo, atual, e às vezes futuro, sendo excluída a reparabilidade pelo dano hipotético (ex.: STJ – AR 4.294) e pelo dano potencial (ex.: STJ – ARESP 262.239);

f) responsabilidade valorada pelos critérios subjetivo (culpa subjetiva, culpa objetiva e dolo), objetivo (risco, equidade, contato25 e segurança) e pelo sacrifício (responsabilidade por fato lícito), 26 sendo certo que sempre se pressupõe voluntariedade das par-

21 MORATO LEITE, José Rubens; AYALA, Patrick de Araújo. Dano Ambiental: Do individual ao coletivo, extrapatrimonial. 3 ed. São Paulo: RT, 2010, p. 49.

22 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 216.

23 DUPUY, Jean-Pierre. René Girard – o tempo das catástrofes: quando o impossível é uma certeza Trad. Lilia Ledon da Silva. São Paulo: Realizações Editora, 2011.

24 Sobre o assunto: FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014.

25 TUSA, Gabriele. A responsabilidade de contato e os crimes cometidos por meio da internet. In: DELGADO, Mário Luiz e ALVES, Jones Figueiredo (Coords.) Novo Código Civil: Questões Controvertidas– (Responsabilidade civil) São Paulo: Método, 2006, v.5, p. 167-195.

26 MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de direito civil português: direito das obrigações. Lisboa: Almedina, 2010, v. 2, t. 3, p. 713-720.

tes envolvidas ou a conduta normativa baseada no personalismo ético. 27 Fomenta-se, destarte, a justiça comutativa e, no máximo, a justiça distributiva, 28 visto que não há por essas características o saneamento das desigualdades concretas em cada caso, papel exercido pela justiça social, 29 que tem assento constitucional no art. 170 da CF/88.

É possível afirmar que o instituto da responsabilidade civil na contemporaneidade 30 serve à manutenção do status quo, a partir da proteção da titularidade proprietária do lesante, por meio de reparações monetariamente irrisórias para danos existenciais e ultrajantes. Exemplifica-se com uma decisão do STJ que reduziu o valor da reparação por danos extramateriais de 50 mil reais para 15 mil reais, devido à vítima que, ao doar sangue no banco de sangue, recebeu a notícia do laboratório de que tinha contraído o vírus HIV, o que não era vero, pois o exame estava com o resultado errado, ou seja, a vítima não tinha contraído o vírus HIV (STJ – RESP 1.071.969).

Isso permite afirmar que a construção teórico-prática da responsabilidade civil e consumerista contemporânea vai ao encontro da lógica de mercado (ex.: processo de securitização social e privada dos danos como resposta ao problema da difusão de lesões), amparando-se em ideários trazidos por análises econômicas do direito 31 e por outros mecanismos teóricos que imperam e tratam as vítimas como “soberanas”, ciosas e informadas, a retomar uma intencional contemplação do acidente como fatalidade (ex: STJ – RESP 1.164.889 – caso da morte de pessoas metralhadas em um cinema de São Paulo e que ficaram sem qualquer reparação sob o fundamento de fortuito externo entre a atividade do cinema e do shopping e o evento morte).

Esses motivos possibilitam que se coloque em xeque a base informativa e informativa da vigente responsabilidade civil e consumerista, a ensejar uma possível passagem para a ideia de responsabilidade por danos, que se exporá no tópico seguinte.

27 Sobre personalismo ético: VITA NETO, José Virgílio. A atribuição da responsabilidade contratual. Tese de Doutorado defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em 2007; AZEVEDO, Antônio Junqueira. Crítica ao personalismo ético da Constituição da República e do Código Civil. Em favor de uma ética biocêntrica. In: AZEVEDO, Antônio Junqueira; TÔRRES, Heleno Taveira; CARBONE, Paolo (Coords.). Princípios do novo Código Civil brasileiro e outros temas: homenagem a Tulio Ascarelli. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 19-31. 28 Pode-se acolher a seguinte ideia de justiça distributiva: “Justiça distributiva é a regra segundo a qual os interesses particulares são articulados para que uma forma de produção de vida com liberdade seja possível. A distribuição, na perspectiva das políticas públicas em que se alocam recursos coletivos, deve ocorrer em relação a coisas comuns (não produzidas por ninguém), coisas produzidas em comum, autoridade e poder e, por fim, incentivos a talentos individuais socialmente relevantes”. FREITAS FILHO, Roberto; CASAGRANDE, José Renato. O Problema do Tempo Decisório nas Políticas Públicas. Revista de Informação Legislativa v. 187, p. 21-34, 2010, p. 22; LOPES, José Reinaldo de Lima. Justiça e Poder Judiciário ou a virtude confronta a instituição. In: LOPES, José Reinaldo de Lima. Direitos sociais: teoria e prática São Paulo: Método, 2006, p. 127.

29 O sentido de justiça social será exposto na conclusão deste artigo.

30 Do final da 1ª Guerra Mundial até os dias atuais.

3. A REPONSABILIDADE POR DANOS COMO PERSPECTIVA DE RECUPERAÇÃO

DA TUTELA

DO CONSUMIDOR NO BRASIL

Para contrapor essas situações advindas da construção teórico-prática da responsabilidade civil e consumerista vigentes, aponta-se uma recorrente construção lastreada em um discurso constitucional de valorização e de incidência, direta ou indireta, dos direitos fundamentais nas relações privadas, 32com a

31 Por exemplo: BATTESINI, Eugênio. Direito e economia: novos horizontes no estudo da responsabilidade civil no Brasil São Paulo: LTr, 2011; MACKAAY, Ejan; ROUSSEAU, Stéphane. Análise econômica do direito.Trad. Rachel Sztajn. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 365-401; PORTO, Antônio José Maristello. Análise econômica da responsabilidade civil. In: TIMM, Luciano Benetti (Org). Direito e economia no Brasil. 2.ed.São Paulo: Atlas, 2014, p. 180200; COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Direito & economia 5. ed. Tradução de Luis Marcos Sander e Francisco Araújo da Costa. Porto Alegre: Bookman, 2010 (capítulo da responsabilidade civil).

32 Ver sobre o assunto: FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fins. Rio de Janeiro: Renovar, 2015; ITUR-

fortificação da dignidade da pessoa humana33 (ex.: CF/88, art. 1º, III), 34 a influenciar a responsabilidade civil, da seguinte maneira: (i) preocupação com a vítima que sofre danos; (ii) ampliação de hipóteses de reconhecimento de danos materiais e extramateriais; (iii) objetivação da imputação do dever de reparar; (iv) revisitação do nexo causal; (v) extensão da responsabilização para além dos causadores do dano; (vi) valorização das funções de reparação, de punição, de precaução e de prevenção da responsabilidade por danos. 35

RASPE, Jorge Mosset. Derecho civil constitucional. Santa Fé: Rubinzal- Culzoni editores, 2011; LÔBO, Paulo. Metodologia do direito civil constitucional. Revista Fórum de Direito Civil - RFDC v. 4, p. 249-259; 2013; BODIN de MORAES, Maria Celina. A Constitucionalização do Direito Civil e seus Efeitos sobre a Responsabilidade Civil. Direito, Estado e Sociedade v. 29, p. 233-258, 2006; TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 4.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, t.1, p. 1–23; DUQUE, Marcelo Schenk. Direito privado e Constituição. São Paulo: RT, 2013; GRUNDMANN, S.; MENDES, Gilmar Ferreira; MARQUES, C. L.; BALDUS, C.; MALHEIROS, M. Direito Privado, Constituição e Fronteiras 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013; SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. 33 Sobre o sentido de dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e a sua eficácia nas relações privadas veja: FACHIN, Melina Girardi; FACHIN, Luiz Edson. Um Ensaio sobre Dignidade da Pessoa Humana nas Relações Jurídicas Interprivadas. In: COSTA, José Augusto Fontoura; ANDRADE, José Maria Arruda de; MATSUO, Alexandra Mery Hansen. (Orgs.). Direito: Teoria e Experiência - Estudos em Homenagem a Eros Roberto Grau. São Paulo: Malheiros Editores, 2013, t. 1, p. 684-700. Sobre dignidade da pessoa humana e justiça: SOUZA, Ricardo Timm de. Justiça em seus termos - dignidade humana, dignidade do mundo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

34 MIRAGEM, Bruno. Direito civil – responsabilidade civil São Paulo: Saraiva, 2015, p. 25.

35 MIRAGEM, Bruno. Direito civil – responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 26-42; SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil 6. ed.São Paulo: Atlas, 2015; FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação. Curitiba: Juruá, 2014; SAMPAIO DA CRUZ, Gisela. O Problema do Nexo Causal na Responsabilidade Civil Rio de Janeiro: Renovar, 2005; MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. A responsabilidade civil por presunção de causalidade Rio de Janeiro: GZ, 2009; BARROSO, Lucas Abreu. A obrigação de indenizar e a determinação da responsabilidade civil por dano ambiental. Rio de Janeiro: Forense, 2006; BARBOSA, Ana Mafalda Castanheira Neves de Miranda. Responsabilidade civil extracontratual: novas perspectivas em matéria de nexo de causalidade Cascais: Principia, 2014.

Por isso, é que se defende uma passagem da ideia de responsabilidade civil para a de responsabilidade por danos, 36 que elastece o sentido de dano, com o intuito de “objetivar o resultado para a aferição da causalidade jurídica possibilitadora da imputação de responsabilidade pela não precaução, pela não prevenção e pela reparação, sempre analisadas por uma ótica prospectiva”. 37

Nessa perspectiva, o dano pode ser entendido como uma lesão, potencial e (ou) concreta, a situações jurídicas intersubjetivas ou inter-racionais 38 de ordem existencial ou material, social, individual homogênea, coletiva e difusa. Essas situações jurídicas inter-racionais englobam direitos, interesses, poderes, deveres de ordem existencial ou material ligados por relações jurídicas. 39 Diante disso, poder-se-ia, como alguns fazem,40 cogitar responsabilidade sem dano? Essa discussão é importante pelo fato de atingir diretamente as funções de precaução e de prevenção de danos.

Para Paulo Lôbo, a responsabilidade sem dano seria um olhar para o futuro e a responsabilidade com dano um olhar para o passado e para as suas consequências pretéritas, trazendo os seguintes exemplo:

36 Sobre a passagem da responsabilidade civil para a responsabilidade pressuposta, o uso do termo direito de danos e a concretização da ideia de responsabilidade por danos Veja: FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 213-233.

37 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 224.

38 Sobre o assunto: SOUZA, Ricardo Timm de. “Fenomenologia e Metafenomenologia: substituição e sentido – sobre o tema da substituição no pensamento ético de Levinas”, In: SOUZA, Ricardo Timm de. – OLIVEIRA, Nythamar Fernandes de. (Orgs.). Fenomenologia hoje – existência, ser e sentido no alvorecer do século XXI Porto Alegre, EDIPUCRS, 2001, p. 379-414.

39 Sobre o sentido de cada significante veja: AMARAL, Francisco. Direito civil. Introdução. 8.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 235-268.

40 Ver: Carta de Recife alinhavada em 2013 no Encontro dos Grupos de Pesquisa em Direito Civil Constitucional da UFPR, UERJ e UFPE; CARRÁ, Bruno Leonardo Câmara. Responsabilidade civil sem dano. São Paulo: Atlas, 2015; GONDIM, Glenda Gonçalves. Responsabilidade civil semdano: da lógica reparatória à lógica inibitória. Tese de doutorado defenddia na Universidade Federal do Paraná, 2015.

(i) as hipóteses de dano ambiental futuro – danos às futuras gerações –, partindo da ideia de pena privada, que abarca as situações de reparação e de punição; (ii) “O credor que demandar o devedor antes de vencida a dívida, fora dos casos em que a lei o permita, ficará obrigado a esperar o tempo que faltava para o vencimento, a descontar os juros correspondentes, embora estipulados, e a pagar as custas em dobro” (CC, art. 939); (iii) “Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição” (CC, art. 940); (iv) abuso do direito (CC, art. 187), cuja consequência não seja a reparação de um dano; (v) a responsabilidade preventiva do parente, do tutor e do curador; (vi) a do fornecedor, por prevenção, em uma relação de consumo (CDC, art. 6º, VI); (vii) do proprietário pelo patrimônio histórico; (viii) invalidação do ato; (ix) dever de não fazer; (x) prover informação; (xi) direito ao esquecimento.41

Dessa maneira, a tutela punitiva ou pedagógica de determinados interesses ou direitos estaria no âmbito da precaução e da prevenção de danos, com a tutela reparatória incidindo nas demais hipóteses, independentemente da presença da culpa para configurar a ilicitude.42 A pena privada, por conseguinte, incide em quatro hipóteses na responsabilidade civil e consumerista: a) comportamento lesivo que atinge um direito sem que haja um dano patrimonial; b) lucratividade por parte do lesante com a produção do dano (lucro ilícito ou disgorgement), a tornar insuficiente a função reparatória da responsabilidade civil e consumerista; c) custo social advindo do ilícito é superior aos danos individuais, ante a natureza difusa

41 Esses argumentos foram expostos na arguição de doutorado de Pablo Malheiros da Cunha Frota em julho de 2013 na UFPR e estão descritos em FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação. Curitiba: Juruá, 2014, p. 225-226.

42 CARVALHO, DéltonWinter de. Dano ambiental futuro: a responsabilização civil pelo risco ambiental Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 146.

desse custo; d) microlesões,43 cuja sanção criminal seria excessiva.44

A responsabilidade sem dano atual e concreto no direito ambiental poderia ser encaixada nos casos em que o “ilícito estabeleceu um custo social em decorrência direta de sua transtemporalidade e de sua dimensão difusa”, ou seja, “sempre que houvesse a produção de um dano (art. 14, § 1º, Lei n.º 6.938/81) ou a produção de riscos ambientais intoleráveis (arts. 225 da CF e 187 da Lei n.º 10.406/2002)”.45

Diante disso, o dano ambiental futuro é uma “verdadeira fonte de obrigação civil, que resulta em tutela diversa da mera indenização ou reparação, atuando por meio de imposição de medidas preventivas (de caráter inibitório ou mesmo mandamental)”.46 Nesse passo, a responsabilidade sem dano se enquadra nos casos de ausência de dano concreto e atual, mas presente a alta potencialidade provável de ocorrência do dano derivado dos riscos intoleráveis de determinada atividade (ex.: Lei n.º 7.347/85, art. 3º).47

43 SINDE MONTEIRO, Jorge Ferreira. Sobre uma eventual definição da causalidade nos projetos nacionais europeus de reforma da responsabilidade civil. São Paulo: RT, Revista de direito do consumidor, ano 20, p. 161-188, abril-junho 2011, p. 186. 44 GALLO, Paollo. Pene private e responsabilità civile. Milão: Dott. A. Giuffrè, 1996, p. 14.

45 CARVALHO, Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilização civil pelo risco ambiental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 147. Relevante observar os mecanismos trazidos pela Lei da Ação Civil Pública – Lei n.º 7.347/85.

46 CARVALHO, Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilização civil pelo risco ambiental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 150-151.

47 CARVALHO, Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilização civil pelo risco ambiental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 150-151. Os Tribunais têm acolhido a responsabilização pelo dano ambiental futuro: TJRN – Agravo de Instrumento n.º 01.002842-0. 2ª Câmara Cível. Rel. Des. Rafael Godeiro. J. 20.6.2002; TJRJ – Agravo de Instrumento 1996.002.05160. 5ª Câmara Cível. Rel. Des. Ronald Valladares. J. 10.2.1998; TJRS – Apelação Cível 70012622171. 2ª Câmara Cível. Rel. Adão Sérgio do Nascimento Cassiano. J. 22.11.2006; TRF 4ª Região – AGA Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 77.201. 3ª T. Rel.ª Juíza Luiza Dias Cassales. DJU de 30.5.2001; TJRJ – Apelação Cível 1999.001.19840. 18ª Câmara Cível. Rel. Des. Jorge Luiz Habib. J. 14.3.2000; TJSC – Apelação Cível 1998.001.19840. 6ª Câmara Cível. Rel. Luiz Cezar Medeiros. J. 1.4.2002.

Destaca-se, no entanto, que no próprio direito ambiental é admissível hipóteses de multicausalidade e de pluralidade de responsáveis, a atenuar o nexo causal e a imputar responsabilidades, “bastando que a atividade do agente seja potencialmente degradante para sua implicação nas malhas da responsabilidade”.48

Dessa maneira, a tutela dessa potencialidade danosa inclui o risco abstrato, porque, a partir do século XX, majorou-se a falta de conhecimento científico adequado acerca do catálogo de riscos públicos e perceptíveis, a inviabilizar o cálculo profícuo da extensão desses riscos. Essa evolução social, informacional e tecnológica influencia a teoria do risco, não mais aplicada exclusivamente para os danos atuais, concretos, previsíveis e prováveis, mas também para aqueles invisíveis e imprevisíveis ao conhecimento humano. O que há é a “probabilidade de o risco existir via verossimilhança e evidência, mesmo não detendo o ser humano a capacidade perfeita de compreender este fenômeno”.49

À vista do exposto e respeitando entendimentos diversos, afirma-se que não há necessidade de se tratar o tema como responsabilidade sem danos, já que a responsabilidade por danos é pressuposta, 50 no sentido de ser anterior à concretização do dano, e açambarca os danos potenciais, visíveis, invisíveis, previsíveis, prováveis e improváveis, concretos e atuais, conferindo a cada um deles uma adequada tutela − de precaução, de prevenção (ex.: CDC, art. 84;

CPC/73, art. 461; NCPC, art. 497) e (ou) de reparação.

Isso porque o dano, os riscos, os perigos e as imprevisibilidades potenciais e concretas impactam situações jurídicas inter-racionais de quem é atingido por tais institutos nas mencionadas situações jurídicas inter-racionais, não apenas no Direito Ambiental, mas também no Direito Civil e no Direito do Consumidor, entendimento extensível a outras disciplinas jurídicas. Exemplo disso pode ser extraído do caso em que um proprietário pretende construir a estrutura do seu imóvel com amianto. O projeto de construção executável ou em execução, nos moldes postos pela ideia de responsabilidade por danos aqui construída, autoriza tutela de precaução ou de prevenção de quem vier a sofrer danos potenciais e concretos por tal projeto arquitetônico, a ensejar as tutelas de precaução, de prevenção, prospectivamente, e de reparação pelos danos potencial e (ou) concreto à saúde e ao meio ambiente, respectivamente, advindos de tal projeto arquitetônico. 51

Desses pressupostos importa a este estudo a prioridade à precaução e à prevenção de danos, sendo relevante apontar que a consecução concreta de todos os pressupostos pode permitir responsabilizar o lesante ou o responsável a partir da comprovação dúctil da formação da circunstância danosa com o dano e com a vítima, ou com o evento danoso ou com o ofensor, a privilegiar, material e processualmente, a precaução e a prevenção, prospectivas, e a qualificar a reparação. Priorizam-se aqui a necessária evitabilidade, o controle, a legitimação e a distribuição dos fatores abstratos ou concretos criados por atividades, no mínimo, potencialmente causadoras de danos (ex.: fabricantes de medicamentos), não podendo as vítimas, em regra, ficar indenes. 53

novas leis, mas de outra mentalidade do intérprete ao apreciar um caso concreto, com a proposição de uma responsabilidade por danos convivendo dialogicamente com outras áreas do conhecimento para além do Direito, sem permitir “colonizações” e fronteiras epistemológicas. 56

48 MORATO LEITE, José Rubens; AYALA, Patrick de Araújo. Dano Ambiental: Do individual ao coletivo, extrapatrimonial. 3 ed. São Paulo: RT, 2010, p. 184.

49 MORATO LEITE, José Rubens; AYALA, Patrick de Araújo. Dano Ambiental: Do individual ao coletivo, extrapatrimonial. 3 ed. São Paulo: RT, 2010, p. 114-115.

50 Sobre responsabilidade pressuposta, na qual se acolhe em parte neste trabalho, veja: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novais. Responsabilidade pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

Por tudo isso, parece que a ideia de responsabilidade por danos pode ser uma importante ruptura com a perspectiva da responsabilidade civil, por se basear em outros pressupostos, quais sejam: (i) foco na vítima; (ii) pressuposto ético na alteridade; (iii) rompimento com a ideia de culpa e de dolo; (iv) substituição do nexo de causalidade pela ideia de formação da circunstância danosa; (v) prioridade na precaução e na prevenção, sempre em um viés prospectivo, e a tutela dos hipervulneráveis, dos vulneráveis e dos hipossuficientes: pela resposta proporcional ao agravo e concretizadora de justiça social; (vi) mitigação das excludentes do dever de reparar. 52

51 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 228.

52 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 228-229.

As citadas perspectivas acompanham uma ideia apregoada por Edgar Morin 54 de se repensar a reforma e de reformar o pensamento, que trazida para o presente estudo, auxilia o repensar sobre a passagem da responsabilidade civil para a responsabilidade por danos na atual quadra em que vivemos. Torna-se viável indicar tendências e caminhos para adequar as respostas apresentadas às vítimas em razão de danos potenciais e concretos que sofrem diuturnamente e a responsabilidade por danos parece ser um adequado caminho. Diante disso, compartilha-se a ideia de prospectividade, 55 na qual se delineiam cenários possíveis de acordo com a perquirição do vigente.

Ressalte-se que a construção de uma responsabilidade por danos não depende, prioritariamente, de

53 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 229.

54 MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma e reformar o pensamento. 19. ed.Trad. Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

55 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012; HALÉVY, Marc. A era do conhecimento: princípios e reflexões sobre a revolução noética no século XXI. Trad. Roberto Leal. SãoPaulo: Unesp, 2010.

Entende-se pela proposição de uma responsabilidade por danos, sem que com isso se descarte a construção teórico-prática realizada pelo (e com) o instituto da responsabilidade civil e consumerista, cuja revisitação e reinterpretação parecem não ser suficientes para a adequada proteção e promoção jurídica prioritária da vítima na sociedade contemporânea, marcadamente incerta, de hiperconsumo, de danos, da globalização, da liquidez, da complexidade e da busca de princípios − em uma palavra: a sociedade do desassossego. O modelo de responsabilidade civil e consumerista atuais parece erodido, porque sua reoxigenação histórica, como se faz com as teorias sociais, 57 não soluciona a questão.

Nesse passo, as seis perspectivas constitutivas da responsabilidade por danos reportam à imprescindível tarefa do jurista atual, ao se debruçar sobre as reflexões que o Direito Civil e o Direito do Consumidor estão adstritos a realizar como fator de transformação social. Para tanto, a perspectiva de uma responsabilidade por danos constitui um de seus alicerces epistemológicos, a realizar situações jurídicas subjetivas das situações jurídicas inter-racionaisda vítima, sem desconsiderar que o lesante também possui situações jurídicas inter-racionais.

Destarte, algumas tendências podem ser extraídas da proposição de uma responsabilidade por danos:

56 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 229.

57 VERONESE, Alexandre. Os conceitos de sistema jurídico e de Direito “em rede”: análise sociológica e da teoria do direito. Revista da Faculdade de Direito da UFF, v.5, 2001, p. 131-149, p. 145-148.

a) ampliar o número de vítimas tuteladas, de danos reparáveis e de formas de reparação, por meio da flexibilização dos meios de prova, da diluição da antijuridicidade, da desnaturalização e do abandono da culpa, da formação da circunstância danosa, 58 entre outros fatores;

b) intensificar a responsabilização, concedendo-se reparações pecuniárias, proporcionais ao caso concreto, e também despatrimonializadas, como a retratação pública e as tutelas específicas de dar, fazer e não fazer, ou mesmo in natura (ex.: CPC/73, arts. 461 e 461-A; NCPC, art. 497 e seguintes, e CC, arts. 233, 247 e 250); 59

c) fomentar os princípios da precaução e da prevenção, prospectivamente, diante da crescente socialização dos riscos, das imprevisibilidades, dos perigos e do incremento dos casos de dano, que ensejam uma noção de responsabilidade plural, solidária e difusa – haja vista a repersonalização do direito civil e do consumidor,60 também lastreada nos princípios da adequada reparação, da prioridade da vítima e da solidariedade; 61

d) concretizar a responsabilidade por danos potenciais e concretos, nos moldes anteriormente expostos; 62

e) densificar de maneira real e concreta os direitos e as garantias fundamentais da pessoa humana no que tange à potencialidade de danos a que está sub -

58 Sobre o tema veja: FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 233-274.

59 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 230.

60 CARVALHO, Orlando de. A teoria geral da relação jurídica: seu sentido e limites 2. ed.Coimbra: Centelha, 1981, v.1.

61 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 230.

f) garantir ampla e integral reparação às vítimas, com extensão de igual direito a todos quantos alcançados indiretamente pelo dano ou expostos a ele, mesmo que por circunstâncias fáticas, devendo nesta hipótese o valor da reparação ser destinado a um fundo voltado para o estudo e a pesquisa da antecipação e do equacionamento dos danos, riscos, perigos e imprevisibilidades oriundas de atividades habituais e onerosas, desenvolvidas em sociedade. Essa tutela abraça, inclusive, os casos de riscos do desenvolvimento, visto que a vítima que não contribuiu ou que contribuiu em parte para o dano derivado do bem ou do serviço posto no mercado não pode assumir a integralidade do risco da atividade, como ocorre, atualmente, em alguns casos de doenças advindas do consumo do tabaco, no qual se nega qualquer reparação ao fumante; 64

g) tornar irrelevante, na maioria dos casos, a concausa, “con el alcance de asignar la totalidad del daño a quien solo aportó una de las causas concurrentes”,65 objetivando diluir as responsabilidades individuais pelo dano, bem como mitigar as excludentes do dever de reparar; 66

h) aumentar as espécies de instrumentos de precaução, de prevenção e de reparação, prospectivamente, coordenando-os com os já existentes, tais como:

63 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 230.

64 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 230-231.

65 REPRESAS, Trigo; MESA, Lopez. Tratado de la responsabilidad civil Buenos Aires: La Ley, 2004. t. 1, p. 59.

66 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 231.

62 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 230. metida em razão da evolução tecnológica dos bens e dos serviços postos para consumo, principalmente os relacionados à saúde, ao consumo e ao meio ambiente; 63

fundos públicos substitutivos da responsabilidade civil e consumerista para os casos mais comuns de danos; pagamento antecipado de tarifas pelo Estado às vítimas, a economizar custos, a reduzir o montante dos danos, o tempo de espera da vítima no recebimento do montante reparatório e os gastos judiciais; promoção de demandas diretas da vítima contra o segurador do responsável pelo dano; pactuação obrigatória de seguro para atividades com alta sinistralidade (ex.: seguro ambiental), eficácia coletiva em demandas individuais, entre outras medidas.67

A responsabilidade por danos esteia-se nos princípios do neminem laedere da solidariedade social, da reparação integral e da primazia da vítima.68 Ela redescreve a linguagem da precaução, da prevenção e da reparação, prospectivamente, com a extensão e a inovação de direitos e de deveres às vítimas, aos lesantes e (ou) responsáveis e à sociedade.69

Essa alteração de concepção parece mais adequada à problematicidade relacionada à precaução, à prevenção e à reparação dos danos potenciais e concretos, mormente diante do desafio atual de cada um assumir por si e pelo Outro a responsabilidade pela esperança.70 Esse repto torna-se premente caso Jean-Pierre Dupuy esteja correto em sua afirmação de que o tempo atual é o “das catástrofes, com o impossível se tornando uma certeza”.71

67 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 231.

68 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria geral das obrigações.2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 23.

69 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 231.

70 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 231.

71 DUPUY, Jean-Pierre. René Girard – o tempo das catástrofes: quando o impossível é uma certeza. Trad. Lilia Ledon da Silva. São Paulo: Realizações Editora, 2011.

A assertiva de Dupuy se conecta com o pensamento de Iturraspe72 de que os danos podem voltar as ser meras fatalidades, com a preocupação do intérprete deslocando-se para a tutela prioritária das vítimas, que não devem ficar indenes, salvo em específicos casos de concorrência danosa ou de fato exclusivo a elas imputado e de circunscritas hipóteses de caso fortuito e de força maior. Deve haver mecanismos jurídico-sociais para, no mínimo, diminuir a propagação dos efeitos deletérios dos eventos potencial ou concretamente danosos produzidos em sociedade.73

A responsabilidade por danos, por conseguinte, altera a perspectiva do intérprete, ao deslocar o âmbito de investigação da conduta do lesante para o dano, já que prevalece a máxima in dubio pro vitima, o que tornaria, no mínimo, inadequada a disposição posta no art. 944, parágrafo único, do CC sobre a redução “equitativa” da reparação pela comparação entre o grau de culpa do lesante e o dano arbitrado à vítima.74 Noutros termos, passa-se da ideia de uma dívida de responsabilidade para um crédito pelo dano sofrido ou que venha a sofrer, na construção de Yvonne Lambert-Faivre.75

A proposição de uma responsabilidade por danos não será esmaecida pela possibilidade de, em algum caso concreto, haver um resultado idêntico ao conferido pelos pressupostos da responsabilida-

72 ITURRASPE, Jorge Mosset. Análisis de la responsabilidad en el proyecto argentino de código civil unificado de 1998. In: FERNANDEZ, Carlos López; CAUMONT, Arturo; CAFFERA, Gerardo (Coord.). Estudios de derecho civil en homenaje al profesor Jorge Gamarra Montevideo: Fundación de Cultura Universitaria, 2001, p. 311-322, p. 311.

73 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 232.

74 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 232.

75 REPRESAS, Trigo; MESA, Lopez. Tratado de la responsabilidad civil Buenos Aires: La Ley, 2004. t. 1, p. 58.

de civil e consumerista ou por existirem instrumentos disponíveis a elas, como as tutelas inibitórias. Por exemplo, o valor a título de dano material derivado de um acidente de carro pode ser igual tanto quando se utilizam os pressupostos da responsabilidade civil, como os de uma responsabilidade por danos; entretanto, os pressupostos e o fundamento sempre serão diversos, e isso faz toda a diferença, quando se observam a alteridade e a justiça social em cada caso concreto.76

Em arremate, a construção da proposição de uma responsabilidade por danos, como a realizada nesta pesquisa, não abandona o passado para se pensar o presente e projetar o futuro, como destaca Fachin: “Não é possível pensar no futuro olvidando-se do presente e apagando o passado. O ser humano, individual e coletivamente, se faz na história de seus caminhos e na vida em sociedade, à luz dos valores que elege, por ação ou omissão, para viver e conviver.” 77 Seguindo a lição sobredita e diante dos horizontes extraídos da construção teórica de uma responsabilidade por danos, nos moldes aqui sustentados, que conterá a alteridade78 como pressuposto ético, e a justiça social como finalidade a ser atingida com a tutela prioritária da vítima.79

Essa construção, sempre provisória e possível de refutação e de aprimoramento, parece ser a que possibilita que os acidentes de consumo sejam mais adequadamente tuteladas, pois ter-se-á como fundamento ético a alteridade, com um alargar das hipóteses de causalidade e de reparação de danos,

76 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 232.

77 FACHIN, Luiz Edson. O futuro do Direito e o direito ao futuro. Revista OABRJ v. 24, p. 261-274, 2008, p. 262.

78 Sobre alteridade PEREIRA, Gustavo Oliveira de Lima. A pátria dos sem pátria: direitos humanos & alteridade. Porto Alegre: Editora Uniritter, 2011.

79 Sobre ambos os assuntos FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: nexo de causalidade e imputação Curitiba: Juruá, 2014, p. 233-274.

com a consequente majoração de responsabilidade da vítima e dos fornecedores e a consequente diminuição dos casos e fortuito externo.

4. CONCLUSÃO

O que se espera, em perspectiva, é que a dinâmica das relações civis e de consumo estejam informadas e enformadas pelo pressuposto ético da alteridade e pelo fim que é a justiça social. Esta se realiza na efetiva explicitação e resolução da desigualdade 80 real em cada caso concreto, com um transbordamento, mesmo que parcial, para outras situações. Essas nuances promovem um contínuo repensar das premissas, das problematizações e das conclusões até agora em relação a quem e como se responsabilização no âmbito das relações de consumo.

Dessa maneira, é preciso entender como indispensável a tal mister a permanência da intencionalidade de justiça, entre nós justiça social, como constitutiva do Direito, sendo muitas vezes necessário escutar os silêncios legislativos, doutrinários e judicativos para a postulação de outras perguntas e respostas aos questionamentos oriundos da sociedade. A concretização da liberdade ética permite a efetivação da justiça social em cada caso, porquanto acolhido o constructo teórico de função como liberdade, com a tutela e o incremento da “liberdade coexistencial”. 81

A liberdade ética, por conseguinte, está conectada a um dos sentidos atribuídos à solidariedade constitucional, isto é, a cooperação e a igualdade na afirmação dos direitos fundamentais de todos, não à solidariedade restrita aos confins de um grupo, ou dissolvida na subordinação de cada um ao Estado:

80 Sobre a densificação da igualdade e da desigualdade, GUEDES, Jefferson Carús. Igualdade e Desigualdade: introdução conceitual, normativa e histórica dos princípios. São Paulo: RT, 2014. 81 PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Institutos fundamentais do direito civil e liberdade(s). Rio de Janeiro: GZ, 2011, p. 167.

“a solidariedade constitucional não concebe um interesse superior ao pleno e livre desenvolvimento da pessoa”. 82 A coligação alteridade e justiça social vai ao encontro da tutela constitucional concreta, crítica e prospectiva da dignidade humana, que se efetiva na “realização da liberdade ética”, no momento da coexistência com o diferente. A liberdade negativa, positiva, material ou formal apresenta-se sob a forma de “responsabilidade pelo Outro”, “reconhecimento fático da alteridade”, e o seu exercício se torna uma questão ética. Em outras palavras, “a minha liberdade começa onde se inicia a liberdade do outro” − “liberdade investida” −, de acordo com Lévinas, porque o Outro “traumatiza as certezas”, repisando-se o afirmado anteriormente. 83

A teorização e a prática da alteridade podem levar a uma efetivação da justiça social como expressa no caput do art. 170 da CF/88; todavia, não se circunscreve às hipóteses previstas no aludido artigo, pois a justiça social permeia a juridicidade vigente com o propósito de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, e em respeito à dignidade da pessoa humana (CF/88, arts. 3º, I, e 1º, III), até porque as desigualdades sociais e econômicas são tragédias evitáveis. 84 Isso reequilibra a assimetria de poder nas relações de consumo.

A justiça social, em um primeiro sentido, pode ser entendida como uma justiça que equilibre, quando efetivada, as ideias de democracia e de crescimento socioeconômico e ambiental. De igual modo, a ideia de igualdade substancial para os cidadãos de forma coletiva e individual, pois um Estado que concretize a aludida harmonia “será um Estado de Justiça”. 85

82 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 461-462.

83 TIMM DE SOUZA, Ricardo. Justiça em termos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 142, 143, 149 e 152.

84 RORTY, Richard. Duas profecias. Folha de São Paulo, Caderno “Mais”.24/5/1998.

85 COELHO, Luiz Fernando. Saudade do futuro 2. ed. Curitiba: Juruá, 2007, p. 196.

A densificação da justiça social altera concretamente as desigualdades, porque é o aperfeiçoamento da justiça comutativa (dar a cada um o que é seu, com privilégio à igualdade formal) e da justiça distributiva (dar a cada um o que é seu, embora reconheça as desigualdades, por meio de legislação –ex: CDC −, ou por outro modo, sem, porém, alterá-las). 86 A efetivação da justiça social no caso concreto fomentará a justiça relacional ou situacional, aquela derivada de uma determinada relação ou situação jurídica, a impedir a mercantilização da sociedade e da pessoa humana concreta. 87

A construção e a realização dos direitos fundamentais, por meio da ideia de responsabilidade por danos, não podem resultar na confirmação do pensamento de Saramago, em texto apresentado no Fórum Social Mundial em 2002: “Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo”. 88 Por isso, o intérprete tem uma espinhosa missão de não contribuir para o permanente passamento da justiça social, como se ela jamais tivesse existido para quem nela confiou ou que dela esperava “o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça”. 89 Os sentidos da justiça social não podem ser aqueles que concretizam a justiça em cada caso de olhos vendados, em que o peso da balança se encontra

86 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Transformações gerais do contrato. Revista trimestral de direito civi Rio de Janeiro: Padma, v. 16, p.103113, out./dez. 2003.

87 CORTIANO JÚNIOR, Eroulths. Para além das coisas (breve ensaio sobre o direito, a pessoa e o patrimônio mínimo). In: FACHIN, Luiz Edson et al. Diálogos sobre direito civil. Renovar: Rio de Janeiro: 2002, p. 155-165.

88 SARAMAGO, José. Este mundo da injustiça globalizada: texto lido na cerimônia de encerramento do Fórum Social Mundial 2002. Disponível em:http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2913. Acesso em: 30 de julho de 2012.

89 SARAMAGO, José. Este mundo da injustiça globalizada: texto lido na cerimônia de encerramento do Fórum Social Mundial 2002. Disponível em:http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2913. Acesso em: 30 de julho de 2012.

viciado e a espada sempre fende mais um lado que o outro. Espera-se uma justiça rigorosamente ética, “uma justiça que seja a emanação espontânea da própria sociedade em acção”. 90

Reivindica-se justiça social, fruto da “angústia da responsabilidade pelo rosto que interpela”. Avulta a primazia dos contatos e da intersubjetividade, sob o “desafio do olhar sem contexto e da tentativa de tornar o trauma da diferença em encontro ético”. 91 Não se pode admitir o Direito como um “jogo jogado” a priori por quem quer que seja, pelas regras, pelos Códigos etc. O ideário de justiça social permanece, haja vista a necessidade de um porvir consentâneo com as respostas requeridas para os problemas das vítimas e dos danos potenciais e concretos produzidos hodiernamente no Brasil.

A alteridade e a justiça social, portanto, passam a ser o sustentáculo desse Direito que tutela a vida em relação, podendo-se utilizar o sentido de justiça haurido das construções relacionadas à filosofia da libertação, isto é, uma sociedade em que caiba o interesse de todos e o de cada um, inclusive os interesses ambientais, sendo este o direito fundamental. Esse sentido de justiça está umbilicalmente conectado àquele de liberdade plural inter-racionais, a incorporar novos direitos, acrescendo-os aos que se encontram na condição de sem-direitos (vítimas do sistema de direito vigente). Isso demonstra uma dualidade funcional do Direito: “de um lado, a função de conservação, onde a vida está afirmada; e, de outro, a função é de transformação, onde a vida está nega -

90 SARAMAGO, José. Este mundo da injustiça globalizada: texto lido na cerimônia de encerramento do Fórum Social Mundial 2002. Disponível em:http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2913. Acesso em: 30 de julho de 2012.

91 LIMA PEREIRA, Gustavo Oliveira de. A pátria dos sem pátria: direitos humanos & alteridade. Porto Alegre: Editora Uniritter, 2011, p. 137-208; LIMA PEREIRA, Gustavo oliveira de. Resenha. Revista fórum de direito civil − RFDC, Belo Horizonte, ano 1, n.1, p. 291-296, set./dez. 2012, p. 294-295.

da”, 92 a fortificar a ideia de desenvolvimento como liberdade.

A normatividade dos direitos fundamentais sociais, por meio de interpretações prospectivas das relações de consumo respeitam a construção decisória dos direitos fundamentais individuais e sociais pelos poderes da República, readequando os pressupostos dessa responsabilidade civil, quiçá, por danos que se avizinha no devir e no porvir das relações de consumo.

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O ABANDONO AFETIVO E A

RESPONSABILIDADE CIVIL

Palavras-chave

Abandono Afetivo. Responsabilidade Civil. Dever de Cuidado. Parentalidade.

Cláudia Stein Vieira

Mestre e Doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Civil no curso de pós-graduação da Escola Paulista de Direito-EPD. Diretora de Estudos de Direito das Sucessões e de Planejamento Sucessório do IBDFAM-SP. Advogada.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tratará do abandono afetivo, objeto de discussões judiciais, sob o argumento que, deduzido pelos filhos, consiste na omissão do dever de cuidado de que teriam sido vítimas por parte dos genitores.

Não se tratará, assim, do abandono afetivo inverso que guarda relação com os cuidados que os filhos devem ter em relação aos genitores.

Todavia, insta consignar que, ao contrário de notícias que são veiculadas, não se trata o abandono afetivo de ausência de amor, que não é dever e sim faculdade.

O que se opera, em algumas situações, é que o pai e/ou a mãe se omite(m) em relação ao dever de cuidado do filho - que, como se verá, adiante, é o que dá causa ao inadimplemento de diversos outros deveres -, ensejando a propositura de ações visando à fixação de indenização.

1. A RESPONSABILIDADE CIVIL

NO DIREITO BRASILEIRO

1.1. A previsão legal

Pela previsão contida na Constituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Preleciona o Código Civil, vigente a partir de 2003, que “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (art. 186), bem como que “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (art. 187).

Prossegue, prevendo que “Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo” (art. 927), enquanto o Código Civil de 1916 previa, no art. 159, que “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”.

Consideradas as previsões constantes do ordenamento jurídico vigente, cumpre, antes de mais nada, ainda que de maneira perfunctória, pesquisar a origem histórica da responsabilidade civil, de forma que a aplicação nas relações entre genitores e filhos se dê em perfeita consonância com os preceitos legais.

1.2. Breves noções históricas

Anteriormente ao reconhecimento, pelo direito, das consequências advindas da conduta que - comissiva ou omissiva - causasse dano a outrem, valiam-se os homens da vingança privada, de “forma primitiva, selvagem talvez, mas humana, da reação espontânea e natural contra o mal sofrido; solução comum a todos os povos nas suas origens, para a reparação do mal pelo mal”, como refere Alvino Lima, mencionado por José de Aguiar Dias1 . Em tal época, não se cogitava do fator culpa.

Em seguida, o legislador, apropriando-se da iniciativa particular, intervém para declarar quando e em 1 LIMA, Alvino. Da culpa ao risco São Paulo, 1938, p. 10, apud José de Aguiar Dias, Da responsabilidade civil vol. I, 8ª ed. revista e aumentada, Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 19.

que condições a vítima tem o direito de retaliação, adotado o princípio de talião - lei de talião, do latim lex talionis2 , cuja expressão mais conhecida é a que refere “olho por olho, dente por dente”, fruto da proporcionalidade entre a ofensa cometida e a pena, que não consistiria em uma vingança desmedida -, tendo os respectivos primeiros indícios sido encontrados no Código de Hamurabi (acredita-se que tenha sido escrito, aproximadamente, em 1772 a.c., Reino da Babilônia), em que o princípio da reciprocidade é claramente usado, como, por exemplo, “A” ser morto pelo crime de morte do filho de B A punição do criminoso se operava nos mesmos moldes do dano por ele causado à vítima - castigo-espelho - e era fixada em consonância com a categoria social dos envolvidos 3

Observa-se, após, o período da composição - celebrada para que o ofensor, por meio da prestação da poena (espécie de resgate da culpa, elemento que, contudo, ainda não era cogitado), fizesse jus ao perdão da vítima, que constatava que a cobrança da retaliação, de impossível mensuração no dano involuntário, importava em duplicação do dano, uma vez que se passava a contar com dois lesados onde, antes, havia apenas um. A composição se dava a critério da vítima, em substituição à vingança, que, entretanto, subsistia com o fundamento ou forma de reintegração do dano sofrido. E, com a vulgarização do instituto, cujo uso foi sancionado pelo legislador, fica vedado à vítima fazer justiça com as próprias mãos, tendo de aceitar a composição fixada pela autoridade.

A partir daí, a justiça punitiva exclusiva progrediu para a justiça distributiva, pois a autoridade percebeu que, ainda que indiretamente, era atingida por 2 Lex lei; e talio de talis: tal, idêntico 3 Exemplo dessa reciprocidade é a previsão contida no art. 25, § 227: “Se um construtor edificou uma casa para um Awilum[homens livres, proprietários de terras, que não dependiam do palácio e do templo] mas não reforçou seu trabalho, e a casa que construiu caiu e causou a morte do dono da casa, esse construtor será morto”

certas lesões causadas ao particular, donde se verificou uma divisão dos delitos em duas categorias: (i) os delitos públicos, consistentes em ofensas mais graves, de caráter perturbador da ordem, que por ela eram reprimidos; e (ii) os delitos privados, em que a atuação se limitava à fixação da composição.

Após isso, verifica-se que o Estado assumiu, com exclusividade, a função de punir, por meio de atitude repressiva, momento em que se verifica o surgimento da ação de indenização, ou se distingue a responsabilidade civil da responsabilidade penal, quando se vislumbra o elemento subjetivo da culpa.

Nesse sentido, a Lei das XII Tábuas (Lex Duodecim Tabularum) prescreveu sanções particulares para determinados crimes, tendo o código anglo-saxônico substituído o pagamento de uma taxa pela retribuição direta: a vida de uma determinada pessoa tinha um valor fixo, derivados de sua posição social. Assim, qualquer homicídio era compensado pelo pagamento da taxa adequada, independentemente das intenções do crime. Cabe mencionar que, atualmente, as indenizações pelos danos sofridos são pecuniárias.

E, na Lex Aquilia de Damno (final do século III a.C.)cujo maior valor consistiu em substituir as multas fixas por uma pena proporcional ao dano causado -, inobstante inexistisse um regramento tal como hoje se verifica, esboça-se um princípio geral regulador da reparação do dano, origem da jurisprudência clássica com relação à injúria e da culpa aquiliana expressão que não pode ser utilizada em relação à culpa nos dias atuais, considerada a circunstância de, para o Direito Romano, tratar-se de mero pressuposto do dever de indenizar, carregando uma ideia de castigo, por influência da Igreja Católica.

Entretanto, o termo aquiliana, originário de tão revolucionária legislação, serve para designar a responsabilidade extracontratual em oposição à contratual.

A lei em questão surge no Direito Romano na época em que a responsabilidade sem culpa consistia na regra, dando-se a punição do ofensor, até então, com base na pena de Talião.

Aos poucos, a jurisprudência dilatou o campo de aplicação do damnun injuria datum4 contido no terceiro capítulo da Lex Aquilia, seja para que os titulares de outros direitos reais e os peregrinos também fizessem jus à ação para a qual só tinha legitimidade o proprietário da coisa destruída ou deteriorada, quando cidadão romano; seja para alargar os respectivos casos de incidência, como, por exemplo, ferimentos produzidos em homens livres e a quaisquer danos irrogados às coisas em geral, contemplando os imóveis e atos instrumentários, na ausência de outro meio de prova5 Da mesma forma, restou mitigado o conceito de dano, constante do texto aquiliano, que passa a ser contemplado também no damnum non corpore datum 6 , o que, contudo, de acordo com Fliniaux, citado por Mazeaud, “só se operou sob Justiniano” 7

No último período do direito romano, multiplicaram-se os textos autorizadores à propositura de ações de responsabilidade, de modo a contemplar, também, os danos morais, afora os materiais.

Pelo Código Civil Francês (em vigor a partir de 21 de março de 1804) foi estabelecido um princípio geral da responsabilidade civil, de forma a abandonar os casos de composição obrigatória. Houve o estabelecimento do direito à reparação, sempre que houvesse culpa, ainda que leve ou, ainda, levíssima - o que consiste na generalização do princípio aquilia-

4 Dano produzido pela injúria.

5 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil vol. I, 8ª ed. revista e aumentada. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 19.

6 Dano que atingia uma coisa incorpórea.

7 Mazeaud, Traité théorique et pratique de la responsabilité civile, delictuelle et contractuelle, t. 1, 1938, 3ª ed., nº 23, p. 36, apud José de Aguiar. Da responsabilidade civil vol. I, 8ª ed. revista e aumentada. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 22.

no; a separação da responsabilidade civil, perante a vítima, da responsabilidade penal, perante o Estado; o reconhecimento de culpa contratual, que, desatrelada de crime e delito, decorre de negligência ou imprudência. O Código Napoleônico contemplou a noção da culpa in abstracto e a distinção entre culpa delitual e culpa contratual.

Em Portugal, após a invasão arábe, a reparação pecuniária passou a ser aplicada paralelamente às penas corporais, sendo certo que as Ordenações do Reino - que vigeram no Brasil colonial - confundiam reparação, pena e multa8

No Direito Brasileiro, o Código Criminal de 1830 se transformou em um código civil e criminal, tal como determinava a Constituição do Império (art. 179, nº 18), prevendo a reparação natural, quando possível, ou a indenização; a integridade da reparação, até onde possível; a previsão dos juros reparatórios; a solidariedade, a transmissibilidade do dever de reparar e do crédito de indenização aos herdeiros e assim por diante.

De início, a reparação estava atrelada à condenação criminal, tendo sido, posteriormente, adotado o princípio da independência da jurisdição civil da criminal.

O Código Civil de 1916 adotou a teoria subjetiva, que exige a prova de culpa ou dolo do causador do dano, para que seja compelido a repará-lo, sem prejuízo das previsões contidas nos arts. 1.527 a 1.529 9 8 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, vol. 4: responsabilidade civil, 5ª ed.. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 27. 9 “Art. 1.527. O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar: I. Que o guardava e vigiava com o cuidado preciso. II. Que o animal foi provocado por outro. III. Que houve imprudência do ofendido. IV. que o fato resultou de caso fortuito, ou força maior.”

“Art. 1.528. O dono do edifício ou construção responde pelos danos que resultarem de sua ruína, se esta provier de falta de reparos, cuja necessidade fosse manifesta.”

“Art. 1.529. Aquele que habitar uma casa, ou parte dela responde, pelo dano proveniente das coisas, que dela caírem ou forem lançadas em lugar indevido.”

1.3. Os elementos da responsabilidade civil ou pressupostos do direito à reparação

A maior parte dos doutrinadores comunga do entendimento acerca de serem três os elementos da responsabilidade civil, cuja presença se faz necessária a que haja a obrigação de indenizar.

O primeiro deles consiste na existência de uma conduta, comissiva ou omissiva, que consista em ato ilícito ou, ainda, lícito - esse último considerada a circunstância de, ao lado da culpa, como um dos fundamentos da responsabilidade civil, haver o risco, sobre o que se manifesta Carlos Alberto Bittar (1990, p. 29)10 , referindo que:

Dois são os fundamentos para a responsabilização do agente: a) a culpa e b) o risco, o primeiro que inspirou a construção da teoria e, o segundo, proveniente das transformações operadas na sociedade, a partir de meados do século passado.

A conduta humana decorrente da vontade do homem - o que a torna jurídica - pode ser fruto de uma ação (conduta positiva) ou de omissão (conduta negativa) voluntárias - o que dá origem ao elemento da voluntariedade - ou, ainda, de negligência, imprudência ou imperícia. A configuração da omissão que interessa à responsabilidade civil só se opera se presentes: (i) o dever jurídico da prática de um ato; (ii) a comprovação do respectivo inadimplemento; (iii) a comprovação de que, se tal dever houvesse sido adimplido, o dano poderia ter sido evitado.

A análise da conduta permitirá a mensuração do grau de culpa do ofensor, seja em sentido amplo ou diante da culpa genérica ou lato senso essa englobando o dolo e a culpa em stricto senso

Na teoria da culpa ou teoria subjetiva perquire-se a subjetividade do ofensor, visando à apuração acerca de o resultado ter sido por ele desejado, o que configurará o dolo; ou de ter agido com imprudência, imperícia ou negligência, quando se estará diante da culpa em sentido estrito.

Consiste o dolo, no que diz respeito à responsabilidade civil11 na vontade deliberada de violar o dever jurídico - por meio de ação ou omissão -, visando a prejudicar outrem, enquanto a culpa estrita ou stricto sensu, “pode ser conceituada como sendo o desrespeito a um dever preexistente, não havendo propriamente uma intenção de violar o dever jurídico, que acaba sendo violado por outro tipo de conduta” 12

Em seguida, é necessário considerar que, para que haja o direito à reparação, mister a existência de um dano circunstância elementar da responsabilidade civil. Consiste o dano em um prejuízo sofrido, seja material ou imaterial, esse segundo consistente em lesão aos direitos da personalidade (arts. 11 a 21 do CC).

Por último, deve-se perquirir sobre o nexo de causalidade que, segundo o escólio de José de Aguiar Dias:

Não basta que o agente haja procedido contra direito, isto é, não se define a responsabilidade pelo fato de cometer um erro de conduta’ não basta que a vítima sofra um ‘dano’ que é o elemento objetivo do dever de indenizar, pois se não houver um prejuízo a conduta antijurídica não gera obrigação ressarcitória. É necessário que se estabeleça uma relação de causalidade entre a injuridicidade da ação e o mal causado; ou, na feliz expressão de Demogue, ‘é preciso esteja certo que, sem este fato, o dano não teria acontecido. Assim não

11 O dolo que consiste em defeito do negócio jurídico não se confunde com o dolo matéria da responsabilidade civil.

basta que uma pessoa tenha contravindo a certas regras; é preciso que sem esta contravenção, o dano não ocorreria’ (Traité des Obligations em Général, vol. IV, nº 366).

(...) Não basta, esclarece Savatier, que um dano tenha coincidido com a existência de uma culpa ou de um risco para estabelecer uma responsabilidade. ‘Coincidência não implica em causalidade’ (La Responsabilité Civile, vol. I, nº 459)” 13

2. OS DEVERES ADVINDOS DA PARENTALIDADE

2.1. A importância dos genitores para o desenvolvimento dos filhos -

Prevê, a Constituição Federal:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

(...)

§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O Código Civil, ao tratar do poder familiar, a que estão sujeitos os filhos enquanto menores, prevê, dentre outros, ser deveres dos genitores “I - dirigir-lhes a criação e a educação; II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584” (art. 1.634, CC).

No que tange à guarda, assim preleciona o Código Civil:

Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada.

§ 1º Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns.

(...) § 5º A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos, e, para possibilitar tal supervisão, qualquer dos genitores sempre será parte legítima para solicitar informações e/ou prestação de contas, objetivas ou subjetivas, em assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a saúde física e psicológica e a educação de seus filhos.

(...)

Art. 1.589. O pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação.

10 BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade civil: teoria e prática 2ª ed.. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990, p. 29.

12 TARTUCE, Flávio, Direito civil v. 2 direito das obrigações e responsabilidade civil, 12ª ed. rev., atual. e ampl.. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 359-360.

13 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil 2ª ed., 1ª tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 83.

Ainda que, do art. 1.589 tenha constado, talvez por um cochilo do legislador, que o pai ou a mãe “poderá” ter os filhos em sua companhia, “visitá-los” - penso que já é mais que tempo de se alterar essa ex-

pressão para “com eles conviver”, pois é inimaginável que pais e filhos se “visitem”, na acepção da palavrae “fiscalizar sua manutenção e educação”, parece lógico que se trata de um dever.

Sobre o tema:

Define-se, o poder familiar, como o conjunto de direitos e deveres atribuídos aos pais em relação aos filhos menores, para sua criação, formação e administração dos seus bens, não importando a origem do parentesco nem se os filhos nasceram dentro do casamento, da união estável ou de relacionamento afetivo de outra ordem.” 14

A expressão poder não pode ser havida como a permissão para que os genitores façam o que desejar, inclusive negar-se ao cumprimento do dever de cuidado dos filhos, o que, por vezes, verifica-se em casos em que há o pagamento de pensão alimentícia, mas inexiste qualquer preocupação imaterial com o menor. Importa considerar que, nesse ponto, trata-se, como ensina Giselle Groeninga, do

“poder(...) legitimado por atender a natureza assimétrica e complementar das relações e das funções exercidas na família(...) a diferença no uso do poder é fruto da necessária diferença entre gerações e da utilização de recursos para atender às necessidades daqueles que estão em situação de maior vulnerabilidade na família - os filhos e os idosos. Os cuidados com estes é finalidade da família, sendo este princípio que legitima o poder” 15

14 OLIVEIRA, Euclides de. Alienação parental e as nuances da parentalidade - guarda e convivência familiar. In PEREIRA, Rodrigo da Cunha (org.). Tratado de direito das famílias 2ª ed. Belo Horizonte: IBDFAM, 2016, p. 115-116.

15 GROENINGA, Giselle Câmara. Poder Familiar. In BARBOSA, Águida Arruda; VIEIRA, Claudia Stein (Coord.); HIRONAKA, Giselda M. F. Novaes Hironaka (Orientação). Direito Civil 7, Direito de Família, São Paulo: RT, 2008, p. 218-219.

Não se pode, como é certo, obrigar alguém a amar, mas cuidar dos filhos é parte dos deveres do poder familiar.

E, considerados os preceitos constitucionais, devem os genitores assegurar aos filhos, sejam crianças - até 12 (doze) anos de idade -, adolescentes - entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos de idade - ou jovens - os que estão entre 15 (quinze) e 29 (vinte e nove) anos de idade, desde que as previsões contidas na Lei n. 12.852/13 não sejam conflitantes, para aqueles entre 15 (quinze) e 18 (dezoito) anos de idade, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n. 8.069/90 -, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Também devem os genitores dirigir a criação e a educação dos filhos menores, o que importa, sem dúvida, na participação em suas vidas, pois questões corriqueiras, mas extremamente importantes, são postas para que se desenvolvam de maneira saudável, tais como fixação de domicílio, eleição da instituição de ensino a ser frequentada, direcionamento religioso, escolha de profissionais que deles cuidarão, preparo, enfim, para a vida adulta.

Ao tratar do dever de exercício de guarda, Caio Mário da Silva Pereira (2015, p. 508) refere que “Cabe aos pais ter o filho em sua companhia e sob sua guarda” e, citando De Page, refere a distinção por ele feita “entre ‘o direito de guarda stricto sensu ou guarda material e o que ele denomina ‘direito de guarda jurídica’, para aí compreender tudo que concerne ‘a direção intelectual e moral do menor” 16

Não se pode, entretanto, confundir esses deveres de conviver com os filhos, tê-los em sua companhia e fiscalizar sua criação e educação, com uma tentativa

de compelir os genitores a amá-los, pois isso o Direito não conseguirá.

E tal participação e convivência, considerada a realidade vigente, não implica, necessariamente, em contato diário e/ou presencial, tal como ocorre, por vezes, com genitores que não vivem juntos - cumprindo registrar que o ideal seria que se ajustassem às necessidades dos filhos, tentando, de todas as formas, a eles proporcionar o maior contato com todos -; com genitores que residem em municípios, estados e, por vezes, países diferentes e assim por diante. Contudo, o mais importante é que todos os genitores participem da vida dos filhos, visando a zelar pela educação e respectiva criação.

Na atualidade, o dever em análise enfeixa uma série de responsabilidades aos que decidem ter filhos - o que, consideradas as mudanças ocorridas nessa área, pode se dar por reprodução assistida. A pergunta que se faz é se todos os que se relacionam, desejam tê-los, mas a resposta, infelizmente, não se adequa à liberdade sexual perseguida, pois, a não ser que haja, realmente, a utilização de métodos contraceptivos, pode advir uma gravidez, a exigir que o dever de cuidado seja cumprido.

Da conclusão acerca da necessidade da participação dos genitores na vida dos filhos, para dirigir a respectiva criação e educação, decorre o dever de cuidado, corolário do princípio da convivência familiar e da afetividade, acarretando o inadimplemento, a depender da análise do caso colocado em pauta, na fixação de indenização.

2.2. O dever de cuidado

Como reconhecido pelo STJ:

“Essa percepção do cuidado como tendo valor jurídico já foi, inclusive, incorporada em nosso ordenamento jurídico, não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88.

Vê-se hoje nas normas constitucionais a máxima amplitude possível e, em paralelo, a cristalização do entendimento, no âmbito científico, do que já era empiricamente percebido: o cuidado é fundamental para a formação do menor e do adolescente; ganha o debate contornos mais técnicos, pois não se discute mais a mensuração do intangível - o amor -, mas, sim, a verificação do cumprimento, descumprimento, ou parcial cumprimento, de uma obrigação legal: cuidar.

Negar ao cuidado o status de obrigação legal importa na vulneração da membrana constitucional de proteção ao menor e adolescente, cristalizada, na parte final do dispositivo citado: ‘(...) além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência(...)’” (REsp 1.159.242-SP, Relatora Ministra Nancy Andrighi).

As crianças e adolescentes, pouco importando a situação fática em que se encontrem seus genitores - casados, companheiros, namorados, amantes, conhecidos, amigos, inimigos e assim por diante -, têm de receber cuidado em todos os aspectos de suas vidas, de maneira a se preparar, de maneira equilibrada e segura, para a vida futura. E cuidar significa tomar conta de, vigiar, tratar de, responsabilizar-se, preocupar-se, orientar.

Eis que o afastamento dos genitores não pode ter reflexos nos filhos.

O dever de cuidado encontra amparo no ordenamento jurídico, ainda que se remissão expressa a ele, tal como se verifica no art. 227 da Constituição Federal.

Os filhos rogam por cuidados, seja enquanto nascituro, seja bebê - quando sequer podem falar o que precisam, o que envolve se alimentar, limpar-se, cuidar-se -, sejam os adolescentes, ainda que próximos à maioridade, que também precisam de seus genitores, no que tange à instrução, saúde, orientação para as armadilhas da vida e assim por diante.

Como ensina Tânia da Silva Pereira (2008, p. 309):

16 DE PAGE, Traité Élêmentaire, 787 e 788, apud PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Atual. Tânia da Silva Pereira, 23ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 508.

O cuidado como ‘expressão humanizadora, preconizado por Vera Regina Waldow,

também nos remete a uma efetiva reflexão, sobretudo quando estamos diante de crianças e jovens que, de alguma forma, perderam a referência da família e de origem(...) A autora afirma: ‘o ser humano precisa cuidar de outro ser humano para realizar a sua humanidade, para crescer, no sentido ético do termo. Da mesma maneira, o ser humano precisa ser cuidado para atingir sua plenitude, para que possa superar obstáculos e dificuldades da vida humana’.17

A leitura dos incisos I e II, do art. 1.634 do CC, permite a conclusão de o cuidado ser um dever jurídico, a ser adimplido pelos genitores, de forma a garantir o pleno desenvolvimento dos filhos.

2.3. O princípio da convivência familiar

Em se tratando de relação de parentalidade, a convivência dela faz parte, ainda que, consideradas as situações em que genitores e filhos não residam no mesmo local, isso não se opere, diuturna e presencialmente.

A convivência de genitores e filhos permite que os últimos tenham paradigmas para o respectivo crescimento. Outrossim, a convivência é que permite que os genitores, cumprindo com os deveres advindos do poder familiar, zelem pela criação e educação dos filhos, pouco importando a origem deles.

Saliente-se que se cuida de princípio constitucional.

2.4. O princípio da afetividade

Primeiramente, é necessário ressaltar que, quando se fala de afeto, não se está falando, tal como alguns pensam, apenas de amor que o é em sua manifestação positiva, correspondendo o ódio à manifestação negativa.

E que afetividade é a contida no princípio em questão? Flávio Tartuce (2017, p. 27) responde:

17 PEREIRA, Tânia da Silva. Abrigo e alternativas de acolhimento familiar, In PEREIRA, Tânia da Silva e OLIVEIRA, Guilherme de (Coord.). O cuidado como valor jurídico Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 309.

O princípio da afetividade especializa, no âmbito familiar, os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da solidariedade (art. 3º, I), e entrelaça-se com os princípios da convivência familiar e da igualdade entre(...) filhos, que ressaltam a natureza cultural e não exclusivamente biológica da família.(...)

O princípio da afetividade está implícito na Constituição. Encontram-se na Constituição fundamentos essenciais do princípio da afetividade, constitutivos dessa aguda evolução social da família brasileira, além dos já referidos: a) todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227, § 6º); b) adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º); c) comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade da família constitucionalmente protegida (art. 226, § 4º); d) a convivência familiar (e não a origem biológica) é prioridade absoluta assegurada à criança e ao adolescente (art. 227).

A afetividade, como princípio jurídico, não se confunde com o afeto, como fato psicológico ou anímico, porquanto pode ser presumida quando este faltar na realidade das relações; assim, a afetividade é dever imposto aos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja desamor ou desafeição entre eles. O princípio jurídico da afetividade entre pais e filhos apenas deixa de incidir com o falecimento de um dos sujeitos ou se houver perda do poder familiar.18

De toda sorte, deve ser esclarecido que o afeto equivale à interação entre as pessoas, e não necessariamente ao amor, que é apenas uma de suas facetas.19

Portanto, se a afetividade corresponde à interação entre as pessoas, independentemente do que sintam, umas pelas outras, a circunstância de um dos genitores - ou, ainda, todos - se omitir dos deveres de zelar pela criação e educação dos filhos e do exercício da guarda, importa em abandono afetivo

3. O ABANDONO AFETIVO

3.1. A ocorrência

Primeiramente, insta consignar que, apenas, o abandono afetivo está em análise, deixando-se de lado, portanto, o abandono material dos filhos.

Consiste o abandono afetivo na omissão voluntária de um dos - ou de ambos os - genitores em relação ao dever de cuidado com os filhos, com isso violando os deveres que, constantes da Constituição Federal (art. 227) e do Código Civil, consistem em assegurar-lhes, com absoluta prioridade, o direito à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, dirigindo a respectiva criação e educação - ou, ao menos, por elas zelar -, exercendo a guarda, ou, se o caso, ao menos o regime de convivência ajustado ou fixado.

Cumpre questionar se, diante de alegações de abandono afetivo, tal, realmente, se opera, uma vez que, em se tratando de questão a ser resolvida no campo da responsabilidade civil, deverão estar presentes os requisitos da conduta humana - no caso, negativa, pois se está diante de omissão, o no facere -, do dano e do nexo de causalidade.

E isso em razão de a omissão alegada não poder ser rechaçada pelo ofensor, que padece de elementos de prova para tanto, a não ser que se esteja diante de litigância de má-fé do filho.

O dano talvez seja, a princípio, de mais difícil comprovação, sendo necessária a realização de perícias, ao menos a psicológica, para que se apure se, realmente, diante da omissão voluntária de um dos genitores, o filho sofreu prejuízo.

Quanto ao nexo de causalidade, esse é o ponto de interrogação que se apresenta, uma vez que, em certas ocasiões, a omissão de um dos genitores no dever de cuidado dos filhos é consequência do comportamento do outro genitor ou das pessoas que deles cuidam.

Cumpre, nesse momento, questionar se, em se tratando de situação tal como a antes referida, o dano, ainda que verificado, será indenizável e em que proporção, sobretudo se se considerar que o havido como ofensor fez de tudo para poder conviver com o filho.

Cediço que o juiz deve julgar a lide nos limites em que foi proposta, sendo certo que as ações que visam à fixação de indenização por abandono afetivo são promovidas, ao que se tem notícia, em face do genitor a quem se atribui a omissão.

18 LÔBO, Paulo. Direito de Família e os princípios constitucionais.

In PEREIRA, Rodrigo da Cunha (org.). Tratado de direito das famílias 2ª ed. Belo Horizonte: IBDFAM, 2016, p. 120.

19 TARTUCE, Flávio, Direito civil v. 5 direito de família, 12ª ed. rev., atual. e ampl.. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 27.

Talvez o elemento mais simples para ser comprovado, em casos em que se alega abandono afetivo, seja a omissão de um dos genitores em relação ao dever de cuidado com os filhos, de modo a zelar para criação e educação, bem como exercer a guarda ou, ainda, o direito-dever de convivência.

Se comprovado que a omissão no dever de cuidado ao filho não se deu por responsabilidade do genitor acusado, mostra-se impossível alegar que há nexo de causalidade entre a conduta negativa e o dano causado, sob pena de, em se decidindo o contrário, beneficiar-se, por via transversa, o genitor que deu causa ao rompimento à relação parental, razão pela qual a cada processo que trata de abandono afetivo, os fatos terem de ser analisados com extremo cuidado.

4. CONCUSÃO

Incumbirá ao Poder Judiciário analisar cada caso posto em discussão, com a produção de provas, de forma a se perquirir o que, realmente, ocorreu, visando a evitar, ao máximo, que injustiças sejam perpetradas.

A grande questão que se impõe ao julgador é a de ter a delicadeza que essas questões fazem por merecer, sobretudo porque, em se tratando de pedido investido de seriedade, não se objetivará, como já se aventou, a “dar valor ao afeto”, cumprindo salientar, novamente, que “afeto” não pode ser utilizado como sinônimo de amor, sob pena de sérios equívocos serem cometidos. Aliás, em casos de abandono afetivo, a indenização deve servir, precipuamente - considerada a impossibilidade de ser reparar o dano sofrido pelo filho -, evitar que o genitor omisso proceda agindo da mesma forma. Cuida-se de sanção com caráter educativo.

Imaginar que a perda do poder familiar é a única consequência advinda do abandono afetivo é fazer pouco do referido caráter educativo da indenização, uma vez que, a depender do caso concreto, tratar-se-á de um beneplácito a favor do ofensor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil Rio de Janeiro: Forense, 1987.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, vol. 4: responsabilidade civil, 5ª ed.. São Paulo: Saraiva, 2010.

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SIMÃO, José Fernando. Afetividade e Responsabilidade. In https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/ article/view/3148, acesso em 15.04.2024, 15h24

PREVIDÊNCIA PRIVADA E A INCOMUNICABILIDADE DOS VALORES DEPOSITADOS PARA FINS DE PARTILHA DE BENS NO DIVÓRCIO

Palavras-chave

Previdência privada. Regime de Bens. Comunhão.

Débora Brandão

Pós-doutora em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca, Espanha. Doutora e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Professora Titular da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (FDSBC). Coordenadora e Professora do curso de especialização em Direito Civil na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (FDSBC). Professora nos cursos de especialização na Escola Paulista de Direito (EPD). Supervisora acadêmica e professora no curso de especialização em Direito de Família e Sucessões da Escola Brasileira de Direito (EBRADI). Advogada e mediadora. E-mail: deborabrandao@uol.com.br.

Resumo

O presente artigo visa identificar a natureza jurídica do contrato de previdência privada e de seus planos bem como analisar a comunicabilidade dos depósitos para fins de partilha de bens no divórcio. Para tanto, foi necessário estudar a origem da previdência social no Brasil e natureza jurídica, aprofundar na classificação do contrato previdenciário fazendo a diferenciação com o contrato de seguro, compreender o tratamento jurídico dado às entidades de previdência privada abertas e fechadas, fazendo mais uma diferenciação desta vez com contratos de investimento financeiro, e seus planos. E então verificar a sua incidência na legislação civil relativa aos regimes de comunhão de bens. Nesse estudo foi utilizada a pesquisa exploratória pelo método bibliográfico e com análise qualitativa.

A primeira menção à previdência social em Constituição Federal brasileira foi na de 1946, no artigo 157, inciso XVI, disposta em um contexto de direitos trabalhistas. A partir de então, foi disciplinada pela Lei 3.807/60 e se manteve presente nas Constituições de 1967 e de 1988, que a elevaram ao patamar de direito fundamental social.1 Porém, foi com o Decreto-Lei n. 4.682/1923, conhecido como Lei Elói Chaves, que a Previdência Social foi introduzida no Brasil.

No entanto, em 1835, foi criado o Montepio Geral de Economia dos Servidores do Estado de São Paulo, o Mongeral.

O sistema previdenciário brasileiro é uma das dimensões de um sistema maior: o Sistema Nacional de Seguridade Social. Está previsto no artigo 201 da Constituição Federal e é composto pelo Regime Geral de Previdência Social, pelo Regime próprio dos servidores públicos e pela previdência complementar, conhecido como previdência privada.

Houve a necessidade da criação de planos de previdência privada, com o objetivo de complementar a renda dos contribuintes, possibilitando maior segurança financeira em virtude da deficiência do referido regime geral.

A previdência privada está disciplinada no artigo 202, dentro do Título VIII relativo à Ordem Social. O fundo ali previsto é formado para o custeio dos benefícios e tem finalidade protetivo-previdenciária. É imperioso consignar que no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, especificamente no artigo 6º da Constituição Federal, a previdência social é consagrada como um direito social.

1 A disciplina da previdência Social, na Constituição Federal, está no Título II, Capítulo II, art. 6º, regulamentado mais especificamente no Título VII “Da ordem social”, Capítulo II “Da seguridade social”, Seção II “Da previdência social”, arts. 201 e 202.

A previdência social é compulsória a todos os trabalhadores; a obrigação nasce da lei e é regida por normas de direito público. A relação jurídica dá-se entre o órgão público, a empresa e os trabalhadores inscritos O sistema institucionalizado no Brasil é constituído por contribuições obrigatórias de trabalhadores ativos para garantir suporte aos inativos (arts. 201 e 202, CF).

Já a previdência privada é facultativa e voluntária, uma vez que qualquer pessoa pode identificar a necessidade de complementar os valores que serão pagos pela previdência social. Esta relação é contratual e privada. A Emenda Constitucional n.º 20 de 1998 regulamentou definitivamente as modalidades de previdência privada juntamente com as Leis Complementares 108 e 109 de 2001 implementando um sistema complementar, autônomo e facultativo (art. 1º, LC 109/2001).

Priscilla Milena Simonato de Migueli explica que tanto o sistema de previdência pública quanto o sistema de previdência privada possuem a finalidade de proteger o beneficiário em virtude da ocorrência de um risco social (MIGUELI, 2021, p. 2).

Há muito ruído a respeito da natureza jurídica da previdência social e da previdência privada.

De acordo com Manuel Sebastião Soares Póvoas,

A verdade, porém, é que a previdência social nada tem a ver com a instituição do seguro, sendo exclusivamente um serviço público prestado a certa categoria de pessoas que se encontram em certas condições, pessoas e condições especificadas na lei. (PÓVOAS, 2007, p. 222)

Antes de avançar no estudo da previdência privada, é importante estabelecer a premissa de que previdência social não pode ser considerada como um seguro.

2. O CONTRATO DE SEGURO E O CONTRATO DE PREVIDÊNCIA

COMPLEMENTAR: SIMILITUDES E UM ELEMENTO DIFERENCIADOR CRUCIAL

Pontes de Miranda conceituou o contrato de seguro como:

o contrato pelo qual o segurador se vincula, mediante pagamento de prêmio, a ressarcir ao segurado, dentro do limite que se convencionou, os danos produzidos por sinistro, ou a prestar capital ou renda quando ocorra determinado fato, concernente à vida humana, ou ao patrimônio. (PONTES DE MIRANDA, 1964, pp. 272/273)

O contrato de seguro é bilateral ou plurilateral, sinalagmático, consensual e aleatório. Bilateral quando celebrado entre segurado e segurador. Se houver a presença de terceiro beneficiário, pode-se falar em contrato plurilateral. Sinalagmático porque cria obrigações recíprocas entre as partes, como o pagamento do prêmio por parte do segurado e o pagamento do sinistro, por parte do segurador. Por sua vez, é consensual porque se aperfeiçoa com a manifestação de vontade, consubstanciada no envio da apólice, pelo segurador, ao segurado. A oferta e a aceitação devem se dar por escrito.

Porém o elemento essencial do contrato de seguro é a álea, ou seja, o risco. O contrato de seguro visa proteger o segurado de acontecimento futuro e incerto.

No contrato de seguro de vida, por exemplo, a morte é inevitável, apenas não se sabe o momento em que ela ocorrerá. Assim, a álea, o risco, está prevista no tempo, no momento, no “quando”.

O contrato de seguro e o contrato de previdência privada possuem características comuns, a saber: são negócios jurídicos bilaterais, sinalagmáticos, consensuais, e de adesão, mas a presença da álea é o grande diferenciador entre eles porque somente presente no contrato de seguro.

O mesmo não se pode dizer do contrato previdenciário, nesta modalidade de negócio jurídico não há álea. O contrato previdenciário tem como finalidade a concessão de benefício pecuniário, pago de uma única vez ou de forma continuada, quando do preenchimento dos requisitos de elegibilidade, como a idade, o valor da contribuição, tudo definido no tipo do plano aderido, dentre outros. (grifou-se) (GARCIA, 2005, p. 253)

Portanto, não há álea no contrato de seguro de vida. Uma das conclusões apontadas por Carla Andrea de Almeida Ourique Garcia em sua dissertação de Mestrado deve ser consignada:

15. O contrato de previdência complementar é o negócio jurídico bilateral, por meio do qual uma pessoa física, chamada de participante, mediante o pagamento de contribuições periódicas a uma entidade de previdência privada complementar, visa ao recebimento de benefícios de caráter previdenciário. (grifou-se) (GARCIA, 2005, p. 259)

Depreende-se então que os contratos de previdência privada possuem característica de longa duração e com alto grau de mutabilidade e complexibilidade, caracterizado pela doutrina e jurisprudência como contratos relacionais2

Outro aspecto importante é a observância da função social do contrato de previdência privada, que é a mesma durante o período de acumulação do fundo e o de concessão do benefício, a saber proteger os participantes dos riscos sociais. 3

A previdência privada é previdência complementar e faz parte do sistema previdenciário nacional. Esta é sua natureza jurídica e, aqui, antecipa-se a conclusão de que não se trata de investimento.

2 STJ, REsp. 1.201.529/RS. Segunda Seção. Julgto. em 03/2015: “modalidade de contratos relacionais, de trato sucessivo e de longa duração, em que podem ocorrer alterações ao longo da relação negocial, mediante negócios jurídicos supervenientes [...]”.

3 Sobre a função social do contrato de previdência privada, vide CASSA, 2009, pp. 177/180.

3.

A primeira lei a tratar da previdência privada foi a Lei n. 6.435/1977 e criou a previdência privada fechada e a aberta.

Consoante o artigo 31 da Lei Complementar n. 109/200, as entidades fechadas de previdência complementar são acessíveis exclusivamente aos empregados de uma empresa ou grupo de empresas, associados ou membros de pessoas jurídicas de caráter profissional e aos servidores públicos.4 Há exemplo notório como a Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil (Previ).

Wagner Balera estabelece a diferença entre essas modalidades de previdência privada:

Em tal sistema, as entidades de previdência privada fechada poderão se constituir como sociedades ou fundações, sem finalidade lucrativa. É a primeira das modalidades de atuação. De outra parte, as entidades de previdência privada aberta assumirão a forma de sociedades anônimas, se tiverem por objetivo o lucro, enquanto que serão sociedades civis ou fundações, quando não visarem o lucro. É a segunda modalidade de atuação, na previdência complementar.

Tanto umas como outras dependem de autorização governamental para o seu funcionamento. Cada uma delas, atende a objetivos distintos. As fechadas têm por escopo a complementação dos benefícios previdenciários. Poderão atuar, ainda, no âmbito assistencial. Já as abertas objetivam a instituição de planos de concessão de pecúlios ou de rendas. Enquanto as primeiras atuam em um universo restrito a uma só empresa ou a um grupo de empre -

4 “Ainda que o patrocinador do plano de previdência seja estatal, a entidade fechada de previdência complementar continuará rigorosamente privada, pois é dotada de personalidade jurídica, autonomia patrimonial e funcional, capacidade postulatória e direção própria.” (REIS, 2010, p. 54).

sas, as abertas destinam-se ao público em geral. (BALERA, 1989, pp. 108/109)

Apesar de Wagner Balera afirmar que cada uma das modalidades possui objetivos distintos, não parece haver diferença em relação a esse elemento porque o objetivo é a complementação da renda futura, que deve ser paga pela previdência social. A diferença reside no fato de que, enquanto na previdência privada fechada a empresa empregadora cria uma pessoa jurídica voltada a administrar os fundos para beneficiar seus funcionários, na aberta, qualquer pessoa pode aderir, contratualmente, ao plano previdenciário comercializado por empresas.

No entanto, a lei permite, neste caso, que “sociedades seguradoras autorizadas a operar exclusivamente no ramo vida poderão ser autorizadas a operar os planos de benefícios” das entidades abertas (parágrafo único, art. 36, LC 109/2001). Elas são fiscalizadas pela Superintendência de Seguros Privados, a SUSEP, e a Lei n. 6.435/1977 estabelece que subsidiariamente aplica-se a legislação à qual estão sujeitas as entidades de seguro privado (art. 10).

As entidades fechadas de previdência complementar são conhecidas como fundos de pensão (“pension funds”), cuja melhor tradução seria fundos de aposentadoria.

José de Oliveira Ascensão explica que “a determinação da natureza jurídica passa então a ser a identificação de uma grande categoria jurídica em que se enquadre o instituto em análise” (Enciclopédia, 1977, p. 956). E todo problema que envolve o conteúdo do presente artigo será resolvido com a análise da natureza jurídica dos institutos envolvidos.

A própria Lei Complementar n. 109/2001, no artigo 32, dispõe sobre a natureza jurídica das entidades fechadas de previdência complementar de maneira que não permite discussão:

Art. 32. As entidades fechadas têm como objeto a administração e execução de planos de benefícios de natureza previdenciária.

Parágrafo único. É vedada às entidades fechadas a prestação de quaisquer serviços que não estejam no âmbito de seu objeto, observado o disposto no art. 76.

Para reforçar a natureza previdenciária dos fundos de pensão, o artigo 31, § 1º, da Lei Complementar n. 109/2001 dispõe que elas se organizarão sob a forma de fundação ou sociedade civil sem fins lucrativos posto que todos os valores arrecadados devem ser empregados na composição das rendas a serem pagas aos beneficiários ou participantes. São os benefícios previdenciários. E, se porventura as empresas forem superavitárias, tais valores integrarão fundo de reserva para eventual emergência não prevista nos cálculos atuariais. São fiscalizadas pelo Ministério da Previdência e Assistência Social.

Da mesma forma, as entidades abertas de previdência complementar também possuem natureza previdenciária.

Nas entidades abertas sem fins lucrativos, conhecidas no mercado por “montepios”, verifica-se a mesma situação já apontada em relação às entidades fechadas, no que respeita às relações de direito entre os sujeitos. O sócio e a sociedade têm um relacionamento jurídico contratual societário e um relacionamento previdenciário. De resto, a sociedade civil, como entidade, atua no mercado previdenciário, procurando não sócios, mas participantes.

O participante inscrito num montepio ignora a sua condição de sócio e pode nunca ser solicitado para manifestar a sua vontade de sócio; algumas vezes, os estatutos não lhe dão o direito de participar nas assembleias gerais, isto significa que a relação jurídica entre a entidade e o participante é meramente previdenciária, não sendo

de aceitar qualquer opinião no sentido de dar aos participantes responsabilidade de sócios quando não pertençam ao grupo organizador ou ao grupo dos fundadores.

Nas entidades abertas com fins lucrativos, a relação jurídica entre a entidade e o participante é meramente previdenciária. (PÓVOAS, 2007, pp. 240/241)

Além do lucro, por serem operadas por qualquer pessoa jurídica na modalidade sociedade anônima, tais empresas submetem-se ao Código de Defesa do Consumidor porque o participante (consumidor) adquire, por meio delas, um serviço de natureza previdenciária.

Alguns acórdãos do STJ consignam que há clara diferença do tratamento dispensado às entidades abertas e fechadas. 5

De maneira diversa, Roberta Drehmer de Miranda ressalta que

a denominação “fechada” e “aberta” deve-se à natureza do ente operador e da contratação; contudo, não se diferenciam em razão da sua finalidade pois ambos são entes administradores e contratantes de regimes de previdência complementar consoante regula a LC 109/2001. (MIRANDA, 2020)

As diferenças apontadas dizem respeito à constituição, fiscalização, relação com os órgãos estatais etc.

A relação entre participante e entidade de previdência complementar aberta ou fechada é previdenciária.

Também não é porque houve decisão interna de órgão regulador ou mesmo do Poder Executivo determinando que certo plano de previdência privada será administrado pela Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), que a natureza jurídica ou sua categoria jurídica é alterada.

5 STJ. Resp. nº 1.593.026-SP. 4ª Turma, Rel. Min. Maria Isabel Galotti, julgto. em 17/12/2021.

Portanto, resta comprovada a natureza previdenciária tanto das entidades abertas quanto fechadas de previdência complementar, posto que a finalidade delas é exatamente a mesma: conferir renda complementar à Previdência Social, no final da vida do participante.

4. OS PLANOS DE BENEFÍCIOS NAS

ENTIDADES ABERTAS E FECHADAS DE PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR

Esclarece Patrícia Bressan Linhares Gaudenzi que a previdência privada está estruturada em planos de benefícios de caráter previdenciário, chamados planos de previdência complementar ou planos de previdência privada (GAUDENZI, 2008, p. 77).

É preciso analisar quais os planos de benefícios existentes, à luz do que dispõe a legislação.

O plano de benefícios reflete a própria contratação efetivada entre o participante e a entidade de previdência privada, pois deverá ser operado exatamente nos termos do acordo firmado quando da adesão ao plano. Cada plano possui o seu respectivo regulamento, que determina as normas segundo as quais será operacionalizado. (GAUDENZI, 2008, p. 77)

O artigo 6º da Lei Complementar n. 109 prevê que as entidades poderão instituir e operar planos de benefícios para os quais tenham autorização específica dos órgãos reguladores.

4.1. Os planos de benefícios nas entidades fechadas de previdência complementar

O artigo 7º, parágrafo único, da Lei Complementar n. 109 prevê as seguintes modalidades de de planos de benefícios: benefício definido, contribuição definida e contribuição variada, além de outros benefícios que venham refletir a evolução técnica e possibilitem flexibilidade ao regime de previdência complementar.

O plano conhecido como benefício definido permite ao participante saber, no momento da contratação, qual valor receberá a título de aposentadoria. O fator

variável é o valor da contribuição que deverá ser desembolsado pelo participante.

Manoel Sebastião Soares Póvoas, ao conceituar o plano de contribuição definida, afirma que:

é assim, o que objetiva proporcionar a cada participante, por acumulação de contribuições recolhidas ao plano, devidamente capitalizadas, um montante de dinheiro, que no momento da entrada em benefício de aposentadoria, se transformará no benefício, calculado segundo as regras estabelecidas no instrumento de constituição do plano. (PÓVOAS, 1990, p. 92)

As contas dos participantes são individualizadas e renderão de acordo com a performance da gestão dos recursos.

Por derradeiro, o plano de contribuição variável adota características dos dois planos acima citados, ganhando espaço cada vez maior no Brasil.

Os planos mistos podem conter elementos dos planos de benefício definido e de contribuição definida tanto na base contributiva quanto na etapa de recebimento dos benefícios. Assim, pode-se ter um plano de contribuição definida na fase contributiva, em que o saldo acumulado na conta individual do participante seja convertido num benefício vitalício, na data de sua aposentadoria, e o risco demográfico é assumido pelo empregador. (PÓVOAS, 1990, p. 89)

4.2 Os planos de benefícios nas entidades abertas de previdência complementar

Os planos de benefícios instituídos por entidades abertas de previdência complementar estão dispostos no artigo 26 da Lei Complementar n. 109/2001 e podem ser: I-individuais, quando acessíveis a quaisquer pessoas físicas; ou, II-coletivos, quando tenham por objetivo garantir benefícios previdenciários a pessoas físicas vinculadas, direta ou indiretamente, a uma pessoa jurídica contratante. Exemplo deste é a possibilidade de um escritório de advocacia busc ar

um plano de previdência para todos os seus colaboradores em uma entidade aberta.

São planos abertos porque qualquer pessoa natural pode contratá-los, conforme suas necessidades.

Há diferentes modalidades de planos de contribuição existentes para as entidades abertas de previdência complementar que, na expressão de Patrícia Bressan Linhares Gaudenzi, podem ser chamados de “produtos previdenciários” porque são modelos criados para alguns perfis de participantes. (GAUDENZI, 2008, p. 81)

Curiosamente, parece a esta autora, que a população apenas conhece o Plano Gerador de Benefício Livre (PGBL) e Vida Gerador de Benefício Livre (VGBL), que serão explicitados a seguir, provavelmente pelo fato de que outros planos estão com comercialização suspensa.6

6 Resolução do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) n. 349/2017, art. 7º: “Em função da cobertura por sobrevivência, os planos serão dos seguintes tipos: I – Plano Gerador de Benefício Livre (PGBL), quando, durante o período de diferimento, a remuneração da Provisão Matemática de Benefícios a Conceder for baseada na rentabilidade da(s) carteira(s) de investimentos de FIE(s), no(s) qual(is) esteja(m) aplicada(s) a totalidade dos respectivos recursos, sem garantia de remuneração mínima e de atualização de valores e sempre estruturado na modalidade de contribuição variável; II – Plano Gerador de Benefício Livre Programado (PGBL Programado), quando, durante o período de diferimento, a remuneração da Provisão Matemática de Benefícios a Conceder for baseada na rentabilidade da(s) carteira(s) de investimentos de FIE(s), no(s) qual(is) esteja(m) aplicada(s) a totalidade dos respectivos recursos, sem garantia de remuneração mínima e de atualização de valores e sempre estruturado na modalidade de contribuição variável, e que ofereça a possibilidade de contratação, durante o período de diferimento, de pagamentos financeiros programados, na forma definida no Regulamento e na Nota Técnica Atuarial; III – Plano com Remuneração Garantida e Performance (PRGP), quando garantir aos participantes, durante o período de diferimento, remuneração por meio da contratação de índice de atualização de valores e de taxa de juros e a reversão, parcial ou total, de resultados financeiros; IV – Plano com Remuneração Garantida e Performance sem Atualização (PRSA), quando garantir aos participantes, durante o período de diferimento, remuneração por meio da contratação de taxa de juros e a reversão, parcial ou total, de resultados financeiros e sempre estruturado na modalidade de contribuição variável; V – Plano com Atualização Garantida e Performance (PAGP), quando garantir aos participantes, durante o período de diferimento, por meio da contratação de índice de preços, apenas a atualização de valores e a reversão, parcial ou total,

Ambos são planos em função da cobertura por sobrevivência. Enquanto o PGBL é regulamentado pela Resolução CNSP n. 349/2017, o VGBL é regulamentado pela Circular SUSEP (Superintendência de Seguros Privados) n. 564/2017 7

de resultados financeiros; VI – Plano de Renda Imediata (PRI), quando, mediante contribuição única, garantir o pagamento do benefício por sobrevivência, sob a forma de renda imediata; e VII – Plano com Desempenho Referenciado (PDR), quando apresentar, durante o período de diferimento, garantia mínima de desempenho, segundo critérios definidos no plano, e a reversão, parcial ou total, de resultados financeiros, e sempre estruturado na modalidade de contribuição variável”.

7 Circular SUSEP n. 564/2017, art. 2º: “Os planos de seguro de pessoas com cobertura por sobrevivência serão dos seguintes tipos: - VGBL - Vida Gerador de Benefício Livre, para designar planos que, durante o período de diferimento, tenham a remuneração da provisão matemática de benefícios a conceder baseada na rentabilidade da(s) carteira(s) de investimentos de FIE(s), no(s) qual(is) esteja(m) aplicada(s) a totalidade dos respectivos recursos, sem garantia de remuneração mínima e de atualização de valores e sempre estruturados na modalidade de contribuição variável; II - VGBL Programado - Vida Gerador de Benefício Livre Programado, para designar planos que, durante o período de diferimento, tenham a remuneração da provisão matemática de benefícios a conceder baseada na rentabilidade da(s) carteira(s) de investimentos de FIE(s), no(s) qual (is) esteja(m) aplicada(s) a totalidade dos respectivos recursos, sem garantia de remuneração mínima e de atualização de valores e sempre estruturados na modalidade de contribuição variável, e que ofereçam a possibilidade de contratação, durante o período de diferimento, de pagamentos financeiros programados, na forma definida no Regulamento e na Nota Técnica Atuarial; IIIVRGP - Vida com Remuneração Garantida e Performance, para designar planos que garantam aos segurados, durante o período de diferimento, remuneração por meio da contratação de índice de atualização de valores e de taxa de juros e a reversão, parcial ou total, de resultados financeiros; IV - VAGP - Vida com Atualização Garantida e Performance, para designar planos que garantam aos segurados, durante o período de diferimento, por meio da contratação de índice de preços, apenas a atualização de valores e a reversão, parcial ou total, de resultados financeiros; V - VRSA - Vida com Remuneração Garantida e Performance sem Atualização, para designar planos que, sempre estruturados na modalidade de contribuição variável, garantam aos segurados, durante o período de diferimento, remuneração por meio da contratação de taxa de juros e a reversão, parcial ou total, de resultados financeiros; VI - Dotal Puro, para designar planos que, sempre estruturados na modalidade de benefício definido e no regime financeiro de capitalização, garantam aos segurados, durante o período de diferimento, remuneração da provisão matemática de benefícios a conceder por meio da contratação de índice de atualização de valores, taxa de juros e, opcionalmente, tábua biométrica, sem reversão de resultados financeiros, sendo o capital segurado pago ao segurado sobrevivente ao término

Parte da doutrina afirma que os planos que se iniciam com a letra V, consistem em seguros de vida com cobertura por sobrevivência, ou seja, que são pagos em vida ao segurado, além de não serem passíveis de dedução na apuração do imposto de renda devido pelo segurado e, quando o valor for pago pela entidade de previdência privada, o imposto incidir apenas sobre a parcela do rendimento proporcionado durante o período de investimento. (GAUDENZI, 2008, p. 83)

Daí a reflexão que se impõe: como entender que um plano de previdência é um seguro de vida apenas porque houve a criação de um plano com benefícios tributários para fomentar a adesão da população? Em 2001, as pessoas não aderiam aos planos de benefícios porque entendiam que havia prejuízo ao contratar tais planos ou, nas palavras de Patrícia Bressan Linhares Gaudenzi, os participantes, por não auferirem rendimentos tributáveis (decorrentes, basicamente, do trabalho assalariado), não pode -

do período de diferimento; VII - Dotal Misto, para designar planos que, sempre estruturados na modalidade de benefício definido e no regime financeiro de capitalização, garantam aos segurados, durante o período de diferimento, remuneração da provisão matemática de benefícios a conceder por meio da contratação de índice de atualização de valores, taxa de juros e, opcionalmente, tábua biométrica, sem reversão de resultados financeiros, sendo o capital segurado pago em função da sobrevivência do segurado ao período de diferimento ou de sua morte ocorrida durante aquele período; VIII - Dotal Misto com Performance, para designar planos que, sempre estruturados na modalidade de benefício definido e no regime financeiro de capitalização, garantam aos segurados, durante o período de diferimento, remuneração da provisão matemática de benefícios a conceder por meio da contratação de índice de atualização de valores, taxa de juros e, opcionalmente, tábua biométrica, com reversão, parcial ou total, de resultados financeiros, sendo o capital segurado pago em função da sobrevivência do segurado ao período de diferimento ou de sua morte ocorrida durante aquele período; IX - VRI - Vida com Renda Imediata, para designar planos que, mediante prêmio único, garantam o pagamento de capital segurado sob a forma de renda imediata; 2 Continuação da Circular Susep n° 564/2017. X - VDR - Vida com Desempenho Referenciado, para designar planos que durante o período de diferimento apresentem garantia mínima de desempenho, segundo critérios definidos no plano, e a reversão, parcial ou total, de resultados financeiros, e sempre estruturados na modalidade de contribuição variável”.

riamdeduzirascontribuiçõesaportadasemplanosdeprevidência complementar). (GAUDENZI, 2008, p. 83)

As diferenças entre os dois planos são localizadas principalmente na incidência e escolha da forma de tributação do Imposto de Renda, marcando-se a característica de seguro de vida do plano VGBL e suas decorrências em partilhas e ITCMD, e a natureza de investimento do PGBL e sua comunhão em determinados regimes de bens 8

O fundamental é ressaltar que são apenas planos. O contrato é previdenciário.

Efeitos determinados por legislação reguladora não têm o condão de modificar o comando constitucional que é o direito fundamental à complementação da renda previdenciária.

5. REPERCUSSÕES DA

CONTRATAÇÃO DE PREVIDÊNCIA PRIVADA NOS REGIMES DE COMUNHÃO DE BENS

Cabe analisar as repercussões do contrato de previdência privada em relação aos regimes de bens comunitários, que são a comunhão universal e a comunhão parcial de bens.

O regime da comunhão parcial caracteriza-se pela comunhão dos bens adquiridos onerosamente na constância do casamento, chamados de bens aquestos.

O próprio Código Civil apresenta, no artigo 1.659, um rol excepcionando essa comunhão. Para o presente trabalho, o inciso VI é o que deve ser analisado, ao afirmar que “Não se comunicam: VI - as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes”.

O conceito de montepio não é encontrado, com facilidade, na doutrina civilista porque se trata de insti -

8 STJ. REsp 1.961.488/RS (2021/0000436-8). Segunda turma. Julgto. em 16/11/2021.

tuto de direito previdenciário e, todas as vezes que o instituto é de outro ramo do direito, é necessário utilizar-se dos conceitos daquele ramo para a precisão científica que deve imperar na doutrina.

Como foi possível constatar logo nas primeiras páginas deste artigo, montepio é o nome que, antigamente, recebia a previdência privada aberta e o fundo de pensão, a previdência privada fechada.

Portanto, quando o artigo 1.659 do Código Civil afirma que não se comunicam os montepios e outras rendas semelhantes, é possível afirmar que se trata de previdência privada. Aberta, para o montepio, e fechada, para outras rendas semelhantes, se houver qualquer esforço hermenêutico contrário porque é absolutamente aceitável entender a previdência privada como sinônimo de montepio.

Após o esclarecimento jurídico acima, nota-se que o Superior Tribunal de Justiça tem oscilado o entendimento sobre a comunicabilidade ou incomunicabilidade dos recursos depositados em previdência privada.

Não é porque os órgãos reguladores do país conferiram algumas especificidades aos planos de previdência complementar, que os aproximam dos investimentos, que a natureza jurídica constitucional deles foi alterada. Continuam sendo previdências privadas, montepios, fundos de pensão e, portanto, não deveriam se comunicar.

Parece que das aplicações e investimentos existentes por parte dos fundos e exigidos para que o cálculo atuarial fosse superavitário e houvesse condições de pagamentos dos benefícios contratados, houve deslocamento do entendimento para afirmar que a previdência privada na modalidade VGBL é um investimento.

Na 4ª Turma do STJ, o Recurso Especial n. 1.593.026-SP 9 foi provido pelos Min. Maria Isabel Gallotti, Min. Raul Araújo e Min. Marco Buzzi, no sentido de entender que os valores depositados em planos de benefícios administrados por entidades abertas de previdência privada, durante a vigência da união estável, equiparam-se a aplicações financeiras e devem ser objeto de partilha por integrarem o patrimônio comum.

A premissa utilizada pelo voto que abriu divergência é a de que a previdência privada é uma reserva para a família, assim como imóveis, ações ou aplicações financeiras. Com o devido respeito, a previdência privada não pode ser equiparada a bens imóveis ou aplicações financeiras porque os valores que integram a previdência privada possuem finalidade específica constitucionalmente protegida. As categorias jurídicas são diferentes.

O acórdão ainda afirma que, uma vez pagas as despesas concernentes à economia doméstica, todos os valores integram patrimônio comum, o que é outro equívoco, porque da mesma forma que os instrumentos de profissão não se comunicam, os montepios e outras rendas semelhantes previstas no inciso VI também não (art. 1.569, V do Código Civil)10

A alegação de que a matéria deve receber o mesmo tratamento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) também não deve prosperar.

9 A 4ª Turma do STJ julgou este recurso especial em 23 de novembro de 2021.

10 No mesmo sentido, REsp. n. 1.695.687-SP, da lavra da Min. Nancy Andrighi, tece considerações semelhantes afirmando que a regra é a comunhão de bens e que as exceções devem ser interpretadas restritivamente porque as reservas, os valores depositados nos fundos são oriundos do patrimônio da família, não sendo a constituição de propriedade formalmente exclusiva sobre a previdência privada aberta em formação, óbice à partilha. Ocorre que esta hipótese não está sujeita à regra prevista no artigo 1.658 do Código Civil, mas à exceção disposta no artigo 1.659, VI do mesmo diploma.

O FGTS possui natureza jurídica de salário diferido uma vez que deve compensar o tempo de serviço do empregado na empresa. Nega-se o caráter indenizatório, pois esta visa apenas o ressarcimento pelo ‘dano’ causado pelo empregador ao empregado pela perda do emprego deste (BRANDÃO, 2017). É um valor recolhido em prol do trabalhador para que, no momento em que for demitido, tenha como manter seu padrão de vida familiar até que seja recolocado no mercado de trabalho. Por isso, contrariando o voto em comento, o FGTS não pode ser invocado para equiparar o tratamento conferido a ele em matéria de previdência privada.

Apenas para registrar, nas previdências privadas fechadas, os valores depositados jamais deveriam ser considerados proventos do trabalho e, em caso de demissão, deveria haver a portabilidade para outro fundo, como acontece com o FGTS. A partilha, consoante esta autora, não é hipótese prevista na lei civil (art. 1.659, inciso VI do Código Civil).

Um entendimento importante ao qual a autora se filia é o de que a vinculação de um dos cônjuges ao regime de previdência complementar constitui proteção à família, visto que, em regra, os regulamentos dos planos de benefícios preveem algum benefício previdenciário ao viúvo/viúva e que o art. 226 da CF estabelece que a família é a base da sociedade e tem especial proteção do Estado.11

Mas a afirmação acima deve ser contextualizada porque os recursos alocados em Previdência são verbas pessoais, como vem sendo defendido no decorrer deste artigo, bem como protegida da penhora consoante o disposto no artigo 833, IV, do Código de Processo Civil. A legislação protege a previdência

porque se trata de direito fundamental, como já dito acima.

A proteção é da e para a família de modo que todos devem, que podem, devem contratar para que haja cobertura em favor de todos. As pessoas precisam ser alertadas para o fato de que a previdência privada é particular, assim como o direito à aposentadoria o é e por esta razão que historicamente os maridos brasileiros, desde o século passado, pagavam o carnê do INPS12 sucedido pelo INSS, para suas mulheres que não exerciam atividade laborativa fora de casa, a fim de que pudessem receber o benefício previdenciário.

Aliás, a recomendação para todas as pessoas, casadas ou solteiras, é de que contratem previdências privadas. Os casados, especialmente, devem contratar em valores semelhantes a fim de que não haja desproporção, se casados em regime comunitário.

A previdência privada é complementação da aposentadoria de cada um dos cônjuges, visando o bem estar da família para que não haja peso, inclusive, para as futuras gerações.

No acórdão em comento, o Min. Luís Felipe Salomão foi sorteado relator mas restou vencido e declarou voto neste sentido que se coaduna, em grande parte, com o entendimento desta autora. No voto, restou consignada a incomunicabilidade dos valores depositados em previdência privada como regra. Como concluiu o Ministro em seu voto, a partilha ocorrerá quando eles perderem a natureza de seguro social em caso de extinção anômala da relação contratual, pelo resgate. Ressalte-se a observância da extinção anômala porque a previdência privada deve existir para garantir melhor qualidade de vida na velhice e não deve sofrer percalços durante a vida do participante. Esse é o percurso natural da contratação de

previdência privada. O Min. Antonio Carlos Ferreira acompanhou o relator.

A 3ª Turma, no Recurso Especial nº. 1.695.687-SP 13 afastou a comunhão se os valores não foram resgatados durante a vida. Mais uma vez veio à baila no acórdão o argumento de que os valores, antes de sua conversão em renda e pensionamento ao titular, possuem natureza de aplicação/investimento, por isso devem comunicar.

Neste ponto, a questão que deve ser enfrentada é, novamente e sempre, a natureza jurídica da previdência privada contratada.

É preciso questionar se a pessoa que contrata a previdência privada almeja, com aquele valor que está sendo acumulado, adquirir sua casa própria ou um automóvel. A resposta, naturalmente, deve ser negativa. Se for positiva, provavelmente o contratante foi induzido ao erro pelo funcionário da empresa de previdência privada ao apresentar os planos como produtos de investimentos e não como benefício previdenciário. Logo, conclui-se que o participante não é investidor.

No entanto, mais uma vez o STJ reconheceu a partilha dos valores depositados nos planos abertos de previdência privada no Recurso Especial n. 1.698.774/RS sob o fundamento de que os valores, durante a formação do patrimônio, com a possibilidade de aportes e resgate têm natureza de investimento.

“Pensar desta forma seria inviabilizar qualquer investimento em fundos de pensão, porque ninguém poderia romper a sociedade afetiva, pois sofreria o ônus de ter de partilhar sua previdência privada e abortar sua futura aposentadoria.” (MADALENO, 2017, p. 771/775)

O Min. Ricardo Villas Bôas Cueva sintetiza toda a discussão fazendo a interpretação mais técnica, segundo nossa avaliação:

Com efeito, a Segunda Seção entendeu que a faculdade concedida ao participante de plano de previdência privada aberta (PGBL e VGBL) de resgatar as contribuições vertidas ao plano “(...) não tem o condão de afastar, de forma inexorável, a natureza essencialmente previdenciária e, portanto, alimentar, do saldo existente” (EREsp n. 1.121.719/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, DJe 4/4/2014) não podendo, por isso mesmo haver uma equiparação automática a investimento financeiro.

Ficou definido que o desvirtuamento da finalidade social do contrato - como o uso do instrumento previdenciário para investimentos, blindagem contra credores, diminuição da legítima de herdeiros, ocultação de bens do cônjuge meeiro- deveria ser aferido, para fins de penhora, caso a caso.1415

14 REsp n. 1.695.687-SP. 3ª Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, publ. em: 19/04/2022.

11 Recurso Especial nº 1.593.026-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, voto vencido, publicação em: 17/12/2021.

12 Instituto Nacional de Previdência Social e Instituto Nacional de Seguridade Social.

13 O acórdão foi redigido pela Min. Nancy Andrighi após o Min. Ricardo Villas Bôas Cueva restar vencido.

15 Existe uma cronologia que deve ser apontada para a melhor compreensão dos fatos: 1) REsp. 1.698.774/RS (rel. Min. Nancy Andrighi, em 09/09/2020 reconhece que bens na fase de acumulação deveriam ser partilhados no divórcio; 2) Afirma que no REsp. n. 1.726.577-SP, Min. Cueva apresenta voto divergente em 16/03/2020. Min. Bellizze acompanha a relatora e o Min. Moura Ribeiro acompanha o Min. Cueva. O Min. Sanseverino adere à Relatora prevalecendo a tese de que os bens existentes na previdência privada devem ser colacionados porque, na fase de acumulação, possuem natureza de investimentos e devem ser partilhados pelos cônjuges. Ressalta que previdência aberta e fechada são substancialmente diferentes. Flávio Tartuce e Ana Luiza Maia Nevares sustentam ser investimento em Direito Civil. V. 5, 14ª ed. Rio de Janeiro Forense, 2019, pp. 187/188 e Perspectivas para o planejamento sucessório. In Revista IBDFam Famílias e Sucessões, Belo Horizonte, n. 18, nov./dez. de 2016, pp. 19-20; e 3). Por sua vez, a 4ª Turma, em REsp. 1.593.026-SP (Rel. Min. Salomão vencido e Rel. para acórdão Min. Maria Isabel Gallotti) entendeu que previdência privada é investimento e deve ser partilhada. Assim, a Min. Nancy conclui que a matéria restou pacificada no Superior Tribunal de Justiça nas duas turmas que compõem a segunda seção.

O entendimento de Rolf Madaleno merece registro:

A previdência privada está excluída da comunhão pelo inciso VII do artigo 1.659 do Código Civil, quando trata das pensões, meio-soldos, montepios e outras rendas semelhantes. A previdência tem e deve ter bases mais sólidas e sobre ela deve incidir a crença de que estes recursos realmente se destinam à futura aposentadoria, que foi planejada para uma estimativa da porvindoura jubilação, e não para perceber meia-aposentadoria, e desta forma assegurar a renda contratada e programada […]. (MADALENO, 2017, pp. 771/775)

Assiste razão ao doutrinador gaúcho quando afirma a incomunicabilidade da previdência privada em razão de o artigo 1.659, VII do Código Civil assim o prever. O trabalhador tem direito ao descanso depois de muito ter produzido, mantendo o padrão de vida anterior ao da aposentadoria. Isso é uma das facetas da dignidade da pessoa humana.

A previdência privada somente deve ser partilhada se os aportes realizados fugirem da normalidade cotidiana do participante e ensejarem desvio de patrimônio com objetivo fraudulento. Tais hipóteses descritas no REsp. 1.695.687-SP como o resgate a curto prazo desacompanhado de risco social (intuito de simples multiplicação de recursos) ou na ocorrência de blindagem patrimonial (ocultação de numerário em detrimento de credores, herdeiros e cônjuge meeiro; aporte único e de significativo valor e superior à legítima; idade avançada do titular no momento da contratação do plano…).

6. CONCLUSÃO

A previdência privada faz parte do regime geral de previdência e é um direito fundamental previsto na Constituição Federal brasileira.

Tem a finalidade de complementar a renda das pessoas porque a previdência social não possui recursos suficientes para garantir os valores necessários

para a manutenção do mínimo existencial de cada participante.

Estabelecida a natureza jurídica, é preciso registrar que o contrato de previdência não pode ser confundido com contrato de seguro de vida porque neste há o elemento álea e, naquele, o benefício não é condicionado ao risco, mas à presença dos requisitos contratados.

As entidades de previdência complementar podem ser abertas ou fechadas e, em relação aos participantes, não possuem diferenças sensíveis ao ponto de receberem tratamento jurídico diferenciado.

A legislação reguladora não pode desvirtuar a natureza jurídica estabelecida constitucionalmente porque se trata de um contrato de previdência privada no qual as pessoas buscam renda complementar para suas aposentadorias. Os planos de benefícios existentes no mercado (PGBL ou VGBL) possuem características diferenciadas a servir às necessidades do contratante, mas não podem, jamais, alterar a natureza previdenciária.

A alegação de que a possibilidade de resgate dos valores depositados em previdência privada aberta a qualquer tempo faz com que a previdência privada operada pela entidade aberta assuma a natureza de investimento é equivocada. Nas entidades fechadas o equívoco é o mesmo porque, nos planos em que há a coparticipação, o valor depositado, caso o colaborador peça demissão, não é computado e não pode ser resgatado. Ademais, sempre há o desconto das parcelas do custeio administrativo, atualizadas com correção monetária, além dos prazos de carência para o pagamento do resgate, ou seja, este nunca é imediato, podendo ocorrer em até 2 anos.

A despeito da pacificação ocorrida na 2ª Seção do STJ, sobre a possibilidade de partilha dos valores da previdência privada de um dos cônjuges porque equiparados aos proventos do salário, merecendo o mesmo tratamento que o FGTS, esta autora pretendeu demonstrar que previdência privada é montepio e não se comunica, nos termos do artigo 1.659, inciso VI do Código Civil.

O direito não pode acobertar a fraude e qualquer pessoa que direcionar seu patrimônio para previdência privada a fim de fraudar a partilha de bens não pode ser beneficiado. Nesta hipótese, a comunhão deve ser reconhecida porque houve desvio de finalidade e falta de boa-fé objetiva.

Tem havido degeneração do texto da Constituição Federal pela legislação que regulamentou a matéria. É imperioso que o tema seja revisitado pelo Poder Legislativo para que, dentro da natureza jurídica constitucional prevista que é previdenciária, a previdência privada seja disciplinada de maneira coerente e incentivada pelo Poder Público inclusive no que concerne ao regime de tributação. Previdência nunca foi investimento e não se presta para isto, mas Direito Fundamental previsto na Ordem Social, para proteger toda a pessoa que, ao nosso lado, lutou para construir um Brasil mais justo.

REFERÊNCIAS

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TARTUCE, Flávio. Direito Civil V. 5, 14ª ed. Rio de Janeiro Forense, 2019.

1. OBJETO DO ESTUDO E SÍNTESE DO QUE SE DEFENDERÁ

O presente artigo objetiva tratar de questões polêmicas envolvendo o assunto relativo à irrepetibilidade dos alimentos no Direito de Família. Trata-se de tema recorrente no âmbito do Direito Civil, fruto de construção doutrinária e jurisprudencial e que, por esse motivo, merece a devida análise para eventuais balizas que possam orientar a construção de uma proposição legislativa.

QUESTÕES POLÊMICAS SOBRE A IRREPETIBILIDADE

DOS ALIMENTOS NO DIREITO DE FAMÍLIA

Palavras-chave

Alimentos. Pensão. Irrepetibilidade. Flexibilização.

Carlos E. Elias de Oliveira

Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos. Membro da Comissão de Juristas para Reforma do Código Civil no Senado Federal – 2023/2024. Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo – USP. Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília - UnB. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Advogado, ex-Advogado da União e ex-assessor de ministro STJ.

Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro

E-mail: carloseliasdeoliveira@yahoo.com.br)

Resumo

O autor, após fazer esclarecimentos conceituais e de nomenclatura acerca dos alimentos e de outras verbas alimentares, trata de questões polêmicas envolvendo a flexibilização da irrepetibilidade dos alimentos familiares. Trata destas questões: (1) retroatividade limitada da sentença que reduz ou afasta os alimentos; (2) direito de “reembolso qualificado” contra o verdadeiro titular do dever alimentar; (3) direito de indenização pelas despesas adicionais com a gestação; (4) direito a exigir contas do outro genitor acerca dos alimentos pagos ao filho menor; (5) direito do genitor guardião e gestor a um pró-labore incluso no valor da pensão paga pelo outro; (6) colação de alimentos pagos a filhos, netos e a outros descendentes; (7) direito de reembolso dos alimentos pagos a ascendente contra o espólio deste; e (8) direito de reembolso dos alimentos pagos ao irmão contra o espólio deste ou no caso de sua prosperidade superveniente.

Nesse sentido, este trabalho buscará mapear questões práticas e eventualmente polêmicas que possam demonstrar a necessidade de uma reavaliação e flexibilização do instituto da irrepetibilidade dos alimentos.

Antes de adentrar o tema, faz-se oportuno delimitarmos bem o conceito de alimentos para evitar qualquer desencontro de linguagem técnica.

2. DEFINIÇÃO E CLASSIFICAÇÃO DOS ALIMENTOS NO DIREITO DE FAMÍLIA

2.1. Definição

Alimentos são prestações periódicas destinadas a custear a manutenção de uma pessoa, ou seja, a garantir a esta o acesso aos bens e serviços relacionados à sua saúde, moradia, educação, lazer e outras necessidades pessoais.

Não necessariamente as prestações são pecuniárias. Há também alimentos in natura, assim entendidos aqueles que consistem na disponibilização do bem ou do serviço a ser consumido pela pessoa como satisfação de suas necessidades pessoais.

Entendemos que a expressão “pensão alimentícia” deve ser considerada sinônima de alimentos, alcançando, inclusive, os alimentos in natura Há, porém, respeitados doutrinadores que restringem o sen -

tido dessa expressão ao valor pecuniário arbitrado a título de alimentos (Farias e Rosenvald, 2016, p. 703). Preferimos, porém, uma acepção mais ampla pelo fato de a legislação não fazer essa restrição. Assim, quando, por exemplo, o art. 3º, III, da Lei nº 8.009/1990 admite a penhora do bem de família por “credor da pensão alimentícia”, ele está beneficiando o pensionista que tinha direito a uma prestação in natura e que, diante da inadimplência, promoveu uma execução judicial para cobrar o equivalente em dinheiro dessa prestação in natura

Alimento não é instituto exclusivo do Direito de Família. Ele também gera efeitos fora desse âmbito, de modo que, nem sempre quando o legislador se vale da expressão “alimentos” ou “pensão alimentícia”, ele está aludindo aos alimentos de Direito de Família. Há vários exemplos disso, como a referência a essas expressões na legislação para autorizar revogação de doação por ingratidão1 , permitir a repetição de indébito contra o menor que contraiu empréstimo para garantir “os seus alimentos habituais”2 e servir de lucros cessantes 3

Aliás, até mesmo no art. 206 do Código Civil, que trata de prazos prescricionais, pode-se ver essa distinção: no inciso I do seu § 1º4 , prevê-se uma prescrição de um ano para a pretensão de hotéis e restaurantes pela dívida relacionada ao consumo de alimentos, o que obviamente não tem qualquer alusão aos alimentos fundados em Direito de Família.

1 Art. 557, IV, do CC: “Podem ser revogadas por ingratidão as doações: (...) IV - se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava”.

2 Art. 589, II, CC.

3 É o caso dos alimentos indenizativos devidos no caso de homicídio (art. 948, CC) ou de incapacidade laboral (art. 950, CC).

4 “Art. 206. Prescreve:

§ 1 o Em um ano:

- a pretensão dos hospedeiros ou fornecedores de víveres destinados a consumo no próprio estabelecimento, para o pagamento da hospedagem ou dos alimentos; (...)”

O prazo prescricional destes últimos é de dois anos, conforme § 2 º do art. 206 do CC 5

No âmbito do Direito de Família, o fundamento principiológico dos alimentos é o princípio da solidariedade familiar, que, na hipótese de o alimentado ser menor, incapaz ou idoso, alinhar-se-á com o princípio da proteção integral da criança e do adolescente, com o princípio da proteção integral do idoso e com o que chamamos de princípio da proteção do incapaz.

A matéria está regulamentada nos arts. 1.694 ao 1.710 do CC de modo central, embora haja outros dispositivos que prevejam regras específicas para os alimentos familiares, a exemplo dos dispositivos que tratam do dever de mútua assistência entre cônjuges (arts. 1.566 e 1.724, CC) e do dever de sustento dos filhos menores ou dos filhos maiores incapazes (arts. 1.566, IV, 1.590 e 1.725, CC).

O foco neste artigo são os alimentos fundados no Direito de Família.

2.2. Classificação quanto

à origem

Quanto à origem (ou à causa jurídica), os alimentos podem ser: (a)  legítimos ou familiares; (b) indenizativos; (c) convencionais.

Os alimentos legítimos ou familiares são os que decorrem de normas de Direito de Família. São eles que estamos a focar neste estudo.

Os alimentos indenizativos são aqueles que derivam de normas de Responsabilidade Civil e que consistem em reparar os lucros cessantes sofridos pela vítima em razão da perda de uma fonte de sustento. Como exemplo de alimentos indenizativos, há a pen5 “Art. 206. Prescreve:

(...)

§ 2 o Em dois anos, a pretensão para haver prestações alimentares, a partir da data em que se vencerem. (...)”

são alimentícia devida a quem se incapacitou para o trabalho (art. 950, CC) ou a quem perdeu um parente de quem dependia financeiramente (art. 948, CC).

Os alimentos convencionais são aqueles que decorrem de um ato de vontade no âmbito do Direito Civil, como um contrato ou um testamento. A título ilustrativo, se alguém se compromete voluntariamente a pagar um valor mensal a outrem com o objetivo de custear-lhe a manutenção (o que pode ser feito por meio do contrato de constituição de renda previsto no art. 803 e seguintes do CC), essa renda mensal configura alimentos convencionais. Outro exemplo é o legado de alimentos por meio do qual o testador deixa uma pensão alimentícia para o legatário (art. 1920, CC).

2.3. Utilidade Prática: caso da prisão civil

Há utilidade prática na classificação acima. É que, como o regime jurídico de cada uma dessas espécies é diferente, a consequência prática também pode ser diferente.

Trataremos de um exemplo: a prisão civil.

Há discussão se o drástico meio coercitivo da prisão civil é extensível a qualquer tipo de alimentos ou apenas aos alimentos familiares.

O entendimento majoritário é que a prisão civil não é para todos os tipos de alimentos, mas apenas para os alimentos familiares que guardam conexão com a finalidade primária de garantir a sobrevivência do alimentado (os alimentes civis e os alimentos naturais 6). O STJ chancela esse entendimento, do que

6 Os alimentos familiares podem ser classificados quanto à sua natureza nestas espécies: (1) alimentos civis ou côngruos, assim entendidos aquele destinado a garantir ao alimentado um padrão social similar ao do alimentante, conforme art. 1.694, caput, do CC; (2) alimentos necessários ou naturais, os que objetivam garantir apenas o estritamente necessário à sobrevivência do alimentado, tudo conforme arts. 1.694, § 2º, e 1.704 do CC; (3) alimentos compensatórios aqueles que têm natureza indenizatória e que objetiva aliviar os transtornos de

dá exemplo recente julgado que negou a prisão civil por inadimplemento da parcela dos “alimentos provisórios” vinculada à restituição de metade das rendas líquidas dos bens comuns 7 A prisão civil só seria admissível se o inadimplemento fosse da parte dos alimentos provisórios que dissesse respeito aos alimentos civis ou naturais 8

Portanto, alimentos indenizativos ou convencionais não credenciam a prisão civil, mas apenas algumas subespécies de alimentos legítimos (ou familiares).

Essa foi, a propósito, a intenção do legislador, conforme expressamente consignado pelo então Senador Vital do Rêgo (e atual Ministro do Tribunal de Contas da União) no seu relatório ao projeto que gerou o atual Código de Processo Civil. Veja as palavras do ilustre ministro, que justificava a manutenção, no novo CPC, da redação que o antigo CPC empregava (RÊGO, 2014, p. 145-146):

A definição de “alimentos legítimos”, embora vinculada por muitos civilistas aos alimentos de Direito de Família, não encontra previsão legal, o que pode gerar dúvidas quanto ao alcance do dispositivo, razão

uma queda abrupta do padrão de vida do ex-consorte após o fim do casamento ou da união estável; (4) rendas líquidas dos bens comuns que têm natureza jurídica de restituição de coisa de terceiros – e não propriamente de uma indenização – e que podem ser fixados conjuntamente com os “alimentos liminares” (os provisórios ou provisionais) por força de leitura extensiva do parágrafo único da Lei de Alimentos (Lei nº 5.478/1968). A prisão civil por dívida de alimentos só é admitida para os dois primeiros tipos de alimentos, pois os demais não têm, como finalidade primária, a manutenção do alimentado, e sim garantir-lhe uma indenização ou uma restituição.

7 STJ, RHC 117.996/RS, 3ª Turma, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe 08/06/2020.

8 Tecnicamente, entendemos que o adequado é que os juízes fixem os alimentos provisórios em separado das rendas líquidas dos bens comuns, estabelecendo duas rubricas diferentes. Todavia, por força de interpretação que alguns doutrinadores fazem do parágrafo único da Lei de Alimentos, há quem aglutine as duas verbas sob o nomen iuris de “alimentos provisórios”, caso em que será necessário decompor essa rubrica para definir qual parte credencia ou não a prisão civil.

por que não convém o seu emprego no dispositivo em epígrafe.

Dessa forma, assim como o atual art. 733 do Código de Processo Civil não individualiza a espécie de alimentos autorizadores da prisão civil no caso de inadimplência, o novo Código também não o fará, o que desaguará na conclusão de manutenção da orientação jurisprudencial pacificada até o presente momento, firmada no sentido de que o não pagamento de alimentos oriundos de Direito de Família credenciam a medida drástica da prisão. Aliás, essa é a dicção do inciso LXVII do art. 5º da Carta Magna e do Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos), as quais somente admitem a prisão civil por dívida, se esta provier de obrigação alimentar.

De mais a mais, os alimentos de Direito de Família são estimados de acordo com a possibilidade do alimentante e a necessidade do alimentado, de modo que, em princípio, o devedor tem condições de arcar com esses valores. Se não paga os alimentos, é porque está de má-fé, ao menos de modo presumido, o que torna razoável a coação extrema da prisão civil em prol da sobrevivência do alimentado. Já os alimentos indenizativos (aqueles que provêm de um dano material) são arbitrados de acordo com o efetivo prejuízo causado, independentemente da possibilidade do devedor. Dessa forma, a inadimplência do devedor não necessariamente decorre de má-fé. A prisão civil, nesse caso, seria desproporcional e poderia encarcerar indivíduos por sua pobreza. O mesmo raciocínio se aplica para verbas alimentares, como dívidas trabalhistas, honorários advocatícios etc. Enfim, a obrigação alimentar que credencia à prisão civil não é qualquer uma, mas apenas aquela que provém de normas de Direito de Família.

Nesse sentido, convém manter a redação do art. 545, caput, do SCD [artigo do projeto que veio a gerar o atual art. 531 do CPC/2015] alinhada à Constituição Federal e ao Pacto de San José da Costa Rica, de maneira a subsistir a previsão de que somente os alimentos provenientes de Direito de Família dão ensanchas à medida drástica da reclusão civil.

2.4. Distinção entre alimentos e outras verbas alimentares

Para fins da classificação de Direito Civil acima, não se podem confundir os alimentos legítimos, indenizativos e convencionais – os quais objetivamente possuem natureza alimentar – com outras verbas de natureza alimentar, como o salário, os honorários advocatícios9 etc. É verdade que os alimentos são uma espécie de verba alimentar, mas não se confundem com outras verbas.

Os alimentos são rendas (valores pagos periodicamente) com o objetivo de, primariamente, servir de custeio da manutenção de uma pessoa e decorrem de regras de Direito de Família, de Responsabilidade Civil ou de ato de vontade no âmbito do Direito Civil. Além do mais, os alimentos não decorrem de um ato oneroso.

As outras verbas de natureza alimentar existentes no ordenamento, embora tenham em comum o fato de servirem como fonte de custeio do credor, se distinguem dos alimentos pelo fato de se originarem de atos onerosos (ex.: salário e honorários são retribuições de um serviço prestado; pensões pagas por planos de previdência pública ou privada são retribuições de valores pagos pelo beneficiário) ou de um ato legal fora do Direito de Família (ex.: benefícios assistenciais são pagos por força de leis assistenciais, 9 O § 14 do art. 83 do CPC expressamente afirma que os honorários advocatícios têm natureza alimentar. No mesmo sentido, é a Súmula Vinculante nº 47/STF: “Os honorários advocatícios incluídos na condenação ou destacados do montante principal devido ao credor consubstanciam verba de natureza alimentar cuja satisfação ocorrerá com a expedição de precatório ou requisição de pequeno valor, observada ordem especial restrita aos créditos dessa natureza”.

como o Benefício de Prestação Continuada, previsto no art. 2 º, I, “e”, da LOAS10).

A distinção acima, fundada na origem do crédito, tem fins meramente didáticos e objetiva deixar claro, no estudo do Direito Civil, quais rendas são designadas pelo Código Civil e pela doutrina como alimentos e quais créditos (que podem ser pagos em forma de rendas ou não) possuem natureza alimentar apesar de não serem batizadas formalmente de “alimentos”.

2.5. Importância prática na legislação para a definição de uma verba como alimentar

H á importância prática em considerar uma verba como de natureza alimentar, ainda que ela não seja propriamente classificada como alimentos. É que, por vezes, o ordenamento jurídico confere certas prerrogativas a essas verbas em razão da sua essencialidade à sobrevivência do credor.

Por exemplo, no âmbito do processo civil, créditos de natureza alimentar (o que abrange os alimentos e as outras verbas alimentares):

a) afastam a exigência de caução na execução provisória (art. 521, I, CPC);

b) credenciam a penhora dos instrumentos de trabalho do devedor, apesar de, em regra, estes serem bens impenhoráveis (art. 833, § 3º CPC);

c) têm preferência no pagamento dos precatórios ou nas requisições de pequeno valor (art. 100, § 1º da CF).

Ainda no âmbito do processo civil, há procedimentos específicos para os alimentos (sem abranger outras verbas de natureza alimentar).

É o caso, por exemplo, do rito específico de execução de obrigação de prestar alimentos (arts. 528 ao 533 e 911 e ss, CPC). Esse rito não se aplica às outras

10 Lei Orgânica da Assistência Social (Lei nº 8.742/1993).

verbas alimentares, mas apenas para os alimentos com dois detalhes: (1) a prisão civil somente é admitida para os alimentos familiares vinculada estritamente à manutenção por uma interpretação restritiva dada pela doutrina e pela jurisprudência; e (2) a constituição de capital como forma de garantia de adimplemento é previsto apenas para os alimentos indenizativos, conforme art. 533 do CPC.

Outro exemplo processual que se restringe aos alimentos é a sua inclusão no rol de exceções à regra da impenhorabilidade de penhora de bem de família. O art. 3º III, Lei nº 8.009/1990 admite a penhora do bem de família pelo “credor da pensão alimentícia”, o que deve ser entendido como abrangendo apenas os alimentos, e não outras verbas de natureza alimentar.

No âmbito do Direito Administrativo, associando a boa-fé com as particularidades das verbas de natureza alimentar, é pacífico o entendimento de que o agente público que, de boa-fé, recebe parcelas de natureza alimentar não é obrigado a restituir, como sucede nos casos de salários, gratificações ou outras verbas alimentares por erro ou má-interpretação de normas pelo Poder Público (STJ, REsp 1762208/ RS, 2ª Turma, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 28/11/2018).

2.6. Uma questão de terminologia: Pensão vs Alimentos

O verbete “pensão” é expressão genérica que abrange, entre as suas espécies, os alimentos.

Pensão diz respeito a prestações periódicas (equivalente de “rendas”) que são pagas a outrem com o objetivo de custear a manutenção de uma pessoa (o pensionista) sem finalidade remuneratória. Não abrangem os salários ou os aluguéis, porque estes são retribuições por um serviço prestados periodicamente ou pela disponibilidade periódica de uma coisa (finalidade remuneratória).

O termo “pensão” é amplo e alcança os alimentos e outras verbas de natureza alimentar pagas em forma de renda, a exemplo dos valores pagos a título de

aposentadoria (prestações periódicas pagas após a cessação dos trabalhos periódicos de uma pessoa como uma forma de “substituir” o salário).

Como os alimentos são uma espécie de renda, o legislador, por vezes, refere-se a eles como “pensão alimentícia” 11 expressão que deve ser utilizada exclusivamente para os alimentos, e não para outras verbas de natureza alimentar. Por exemplo, não é tecnicamente adequado referir-se aos proventos de aposentadoria como “pensão alimentícia”.

Pensão é uma espécie de renda. Este é um termo mais genérico que se refere a quaisquer prestações periodicamente pagas ou geradas como frutos de uma coisa principal, ainda que não tenham a finalidade de custear a manutenção de uma pessoa. Assim, salários, ainda que tenham destinação vinculada à manutenção de uma pessoa, são uma espécie de renda, apesar de não serem pensão. O aluguel pago pelo inquilino também é uma renda por ser um fruto civil da coisa principal (o imóvel locado), embora não possa ser chamada de pensão

3. IRREPETIBILIDADE DOS ALIMENTOS E QUESTÕES POLÊMICAS

3.1. Fundamentos da irrepetibilidade

A irrepetibilidade dos alimentos decorre da ideia de que o alimentado consome os valores percebidos na satisfação de suas necessidades vitais, e não em atividades rentáveis nem em aumento de patrimônio. Por isso, seria incompatível com os alimentos o dever de o alimentado restituir os alimentos pagos se posteriormente eles vierem a ser considerados indevidos: o alimentante não pode pedir a repetição do indébito, não pode pedir de volta o que pagou.

11 A título exemplificativo, o art. 950 do CC menciona “pensão” para se referir aos alimentos indenizativos, e os arts. 1.702 e 1.704 do CC aludem aos alimentos familiares ao valer-se das expressões “pensão alimentícia” ou simplesmente “pensão”. Já o art. 3º, III, da Lei nº 8.009/90 utiliza a expressão “pensão alimentícia” para se referir tanto aos alimentos indenizativos quanto aos alimentos familiares, com a advertência de que há discussão doutrinária para saber se os alimentos voluntários também estão contemplados.

Não há dispositivo legal expresso a amparar a irrepetibilidade; trata-se de construção doutrinária e jurisprudencial, que estende esse raciocínio da irrepetibilidade até para situações fora do Direito Civil12

A doutrina e a jurisprudência, porém, com razão, vêm acenando para a relativização da irrepetibilidade, ainda que de forma paulatina. Cuidaremos de hipóteses de flexibilização mais à frente ao tratarmos de casos especiais.

3.2. Questões polêmicas

3.2.1. Redução ou exoneração de alimentos após pagamento de alimentos liminares

Fixados alimentos liminares (provisórios ou provisionais), indaga-se: a superveniência de sentença reduzindo o valor dos alimentos ou afastando totalmente o direito dos alimentos teria ou não eficácia retroativa até a data da citação, de modo a autorizar que o credor peça de volta tudo o que pagou a maior?

O STJ entende que só há essa eficácia retroativa até à data da citação em relação às parcelas dos alimentos liminares que não foram pagas: o devedor fica liberado de pagá-las. Nesse caso, não há violação à irrepetibilidade dos alimentos, pois eles não foram efetivamente pagos. Já em relação às parcelas já pagas, vigora a irrepetibilidade dos alimentos a afastar o efeito retroativo. Essa é a inteligência da Súmula nº 621/STJ (“Os efeitos da sentença que reduz, majora ou exonera o alimentante do pagamento retroagem à data da citação, vedadas a compensação e a repetibilidade”).

Como se vê, o STJ, levando em conta a irrepetibilidade dos alimentos, deu interpretação sistemática e restritiva ao art. 13, § 2 º, da Lei de Alimentos (que prevê a retroatividade dos alimentos fixados na sentença até à data da citação) bem como aos dispositivos que estabelecem que a execução provisória (aquela baseada em decisão judicial não transitada em julgado) é risco do exequente, que, na hipótese de superveniente derrota no julgamento final do processo, teria de restituir o que obteve e indenizar os danos causados (arts. 297, parágrafo único, e 520, I a IV, do CPC).

Na prática, o entendimento do STJ acaba por estimular que o credor evite pagar os alimentos liminares na esperança de ser redimido com uma vindoura sentença favorável. Apesar disso, concordamos com o STJ, que foi salomônico ao chegar a uma solução intermediária na matéria, conciliando a irrepetibilidade dos alimentos com a precariedade das execuções provisórias.

3.2.2. “Reembolso qualificado” contra o verdadeiro obrigado pelos alimentos

É verdade que, à luz da irrepetibilidade dos alimentos, em regra, o alimentante não pode, em regra, endereçar contra o alimentado um pedido de repetição de indébito pelos valores pagos a título de alimentos, ainda que posteriormente venha ser reconhecido judicialmente a inexistência do dever alimentar. Todavia, indaga-se: poderia o alimentante pleitear o reembolso do que pagou contra o verdadeiro titular do dever de pagar alimentos?

maior é o seu valor. Advindo sentença negando a paternidade e, portanto, o dever alimentar, pergunta-se: João poderia pedir o reembolso do valor pago contra o verdadeiro pai, caso este venha a ser descoberto?

Entendemos que sim como uma restrição: o verdadeiro pai terá de reembolsar João no valor que ele, de acordo com o binômio necessidade-possibilidade, teria de ter pago caso à época fosse reconhecida a paternidade.

O fundamento desse nosso entendimento são dois. O primeiro é a vedação ao enriquecimento sem causa: o verdadeiro pai não pode ser beneficiado financeiramente com o fato de um terceiro ter arcado com uma despesa que era dele. O segundo é a aplicação, por analogia, do art. 871 do CC13 que garante o direito de reembolso em favor daquele que paga alimentos que eram devidos por outro.

Supondo que, no exemplo acima, o verdadeiro pai seja Manoel, pessoa de condição financeira modesta e que, de acordo com o binômio necessidade-possibilidade, provavelmente iria ser condenado a pagar apenas R$ 2.000,00 a título de alimentos liminares naquele período em que João havia sido acionado. Nesse caso, João só poderá cobrar R$ 2.000,00 do Manoel a título de reembolso e, portanto, amargará o prejuízo dos R$ 8.000,00 restantes por conta da sua desventura de ter dado indícios de paternidade capazes de terem levado o juiz a fixar os alimentos liminares.

colocar esse limite ao reembolso, basta imaginar o absurdo a que seria sujeito o verdadeiro pai se os alimentos liminares pagos pelo João tivessem chegado a R$ 1 milhão de reais, o que poderia ocorrer se João fosse milionário.

Essa limitação do reembolso ao valor que o verdadeiro titular do dever alimentar haveria de pagar a título de alimentos à luz do binômio necessidade-possibilidade caracteriza o que chamamos de “reembolso qualificado”.

Em suma, entendemos que a irrepetibilidade dos alimentos não impede que aquele que foi indevidamente compelido a pagar os alimentos obtenha o “reembolso qualificado” contra aquele que realmente tinha o dever alimentar.

3.2.3. Indenização por despesas adicionais causadas pela gravidez no lugar dos alimentos gravídicos

O Professor Conrado Paulino da Rosa (2018, p. 488) suscita interessantíssima questão: se a gestante não pleiteia alimentos gravídicos, ela poderia cobrar do suposto pai o ressarcimento por parte das despesas adicionais suportadas por ela em razão da gestação?

O ilustre civilista gaúcho entende que sim com base na proibição da vedação ao enriquecimento sem causa e do princípio da parentalidade responsável.

12 É o caso, por exemplo, do Direito Administrativo: o STJ entende que o agente público não tem de restituir verbas de natureza alimentar recebidas de boa-fé, como aquelas que decorrem de erro ou de má interpretação de normas pela Administração Pública (STJ, REsp 1762208/RS, 2ª Turma, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 28/11/2018).

Para ilustrar, suponha João tenha pagado R$ 10.000,00 a título de alimentos liminares fixados em sede de uma ação de investigação de paternidade cumulada com pedido de alimentos. Lembre-se de que os alimentos são fixados levando em conta a possibilidade do alimentante: quanto mais rico,

Se não houvesse essa limitação ao reembolso, chegaríamos ao despropósito de obrigar o verdadeiro pai a reembolsar um valor de alimentos elevadíssimo, assim fixados pelo juiz por conta do elevado padrão do João. Para se ter uma ideia da iniquidade de não

13 “Art. 871. Quando alguém, na ausência do indivíduo obrigado a alimentos, por ele os prestar a quem se devem, poder-lhes-á reaver do devedor a importância, ainda que este não ratifique o ato.”

Noticia, a favor dessa tese, que o TJRS se manifestou assim por duas vezes, admitindo, inclusive, a “legitimidade ativa da genitora para cobrar o ressarcimento das despesas oriundas da gestação e do parto do filho, ainda que o recibo esteja em nome dos avós maternos da criança” (ROSA, 2018, p. 488).

Concordamos com o civilista gaúcho com apenas uma ressalva: as despesas adicionais devem ser suportadas por ambos os genitores de acordo com o binômio necessidade-possibilidade aplicável a cada

um. Isso significa que o rateio deverá ser proporcional às condições econômicas de cada um e recairá apenas sobre despesas adicionais que sejam compatíveis com o padrão social do genitor.

Assim, se, por exemplo, a gestante for riquíssima e realizar despesas adicionais compatíveis com o seu alto padrão social e se o genitor for pessoa de poucas posses, não é razoável condenar este a pagar metade dessas despesas adicionais, pois ele, com seu modesto padrão de vida, não haveria de custear uma gestação nababesca como essa. Assim, temos que o mais adequado é ratear as despesas adicionais entre ambos os genitores na proporção da possibilidade deles (ex.: 20% para o genitor e 80% para a gestante), além de excluir do montante a ser rateado despesas que se revelem supérfluas ou absolutamente incompatíveis com o padrão social do genitor.

3.2.4. Ação de exigir contas e pensão alimentícia

Indaga-se: o alimentante tem ou não direito de exigir que o alimentado preste contas dos valores recebidos?

Em regra, entendemos que não, pois o alimentado pode despender o valor recebido como lhe aprouver.

Há, porém, uma exceção: a hipótese de o alimentante ser filho menor.

Com efeito, se o alimentante for um dos pais e se o alimentado for filho menor (de modo que o valor recebido é gerido pelo outro genitor), é cabível a ação de exigir contas com uma particularidade: a finalidade não será a de apurar eventual crédito pela falta de prova da destinação adequada da verba alimentar, e sim a de viabilizar a fiscalização da satisfação dos interesses do filho menor.

Por essa razão, é dever do genitor que gere os alimentos prestar contas ao alimentante, indicando como os valores recebidos foram despendidos em proveito do filho menor. Se for verificada malversação dos valores, entendemos que não é cabível a condenação do genitor a ressarcir os valores desviados, porque os alimentos são irrepetíveis e porque o objetivo da ação de exigir contas aí é apenas o de garantir a supervisão dos interesses do filho.

A medida cabível aí será a de, por meio de outra ação judicial (como uma de revisão de alimentos), mudar a forma de prestação de alimentos, de modo a coibir outra malversação. Essa nova forma poderá se dar por meio da redução do valor pecuniário da pensão alimentícia e a estipulação do dever de o próprio alimentante prestar, in natura, os alimentos que foram malversados (ex.: pagando diretamente as mensalidades escolares).

Como o objetivo da prestação não é apurar créditos, e sim viabilizar a supervisão dos interesses do filho menor, não é de se exigir alto rigor na forma da prestação de contas; basta que as contas sejam prestadas de uma forma inteligível. Além do mais, como lembra o Ministro Moura Ribeiro, o § 2 º do art. 551 do CPC “não mais exige que as contas sejam prestadas de forma mercantil, devendo elas ser apresentadas apenas de forma adequada, de modo que facilite o seu exame, mas com um mínimo de rigor técnico” 14 Nesse ponto, subscrevemos integralmente estas palavras do professor Flávio Tartuce (2019), que faz remissão ao jurista João Ricardo Brandão Aguirre:

De toda sorte, acreditamos que a exigência da prestação deve ser analisada mais objetiva do que subjetivamente, deixando-se de lado pequenas diferenças de valores e excessos de detalhes na exigência

14 Excerto extraído de voto proferido pelo Ministro Moura Ribeiro neste julgado: STJ, REsp 1814639/RS, 3ª Turma, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. p/ Acórdão Ministro Moura Ribeiro, DJe 09/06/2020.

da prestação, o que poderia torná-la inviável ou até aumentar o conflito entre as partes. Essa também é a percepção de João Ricardo Brandão Aguirre, em palestra recentemente ministrada em evento do IBDFAM.

O fundamento desse direito está no § 5º do art. 1.583 do CC, que estabelece que é direito do pai ou da mãe supervisionar os interesses do filho que está sob a guarda do outro, supervisão essa que credencia pedidos de informações ou de “prestações de contas, objetivas ou subjetivas, em assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a saúde física ou psicológica e a educação de seus filhos”. Trata-se de dispositivo que foi inserido pela segunda Lei da Guarda Compartilhada (Lei nº 13.058/2014).

Não há necessidade de o genitor alimentante comprovar indícios de malversação dos alimentos para exigir a prestação de contas, pois é seu direito supervisionar os interesses do filho menor. Se as informações não forem prestadas voluntariamente pelo genitor guardião que gere os alimentos, abre-se espaço para a via judicial da ação de exigir contas, com a limitação supracitada (a de que não será devida, nessa via, qualquer condenação de restituição de valores pagos).

Em termos práticos, o genitor que recebe a pensão alimentícia devida ao filho deverá guardar comprovantes dos gastos havidos com o filho (ex.: comprovantes de pagamentos de mensalidade escolar) e, se houver sobra de dinheiro, deverá guardá-la para utilização futura pelo próprio filho em caso de alguma nova necessidade ou quando ele completar a maioridade. A sobra do dinheiro não pode ser utilizada em proveito do próprio genitor que gere os alimentos, pois ele é mero administrador dos alimentos, e não credor.

O tema ainda está em amadurecimento na jurisprudência. Antes da alteração legislativa acima, a jurisprudência era consolidada em negar o cabimento da ação de exigir contas pelo alimentante para apurar se os valores dos alimentos realmente estavam sendo direcionados ao filho menor.

Esse cenário, porém, mudou após a segunda Lei da Guarda Compartilhada. A 3ª Turma do STJ, após lançar precedente mantendo a jurisprudência anterior, mudou de orientação e decidiu pelo cabimento da ação de exigir contas nos moldes do que expusemos mais acima (STJ, REsp 1814639/RS, 3ª Turma, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. p/ Acórdão Ministro Moura Ribeiro, DJe 09/06/2020). No caso concreto examinado no referido julgado, o pai ajuizara a ação de exigir contas para que a mãe indicasse como estaria utilizando a pensão mensal de R$ 15.000,00 em favor do filho menor com Síndrome de Down, ainda mais considerando que o filho estava estudando em escola pública e que as despesas médicas eram cobertas pelo plano de saúde fornecido pelo pai.

Concordamos integralmente com a orientação firmada pelo STJ, tudo conforme expusemos acima. Entendemos apenas que, como estamos diante de um caso de mudança de jurisprudência pacífica, a 3ª Turma deveria ter modulado os efeitos da sua decisão para restringir a prestação de contas dos alimentos para o período posterior ao julgado, que é de 2020. De fato, essa modulação de efeitos tem fundamento no art. 927, § 3º, do CPC e no que já batizamos de “cindibilidade dos efeitos jurídicos” em razão de uma dúvida jurídica razoável (Oliveira, 2018-A, 2018-B, 2020-A e 2020-B). No caso concreto, porém, a mãe foi condenada a prestar contas desde abril de 2013.

A 4ª Turma do STJ – a outra turma que lida com matéria de Direito Privado – ainda não se manifestou, de

maneira que esse assunto ainda haverá de ser consolidado na jurisprudência.

Na doutrina, já alertavam para a necessidade de se admitir a ação de exigir contas, a exemplo do professor Flávio Tartuce (2015), que publicou riquíssimo artigo sobre o tema15 , e do professor gaúcho Conrado Paulino Rosa, que já defendia essa tese desde as edições mais antigas de seu Curso de Direito Civil Contemporâneo (2018, pp. 560-569).

No próximo subcapítulo, especialmente em razão desse novo entendimento do STJ no sentido do cabimento da ação de exigir contas, discutiremos se é ou não cabível a fixação de uma espécie de “pró-labore” para o genitor que gere os alimentos e que exerce a guarda unilateralmente, valor esse que poderia ser tido como uma das despesas havidas com a pensão alimentícia devida ao filho.

3.2.5. Possibilidade de estipulação de uma compensação financeira ao genitor guardião?

Especialmente em razão da tendência jurisprudencial de admitir que o genitor alimentante exija a prestação de contas do outro genitor para supervisão do efetivo direcionamento da pensão alimentícia em favor do filho menor, indaga-se: seria ou não admissível que, entre as despesas custeadas com a pensão alimentícia, esteja também uma compensação financeira (uma espécie de “pró-labore”) ao genitor incumbido da guarda do filho menor e da gestão da pensão alimentícia?

Entendemos que sim.

É “segredo de Polichinelo” que, em vários casos concretos, parte do valor da pensão alimentícia era utilizado pelo genitor guardião em proveito próprio. Não precisa ter muita experiência prática na praxe forense em Direito de Família para saber que isso é comum de ocorrer, especialmente quando o valor da 15 Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-sucessoes.>. Acesso em: 24 jul. 2020.

pensão é elevado em razão da alta condição financeira do alimentante e quando o genitor guardião e gestor é pessoa de recursos financeiros mais modestos.

Não se está aqui afirmando que o genitor guardião malversava a pensão alimentícia. De modo algum! Está-se apenas a afiançar que, em vários casos, esse genitor guardião utilizava sobras da pensão alimentícia com despesas do seu próprio interesse, como se essa sobra fosse uma espécie de “pró-labore” pelo seu trabalho de guardião de gestor.

Nunca a doutrina e a jurisprudência precisaram discutir a legitimidade desse furtivo “pró-labore”, porque a proibição da ação de exigir contas mantinha em sigilo o rastreamento dos gastos havidos com a pensão alimentícia.

Entretanto, com a admissão da ação de exigir contas, a “caixa de Pandora” se abre, de maneira que se torna pertinente discutir a legitimidade de cada gasto havido com a pensão alimentícia. São legítimos apenas os gastos feitos em proveito do filho menor.

Diante disso, reiteramos a pergunta inicial: seria ou não legítimo que, entre esses gastos feitos em proveito do filho menor, esteja o pagamento de uma espécie de “pró-labore” para o genitor guardião e gestor?

A resposta é positiva, mais correto a nosso sentir.

Não se trata de monetizar o amor, razão maior de genitor guardião e gestor estar a exercer essa função (ao menos, é que se presume para a maioria dos casos concretos). Mesmo sem a pensão, é de presumir que o genitor guardião haveria de querer cuidar de seu filho, protegendo-o debaixo de suas asas de afeto.

Trata-se, porém, de se fazer justiça ao fato de que o exercício da guarda e da função de gestão da pensão alimentícia, ainda mais com o dever de prestação de contas, consume grande energia e tempo do genitor guardião e gestor, que, por vezes, tem de abdicar de projetos pessoais na sua profissão e até no

seu lazer para cuidar do filho. Esses sacrifícios pessoais obviamente importam prejuízos financeiros ao genitor guardião e gestor, que, se não estivesse a cumprir o seu munus, poderia dedicar seu tempo, sua energia e seu talento para outra atividade de interesse pessoal. Esse sacrifício pessoal é, a nosso sentir, plenamente digno de ser objeto de eventual compensação financeira, que estaria embutida na própria pensão alimentícia, especialmente se o genitor alimentante não divide esse sacrifício pessoal com o genitor guardião e gestor.

Alguém dirá: o genitor alimentante também está sacrificando, pois está a pagar a pensão alimentícia! Trata-se, porém, de afirmação falaciosa. É que o dever de custear financeiramente o filho é de ambos os ambos os genitores à luz do binômio necessidade-possibilidade. O genitor guardião e gestor também concorre financeiramente com o custeio do filho menor, ainda que por intermédio de alimentos in natura.

Portanto, entendemos que o genitor guardião e gestor tem direito a uma compensação financeira (espécie de “pró-labore”) a ser embutido no valor da pensão alimentícia paga ao filho menor, de maneira que, quando o genitor guardião e gestor for prestar conta da pensão alimentícia, poderá incluir essa compensação financeira entre as legítimas despesas havidas em proveito do filho.

Essa compensação financeira deverá ser um valor módico e razoável. Entendemos que essa compensação não deve se equiparar necessariamente ao valor que seria cobrado por um prestador de serviço, seja porque poderíamos chegar a cifras altíssimas, seja porque é dos pais o dever de cuidar dos filhos. O valor da compensação deverá ser fixado pelo juiz de forma equitativa à luz do caso concreto, observando a condição financeira das partes e a intensidade de dedicação exigida do genitor guardião.

Esse pró-labore poderá ser menor caso o genitor alimentante reparta com o outro as atividades presenciais de guarda do filho menor e de gestão de bens deste.

O valor da compensação financeira poderá ser maior a depender das particularidades do caso concreto. Há, por exemplo, situações em que o genitor guardião, sozinho, dedica-se integralmente em favor do filho menor pelo fato de este ter alguma suscetibilidade, como se dá nos casos de síndrome de Down, de autismo, de esquizofrenia etc. Repete-se mais uma vez que é evidente que essa dedicação do genitor guardião não decorre de interesses econômicos, mas sim do vínculo afetivo. Todavia, não podemos fechar os olhos para o fato de que tal fato implica transtornos patrimoniais a esse genitor abnegado, que terá de abortar vários projetos estritamente pessoais. O “custo de oportunidade” (aquilo que se deixa de fazer) pode ser alto para o genitor guardião e gestor, o que merece ser objeto de uma compensação módica e razoável.

3.2.6. Colação de alimentos

Indaga-se: a pensão alimentícia paga a um descendente pode ou não ser considerada uma antecipação de herança e, portanto, vir a ser objeto de colação em futura sucessão causa mortis do alimentante, tudo nos termos dos arts. 544 e 2.002 e seguintes do CC?

Entendemos que sim, mas apenas em um destes dois casos: (1) o alimentado não ter qualquer incapacidade laborativa; ou (2) o alimentado ser neto ou outro descendente de maior grau e ser filho de pessoa sem qualquer incapacidade laborativa. Entretanto, nesses casos, quando da colação, não haverá dever de reposição em dinheiro previsto no parágrafo único do art. 2.003 do CC, mas apenas a mera dedução do quinhão hereditário, tudo por força da irrepetibilidade dos alimentos e do princípio da solidariedade familiar.

Se o alimentado for filho menor, não será cabível a colação dos alimentos por força do art. 2.010 do CC, que afasta a colação de liberalidades feitas ao filho menor, assim entendido – para tal efeito – aquele até os 24 anos de idade.

Igualmente, se o alimentado for filho maior com incapacidade laborativa, também não será cabível a colação por conta da irrepetibilidade dos alimentos, do princípio da solidariedade familiar, do dever de sustento dos pais em relação aos filhos menores (arts. 1.566, IV, e 1.724 do CC) e da aplicação analógica e sistemática dos arts. 1.590 e 2.010 do CC (os quais, em conjunto, permite estender o dever de sustento dos pais em relação aos filhos menores para os casos de os filhos maiores incapazes).

Para explicar de forma mais adequada, reproduzimos aqui este excer to de anterior artigo nosso (OLIVEIRA, 2015, p. 3-6):

R ESUMO: O autor defende a necessidade de serem colacionados os alimentos prestados: (1) a filho maior, capaz e sem restrições de saúde significativas ao seu potencial laboral e (2) aos descendentes de qualquer grau desse filho. Nesses casos, em nome da irrepetibilidade dos alimentos e de outros princípios e valores do Direito Civil, a colação servirá apenas para igualar a legítima, com a ressalva de que, quando os bens do acervo forem insuficientes, o alimentando não se sujeitará ao dever de reposição pecuniária de que cuida o parágrafo único do art. 2.003 do Código Civil. (...)

O presente texto dedica-se a, com a maior concisão possível, discutir se os alimentos pagos por ascendente a descendentes podem ou não ser tidos como antecipação de legítima (art. 544 do Código Civil – CC16) para o fim de ser, quando da abertura da sucessão, objeto de colação pelo descendente beneficiário (arts. 2.002 e seguintes do CC).

Citamos um exemplo para ilustrar. João tem dois filhos, Arthur e Manoel. Um deles – o Arthur – esforçou-se exitosamente na vida para obter uma condição profissional suficiente a garantir o necessário para sobreviver. Manoel, porém, preferiu o caminho dos deleites e ignorou qual16 “Art. 544. A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança”.

quer compromisso com estudos e profissão. Suponha que Manoel deu um neto ao João, aqui batizado de Manoelzinho. Nesse caso, como Manoel não possui condições financeiras para garantir a própria sobrevivência nem para custear o necessário para uma vida digna do Manoelzinho, é possível que João seja condenado, com base nas regras de Direito de Família, a:

a) a pagar pensão alimentícia tanto ao seu filho leviano (caso em que o valor da pensão corresponderá ao estritamente necessário para garantir-lhe a sobrevivência, conforme art. 1.694, § 2 º do CC17, que prevê os chamados “alimentos naturais ou necessários”) e

b) a, na condição de avô, suprir a carência financeira do pai, pagando pensão alimentícia ao neto em valor suficiente para assegurar-lhe um padrão social similar ao do avô (hipótese dos “alimentos côngruos ou civis”, sediados no art. 1.694, caput, do CC).

Suponha que João venha a óbito e tenha deixado um imóvel a ser partilhado. Nesse caso, indaga-se: é justo que, na partilha hereditária, Manoel, depois de ter, com sua negligência, consumido grande parte do patrimônio de seu pai com pensões alimentícias para si e para Manoelzinho, seja aquinhoado com uma porção igual à devida ao seu irmão Arthur?

Essa indagação torna-se mais complicada com a constatação de que, se João tivesse doado livremente uma quantia a Manoel (sem a coercitividade de uma pensão alimentícia judicialmente fixada), esse filho seria obrigado a trazer à colação esse valor para igualar a herança com seu irmão Arthur.

No caso concreto indicado no excerto acima, os valores pagos por João a título de pensão alimentícia

17 “Art. 1.694 Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.

(...)

§ 2º Os alimentos serão apenas os indispensáveis à subsistência, quando a situação de necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia”.

ao Manoel e aos filhos destes (alimentos avoengos) deverão ser deduzidos posteriormente do quinhão hereditário que seria devido ao Manoel quando da futura sucessão causa mortis de João, pois são antecipação de herança e, portanto, têm de ser colacionados (arts. 544 e 2.002 e seguintes do CC), vedada, porém, a reposição em dinheiro de que trata o parágrafo único do art. 2.003 do CC.

A resposta seria diferente se, no exemplo acima, Manoel fosse incapaz para o trabalho (ex.: tivesse severa deficiência física que o inabilitava ao trabalho).

Nesse caso, não seria cabível a colação dos valores pagos a título de alimentos.

3.2.7. Cobrança dos alimentos pagos ao ascendente em futura sucessão causa mortis

Indaga-se: o filho que paga pensão alimentícia ao seu pai poderia, em futura sucessão causa mortis cobrar o reembolso desses valores do espólio?

Entendemos que sim por uma interpretação teleológica do art. 1.696 do CC.

É dever dos filhos prestarem assistência material a seus pais, ainda mais quando estiverem idosos. Trata-se de dever decorrente do princípio da solidariedade familiar, que é realçado, se o pai já for idoso, pelo princípio da proteção integral do idoso.

Acontece que a finalidade desses alimentos é garantir a manutenção digna do ascendente, e não beneficiar economicamente, ainda que de forma indireta, outros herdeiros desse ascendente. Por essa razão, os alimentos pagos ao ascendente devem ser reembolsados pelo espólio futuramente, sob pena de reverter, por vias transversas, o sacrifício financeiro do alimentante aos outros herdeiros.

Exemplificaremos.

Suponha que João, já idoso, tem dois filhos, Artur e Gabriel. João ficou sem renda suficiente para se manter, apesar de ser titular de uma fazenda que, por conta de uma demanda judicial, não pode ser explo -

rada economicamente. Suponha que Artur é condenado a pagar pensão alimentícia ao João para a sua manutenção até a morte de João. Quando da morte de João, imagine que o valor atualizado das pensões pagas seja de cem mil reais. Considerando que a fazenda seja o único bem deixado por João e que ela valha cem mil reais, indaga-se: seria justo que essa fazenda fosse partilhada igualmente entre João e Gabriel?

Temos que não. O espólio teria de reembolsar João, entregando-lhe cem mil reais (o que, no exemplo, corresponderá ao valor da fazenda). João aí é credor do espólio, pois os alimentos pagos por ele ao ascendente geraram uma obrigação de restituir sujeito a uma condição suspensiva (a morte do alimentado).

Entendimento diverso acabaria por fazer com que a pensão alimentícia paga pelo Artur se revertessem em proveito financeiro do Gabriel, o que foge à intenção da legislação. De fato, se Artur não tivesse pago pensão alimentícia alguma, provavelmente a fazenda teria sido vendida pelo João para custeio de sua manutenção, de maneira que não haveria bem algum a partilhar quando de sua morte.

A solução acima nos parece plenamente compatível com a finalidade da legislação e não esbarra em nenhum óbice legal, nem mesmo no art. 426 do CC, que veda apenas atos negociais envolvendo herança de pessoa vida, o que não se confunde com o caso em pauta, que envolve um dever de restituição post mortem por força de um dever legal de alimentos.

3.2.8. Cobrança dos alimentos pagos a irmão em futura sucessão causa mortis ou no caso de futura prosperidade do irmão

Indaga-se: o irmão que pagou alimentos ao outro pode recobrar os valores pagos no caso de futura prosperidade do alimentado ou do espólio deste?

Entendemos que sim com base em uma interpretação teológica do art. 1.697 do CC. É que a finalidade dos alimentos aos irmãos é garantir a sobrevivência

deste, e não beneficiar, ainda que indiretamente, os herdeiros do alimentado.

Se o irmão que recebeu alimentos vem a prosperar futuramente, não há razão alguma para ele invocar a irrepetibilidade dos alimentos para se recusar a reembolsar o alimentante. Caso não haja esse reembolso, o alimentante terá, por vias oblíquas, beneficiado os futuros herdeiros do alimentado, os quais se beneficiarão do patrimônio mais robusto.

Igualmente, se o alimentado falece e deixa bens a partilhar, é forçoso que, antes da partilha, seja o irmão alimentante reembolsado para não suceder que os herdeiros se beneficiem indiretamente da pensão alimentícia que foi paga.

4. CONCLUSÃO E RESUMO

A irrepetibilidade dos alimentos não pode ser uma cantilena acriticamente reproduzida pelos civilistas, especialmente porque ela é uma construção doutrinária e jurisprudencial e não é regulamentada explicitamente em texto legal.

Neste artigo, apontamos diversas questões práticas polêmicas que demonstram a necessidade de a doutrina remodelar e flexibilizar a irrepetibilidade dos alimentos a depender do caso concreto.

Por fim, podemos resumir o que foi exposto da seguinte maneira:

a) Alimentos podem ser pecuniários ou in natura. Pensão alimentícia guarda sinonímia com o verbete “alimentos”, apesar de haver divergência doutrinária. Pensão é termo genérico que abrange, entre outros, os alimentos (capítulos 2.1. e 2.6.)

b) Quanto à origem, os alimentos podem ser legítimos (ou familiares), indenizativos e voluntários. O foco deste artigo são os primeiros (capítulos 2.1. e 2.2.).

c) Há utilidade prática em definir os tipos de alimentos e em distingui-los de outras

verbas alimentares, a exemplo de discussões acerca do cabimento da prisão civil, do afastamento da impenhorabilidade do bem de família, da constituição de capital como garantia de pagamento dos alimentos indenizativos etc. (capítulos 2.3., 2.4. e 2.5.).

d) A irrepetibilidade dos alimentos não tem previsão legal expressa, mas decorre de uma construção doutrinária e jurisprudencial que vem sendo relativizada paulatinamente (capítulo 3.1.)

e) Alimentos liminares (provisionais ou provisórios), se já pagos, não podem ser recobrados em razão da superveniência de sentença que afasta ou reduz a pensão, conforme Súmula nº 621/STJ (capítulo 3.2.1.).

f) A irrepetibilidade dos alimentos não impede que aquele que foi indevidamente compelido a pagar os alimentos obtenha o “reembolso qualificado” contra aquele que realmente tinha o dever alimentar (capítulo 3.2.2.).

g) Gestante que não obteve alimentos gravídicos pode pedir do pai reembolso das despesas adicionais ocasionadas pela gestação e pelo parto, observado o binômio necessidade-possibilidade (capítulo 3.2.3.).

h) Pai alimentante tem direito de exigir da mãe guardiã a prestação de contas acerca dos valores pagos a título de alimentos, mas o objetivo dessa ação não será o de apurar créditos, e sim o de supervisionar os interesses do filho alimentado (capítulo 3.2.4.).

i) A depender do caso concreto, o genitor guardião e gestor tem direito a uma compensação financeira (pró-labore) a ser incluído entre as despesas custeadas pela pensão alimentícia paga pelo outro genitor (capítulo 3.2.5.)

j) É cabível a colação dos alimentos prestados: (1) a filho maior, capaz e sem restrições de saúde significativas ao seu potencial laboral e (2) aos descendentes de qualquer grau desse filho. Nesses casos, em nome da irrepetibilidade dos alimentos e de outros princípios e valores do Direito Civil, a colação servirá apenas para igualar a legítima, com a ressalva de que, quando os bens do acervo forem insuficientes, o alimentando não se sujeitará ao dever de reposição pecuniária de que cuida o parágrafo único do art. 2.003 do Código Civil (capítulo 3.2.6.).

k) O filho que paga pensão alimentícia ao seu pai pode, em futura sucessão causa mortis, cobrar o reembolso desses valores do espólio (capítulo 3.2.7.).

l) Igualmente, irmão que paga alimentos ao outro pode cobrar dele o reembolso no caso de prosperidade superveniente deste ou pode pleitear a restituição do espólio (capítulo 3.2.8 .).

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. C urso de Direito Civil: famílias. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016.

OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de Oliveira. A Dúvida Jurídica Razoável e a Cindibilidade dos Efeitos Jurídicos (Texto para Discussão nº 245). Disponível em: <www.senado.leg.br/estudos>. Acesso em: 5 de mar. 2018. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, março, 2018-A

_________. A Segurança Hermenêutica nos vários Ramos do Direito e nos Cartórios Extrajudiciais: repercussões da LINDB após a Lei nº 13.655/2018. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, junho/2018. Disponível em: <www.senado.leg.br/estudos>. Publicado em março de 2018-B.

_________. Coronavírus, responsabilidade civil e honorários sucumbenciais. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-10/direito-civil-atual-coronavirus-responsabilidade-civil-honorarios-sucumbenciais>. Publicado em 10 de abril de 2020-A.

_________. Coronavírus, Responsabilidade Civil e Honorários Sucumbenciais: um espaço para a dúvida jurídica razoável. In: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; ROSENVALD, Nelson; DENSA, Roberta. Coronavírus e Responsabilidade Civil: impactos contratuais e extracontratuais. Indaituba/SP: Editora Foco, 2020-B, pp. 65-72.

ROSA, Conrado Paulino da. Curso de Direito de Família contemporâneo. Salvador: JusPodivm, 2018.

RÊGO, Vital do. Parecer nº 956, de 2014, da Comissão Temporária do Código de Processo Civil, sobre o Substitutivo da Câmara dos Deputados (SCD) ao Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 166, de 2010, que estabelece o Código de Processo Civil. Disponível em: <https://legis.senado. leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4202793&ts=1594037236911&disposition=inline>. Data de elaboração: 08/12/2004.

TARTUCE, Flávio. Da ação de prestação de contas de alimentos. Breve análise a partir da lei 13.058/14 e do novo CPC. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/coluna/ familia-e-sucessoes/222327/da-acao-de-prestacao-de-contas-de-alimentos-breve-analise-a-partir-da-lei-13058-14-e-do-novo-cpc>. Publicado em 24 de junho de 2015.

OS HERDEIROS LEGITIMÁRIOS NO DIREITO CIVIL

CONTEMPORÂNEO: AMPLIAÇÃO DA LIBERDADE DE TESTAR E PROTEÇÃO DOS VULNERÁVEIS

Palavras-chave

Direito sucessório. Liberdade de testamento. Herdeiros Legitimários.

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka

Professora Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FADUSP). Professora permanente do Programa de Mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenadora Titular da área de Direito Civil da Escola Paulista de Direito (EPD). Mestre, Doutora e Livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FADUSP). Fundadora e Diretora do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. Fundadora e Diretora do Instituto Brasileiro de Direito de Civil – IBDCivil. Ex Procuradora Federal. Advogada, árbitra, consultora jurídica e parecerista.

Este artigo foi, antes, apresentado à organização do VI Congresso do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil). Ele consiste em uma ampliação de tese que tenho defendido reiteradamente acerca da insubsistência da proteção obrigatória e sem ressalvas da legítima dos herdeiros necessários.

Resumo

A desconstrução dos institutos jurídicos para averiguar se sua utilidade e função social persistem nos tempos que se sucedem é uma atividade doutrinária importante para a evolução do direito. No caso da legítima, os fundamentos que motivaram sua criação e manutenção na antiguidade e na idade média - principalmente a copropriedade patrimonial entre as pessoas da família, a proteção do primogênito e a preservação do clã -, não fazem mais sentido nos dias de hoje. De igual maneira, os fundamentos modernos que justificariam a permanência da legítima no sistema, notadamente a solidariedade familiar e a função social da propriedade, são interpretadas de forma pouco coerente e, em um exame mais aprofundado, também não se sustentam. Portanto, é preciso que haja a modificação do sistema de sucessão legítima no Brasil, abolindo a reserva da legítima para os herdeiros chamados “necessários”, de modo a manter a ordem de sucessão apenas para a hipótese de ausência de testamento. Assim, a regra deve ser a da liberdade de disposição, de modo que cada pessoa terá ampla liberdade para testar, respeitada a meação, claro, se assim dispuser o regime matrimonial do testador. A exceção a essa regra é a hipótese de existirem herdeiros vulneráveis, devendo-se manter uma certa reserva de legítima em favor deles, se o testador os tiver. Os valores da solidariedade e da função social, que permeiam a constituição; bem como o da socialidade, que norteia o Código Civil, impedem que pessoas em situação de vulnerabilidade fiquem desamparadas quando seria possível ajudá-las.

1. INTRODUÇÃO

As normas jurídicas são pensadas para as pessoas, e não o oposto. O direito é frequentemente definido como uma ciência normativa, ou como uma ciência social aplicada, justamente por isto. O Direito não tem só valor científico, mas tem também valor prático, pois tanto mais valerá quanto maior for sua capacidade de solução de problemas sociais humanos. Desta premissa se retira a incontestável lição hermenêutica de que as necessidades de cada época moldam as normas jurídicas, adequando-as à vida social de cada período. As normas jurídicas devem ser elaboradas e interpretadas “sob medida” para cada época, sem adaptações impensadas – como que num estilo prêt-à-porter, poder-se-ia dizer – importadas de outros lugares sem esmerada revisão, ou derivadas de outros tempos sem criteriosa atualização. As normas jurídicas, pois, devem refletir o espírito de cada sociedade em cada tempo, havendo necessidade de estarem em constante evolução e atualização.

Nesse contexto, o papel do jurista envolve possuir um olhar crítico e questionador sobre a legitimidade e adequação de cada norma, no contexto social e histórico em que está inserida. Isso vale com ainda mais força para o Direito de Família e para o Direito das Sucessões. Tendo em vista que são ramos jurídicos que tratam precipuamente de temas existenciais, sua interpretação exige do jurisconsulto uma inteligência ainda mais sociológica, uma mais refinada sensibilidade emocional acerca das interações humanas, uma ausência de preconceitos, um sentimento de moderado tradicionalismo, tudo com a finalidade de bem receber o novo, quando este se mostrar como sendo o melhor caminho.

Isso não poderia ser diferente quando se estuda a legítima e seus destinatários, os herdeiros legitimários. Diversas novas questões afloram, e até mesmo

a permanência do instituto no sistema é posta em xeque, por conta disso. É preciso, pois, verificar seus contornos atuais e a relevância (ou não) de sua manutenção no sistema.

A análise desta eventual relevância da legítima no sistema jurídico atual passa por quatro principais temas de reflexão: (i) quais foram os fatores que outrora justificaram a criação do instituto; (ii) se são fatores ainda legítimos e relevantes nos dias atuais; (iii) quais são os motivos modernos para manter o instituto no sistema hoje; (iv) se esses motivos são suficientes para justificar o uso do instituto.

2. AS RAZÕES PELAS QUAIS A PROTEÇÃO DA LEGÍTIMA FOI CRIADA SE SUSTENTAM AINDA HOJE DE MODO A JUSTIFICAR A PERMANÊNCIA DESSE INSTITUTO NO DIREITO CIVIL CONTEMPORÂNEO?

A proteção da legítima remonta à antiguidade, principalmente às sociedades grega e romana, e havia, naquele tempo, um motivo muito claro para a existência de um sistema de legítima: a proteção das familiae e do acervo patrimonial transindividual titularizado por elas O termo família foi usado, neste momento, no sentido de sociedade entre pessoas, pois o conceito de família de outrora – e os deveres e direitos daí oriundos – era bastante diferente do que hoje se põe para nós.

Na sociedade grega, o direito dos filhos ao patrimônio da família surgia desde o nascimento deles, e não a partir da morte dos pais. Pontes de Miranda explica isso muito bem quando pontua que “os filhos já eram titulares do direito em comum. Telêmaco, ao falar dos bens de Ulisses [pai dele], dizia que eram ‘bens seus’, bem próprios (Odisseia, XVI, 128) Está em Plutarco (Licurgo, 16) o que se passava no direito espar-

tiata. Desde o nascimento, a compropriedade era adquirida pelo filho” 1

Algo similar valia na Roma antiga. O direito sucessório dos filhos era iniciado quando eles nasciam, e não quando os pais morriam. Existia uma verdadeira copropriedade entre os membros da família. O pater familiae, então, não tinha liberdade para dispor da parcela do patrimônio que já era cotitularizada pelos filhos. O único meio de consegui-lo seria por meio da deserdação do filho, de modo que somente então seria possível destinar a respectiva cota para outra pessoa segundo a discricionariedade do cabeça da família 2 . Anote-se que, inicialmente, a deserdação de um filho era mera liberalidade do pai. Então, na prática, contanto que houvesse deserdação, a liberdade para testar era muito vasta, já que o pai poderia se valer dessa prerrogativa para excluir herdeiros indesejados de sua sucessão e, assim, ficar livre para testar como desejasse. Só que posteriormente, no direito romano do império, conquanto o testamento continuasse a ser a principal forma de transmissão causa mortis, o testador precisava reservar, obrigatoriamente, da sua herança, aqueles bens necessários ao sustento dos familiares, e só deserdaria o filho se tivesse justa causa para tanto, ou seu testamento seria havido por nulo, o que se postulava por meio da ação chamada querela inofficiosi testamenti, fundada na quebra do dever de solidariedade familiar, ainda que na mais primitiva de sua forma, o dever de piedade (officium pietatis) 3

A Idade Média que se seguiu após a queda do império romano não alterou substancialmente esse ce -

1 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial Atualizado por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Paulo Luiz Netto Lôbo. São Paulo: RT, 2012. v. 55: Sucessão em geral e sucessão legítima. p. 103. Grifei.

2 Cf. MADALENO, Rolf. O fim da legítima. Revista IBDFam – Família e Sucessões, Belo Horizonte: IBDFAM, v. 16, p. 31-73, jul./ago. 2016, p. 34.

3 Cf. LEITE, Eduardo de Oliveira. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. XXI. p. 264.

nário, sobretudo porque os diversos feudos e reinos que surgiram continuaram utilizando as fontes jurídicas romanas, seja com intensidade maior (civil law) ou menor (common law)4 .

Posteriormente, as legislações codificadas continuaram a prever a proteção da legítima. O Code Civil francês, de 1804, a previu em diversos artigos, sendo os 912 e 913 os principais, segundo os quais a legítima seria de metade, e progrediria de acordo com o número de descendentes deixados 5 .

Nas Ordenações Filipinas, a sucessão legítima estava disciplinada nos títulos XCI a XCIV do Livro IV das Ordenações. Segundo as Ordenações, o filho poderia elaborar testamento, mas se tivesse os pais vivos, ou outros ascendentes, deveria reservar para eles duas partes da herança6 E também assim valia com

4 V. ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à teoria e à filosofia do direito, 3. ed., rev., atual. e ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, ultimo capítulo.

5 Transcrevo-os já com as redações atuais, após alteração de 2006:

Article 912 La réserve héréditaire est la part des biens et droits successoraux dont la loi assure la dévolution libre de charges à certains héritiers dits réservataires, s'ils sont appelés à la succession et s'ils l'acceptent. La quotité disponible est la part des biens et droits successoraux qui n'est pas réservée par la loi et dont le défunt a pu disposer librement par des libéralités.

Article 913 Les libéralités, soit par actes entre vifs, soit par testament, ne pourront excéder la moitié des biens du disposant, s'il ne laisse à son décès qu'un enfant le tiers, s'il laisse deux enfants le quart, s'il en laisse trois ou un plus grand nombre. L'enfant qui renonce à la succession n'est compris dans le nombre d'enfants laissés par le défunt que s'il est représenté ou s'il est tenu au rapport d'une libéralité en application des dispositions de l'article 845.

Conforme FRANCE. Code civil. Paris: [s.n.], 1804 (ano da publicação originária). Disponível em: <https://www.legifrance.gouv. fr/affichCode.do?cidTexte=LEGITEXT000006070721>. Acesso em: 16 de abril de 2018.

6 “e fallecendo o filho, ou filha com testamento, e sendo em idade para com direito o poder fazer, quer seja emancipado, quer stê em poder de seu pai (nos casos, em que o filho, que stá sob poder de seu pai, pode fazer testamento), deve necessariamente deixar as duas partes de seus bens à seu pai, ou à sua mãe, se os tiver, e da terça parte poderá ordenar, como lhe aprouver. E isto mesmo haverá lugar no avô e avó, e outros ascendentes, porque,

relação aos descendentes, eis que “não tendo o pai descendentes, nem ascendentes legítimos, poderá dispor de todos os seus bens, como quizer”7 o que, a contrario sensu, significa dizer que, em havendo descendentes, a disposição dos bens será limitada. Constava na Consolidação das Leis Civis de Teixeira de Freitas, a sucessão ab intestato era deferida primeiro aos descendentes, na falta deles, aos ascendentes e, na falta de uns e outros, aos colaterais até o décimo grau. Na falta de todos, deferir-se-ia ao cônjuge sobrevivente e, em último lugar, ao Estado (art. 959)8 . Os herdeiros necessários e suas legítima ficaram previstos nos artigos 1.006 a 1.014. O art. 1.006 dizia que “são herdeiros necessários os descendentes, e os ascendentes, capazes de succedêr á intestado [...]” 9 . Segundo a Consolidação, “os herdeiros tem direito á duas partes dos bens do testador, que só póde dispôr da sua terça” (art. 1.009), ou seja, a legítima era de dois terços da herança. O testamento que a violasse seria invalidado: “se o testadôr dispozér de toda a herança, preterindo os herdeiros necessarios, de cuja existência sabia, o testamento onde houver ascendentes, não herdará o irmão”, cf. PORTUGAL. Codigo Philippino, ou, Ordenações e leis do Reino de Portugal: recopiladas por mandado d’El-Rey D. Philippe I. Rio de Janeiro: Typ. Do Instituto Philomathico, 1870. Disponível em: <http://www2. senado.leg.br/bdsf/handle/id/242733>. Acesso em: 17 de maio de 2018, vol. IV, p. 936/937.

7 PORTUGAL. Codigo Philippino, ou, Ordenações e leis do Reino de Portugal: recopiladas por mandado d’El-Rey D. Philippe I. Rio de Janeiro: Typ. Do Instituto Philomathico, 1870. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242733>. Acesso em: 17 de maio de 2018, vol. IV, p. 942.

8 TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Consolidação das leis civis, vol. II. Ed. fac-sim. Baseada na ed. 1876 - Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. Disponível em: <http://www2.senado. leg.br/bdsf/handle/id/496206>. Acesso em: 15 de maio de 2018, p. 554.

9 TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Consolidação das leis civis, vol. II. Ed. fac-sim. Baseada na ed. 1876 - Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. Disponível em: <http://www2.senado. leg.br/bdsf/handle/id/496206>. Acesso em: 15 de maio de 2018, p. 602.

será nullo quanto á instituição; mas serão validos os legados, que couberem na terça” (art. 1.010)10

Depois, no projeto de Felício dos Santos, a previsão da limitação da liberdade de testar pela legítima foi mantida, conforme explica Felipe Carvalho em tese específica sobre o assunto11 . E essa proteção foi mantida inclusive com relação à fração qualificada de dois terços. O Projeto de Felício dos Santos definia o que era “legítima” no art. 1.749, dizendo que “legítima é a porção dos bens, de que o testador não póde dispor, e que a lei applica aos herdeiros legitimarios. Paragrapho unico. Esta porção consiste nas duas terças partes dos bens do testador, ao tempo da sua morte” 12

Como se sabe, o Código Civil de 1916 possuiu uma fase embrionária direta de pelo menos dezessete anos (desde 1899). Nesses anos de muitas discussões, uma das maiores na seara sucessória foi justamente a permanência (ou não) da legítima no sistema sucessório. Hoje, olhando em retrospecto, não causa espécie que essa discussão tenha surgido durante a tramitação daquela lei secular, haja vista suas fortes tendências individualistas e patrimonialistas, palavras que ora utilizo sem qualquer conotação crítica. Felipe Carvalho, dedicado historicista, escreve que “a limitação ou não da liberdade de testar pela existência de herdeiros considerados necessários foi o assunto mais polêmico e mais de -

10 TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Consolidação das leis civis, vol. II. Ed. fac-sim. Baseada na ed. 1876 - Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. Disponível em: <http://www2.senado. leg.br/bdsf/handle/id/496206>. Acesso em: 15 de maio de 2018, p. 605.

11 CARVALHO, Felipe Quintella Machado de. Contribuições de Joaquim Felício dos Santos para o direito das sucessões no Brasil: fragmentos da história do Código Civil brasileiro. Tese (doutorado em direito). Orient.: Giordano Bruno. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, 2017, p. 222.

12 SANTOS, Joaquim Felício dos. Projecto do codigo civil da Republica dos Estados Unidos do Brazil. Rio de Janeiro: Impr. Nacional, 1891. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/ handle/id/242342>. Acesso em: 16 de maio de 2018, p. 174.

batido do Código Civil em matéria de Direitos das Sucessões” 13 . Na missão de fortificar a autonomia privada, a legítima – enquanto reserva necessária de bens – quase caiu com o Código Civil de 1916, não fosse a intervenção resoluta do próprio pater do Código. Clóvis Beviláqua nos lembra que o fim da proteção da legítima chegou a ser aprovada no Senado, mas foi no final rejeitada na Câmara dos Deputados. Como se sabe, Clóvis era a favor da legítima, pois entendia que o instituto consagrava a função social da herança, tendo grande valor como instrumento de perpetuação familiar. O mais importante é que, no fim das contas, o Código Civil de 1916 manteve a proteção da legítima e dos herdeiros necessários, conforme constou da previsão do artigo 1.721: “O testador que tiver descendente ou ascendente sucessível, não poderá dispor de mais da metade de seus bens; a outra pertencerá de pleno direito ao descendente e, em sua falta, ao ascendente, dos quais constitui a legítima, segundo o disposto neste Código (arts. 1.603 a 1.619 e 1.723)” 14

Finalmente, apesar da passagem de quase um século entre um Código e outro, a proteção da legítima mais uma vez prevaleceu e continuou mantida no Código Civil de 2002, no art. 1.845, que determina: “são herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge” 15 , ao que se soma o

13 CARVALHO, Felipe Quintella Machado de. Contribuições de Joaquim Felício dos Santos para o direito das sucessões no Brasil: fragmentos da história do Código Civil brasileiro. Tese (doutorado em direito). Orient.: Giordano Bruno. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, 2017, p. 222.

14 Cf. BRASIL. União. Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916 [CC/16 – Código Civil]. Brasília: Congresso Nacional, 1916 [ano da publicação originária]. Portal da Legislação do Governo Federal. Disponível em: <http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%203.071-1916? OpenDocu ment>. Acesso em: 27 out. 2017.

15 BRASIL. União. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 [CC/02 – Código Civil]. Brasília: Congresso Nacional, 2002 [ano da publicação originária]. Portal da Legislação do Governo Federal 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/ L10406.htm>. Acesso em: 19 jun. 2017.

art. 1.846, que diz: “pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima” 16

Como é possível concluir, então – pelo que até aqui se registrou – a proteção da legítima teve origem na própria estrutura patrimonial das famílias na antiguidade. A titularização de patrimônio se dava de forma transindividual, de modo a prevalecer não a individualidade e idiossincrasias da personalidade de cada um dos membros, mas sim os interesses do grupo que compunha a família, dirigida por um chefe, notadamente um homem, que a administrava. Nessa perspectiva, existia entre os membros da família algo muito similar a um condomínio. Embora o patrimônio fosse administrado pelo chefe da família, o direito protegia, em alguns atos, os direitos dos demais membros. Ora, sendo assim, não é de se estranhar o sentimento de posse que os herdeiros poderiam ter com relação aos bens administrados pelos pais: eles não tinham mera expectativa de um dia receberem aqueles bens – na verdade, os bens teoricamente já eram deles mesmo! O simples fato de nascer já tornava uma pessoa titular de direitos hereditários, ao invés de esta ocorrência se dar somente a partir da morte do autor da herança. Assim, e partindo dessa premissa, havia todo o sentido em proteger uma parte dos bens do arbítrio do chefe da família, eis que, segundo o direito, ele poderia estar dispondo de bens que simplesmente não seriam dele.

Só que, claro, essa concepção foi ultrapassada há muitos séculos. Hoje o direito hereditário surge somente com a morte da pessoa e – ressalvadas algumas poucas proteções conferidas pela lei – os herdeiros não podem se sentir donos do patrimônio daquele que sucederão enquanto ele não tiver falecido. Não obstante, as leis continuaram a repetir a regra da proteção da legítima, muitas das vezes, creio, de forma impensada ou, para dizer de outro modo, ignorando aqueles motivos que justificaram em primeiro lugar a origem do instituto. Hoje, em tempos de individualização do patrimônio de cada pessoa, os

motivos que outrora justificaram a legítima não mais persistem no sistema e, em grande medida, essa categoria jurídica foi mantida por mero hábito e tradição, o que não causa grande surpresa pois o direito é, em geral, uma ciência tradicionalista e conservadora, como já se pontuou antes. Aliás, essa foi a mesma conclusão a que chegaram Eroulths Cortiano Jr. e André Luiz Arnt Ramos, em ótimo trabalho, com o qual concordo. Dizem os contemporâneos civilistas que “tem ganhado força o entendimento de que, hoje, não há mais razão pela qual qualquer pessoa deva ter a prerrogativa de sindicar parte do patrimônio de outra em virtude, apenas, de seu nascimento” 17

Portanto, no caso da legítima, os fundamentos que motivaram sua criação e manutenção na antiguidade e na idade média - principalmente a copropriedade patrimonial entre as pessoas da família, a proteção do primogênito e a preservação do clã -, não fazem mais sentido nos dias de hoje.

3. OS PRINCÍPIOS DA SOLIDARIEDADE

E DA FUNÇÃO SOCIAL SERVEM COMO MOTIVOS MODERNOS PARA A PERMANÊNCIA DA PROTEÇÃO DA LEGÍTIMA NO SISTEMA ATUAL?

A conclusão a que se chegou no item anterior - a de que os motivos que justificaram a criação da proteção da legítima, como forma de limitar a liberdade testamentária, não fazem mais sentido -, não é suficiente, de per si, para defender o afastamento desse instituto do direito civil contemporâneo. Isso porque a passagem do tempo trouxe outros fundamentos que, segundo alguns, justificariam a permanência dessa categoria jurídica no sistema. Esses são fundamentos mais modernos, dissociados daqueles vetustos, e defendidos por grandes nomes do con -

texto privatístico contemporâneo. São, pois, argumentos que merecem o devido respeito e consideração. Trata-se de um rol de alegações no sentido de que, existindo patrimônio, não se poderia deixar à míngua pessoas próximas àquele de cuja a herança se trata. Ademais, a legítima daria uma sensação de continuidade àquela determinada entidade familiar, sentimento esse que seria desejável do ponto de vista dos direitos das sucessões. Esses e outros argumentos similares podem ser reunidos sob duas grandes colunas argumentativas: a solidariedade familiar em seus reflexos sucessórios e a função social da propriedade aplicada ao Direito das sucessões.

No meu sentir, conquanto estes sejam princípios que realmente incidem sobre os fatos jurídicos sucessórios18 – tratam-se de premissas verdadeiras, portanto –, sua interpretação no sentido de manter a proteção da legítima se dá de forma pouco coerente e, em um exame mais aprofundado, estabelece uma construção quiçá insubsistente. Assim, a conclusão a que se chega a partir dessas premissas não é adequada. É o que passo a demonstrar.

3.1 Solidariedade e legítima

Com relação à solidariedade familiar, é preciso pontuar, em primeiro lugar, que ela envolve uma relação de deveres e direitos recíproca e bilateral. A solidariedade é uma via de duas mãos. Só que, de fato, nem sempre as relações de solidariedade coincidem com as relações de parentesco, mormente aquelas contempladas no rol de herdeiros necessários. Em outras palavras, embora seja claro que o

16Ibidem.

17 CORTIANO JR., Eroulths; RAMOS, André Luiz Arnt. Liberdade testamentária versus sucessão forçada: anotações preliminares sobre o direito sucessório brasileiro. In: Revista de Estudos Jurídicos e Sociais, n. 4. Cascavel: NEJUS, 2015, p. 67.

18 A solidariedade está positivada constitucionalmente e, portanto, incide sobre todos os ramos do direito brasileiro: “art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária”, cf. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 [CF/88]. Brasília: Congresso Nacional (Poder Constituinte), outubro de 1988. Portal da Legislação do Governo Federal: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao. htm>. Acesso em: 11 jul. 2017.

falecido tivesse deveres atrelados à solidariedade com relação aos membros de sua família, é igualmente verdade que ele tinha direitos de solidariedade relacionados a esses membros, sendo que, na prática, não necessariamente esse apoio viria dessas pessoas. Como se sabe, o apoio existencial e/ ou patrimonial necessário, a qualquer pessoa, pode vir das fontes mais improváveis, independentemente de parentesco. Então, um herdeiro necessário pode não ter sido, necessariamente, a pessoa mais solidária ao autor da herança, enquanto este viveu. Daí porque, então, pode não fazer sentido reservar uma parte do patrimônio do falecido para este ou aquele herdeiro necessário quando a vontade do autor da herança seria a de que seus bens fossem entregues a terceiro. E sobre isso, poder-se-ia objetar dizendo que – a prevalecer a premissa que ora proponho – o foco sairia da liberdade testamentária do autor da herança e iria para a “prova de quem mais o ajudou e o apoiou em vida”, para fins de comprovação de solidariedade. Isso não procede para o que estou a sustentar. Embora seja uma realidade a de que a solidariedade mais relevante para o agora autor da herança não tenha vindo necessariamente das pessoas tidas como suas herdeiras necessárias, não poderíamos admitir essa possibilidade de “prova da solidariedade”, sob pena de desvirtuarmos o próprio valor que ela contém: uma prestação desinteressada de apoio. Então, a decisão acerca do beneficiário da própria herança deveria caber somente ao autor daquela sucessão, pois se aos possíveis beneficiários fosse dada qualquer chance de pleitear para si a herança, como se direito subjetivo ela fosse, haveria a criação de uma situação em que toda a pessoa cujo falecimento se aproxima teria, talvez, próxima de si, verdadeiros corvos disfarçados, ostentadores de gentilezas fingidas, cujos olhares ocultariam os pensamentos não verdadeiros. Poderia acontecer que falsos agradadores e bajuladores esgueirar-se -

-iam e se acotovelariam para fazer provas de uma “solidariedade não solidária”, mas caída, deturpada, que depois lhes serviria para obter proveito econômico abjeto. Então, a preservação da legítima é um imperativo necessário à concretização da solidariedade familiar? Minha resposta, aprioristicamente, é negativa. E a decisão quanto ao endereçamento de seus bens Para depois de sua morte seria uma decisão que deveria caber apenas ao autor da herança e a mais ninguém.

3.2 Função social e legítima

O segundo principal fundamento trata de uma eventual incidência do princípio da função social da propriedade. Segundo a interpretação que pode se dar a este princípio, a continuidade do patrimônio familiar atende a uma função social, pois dá continuidade à família e, possivelmente, proverá os herdeiros com as condições materiais que eles precisam para sobreviver. Penso que as duas afirmações não são completamente verdadeiras. Em primeiro lugar, a propriedade atinge sua função social não porque esta ou aquela pessoa é sua titular, mas sim porque uma atividade socialmente relevante é exercida com aquele bem. Quer dizer, a função social da propriedade é aferida objetivamente; não subjetivamente. Aliás, tanto assim é que o tempo de usucapião é diminuído, em certas hipóteses legais, justamente quando atividades socialmente relevantes são exercidas no imóvel, e isso sem falar na previsão de IPTU progressivo no caso de não atendimento da função social da propriedade. Assim, não se pode afirmar que uma função social estaria atendida única e exclusivamente porque o bem está com um determinado herdeiro necessário, em vez de estar com outra pessoa indicada pelo falecido. Penso que isso poderia ser, quiçá, uma certa inversão da lógica da função social. Então, esse segundo fundamento – da função social da propriedade – também não se sustenta lo -

gicamente, pois é perfeitamente possível que um sucessor testamentário faça uso muito mais social do bem que herdou do que o herdeiro necessário faria, de modo que dizer que a existência da legítima de per se estimularia a função social da propriedade não é, propriamente, uma afirmação verdadeira.

Em argumento correlato, relacionada com a visão da herança como tendo uma função social em si, Clóvis Beviláqua, defensor declarado da legítima, conforme já afirmado anteriormente, sustentava que essa categoria jurídica tutelaria a família contra o arbítrio do indivíduo, “contra um impulso, momentâneo talvez, que sacrifica o bem-estar, senão a vida, de entes, que o testador tinha a obrigação de sustentar” 19 Com todas as vênias ao grande civilista, é necessário ter em mente que as pessoas não têm essa obrigação de sustentar seus parentes, salvo aqueles em favor de quem seriam devidos alimentos, como os menores, jovens adultos em formação universitária, idosos, enfermos, carentes etc. 2021 . Então, tal argumentação poderia, no máximo, sustentar-se com relação a esses, e só.

Além disso, há de se considerar que a liberdade de testar privilegia, do lado daquele que testa, o exercício de sua autonomia privada e o respeito à sua vontade com relação às suas situações existenciais e com o destino do patrimônio que com muito custo amealhou durante a vida. Soma-se a isso o fato de que, na prática, a liberdade de testar desenvolve a iniciativa e o desenvolvimento pessoal das pessoas possivelmente beneficiárias, na medida em que a pessoa não terá mais a certeza de que herdará. Hoje, sobretudo em famílias abastadas, a situação

19 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das sucessões cit., p. 753.

20 CF/1988: “Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.

21 CC/2002, “Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: [...] III – mútua assistência; IV – sustento, guarda e educação dos filhos” e “Art. 1.568. Os cônjuges são obrigados a concorrer, na proporção de seus bens e dos rendimentos do trabalho, para o sustento da família e a educação dos filhos, qualquer que seja o regime patrimonial”, entre outros.

do herdeiro é terrivelmente cômoda, pois a simples certeza de ocupar a posição de herdeiro necessário pode causar, sob o ponto de vista psicológico de muitos, a falta de incentivo para procurar melhores e maiores oportunidades de organizarem sua estrutura patrimonial própria. Mesmo que inconscientemente, essa situação legitima e possibilita a muitos a prerrogativa de renunciar ao próprio desenvolvimento como uma pessoa produtiva, simplesmente porque sua realidade sucessória não lhe exigiu isso. Ora, sendo assim, é possível concluir que, a partir do momento em que as pessoas não puderem mais ter certeza de que herdarão, haverá um incentivo legal para que cada um busque conseguir se posicionar em atividades que garantam o próprio sustento. Contrario sensu, a prevalecer a tese hoje predominante e legalizada, patrocina-se a um verdadeiro desestímulo à necessidade de trabalhar.

Aliás, neste ponto, pode-se perfeitamente afirmar que justamente a ausência da previsão da legítima é que estimula o princípio da socialidade. Na medida em que a proteção à parte reservatária em prol dos herdeiros necessários lhes serve como desestímulo ao trabalho, o instituto acaba tendo um efeito antissocial, isto é, lesivo ao bem comum da sociedade, pois interessa a todos que as pessoas sejam produtivas e que haja geração de riqueza que, depois, poderá ser utilizada para tirar mais pessoas da pobreza e para proporcionar realização profissional e pessoal aos cidadãos. Logo, se o fim da legítima tem o condão de estimular o trabalho e o aprimoramento profissional, é claro que essa é a opção que mais estimula a função social do direito, em vez da política que lhe é oposta.

O próprio Clóvis Beviláqua chegou a enfrentar esse argumento de que a legítima desestimularia o trabalho e reconheceu que este é o mais relevante contra a tese dele. Aquele doutrinador mesmo assim defendia a legítima, alegando que o direito sucessório não poderia assumir para si essa responsabilidade de

ensinar aos outros o valor do trabalho. Isso é “de berço”, fruto da educação que a família e a escola devem dar para cada um22 . Apesar de não se poder negar razão ao grande jurista, é preciso temperar esse entendimento com a realidade brasileira. Na hipótese de a educação familiar e formal não terem cumprido seus papéis, é melhor contar com um possível estimulante ao labor do que ter a legítima garantida de modo a patrocinar o ócio improdutivo.

CONCLUSÃO

Apresentados os prós e os contras da manutenção da legítima no sistema jurídico sucessório, e reiterando posição manifestada anteriormente por mim23 Flávio Tartuce e Rolf Madaleno24 , é tempo de rever a proteção obrigatória da legítima e a vedação, trazida por ela, de disposição integral do patrimônio do falecido por meio de testamento. Da forma como vejo, não há como sustentar que pessoas plenamente capazes e independentes, a quem o falecido já não teria que pagar alimentos, deveria ter qualquer direito ao patrimônio que o agora autor da herança amealhou durante a vida, mormente quando ele expressa que gostaria que esse patrimônio fosse direcionado a outras pessoas.

Esses beneficiários da proteção da legítima não deveriam ter qualquer direito a ela ou, pelo menos, a legítima deveria ser novamente reduzida, talvez para uma proporção de, digamos, 25% (vinte e cinco por cento) do patrimônio do falecido. Até porque, como se sabe, a legítima só deveria assegurar o mínimo existencial ou o patrimônio mínimo da pessoa huma-

22 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das sucessões, cit., p. 754.

23 Por ocasião do parecer conjunto que escrevi com Flávio Tartuce e José Fernando Simão, a respeito da proposta de projeto de lei de reforma do Direito das Sucessões realizada pelo IBDFam. Também já me manifestei sobre o assunto recentemente na XXIII Conferência Nacional da Advocacia Brasileira, que ocorreu entre os dias 27 e 30 de novembro de 2017 na cidade de São Paulo/SP, cujo objetivo foi participar do painel “Família e Sucessões – temas polêmicos e atuais”, abordando o tópico “repensando sobre a função da legítima”.

24 V., por todos, MADALENO, Rolf. O fim da legítima, Revista IBDFam, cit., p. 31-73.

na, na esteira da tese desenvolvida por Luiz Edson Fachin 25 , não devendo estimular o ócio exagerado por parte dos herdeiros necessários. A legítima precisa deixar de ser, como já afirmava Orlando Gomes com todas as letras, uma verdadeira “fábrica de vagabundos” Nesse sentido, a redução ou mesmo extinção desse direito provavelmente trará maior desenvolvimento social e crescimento econômico para o Brasil, estimulando o trabalho e a vida produtiva, que tanto enobrece o ser humano nos planos pessoal e social.

Há de se pontuar, por fim, que a questão realmente fica mais delicada com relação ao grupo de pessoas vulneráveis, como os herdeiros incapazes, os herdeiros com deficiência e/ou os herdeiros idosos, a quem o falecido, se vivesse, naturalmente teria dever de sustento ou de prestar alimentos. Em casos assim, dever-se-á reservar, para essas pessoas, patrimônio mínimo suficiente para lhes garantir a subsistência digna, devendo ser mantida (tão somente para tais pessoas) uma previsão de legítima.

4. Referências

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TÉCNICAS DE ACELERAÇÃO DA PARTILHA NO CPC/2015

Palavras-chave

Partilha. Inventário. Celeridade Processual. Direito das Sucessões.

Ricardo Calderón

Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal do Paraná-UFPR. Diretor Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Coordenador da especialização em Direito das Famílias e Sucessões da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Professor de diversos cursos de pós-graduação. Pesquisador do grupo de estudos “Virada de Copérnico”, vinculado ao PPGD-UFPR. Vice-presidente da Comissão de Direito de Família da OAB-PR. Advogado em Curitiba. Sócio do escritório Calderón Advogados. calderon@calderonadvogados.com.br

1. INTRODUÇÃO

O procedimento da partilha judicial de bens tem apresentado inúmeras dificuldades no cenário brasileiro, o que resulta em uma usual lentidão no equacionamento de casos que apresentem algum litígio. A demora em finalizar uma divisão patrimonial litigiosa é um dado histórico que marca a nossa realidade jurídica.

Com ciência disso, o Código de Processo Civil de 2015 trouxe algumas alterações que claramente visam alterar esse cenário de morosidade na partilha.

Os mecanismos implementados pela legislação processual em vigor ofertam soluções mais eficazes e céleres, constituindo-se em exemplo da constitucionalização do direito processual civil, pois permitem efetivar o direito à herança e a razoável duração do processo, garantidos no art. 5º, incisos XXX e LXXVIII da nossa Constituição Federal.

Os processos de partilha litigiosa há muito são conhecidos pela lentidão na efetivação dos direitos pleiteados, com severa dificuldade em garantir resultados concretos aos litigantes. No âmbito do Direito das Sucessões, a morosidade era tão marcante que se encontravam inúmeros casos de inventários que tramitam há décadas, nos quais um único herdeiro gozava da posse e do uso da totalidade ou da maior parte dos bens, desfrutando do patrimônio sem compartilhá-lo com os herdeiros restantes, os quais restariam alijados de qualquer benefício até que chegue o fim do processo.

A realidade não era muito diferente no Direito de Família, afinal, existiam casos de divórcio em que, após a separação de fato dos cônjuges, somente um deles usufruía, exclusiva e unilateralmente, dos bens comuns ainda não partilhados. Os eventuais lucros decorrentes de tais bens ficavam somente com um

dos cônjuges, restando ao outro aguardar a finalização da partilha e a divisão definitiva dos bens.

O desequilíbrio processual entre as partes estimulava a que uma delas a não se interessasse pela resolução do processo de partilha, já que se encontrava em situação mais “vantajosa”. Porém, com as alterações processuais do CPC/15, é possível modificar tal contexto, pois o texto em vigor trouxe outra forma de tutela desses direitos e um procedimento diverso.

O escopo é a entrega do direito material pleiteado com a maior brevidade possível

Importa compreender os contornos dessa nova forma de resolução da partilha, a qual – até o momento – parece ainda não totalmente aplicada na realidade forense.

2. ADIANTAMENTO DE QUINHÃO – ART. 647

Uma das inovações trazidas pelo CPC/15 é a redação do art. 647, que prevê a facilitação da antecipação do uso dos bens cuja divisão é discutida no processo litigioso.

As alterações propostas têm o intuito de levar à maior celeridade, eficácia e efetividade na resolução dos litígios de partilha. Destaque que essa preocupação perpassa outra regras do mesmo Código, o que fica perceptível no regramento das Tutelas Provisórias, previstas no Livro V da Parte Geral do CPC/15.

Quanto à partilha, a leitura do parágrafo único do art. 647 permite perceber que foi criada uma “tutela provisória sui generis” no âmbito do procedimento da partilha. Confira-se o art. 647, caput e parágrafo único:

Art. 647. Cumprido o disposto no art. 642, § 3º , o juiz facultará às partes que, no prazo comum de 15 (quinze) dias, formulem

o pedido de quinhão e, em seguida, proferirá a decisão de deliberação da partilha, resolvendo os pedidos das partes e designando os bens que devam constituir quinhão de cada herdeiro e legatário.

Parágrafo único. O juiz poderá, em decisão fundamentada, deferir antecipadamente a qualquer dos herdeiros o exercício dos direitos de usar e de fruir de determinado bem , com a condição de que, ao término do inventário, tal bem integre a cota desse herdeiro, cabendo a este, desde o deferimento, todos os ônus e bônus decorrentes do exercício daqueles direitos.

(Grifo nosso)

Este dispositivo traz uma das principais inovações do CPC/15 e, bem aplicado, pode impor uma outra dinâmica no curso dos processos litigiosos de partilha. Isso porque, mesmo sem necessidade de demonstrar qualquer urgência, permite que o juízo desde logo distribua melhor o uso do acervo em discussão entre os litigantes. Tal proceder pode evitar que uma das partes fique “super-empoderada” e busque dificultar a finalização do processo.

Para Flávio Tartuce (2022, p. 689), a previsão legal supracitada pretende melhor efetivar o direito fundamental de herança:

o objetivo do novo preceito é que o herdeiro possa fruir plenamente do que tem direito, concretizando-se a herança como direito fundamental. Em suplemento há a efetivação do droit de saisine, retirado do art. 1.784 do Código Civil, pelo qual, aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.

Conrado Paulino da Rosa e Marco Antonio Rodrigues apontam que a mudança trazida pelo art. 647 do CPC/15 ao Direito das Sucessões representa

a criação de uma tutela provisória de evidência no bojo do inventário:

Com efeito, tem-se uma tutela provisória no inventário, na medida em que é concedida ao herdeiro providência que antecipa efeitos da eventual sentença de partilha, que lhe atribuirá aquele bem em seu quinhão – tanto assim, que o parágrafo único em questão exige que o bem cujos uso e fruição foram garantidos ao herdeiro integre o quinhão deste ao término do inventário. Considerando que o art. 647 não exige risco de dano ao requerente, para que obtenha tal antecipação, estamos diante de mais uma forma de tutela provisória de evidência, que é aquele que decorre de evidências do direito invocado, sem a necessidade de demonstração de risco de dano ou de perigo ao resultado útil do processo, conforme prevê o art. 311 do CPC. Uma vez imitido na posse de tais bens, passa o herdeiro a ter o uso e a fruição destes, e por isso deverá arccar com os ônus decorrentes de tal parcela do patrimônio do falecido (2019, p. 402-403).

(Grifo nosso).

Paulo Guilherme Mazini argumenta no mesmo sentido, entendendo que tal dispositivo traria a hipótese de uma tutela de evidência na partilha:

O Código de Processo Civil trouxe uma inovação no direito das sucessões, ao estabelecer expressamente a possibilidade de antecipação de uso e fruição de parcela do quinhão hereditário por qualquer dos herdeiros. A rigor, não havia óbice sob a égide do Código revogado, a que o herdeiro pudesse usar e fruir de um determinado bem integrante do espólio antes da realização da partilha, inclusive porque o herdeiro poderia formular pedido neste sen -

tido, com fundamento no regime da tutela antecipatória.

Ocorre que, neste caso, o herdeiro deveria comprovar o periculum in mora para a concessão da tutela, o que tornava mais difícil a sua concessão. [...]

A previsão inserida no art. 647, parágrafo único, do Código de Processo Civil, modifica este panorama, pois permite que o juiz autorize a qualquer dos herdeiros o uso e fruição de um dado bem integrante do espólio pelo qual tenham interesse, mediante o condicionamento de que o referido bem passe a integrar a sua cota hereditária.

[...]

Em nenhum momento é exigida a presença do periculum in mora para que esta tutela sumária possa ser deferida em favor de qualquer herdeiro. Por esta ótica, não restam dúvidas de que estamos diante de tutela pautada na técnica da evidência – fora do rol de hipóteses normativas disciplinadas no art. 311, I a IV do Código – que não impõe a urgência como requisito para a sua concessão e que se satisfaz com o juízo de verossimilhança para este propósito, em franco prestígio à efetividade da jurisdição (2020, p. 66-68).

(Grifo nosso)

Como percebe-se, esta inovação se propõe a prestigiar a efetividade da jurisdição nos processos de partilha, acelerando parte da tutela que é almejada, com a facilitação da obtençaõ de uma tutela provisória antes do término do inventário. O dispositivo em comento pode permitir uma resolução mais efetiva das partilhas judiciais, podendo-se afirmar que sua aplicação correta pode servir para minimizar eventual disparidade presente, destinando antecipadamente alguns bens para a parte que estava desprovida de bens. Nota-se um incentivo para que haja um

equilíbrio no deslinde processual, com o fito de desencorajar práticas procrastinatórias.

O intuito é evitar que a parte que detenha a posse dos bens usufrua deles de forma exclusiva e unilateral por anos, impedindo que as outras partes desfrutem do uso dos bens até a resolução da partilha.

Apesar dos institutos em questão se encontrarem na parte do Código que aborda o Direito das Sucessões, eles também se aplicam aos casos de partilhas conjugais – que ocorrem nos processos de divórcio e de dissolução de união estável –, conforme previsto pelo parágrafo único do art. 731 do próprio CPC1

A aplicação do dispositivo supracitado pode permitir uma maior participação, equidade e autonomia às partes processuais com essa permissão para pedidos antecipados de uso de certos bens.

Em tal sentido, há um julgado do Tribunal de Justiça do Paraná que determinou o pagamento somente de metade (ao invés da totalidade) dos alugueres de imóvel pendente de partilha, à título de antecipação de quinhão sucessório:

DIREITO SUCESSÓRIO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE INVENTÁRIO. DECISÃO QUE DETERMINOU O DEPÓSITO EM JUÍZO DOS ALUGUERES DOS IMÓVEIS PERTENCENTES AO ESPÓLIO - INSURGÊNCIA DAS HERDEIRAS LEGÍTIMAS (FILHAS) - IMÓVEIS A ELAS DESTINADOS POR TESTAMENTO - AÇÃO ANULATÓRIA AJUIZADA PELA VIÚVA - ALEGAÇÃO DE MEAÇÃO - RECURSO DE APELAÇÃO PENDENTE - POSSIBILIDADE DE REFORMA - PLEITO SUBSIDIÁRIO PARA QUE A OBRIGAÇÃO SEJA LIMITADA A 50% DOS ALUGUERES - POSSIBI -

1 Art. 731. (...) Parágrafo único. Se os cônjuges não acordarem sobre a partilha dos bens, far-se- á esta depois de homologado o divórcio, na forma estabelecida nos arts. 647 a 658.

LIDADE - ARTIGO 647, P. ÚNICO, DO CPC. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.

(TJPR - 11ª C. Tribunal de Justiça do Paraná TJ-PR - Agravo de Instrumento: AI 15025922 PR 1502592-2)

(Grifo nosso)

O próprio Superior Tribunal de Justiça já reconheceu a previsão do art. 647 do CPC/15 como uma inovação cuja intenção é garantir maior autonomia às partes:

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INVENTÁRIO. CELEBRAÇÃO DE NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL ATÍPICO. CLÁUSULA GERAL DO ART. 190 DO NOVO CPC. AUMENTO DO PROTAGONISMO DAS PARTES, EQUILIBRANDO-SE AS VERTENTES DO CONTRATUALISMO E DO PUBLICISMO PROCESSUAL, SEM DESPIR O JUIZ DE PODERES ESSENCIAIS À OBTENÇÃO DA TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA, CÉLERE E JUSTA. (...). NEGÓCIO JURÍDICO ENTRE HERDEIROS QUE PACTUARAM SOBRE RETIRADA MENSAL PARA CUSTEIO DE DESPESAS, A SER ANTECIPADA COM OS FRUTOS E RENDIMENTOS DOS BENS. AUSÊNCIA DE CONSENSO SOBRE O VALOR EXATO A SER RECEBIDO POR UM HERDEIRO. ARBITRAMENTO JUDICIAL. (...). REVISÃO DO VALOR QUE PODE SER TAMBÉM DECIDIDA À LUZ DO MICROSSISTEMA DE TUTELAS PROVISÓRIAS. ART. 647, PARÁGRAFO ÚNICO, DO NOVO CPC. SUPOSTA NOVIDADE. TUTELA PROVISÓRIA EM INVENTÁRIO ADMITIDA, NA MODALIDADE URGÊNCIA E EVIDÊNCIA, DESDE A REFORMA PROCESSUAL DE 1994, COMPLEMENTADA PELA REFORMA DE 2002. CONCRETUDE AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO E DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO. HIPÓTESE ESPECÍFICA DE TUTELA PROVISÓRIA DA EVIDÊNCIA QUE OBVIAMENTE NÃO EXCLUI DA APRECIAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO PEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA.

(...)

11- O fato de o art. 647, parágrafo único, do novo CPC, prever uma hipótese específica de tutela provisória da evidência evidentemente não exclui da apreciação do Poder Judiciário a pretensão antecipatória, inclusive formulada em ação de inventário, que se funde em urgência, ante a sua matriz essencialmente constitucional.

(STJ - REsp: 1738656 RJ 2017/02643545, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Publicação: DJ 30/11/2018).

(Grifo nosso)

Finalmente, cabe salientar que a deliberação prevista pelo art. 647, parágrafo único do CPC/2015, é proferida antes da resolução do processo, ou seja, trata-se de uma decisão interlocutória. Nesse sentido, quanto à recorribilidade de tal decisão, essa deve ser realizada mediante interposição de agravo de instrumento, conforme previsão do art. 1.015, parágrafo único do CPC 2

O efeito prático disso é que o recurso contra tal decisão não possui efeito suspensivo automático, de modo que a efetividade de uma decisão desse mister pode ser mais contundente que uma própria sentença, pois essa usualmente é atacada por recurso com efeito suspensivo.

3. PARTILHA INDIVIDUALIZADA E PREVENÇÃO DE LITÍGIOS FUTUROS

Ao tratarmos de inventário e partilha importa anotar que muitos temas são regulados tanto pelo Código Civil quanto pelo Código de Processo Civil (TARTUCE; MAZZEI, 2016, p. 591). Atualmente, é crescente a compreensão de que o processo civil deve ser um instrumento de entrega dos direitos materiais que são pleiteados, o que deve ser feito com a maior celeridade possível.

Outro exemplo dessa preocupação é encontrado no art. 648 do CPC/15, o qual traz regras para o julgamento da partilha, as quais também indicam em uma busca por celeridade e efetividade:

Art. 648. Na partilha, serão observadas as seguintes regras:

I - a máxima igualdade possível quanto ao valor, à natureza e à qualidade dos bens;

II - a prevenção de litígios futuros;

III - a máxima comodidade dos coerdeiros, do cônjuge ou do companheiro, se for o caso.

Para Humberto Theodoro Júnior, o dispositivo supracitado traz a inclusão das três regras tradicionais que formam o critério para realização da boa partilha, cuja observância agora deve ocorrer com base previsão presente no CPC. O autor expõe que

O critério que preside a boa partilha inspira-se em três regras tradicionais, ora incorporados ao novo Código como normas a serem observadas.

De acordo com a primeira, os quinhões devem, em qualidade e quantidade, propiciar bens iguais para os diversos herdeiros, seja no bom, seja no ruim, no certo e no duvidoso. Todavia, mormente quando o monte-mor seja constituído de vários e extensos imóveis, o princípio da igualdade não exige a participação de todos os sucessores em todos os bens do espólio. A igualdade realmente obrigatória é a econômica, que se traduz na formação de quinhões iguais, segundo a avaliação do acervo.

Pelo princípio da comodidade, deve-se atentar na partilha às condições pessoais de cada sucessor, de modo a atender a interesses profissionais, de vizinhança, de capacidade administrativa etc. [...]

tar, quanto possível, a comunhão entre os aquinhoados na partilha, o excessivo retalhamento de glebas isoladas para um só herdeiro, a instituição desnecessária de servidões etc (2016, p. 739).

Flávio Tartuce (2022, p. 690-692) também destaca as inovações trazidas pelo CPC/15 no campo da interpretação da partilha:

Observa-se que o art. 648 do CPC/2015 inaugura, no sistema processual, regras de interpretação para a partilha, o que não constava da legislação instrumental anterior Acredita-se que tais máximas representarão uma grande revolução no tratamento do tema, instituindo definitivamente a colaboração e a boa-fé processual e material no instituto em questão [...].

A primeira regra a ser considerada é a de máxima igualdade possível na divisão, seja quanto ao valor, seja quanto à natureza e à qualidade dos bens. Na verdade, essa premissa já constava do art. 2.017 do Código Civil de 2002, segundo o qual, “no partilhar os bens, observar-se-á, quanto ao seu valor, natureza e qualidade, a maior igualdade possível”.

Trata-se do princípio da igualdade da partilha, regramento importantíssimo para o instituto em estudo [...].

A segunda regra de interpretação da partilha, constante do inciso II do art. 648 do CPC/2015, é a de prevenção de litígios futuros, seguindo a linha da diminuição de conflitos adotada pela nova norma instrumental (cultura de paz). Em casos tais, a mediação e a conciliação sempre poderão ser utilizadas para os fins de facilitar a partilha.

2 Art. 1.015 do CPC. Parágrafo único. Também caberá agravo de instrumento contra decisões interlocutórias proferidas na fase de liquidação de sentença ou de cumprimento de sentença, no processo de execução e no processo de inventário.

Por força da regra prevista no inciso II, prevenção de litígios, recomenda-se evi -

Como terceira premissa para a interpretação de como se dá a partilha, fixa-se a máxima comodidade dos coerdeiros, do côn -

juge ou do companheiro (art. 648, inciso III, do CPC/2015).

Aqui, destaca-se que o código é expresso em asseverar que “a prevenção de litígios futuros será observada” no tocante à partilha, visando promover a facilidade e celeridade de tal procedimento, visto que o próprio juiz, sob a égide do CPC/15, pode proceder à partilha individualizada e pormenorizada dos bens, a fim de evitar demandas cíveis futuras acerca dos quinhões. Na prática, essas disposições determinam que o juiz não deverá mais partilhar a integralidade dos bens em porcentagens ou partes iguais para os envolvidos, de maneira a evitar litígios futuros decorrentes dessa divisão que respeita a igualdade formal, mas não a igualdade material.

A ideia trazida pelo dispositivo ora analisado é de que o juiz, enquanto incentivador da igualdade substancial e da comodidade máxima da partilha (nos termos dos incisos do art. 648 do CPC), deve determinar que seja feita, desde o logo, uma partilha atenta às necessidades das partes, com a atribuição dos quinhões a cada um dos coerdeiros.

Para Fernanda Tartuce e Rodrigo Mazzei (2016, p. 600), o conteúdo do art. 648 do CPC trata especificamente da situação da partilha realizada por decisão de juiz, devido à sua posição lógica posterior ao art. 647, devendo ele intervir na partilha quando não houver o consenso entre as partes e seguir as regras de divisão previstas no art. 648. Os autores entendem que

[...] é evidente que o artigo 648 do CPC/15 não pode ser lido desapegado da sua posição lógica e geográfica. Isso porque a regra processual antecedente – o artigo 647 do CPC/15 (que substitui o artigo 1.022 do Código de 1973) – indica que o artigo 648 está tratando de situação em que a partilha será feita por decisão do juiz (substitutiva da vontade das partes), pois os herdei -

ros postulam o seu quinhão próprio, não havendo consenso sobre a partilha. Justamente pelas razões dispostas no artigo 647 que o juiz interferirá na situação (sem consenso geral) e, com a orientação, no artigo 648 do CPC/15 (que refina a redação do artigo 2.017 do Código Civil), fará a divisão que deverá (I) contemplar a maior igualdade possível (seja quanto ao valor, seja quanto à natureza, seja quanto à qualidade dos bens), (II) previna litígios futuros e (III) conceda a amaior comodidade dos coerdeiros, do cônjuge ou do companheiro (2016, p. 600).

Para exemplificar essa situação, pode-se citar os vários casos em que a herança deixada pelo de cujus consistia em dois imóveis para dois herdeiros, de forma que a partilha garantia 50% de cada imóvel para cada um, em copropriedade, deixando-os em condomínio, em um indesejável “cada um como sócio do outro em tudo”. A formalização dessa partilha não encerrava o litígio, afinal, as partes necessitariam propor outras demandas cíveis para realmente ver tais bens partilhados de forma factível.

A alteração trazida pelo art. 648 do CPC/2015 possibilita que o juiz, nos próprios autos de partilha, determine que esta seja feita na proporção de um imóvel para cada um dos herdeiros, garantindo mais celeridade e efetividade, além de atender melhor aos interesses das partes.

Para exemplificar a atuação do juiz como incentivador da partilha mais cômoda, pode-se citar a seguinte jurisprudência do Tribunal de Justiça do Paraná:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE SEPARAÇÃO

JUDICIAL LITIGIOSA EM FASE DE LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA. DECISÃO

AGRAVADA QUE RESTRINGIU O OBJETO DA LIQUIDAÇÃO. PRELIMINAR DE INTEMPESTIVIDADE. AFASTAMENTO.

Não prospera a alegação de que o recurso seria intempestivo, pois a decisão agrava-

da analisou expressamente questões trazidas pelo Agravante posteriormente ao que fora anteriormente decidido. MÉRITO. PRETENSÃO DE QUE OUTROS BENS PARTILHADOS PELA SENTENÇA SEJAM OBJETO DA LIQUIDAÇÃO. ACOLHIMENTO, PARA VIABILIZAR QUE AS PARTES POSSAM, EVENTUALMENTE, ALCANÇAR DIVISÃO CÔMODA, NOS TERMOS DO ART. 648, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL , AFASTANDO O CONDOMÍNIO.

Não obstante a sentença tenha determinado a partilha dos bens pertencentes aos conviventes na proporção de 50% (cinquenta por cento) para cada um, inexiste impedimento de que referidos bens sejam, todos, avaliados em liquidação de sentença, permitindo que as partes busquem uma partilha mais cômoda, nos termos do art. 648, do CPC, na busca de evitar o condomínio dos bens. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

(TJPR - 12ª C.Cível - 002411047.2020.8.16.0000 - Curitiba - Rel.: DESEMBARGADORA IVANISE MARIA TRATZ MARTINS - J. 12.08.2020) (Grifo nosso).

4. PARTILHA DE BENS INSUSCETÍVEIS DE DIVISÃO CÔMODA

Outra relevante alteração realizada pelo CPC/15 no procedimento da partilha é encontrada no art. 649 do CPC o qual prevê que, caso os bens sejam insuscetíveis de divisão cômoda, tais bens devem ser licitados ou vendidos judicialmente no próprio inventário, partilhando-se e individualizando-se os valores apurados.

Veja-se a redação do dispositivo:

Art. 649. Os bens insuscetíveis de divisão cômoda que não couberem na parte do cônjuge ou companheiro supérstite ou no

quinhão de um só herdeiro serão licitados entre os interessados ou vendidos judicialmente, partilhando-se o valor apurado, salvo se houver acordo para que sejam adjudicados a todos.

O texto legal é taxativo ao afirmar que, inexistindo acordo, eventual bem que não seja possível destinar para o quinhão de apenas um dos herdeiros (insuscetível de divisão cômoda) será vendido no bojo do próprio processo de partilha, pelo juízo que está a presidir esse feito, entregando aos litigantes o valor em espécie apurado com a venda. Para tanto, deverá ser marcada a respectiva alienação judicial.

O regulamento em questão – que não possui correspondente na legislação processual anterior – traz outra realidade para as partilhas, promovendo um equacionamento mais dinâmico e eficaz. Acredita-se que, com o simples agendamento de leilão de imóvel em disputa ou da empresa a ser partilhada, haverá o incentivo a soluções céleres e consensuais entre as próprias partes. Ou seja, de maneira indireta, a aplicação do dispositivo supracitado pode levar à ocorrência da autocomposição entre os herdeiros, que dificilmente deixarão seus bens irem à leilão (situação em que o valor apurado é, geralmente, inferior ao valor de mercado).

Ademais, tal previsão legal procura evitar a formação de condomínio entre as partes, de modo a se respeitar a autonomia privada e a maior comodidade para cada herdeiro , o que também deve ser uma preocupação do juízo que preside um processo de partilha.

No caso de inexistência do consenso na adjudicação em conjunto, pode-se buscar guarida no Código Civil – já que a partilha possui normas previstas tanto neste códex quanto no CPC –, como nos seguintes casos trazidos por Helder Moroni Câmara (2016, p. 818-819):

3. Adjudicação pelo cônjuge ou por um ou mais herdeiros. Não havendo consenso na adjudicação em conjunto, o art. 2.019 do CC/2002 prevê a possibilidade de adjudicação pelo cônjuge sobrevivente ou por um ou mais herdeiros, desde que se reponha aos outros, em dinheiro, a diferença após a avaliação atualizada.

4. Preferência ao cônjuge sobrevivente . A preferência de adjudicação é do cônjuge sobrevivente, seja na condição de meeiro ou herdeiro (art. 2.019, CC/2002). Embora o dispositivo em comento não o diga expressamente, a mesma regra vale para o companheiro sobrevivente.

Emerge cristalina a necessidade de que os operadores atentem com atenção para os dispositivos de partilha constantes da legislação processual, de forma a obter maior celeridade e efetividade na entrega do direito material pleiteado.

5. INDENIZAÇÃO POR USO

EXCLUSIVO DE BEM COMUM

O tema da fixação de aluguel por uso exclusivo de bem comum durante os processos de partilha (tanto conjugal quanto sucessória) é outro de grande discussão jurisprudencial e doutrinária. Apesar do uso do termo “aluguel”, entende-se que seria mais adequado tratar do pagamento de um valor em compensação pelo uso exclusivo de bem comum, afinal, não trata-se de uma locação.

Na realidade, tais situações discutem a fixação de indenização a ser paga em favor daquele que encontra-se privado da posse direta do bem. A terminologia “aluguel” decorre do método utilizado para fixação de tal indenização, que é baseada no valor estimado que seria auferido em caso de locação do imóvel em questão, mensalmente.

O Superior Tribunal de Justiça vem deliberando a respeito da fixação de compensação financeira

àquele que se vê privado do uso de bem comum, inclusive antes mesmo da partilha, conforme decidido no REsp 1250362/RS, de relatoria do Ministro Raul Araújo, julgado em 2017:

1. Na separação e no divórcio, sob pena de gerar enriquecimento sem causa, o fato de certo bem comum ainda pertencer indistintamente aos ex-cônjuges, por não ter sido formalizada a partilha, não representa automático empecilho ao pagamento de indenização pelo uso exclusivo do bem por um deles, desde que a parte que toca a cada um tenha sido definida por qualquer meio inequívoco. 2. Na hipótese dos autos, tornado certo pela sentença o quinhão que cabe a cada um dos ex-cônjuges, aquele que utiliza exclusivamente o bem comum deve indenizar o outro, proporcionalmente (STJ, REsp 1250362/RS, Rel. Min. Raul Araújo)

Cabe destacar que o arbitramento de tal indenização pode ocorrer através de decisões prévias à sentença – por intermédio de tutelas provisórias ou decisões parciais de mérito –, escpecialmente antes da partilha, visto que o que importaria seria a relação de posse mantida com o bem (exclusiva de uma das partes). Isso significa que o fato gerador da compensação é a posse exclusiva no caso concreto, de forma que o fato de o bem comum ainda pertencer a ambas as partes, já que a partilha não foi finalizada, não obstaria o pagamento de indenização por uso exclusivo do bem comum em determinados casos.

É possível encontrar deliberações sobre esse tema mesmo em tribunais estaduais, sendo esse um dos aspectos que aparecem com cada vez mais constância em inúmeras decisões:

FAMÍLIA. APELAÇÃO CÍVEL. DEMANDA DE DIVÓRCIO CUMULADA COM PARTILHA DE BENS E ARBITRAMENTO DE ALUGUEL POR USO EXCLU -

SIVO DE BEM COMUM . SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA. RECURSO DA AUTORA. PARTILHA DE AUTOMÓVEIS. NÃO COMPROVAÇÃO PELA REQUERENTE DE QUE OS VEÍCULOS FAZIAM PARTE DO ACERVO PATRIMONIAL DO CASAL QUANDO DA SEPARAÇÃO DE FATO. PARTE QUE NÃO SE DESINCUMBIU DO ÔNUS DE PROVAR O FATO CONSTITUTIVO DE SEU DIREITO. INC. I, ART. 373 DO CPC. NÃO PROVIMENTO NO PONTO. INDENIZAÇÃO POR USO EXCLUSIVO DOS IMÓVEIS. SENTENÇA QUE DETERMINOU SUA OCORRÊNCIA ENTRE A CITAÇÃO ATÉ O TRÂNSITO EM JULGADO DA DECISÃO. PRETENSÃO RECURSAL DE QUE SE ESTENDA ATÉ A ULTIMAÇÃO DA PARTILHA. PROVIMENTO. INDENIZAÇÃO QUE DEVE SER MANTIDA ATÉ QUE CESSE O USO EXCLUSIVO DO BEM PELO APELADO, QUE PODERÁ, EVENTUALMENTE, OCORRER ATÉ A DISSOLUÇÃO DO CONDOMÍNIO. ARTIGOS 1.319 E 1.326 DO CC.RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.

(TJPR - 12ª C.Cível - 000727706.2019.8.16.0188 - Curitiba - Rel.: DESEMBARGADORA IVANISE MARIA TRATZ MARTINS - J. 09.05.2022)

(Grifo nosso)

Mesmo que a maioria dos casos de fixação de indenização por uso de bem comum sejam referentes ao uso exclusivo de imóvel, não existem óbices ao pedido de arbitramento de compensação pelo uso exclusivo de outros tipos de bens e direitos (como veículos e participação em empresas, por exemplo).

Obviamente que será o caso concreto quem indicará o cabimento ou não de tal medida.

Embora o intuito da fixação de indenização do uso de bem comum seja evitar o enriquecimento ilícito

de uma das partes, é necessário compreender que existem exceções à regra, como quando o uso exclusivo do bem decorre de motivo justo e exercício regular de direito, conforme explica Ana Vládia Martins Feitosa (2022, p. 90):

É fato inconteste que o uso exclusivo pode se originar de situações distintas ou então se apresentar de formas peculiares, que, por vezes, atrairá a legitimidade para tanto, não havendo que se cogitar de qualquer enriquecimento ilícito e, por conseguinte, direito à indenização. Longe disso, haverá justo motivo e exercício regular de um direito, em casos que envolvam, por exemplo, a ocupação do imóvel comum do casal pela prole ou pelo ex-consorte que fazem jus a alimentos, pela mulher submetida à situação de violência doméstica e familiar sob a tutela de uma Medida Protetiva de Urgência fundada na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06).

Isso é possível, pois a vedação ao enriquecimento ilícito como norma principilógica não é absoluta, devendo sua aplicação ser compatibilizada com outros princípios, que consagram axiologicamente a dignidade da pessoa humana na maior medida do possível.

Uma das situações de relativização da vedação ao enriquecimento ilícito no caso de uso exclusivo de bem comum é a narrada no Resp. n. 1.966.556/SP, de relatoria do Min. Marco Aurélio Bellizze, no qual foi reconhecido o descabimento do arbitramento de aluguel pelo uso exclusivo do bem comum pela vítima de violência doméstica, nos seguintes termos:

RECURSO ESPECIAL. CÍVEL. IMÓVEL EM CONDOMÍNIO. POSSE DIRETA E EXCLUSIVA EXERCIDA POR UM DOS CONDÔMINOS. PRIVAÇÃO DE USO E GOZO DO BEM POR COPROPRIETÁRIO EM VIRTUDE DE MEDIDA PROTETIVA CONTRA ELE DECRETADA. ARBI -

TRAMENTO DE ALUGUEL PELO USO EXCLUSIVO DA COISA PELA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. DESCABIMENTO. DESPROPORCIONALIDADE CONSTATADA E INEXISTÊNCIA DE ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E DESPROVIDO.

(...) ‘’Outrossim, a imposição judicial de uma medida protetiva de urgência – que procure cessar a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher e implique o afastamento do agressor do seu lar – constitui motivo legítimo a que se limite o domínio deste sobre o imóvel utilizado como moradia conjuntamente com a vítima, não se evidenciando, assim, eventual enriquecimento sem causa, que legitimasse o arbitramento de aluguel como forma de indenização pela privação do direito de propriedade do agressor.’’

(REsp n. 1.966.556/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, DJe de 17/2/2022.)

(Grifo nosso).

Outra hipótese em que a cobrança de indenização por bem comum foi relativizada encontra-se na decisão proferida no Resp n. 1.699.013/DF, na qual não foi fixada tendo em vista que a filha comum do casal residia no local. No caso em questão, o uso exclusivo do imóvel por um dos ex-cônjuges foi visto como parcela in natura dos alimentos, a serem pagos pelo outro ex-cônjuge que não usufrui do bem, uma vez que o ex-cônjuge que reside no imóvel comum mora com a filha do ex-casal, da seguinte forma:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE ARBITRAMENTO DE ALUGUEL. EX-CÔNJUGE QUE RESIDE NO IMÓVEL COMUM COM A FILHA DO EX-CASAL, PROVENDO O SEU SUSTENTO. USO EXCLUSIVO E ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. NÃO CARACTERIZAÇÃO.

1. O uso exclusivo do imóvel comum por um dos ex-cônjuges - após a separação ou o divórcio e ainda que não tenha sido formalizada a partilha - autoriza que aquele privado da fruição do bem reivindique, a título de indenização, a parcela proporcional a sua quota-parte sobre a renda de um aluguel presumido, nos termos do disposto nos artigos 1.319 e 1.326 do Código Civil. [...] 3. Na hipótese dos autos, desde o divórcio das partes, o ex-marido reside no imóvel comum em companhia da filha (cujo sustento provê quase que integralmente), sem efetuar nenhum pagamento a ex-esposa (coproprietária) a título de aluguel. [...] 8. Como fundamento secundário, o fato de o imóvel comum também servir de moradia para a filha do ex-casal tem a possibilidade de converter a “indenização proporcional devida pelo uso exclusivo do bem” em “parcela in natura da prestação de alimentos” (sob a forma de habitação), que deverá ser somada aos alimentos in pecunia a serem pagos pelo ex-cônjuge que não usufrui do bem - o que poderá ser apurado em ação própria -, sendo certo que tal exegese tem o condão de afastar o enriquecimento sem causa de qualquer uma das partes. [...]

(REsp n. 1.699.013/DF, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe de 4/6/2021.)

(Grifo nosso).

Esta fixação de contrapartida financeira pelo uso exclusivo de bem comum também tem aparecido em partilhas sucessórias:

PROCESSO CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. COPROPRIEDADE EM RAZÃO DE HERANÇA. UTILIZAÇÃO DO IMÓVEL POR APENAS UM HERDEIRO. COBRANÇA DE ALUGUÉIS. 1. É devido aluguéis aos coproprietários do imóvel por aquele que utiliza o bem comum. 2. Tratando -

-se de herança, o beneficiário pelo uso do bem deve pagar aos requerentes a cota relativa ao quinhão de cada um. 3. Recurso não provido.

(TJDF 07347955520198070001 DF 0734795-55.2019.8.07.0001, Relator: MARIO-ZAM BELMIRO, Data de Julgamento: 04/08/2021, 8ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE: 13/08/2021. Pág.: Sem Página Cadastrada.)

(Grifo nosso)

O arbitramento de compensação por uso exclusivo de bem comum é outra maneira de tentar impedir que determinado herdeiro, por estar na posição vantajosa de posse direta dos bens, prolongue indevidamente a duração do processo.

Como visto, atualmente há diversas técnicas que podem permitir uma “aceleração” da partilha, conferindo maior celeridade e efetividade a esses processos, sendo que a compreensão das inovações do CPC/15, com os “olhos do novo”, desvelará a riqueza constante de tais dispositivos.

6. REFERÊNCIAS

CÂMARA, Helder Moroni. Código de Processo Civil: comentado. São Paulo: Almedina, 2016.

FEITOSA, Ana Vládia Martins. Relativização do princípio do enriquecimento sem causa na visão do STJ In: Rui Portanovam, Rafael Calmon (Org.). Regime de comunhão parcial de bens. Indaiatuba/ SP: Editora Foco, 2022. p. 73-99.

MAZINI, Paulo Guilherme. Tutela de evidência: perfil funcional e atuação do juiz à luz dos direitos fundamentais do processo. São Paulo: Alemedina, 2020.

ROSA, Conrado Paulino da; RODRIGUES, Marco Antonio. Inventário e Partilha Salvador: Editora JusPodivm, 2019.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Sucessões. 15 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2022.

TARTUCE, Fernanda; MAZZEI, Rodrigo. I nventário e partilha no CPC/15: pontos de destaque na relação entre os direitos material e processual. In: Rodrigo Mazzei; Fernanda Tartuce; Sérgio Barradas Carneiro. (Org.). COLEÇÃO REPERCUSSÕES DO NOVO CPC – V.15 – FAMÍLIAS E SUCESSÕES. 1a.ed.Salvador: Editora Juspodivm, 2016, v. 15, p. 589-609.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Código de Processo Civil anotado Colaboradores: Humberto Theodoro Neto, Adriana Mandim Theodoro de Mello, Ana Vitória Mandim Theodoro. 20. ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

Edição 45 Ano 2024

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