Revista Científica da ESA: Reforma do Código Civil - Ed. 47

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Gestão 2022/2024

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GESTÃO 2022/2024

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Filosofia e Sociologia do Direito: Viviane Vidigal Castro

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Prevenção e Solução Extrajudicial De Litígios:

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Privacidade e Proteção de Dados: Ricardo Freitas Silveira

Recuperação Judicial e Falência: Ivan Lorena Vitale Junior

Responsabilidade Civil:

Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade Nery

Teoria Geral do Direito: Nehemias Domingos de Melo

Violência Doméstica e Gênero:

Bruna Soares Angotti Batista de Andrade

Sumário

APRESENTAÇÃO

1. OS ANIMAIS NO ANTEPROJETO DE REFORMA DO CÓDIGO CIVIL: NEM COISAS, NEM PESSOAS

Vicente de Paula Ataíde Junior

2. IDENTIDADE DIGITAL NO BRASIL: SEGURANÇA E DESENVOLVIMENTO

Layla Abdo Ribeiro de Andrada 16

3. A DESINDEXAÇÃO NA REFORMA DO CÓDIGO CIVIL

Marco Aurélio Bellizze

Ricardo Campos

4. O DIREITO CONTRATUAL NO ANTEPROJETO DE REVISÃO E ATUALIZAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL

Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk 23

5. A DOAÇÃO DO CÔNJUGE PARA

TERCEIROS E A REFORMA DO CÓDIGO CIVIL

Eroulths Cortiano Junior 25

6. RESPONSABILIDADE CIVIL, IMPUTABILIDADE DO DANO E GARANTIA DO RECEBIMENTO DO CRÉDITO NA ATUALIZAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL

Rosa Maria Barreto B. de Andrade Nery 29

7.O VALOROSO TRABALHO DA COMISSÃO DE REFORMA DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO: PERSPECTIVAS PARA O DIREITO DE DANOS

André Luiz Arnt Ramos

8.A DISCIPLINA DA RESPONSABILIDADE CIVIL POR RISCO DA ATIVIDADE NA REFORMA DO CÓDIGO CIVIL

Nelson Rosenvald 35

9.A REFORMA DO CÓDIGO CIVIL E O ART. 931

Marcelo Junqueira Calixto 38

10. A IMPORTÂNCIA DA MULTIFUNCIONALIDADE DA RESPONSABILIDADE CIVIL

Patrícia Carrijo

Maria Cristina Santiago

12. A REFORMA DA IGUALDADE

Ana Cláudia Scalquette

13. A CLÁUSULA DO PÔR-DO-SOL (SUNSET CLAUSE) NO DIREITO DE FAMÍLIA

Pablo Stolze Gagliano

14. PACTOS CONJUGAIS E CONVIVENCIAIS E O ANTEPROJETO DE REVISÃO DO CÓDIGO CIVIL

Luciana Faisca Nahas

15. A REFORMA DO CÓDIGO CIVIL E AS ALTERAÇÕES A RESPEITO DO PARENTESCO E DA PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA

Flávio Tartuce

16. REFORMA DO CÓDIGO CIVIL, MITO DO “MINI” CÔNJUGE E COMBATE À DESIGUALDADE DE GÊNERO

Mário Delgado

17. A HERANÇA DIGITAL NA PROPOSTA DE ATUALIZAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL: PROTEGENDO SEU PATRIMÔNIO DIGITAL

Laura Porto

ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA

São Paulo, OAB SP - 2024

COORDENAÇÃO TÉCNICA

COORDENADOR GER AL

Adriano de Assis Ferreira

COORDENADOR ACADÊMICO

Erik Chiconelli Gomes

COORDENADOR AUDIOVISUAL Ruy Dutra

PROJETO GRÁFICO

Rubia Duarte

FALE CONOSCO

Rua Cincinato Braga, 37, 13º andar

São Paulo/ SP

Tel. .55 11.3346.6800

Pubicação Trimestral ISSN - 2175-4462

Direitos - Periódicos.

Ordem dos Advogados do Brasil

Apresentação

A 47ª edição da Revista Científica Virtual da ESA OAB SP marca um momento significativo na evolução do pensamento jurídico brasileiro, oferecendo uma análise aprofundada e multifacetada das propostas de atualização do Código Civil. Esta edição especial reúne um conjunto notável de artigos que refletem as profundas transformações sociais, tecnológicas e jurídicas que nossa sociedade enfrenta nos limiares do século XXI. Os trabalhos aqui apresentados não apenas examinam as mudanças propostas, mas também oferecem reflexões instigantes sobre suas implicações para o futuro do direito civil no Brasil.

A coletânea inicia-se com o artigo de Vicente de Paula Ataíde Junior, "Os animais no anteprojeto de reforma do Código Civil: Nem coisas, nem pessoas", que aborda uma das questões mais polêmicas transmitidas da reforma: o status jurídico dos animais. O autor traçou uma fascinante evolução conceitual, desde a controversa classificação inicial dos animais como "objetos de direito" até a inovadora redação final do art. 91-A, que os autoriza como "seres vivos sencientes". Esta mudança representa uma revolução no pensamento jurídico, alinhando o Código Civil com interpretações contemporâneas do art. 225 da Constituição Federal e refletindo uma crescente consciência social sobre o bem-estar animal.

Avançando para a era digital, Layla Abdo Ribeiro de Andrada nos apresenta "Identidade digital no Brasil: segurança e desenvolvimento". Neste artigo visionário, o autor explora as implicações da implementação da identidade digital no Brasil, inspirada em regulamentações europeias de vanguarda. Andrada delineia os benefícios potenciais desta medida revolucionária para o acesso aos serviços públicos e privados, ao mesmo tempo em que aborda com clareza os desafios técnicos e legais que acompanham esta transição para a cidadania digital.

O direito ao esquecimento na era da informação é abordado por Marco Aurélio Bellizze e Ricardo Campos em "A desindexação na Reforma do Código Civil". Os autores examinam a inclusão deste direito no novo livro dedicado ao direito digital do Código Civil, explorando o conceito de desindexação como uma ferramenta essencial para a proteção da privacidade em uma sociedade cada vez mais digitalizada.

Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, em "O Direito Contratual no anteprojeto de revisão e atualização do Código Civil", oferece uma análise perspicaz dos quatro vetores fundamentais que orientam a revisão do Direito Contratual. Seu trabalho destaca o delicado equilíbrio entre a socialidade do Código Civil de 2002 e o valor social da livre iniciativa, refletindo as complexidades das relações contratuais contemporâneas.

A temática das doações é abordada por Eroulths Cortiano Junior em "A doação de participação para terceiros e a reforma do Código Civil". O autor examina as implicações jurídicas da doação de bens entre parceiros e terceiros, fornecendo insights importantes sobre como a reforma busca abordar essas questões cada vez mais relevantes na sociedade moderna.

Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade Nery contribui com "Responsabilidade civil, imputabilidade do dano e garantia da cobrança do crédito na atualização do Código Civil", oferecendo uma visão detalhada das mudanças propostas no sistema de responsabilidade civil. Sua análise ilumina a lógica por trás dessas alterações, mudando para garantir uma segurança jurídica adequada em um contexto social em constante evolução.

André Luiz Arnt Ramos, em "O valoroso trabalho da Comissão de Reforma do Código Civil Brasileiro: perspectivas para o Direito de Danos", reflete sobre o papel crucial da Comissão de Revisão e Atualização do Código Civil no refinamento do governo jurídico das relações entre particulares , especialmente no Direito de Danos. O autor analisa a natureza pragmática dos enunciados normativos indeterminados do Código Civil Brasileiro de 2002, que se caracterizam como uma segunda onda codificatória. Ele destaca a importância dessa abordagem legislativa para garantir a previsão do trabalho legislativo, a coerência interinstitucional e a adaptação às contingências da vida nas sociedades contemporâneas

1 Pós-Doutorando – FDUSP. Doutor e Mestre em História Econômica na Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Economia do Trabalho (Unicamp) e Direito do Trabalho (USP). Bacharel em Ciências Sociais, Direito e História (USP). Coordenador Acadêmico e do Grupo de Pesquisa e Estudos na Escola Superior de Advocacia (ESA/OABSP).

Nelson Rosenvald aprofunda a discussão sobre responsabilidade civil em “A disciplina da responsabilidade civil por risco da atividade na reforma do Código Civil”. O autor explora como a reforma aborda a responsabilidade relacionada ao risco de atividade, destacando sua natureza multifuncional e suas implicações para diversos setores da sociedade.

Aprofundando ainda mais as discussões sobre responsabilidade civil, Marcelo Junqueira Calixto traz uma contribuição fundamental com seu artigo "A reforma do Código Civil e o art. 931". Neste trabalho meticuloso, Calixto se debruça sobre um dos dispositivos mais controversos do Código Civil de 2002: o artigo 931. Este artigo, que trata da responsabilidade dos empresários individuais e das empresas pelos danos causados pelos produtos postos em circulação, tem sido objeto de intenso debate doutrinário desde sua concepção. Calixto habilmente navega pelas complexidades deste dispositivo, explorando as razões pelas quais sua pertinência tem sido questionada, especialmente à luz do regime especial de "responsabilidade pelo fato do produto" estabelecido no Código de Defesa do Consumidor. O autor nos leva por uma jornada, discutindo as propostas iniciais de revogação do artigo 931 no anteprojeto de reforma do Código Civil, e culminando com uma análise da nova redação proposta no Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil.

Complementando esta perspectiva, Patrícia Carrijo discute “A importância da multifuncionalidade da responsabilidade civil”, explorando as diversas funções que este conceito jurídico assume na sociedade contemporânea e como a reforma do Código Civil busca incorporar essa complexidade.

Maria Cristina Santiago traz uma perspectiva única em "Usucapião familiar na atualização do Código Civil: um olhar à luz da proteção das vulnerabilidades". Seu artigo analisa as propostas de reforma sob a ótica da usucapião familiar, destacando a importante interseção entre o direito civil e a proteção de grupos vulneráveis na sociedade.

Ana Cláudia Scalquette oferece uma reflexão crítica em "A reforma da igualdade", examinando as mudanças propostas no Código Civil sob a perspectiva do princípio da igualdade. Seu trabalho aborda as adequações permitidas para alinhar o código com os princípios constitucionais de igualdade, refletindo as demandas contemporâneas por equidade.

No âmbito do Direito de Família, Pablo Stolze Gagliano apresenta "A cláusula do pôr-do-sol (Sunset Clause) no Direito de Família", analisando a introdução deste conceito inovador e suas implicações para a autonomia privada nas relações familiares. Este artigo oferece uma perspectiva fascinante sobre como o direito de família está se adaptando às mudanças nas dinâmicas relacionais modernas.

Luciana Faisca Nahas contribui com "Pactos conjugais e convivenciais e o anteprojeto de revisão do Código Civil", examinando as propostas de mudanças em relação aos acordos entre parceiros e companheiros. Seu trabalho destaca a importância crescente da autonomia da vontade nas relações familiares e nos desafios legais associados.

Flávio Tartuce aborda um tema de crescente relevância social em "A reforma do Código Civil e as alterações a respeito do parentesco e da parentalidade socioafetiva". Seu artigo analisa como as mudanças propostas buscam refletir sobre as realidades familiares contemporâneas, apoiando a importância dos laços afetivos na definição de parentesco.

Mário Delgado, em "Reforma do Código Civil, mito do 'mini' participar e combater à desigualdade de gênero", oferece uma visão crítica das propostas de reforma no Direito Sucessório. Seu trabalho destaca a importância de abordar questões de desigualdade de gênero no contexto das heranças, refletindo uma consciência crescente sobre equidade no direito civil.

Finalizando esta edição, Laura Porto nos leva ao futuro digital com "A herança digital na proposta de atualização do Código Civil: Protegendo seu patrimônio digital". Seu artigo aborda a inclusão pioneira da herança digital na reforma do Código Civil, destacando a necessidade urgente de regulamentação legal para a transmissão de ativos digitais após a morte, um tema que ganha cada vez mais relevância em nossa sociedade hiperconectada.

Esta 47ª edição da Revista Científica Virtual da ESA OAB SP representa uma contribuição inestimável para o debate jurídico e social sobre a modernização do ordenamento civil brasileiro. Os artigos aqui reunidos não apenas analisaram as mudanças propostas, mas também convidam à uma reflexão profunda sobre o papel do direito civil em uma sociedade em rápida transformação. Esta coleção de trabalhos destaca os desafios e oportunidades que surgem neste processo de atualização legislativa, oferecendo contribuições para acadêmicos, profissionais de direito e legisladores envolvidos nesta importante tarefa de modernização do Código Civil.

OS ANIMAIS NO ANTEPROJETO DE REFORMA DO CÓDIGO CIVIL: NEM COISAS, NEM PESSOAS

Vicente de Paula Ataíde Junior

Juiz Federal no Paraná. Professor do Departamento de Direito Civil e Processual Civil da Universidade Federal do Paraná. Professor da pós-graduação da Universidade Federal do Paraná. Doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Membro da Comissão de Direito Socioambiental da Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE).

Certamente um dos temas mais polêmicos e disputados, dentro da reforma do Código Civil, com amplo interesse popular e intensa cobertura midiática, foi a revisão e a atualização da natureza jurídica dos animais e dos temas que lhe são derivados.

A natureza jurídica dos animais na Parte Geral do Código Civil

Como se sabe, a Parte Geral do Código Civil não defi ne a natureza jurídica dos animais. A qualifi cação tradicional dos animais como  bens semoventes é decorrente da  interpretação dada, sobretudo, ao atual art. 82, considerando que os animais são “suscetíveis de movimento próprio”, “sem alteração da substância ou da destinação econômica-social”.

A primeira proposta de reforma, contida no relatório da Subcomissão da Parte Geral, criando um art. 82-A no Código Civil, causou, de fato, uma tremenda preocupação, dado que qualifi cava os animais como “objetos de direito”. Essa mesma qualifi cação novamente constou do relatório fi nal (de 26/2), com a diferença que deslocava o dispositivo para o art. 91-A, ainda no livro dos bens.

Essa preocupação transcendeu os trabalhos da Comissão e gerou uma reação do Ministério do Meio Ambiente e

Mudança do Clima, que emitiu nota técnica contrária a essa qualifi cação dos animais como objetos de direito, por entendê-la como retrocesso em termos de proteção do meio ambiente e dos animais.

Os embates em torno dessa qualifi cação surtiram efeito, de modo que, nas sucessivas redações do artigo apresentadas pela relatoria geral, a expressão “objetos de direito” foi suprimida do proposto art. 91-A.

O art. 91-A, aprovado pela Comissão e constante do anteprojeto de reforma do Código Civil, é o seguinte:

“Seção VI Dos Animais

Art. 91-A. Os animais são seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial.

§ 1º A proteção jurídica prevista no caput será regulada por lei especial, a qual disporá sobre o tratamento físico e ético adequado aos animais.

§ 2º Até que sobrevenha lei especial, são aplicáveis, subsidiariamente, aos animais as disposições relativas aos bens, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza, considerando a sua sensibilidade.”

Parece um pouco mais do que evidente que o  caput do art. 91-A é um avanço em termos de natureza jurídica dos animais: não são qualificados como coisas, nem como bens, mas pelo que efetivamente são, ou seja, seres vivos sencientes, tal qual se extrai na interpretação do inciso VII, parágrafo primeiro, do art. 225 da Constituição.

A precisa e exata qualificação jurídica dos animais foi delegada à lei especial (§ 1º), a qual, no entanto, precisará respeitar dois vetores fundamentais: (1) deverá dispor sobre um tratamento físico e ético adequado aos animais; (2) deverá respeitar a natureza especial dos animais, enquanto seres vivos sencientes, por isso passíveis de proteção jurídica especial.

É possível crer que a construção da lei especial para proteger juridicamente os animais deverá ser fatiada, ou seja, várias leis especiais deverão ser aprovadas para constituir um estatuto dos animais, dada a diversidade de características entre as espécies de animais e os diferentes graus de dependência e vulnerabilidade em relação aos seres humanos, sobretudo entre animais domésticos e silvestres, o que poderia gerar dificuldades para a aprovação de um único estatuto geral dos animais.

Mas, o texto aprovado embute um perigo: a adoção do regime subsidiário de bens aos animais, enquanto não vier a lei especial exigida para a sua definitiva qualificação jurídica (§ 2º).

Não obstante esse perigo de manter os animais no passado, ainda qualificados como bens, é de se notar que a aplicação desse regime subsidiário de bens é  atenuada ou mitigada, pois apenas serão aplicáveis aos animais as disposições sobre bens, que não forem incompatíveis com a sua natureza especial de seres vivos sencientes.

Isso quer dizer que, mesmo com esse regime patrimonial transitório, não se descarta a possibilidade de se atribuírem  direitos a animais, pois isso está de acordo com a sua natureza especial de seres vivos sencientes e dotados de dignidade própria, como quer a Constituição,

Mais do que isso, esse regime subsidiário de bens, por ser aplicado de forma mitigada aos animais, de maneira a respeitar o estatuto da senciência, não perturba as leis estaduais mais avançadas, as quais já definem animais como sujeitos de direitos ou atribuem aos direitos determinados direitos fundamentais (Santa Catarina, 2018; Paraíba, 2018; Espírito Santo, 2019; Rio Grande do Sul, 2020; Minas Gerais, 2020; Roraima, 2022; Pernambuco, 2022; Goiás, 2023; Amazonas, 2023 e Distrito Federal, 2024).

De qualquer forma, o Congresso Nacional poderá adotar uma alternativa a esse regime subsidiário de bens: o  regime de entes jurídicos despersonalizados. Como entes jurídicos despersonalizados, os animais deixam, definitivamente, a natureza jurídica de bens, ainda que não ingressem, como poderiam, na definição de pessoas.

Também nos parece possível propor ao Congresso Nacional uma modificação topográfica do artigo sobre animais, como o fez a reforma do Código Civil português, em 2017, no sentido de localizá-lo fora do livro relativo aos bens da Parte Geral, prevenindo qualquer interpretação no sentido de atribuir aos animais essa qualificação reducionista e incompatível com o estatuto da senciência animal, de índole constitucional.

Com essa nova configuração em lei, abre-se à doutrina e à jurisprudência a importante tarefa de progredir o assunto, possibilitando uma tutela jurídica dos animais mais condizente com a realidade e a atualidade, inclusive pela atribuição de direitos.

Os animais nas relações familiares

Pouca resistência se apresentou para regulamentar dois temas muito frequentes na prática forense das varas de família: a convivência compartilhada dos animais de estimação e a repartição das despesas para sua manutenção após a dissolução do casamento ou da união estável.

Desses temas tratou o parágrafo terceiro do art. 1.566, constante no anteprojeto:

“Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges ou conviventes: [.]

§ 3º Os ex-cônjuges e ex-conviventes têm o direito de compartilhar a companhia e arcar com as despesas destinadas à manutenção dos animais de estimação, enquanto a eles pertencentes.”

Será possível ainda aperfeiçoar a redação desse dispositivo durante a tramitação legislativa no Congresso Nacional, até para substituir a expressão “a eles pertencentes” por outra mais condizente com o estatuto da senciência animal.

De qualquer forma, com esse dispositivo aprovado haverá pacificação da jurisprudência sobre os temas e ficará claro que as questões relativas à destinação do animal de estimação após a ruptura da sociedade conjugal ou convivencial são de Direito de Família (de competência das varas de família) e não de Direito das Coisas (decididas em varas cíveis).

A afetividade humana por animais como direito da personalidade

Do relatório parcial da Subcomissão da Parte Geral até os últimos momentos dos debates durante a decisiva semana de abril, o artigo referente aos animais na Parte Geral continha um parágrafo adicional, com a seguinte redação:

“§ 3º. Da relação afetiva entre humanos e animais pode derivar legitimidade para a tutela correspondente de interesses, bem como pretensão indenizatória por perdas e danos sofridos.”

Esse parágrafo foi sugerido pela Prof.ª Rosa Maria de Andrade Nery, relatora-geral da Comissão, e parecia muito bem-vindo para deixar claro que animais também fazem jus à reparação de danos.

Nos estertores das discussões orais sobre esse artigo, optou-se por suprimir esse parágrafo da Parte Geral e deixar, apenas, um artigo semelhante no capítulo dos direitos da personalidade, com redação menos ousada:

“Art. 19. A afetividade humana também se manifesta por expressões de cuidado e de proteção aos animais que compõem o entorno sociofamiliar da pessoa.”

O artigo é interessante para reconhecer que existe um “entorno sociofamiliar da pessoa” do qual animais também fazem parte. Além disso, conecta animais humanos e não-humanos por relações de afeto, nas quais há um dever humano direto em cuidar e proteger os animais, ante sua dependência e vulnerabilidade.

Será necessário avaliar, com mais vagar, as consequências jurídicas de estabelecer essa afetividade entre humanos e animais como direito da personalidade humana, dado que, inequivocamente, em alguns aspectos e em algumas situações, o interesse animal deverá sobrepujar o interesse humano. É o caso de animais silvestres utilizados, indevidamente, como  pets. Nesse caso, a afetividade humana com animais, considerada como direito da personalidade humana, poderia redundar num cativeiro doméstico desses animais, conduta hoje considerada criminosa pela Lei dos Crimes Ambientais (art. 29 da lei 9.605/1998).

Considerações finais

O anteprojeto de reforma do Código Civil poderia ter ousado mais quanto à natureza jurídica dos animais. A Ciência já avançou para reconhecer a senciência animal. Precedentes do STF e STJ já reconhecem que animais têm dignidade própria. Inúmeras leis estaduais, e até municipais, já declaram os animais como sujeitos de direitos ou atribuem a eles direitos fundamentais.

Mais do que tudo, a Constituição, ao proibir a crueldade contra animais, reconhece o valor intrínseco e a dignidade própria dos animais, ensejando a construção hermenêutica da subjetividade jurídica dos animais, objeto, hodiernamente, da disciplina autônoma e transversal do Direito Animal.

Mas, compreendendo os limites do tempo e do pensamento, talvez se tenha coarctado o retrocesso e impulsionado, também na legislação civil, o progresso civilizacional representado pelas instituições animalistas.

O anteprojeto é um primeiro passo na escadaria que levará à atualização do Código Civil, tornando-o mais adequado para responder, eficazmente, às exigências de uma sociedade que já perpassa mais de duas décadas do novo século, com múltiplas alterações em seu tecido constitutivo.

O que realmente vai avançar, o que vai ficar como está ou mesmo o que corre o perigo de retroceder, está agora nas mãos do Congresso Nacional.

IDENTIDADE DIGITAL NO BRASIL: SEGURANÇA E

DESENVOLVIMENTO

Layla Abdo Ribeiro de Andrada

Mestre em gestão empresarial, advogada, consultora jurídica especializada em processo legislativo, membro da Comissão Nacional de Acompanhamento Legislativo da Ordem dos Advogados do Brasil

Transformação digital

A implementação da identidade digital no Brasil, cunhada no anteprojeto de Código Civil e inspirada nas diretrizes dos Regulamentos (UE) 2014/910 e 2024/1183, promete revolucionar o acesso a serviços públicos e privados, fortalecer a proteção de dados pessoais e promover uma economia mais efi ciente e competitiva.

A identidade digital consiste em uma identifi cação eletrônica pública, confi ável, voluntária e controlada pelo usuário, reconhecida nacionalmente. Diferente do sistema de documentos digitalizados da nova carteira de identidade (DNI) disponibilizada atualmente, este permitirá que os brasileiros utilizem uma única identidade digital, desenvolvida especifi camente para o ambiente virtual, para se identifi carem de forma segura e protegida.

Segurança e privacidade

Este documento oferecerá aos cidadãos controle sobre seus dados pessoais, garantindo que possam decidir como serão utilizados e com quem serão compartilhados. Utilizando tecnologias avançadas de criptografi a e em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), a identidade digital deverá garantir a proteção dos dados contra

acessos não autorizados, cibersegurança e cibercriminalidade, incluindo violações de dados e usurpação de identidade. Além disso, a identidade digital permitirá que os cidadãos acessem uma ampla gama de serviços de forma segura e eficiente. Isso inclui serviços públicos, como saúde e previdência, e serviços privados, como abertura de contas bancárias e acesso a plataformas digitais. A harmonização da identifi cação eletrônica reduzirá os riscos e custos associados à fragmentação atual, promovendo um ambiente virtual mais integrado e efi ciente.

Facilitação do acesso a serviços

Com o princípio “uma só vez”, os cidadãos poderão fornecer seus dados pessoais uma única vez, reutilizando-os para diversas fi nalidades, o que reduzirá signifi cativamente a burocracia e os custos operacionais. A identidade digital também apoiará a mobilidade dos cidadãos, permitindo que se identifi quem de forma autenticada em qualquer lugar, promovendo a inclusão digital.

Essa abordagem não apenas protegerá os direitos dos cidadãos, mas também promoverá a transparência e a confi ança no sistema digital. A legislação específi ca deverá garantir que a identidade digital seja desenvolvida com um alto nível

de segurança desde a concepção, assegurando que apenas os dados necessários sejam compartilhados e que os usuários possam rastrear todas as suas transações digitais.

Inclusão digital e blockchain

A identidade digital pode ser um grande facilitador de inclusão digital, permitindo que todos os cidadãos tenham acesso a serviços digitais de maneira segura e eficiente. A centralização de dados pessoais facilitará a verificação e a autenticação, reduzindo a necessidade de múltiplos documentos físicos. O uso de blockchain proporcionará uma camada adicional de segurança, garantindo que os dados armazenados sejam imutáveis e protegidos contra fraudes. Além disso, os cidadãos terão maior controle sobre seus dados pessoais, gerenciando permissões de acesso de maneira granular.

Desafios técnicos e legais

Atualmente, vivenciamos uma transformação digital liderada pelo GOV.BR com a autenticação digital única na esfera pública federal, mas o uso de uma identificação abrangente, criptografada e integrada poderá de fato mudar o jogo no país.

Integrar sistemas de identidade digital entre diferentes órgãos governamentais e setores privados é um desafio técnico e legal significativo. Além de um marco regulatório bem desenvolvido, são necessárias a ampliação acesso à internet, a padronização e a criação de protocolos de interoperabilidade para garantir a eficiência do sistema. Apesar dos benefícios do uso de blockchain, a identidade digital ainda estaria sujeita a ameaças cibernéticas. O Brasil precisa adotar uma robusta estratégia de segurança para proteger esses sistemas contra ataques.

A identidade digital deverá ser capaz de integrar-se com outras informações e documentos já existentes, como a CNH (Carteira Nacional de Habilitação) e identidades profissionais, facilitando o acesso a diversos serviços públicos e privados. A unificação de documentos em uma única plataforma digital simplificará processos e reduzirá a burocracia.

Tecnologias como biometria e autenticação multifatorial são fundamentais para garantir um alto grau de confiança na verificação de identidades digitais. Além disso, a implementação de contratos inteligentes no blockchain pode automatizar processos e garantir a conformidade com as regulamentações.

Todavia, os sistemas de identidade digital precisam ser flexíveis para acompanhar as mudanças tecnológicas e as necessidades dos cidadãos. Isso exige um investimento contínuo em pesquisa e desenvolvimento, além de aprimoramento tecnológico constante.

Aspectos econômicos e financeiros

As iniciativas de identidade digital têm o potencial de impulsionar o comércio eletrônico, a inovação tecnológica e o crescimento econômico. A atual separação dos bancos de dados

entre diferentes órgãos governamentais e setores privados no Brasil é um obstáculo à implementação de um sistema unificado de identidade digital. A criação de um framework legal e técnico que permita a interoperabilidade desses sistemas é crucial para o sucesso do projeto.

Investimentos significativos em infraestrutura de tecnologia da informação são necessários para suportar uma plataforma de identidade digital robusta e segura. Isso inclui a expansão da internet de alta velocidade e a criação de centros de dados seguros. É crucial implementar programas de educação digital para garantir que todos os cidadãos possam utilizar e confiar nos serviços digitais. A criação de uma plataforma interoperável exige colaboração entre diferentes níveis de governo e o setor privado.

Ao contrário das identidades tradicionais digitalizadas, que dependem de sistemas centralizados e muitas vezes vulneráveis, a proposta contida no anteprojeto de Código Civil trata de uma solução descentralizada, com dados controlados diretamente pelos cidadãos, que não possam ser alterados ou manipulados sem consentimento.

O Open Finance, ou seja, a capacidade dos consumidores compartilharem suas informações financeiras com terceiros de forma segura e controlada utilizando interfaces de programação de aplicativos (APIs), integrada ao sistema proposto, pode ampliar significativamente suas capacidades e benefícios.

Integrar a identidade digital com o DREX e o Open Finance permitirá que os cidadãos tenham um controle ainda maior sobre seus dados financeiros e facilitará processos como empréstimos, financiamentos e gestão de patrimônio.

A abordagem apresentada no anteprojeto de Código Civil, portanto, não apenas moderniza a identificação pessoal, mas também facilita transações econômicas e administrativas de maneira integrada e eficiente, além de promover o desenvolvimento tecnológico sustentável da economia brasileira.

Normas internacionais e integração

A integração com blocos econômicos como Mercosul, BRICS e União Europeia pode ampliar benefícios, facilitar transações internacionais e fortalecer a posição do Brasil na economia global.

Para isso, é conveniente que o país esteja alinhado às regulamentações internacionais relevantes para a gestão de identidades digitais, como as normas ISO/IEC para segurança da informação. A integração de protocolos com o Mercosul, os BRICS e a União Europeia garantiria a validade e a interoperabilidade das identidades digitais em uma escala multinacional.

Caso a legislação específica promova a interoperabilidade com outros sistemas, cidadãos brasileiros poderão acessar serviços públicos e privados no Mercosul, BRICS e Europa de forma mais fluida e segura, e vice-versa. A adoção de padrões europeus de identidade digital fortaleceria a confiança nos sistemas

brasileiros, promovendo o reconhecimento e a aceitação internacional das identidades digitais emitidas no Brasil. Empresas brasileiras poderiam se beneficiar de processos de autenticação e verificação de identidade mais rápidos e confiáveis ao fazer negócios com parceiros europeus, promovendo maior integração econômica. A colaboração com a União Europeia permitiria a transferência de tecnologias avançadas e melhores práticas em cibersegurança e proteção de dados, fortalecendo a infraestrutura digital do Brasil.

Pioneirismo estoniano

A jornada da Estônia em direção a uma sociedade digital começou na década de 1990, após a independência do país e tem sido marcada por uma série de inovações tecnológicas e políticas que transformaram a maneira como os cidadãos interagem com o governo e os serviços públicos.

Iniciativas digitais da Estônia:

• e-Estonia: a plataforma e-Estonia é a base da infraestrutura digital do país. Integra uma ampla gama de serviços governamentais, permitindo que os cidadãos realizem transações online de maneira segura e eficiente. Desde a declaração de impostos até a votação eletrônica, os serviços digitais estão disponíveis para todos os cidadãos.

• Identidade Digital e-Residency: a identidade digital estoniana permite que os cidadãos autentiquem transações digitais. Além disso, o programa de e-Residency permite que não-residentes obtenham uma identidade digital estoniana, facilitando negócios e promovendo investimentos internacionais.

• X-Road: A X-Road é uma plataforma de troca de dados que permite a interoperabilidade entre diferentes sistemas de informação do governo e do setor privado. Isso garante que os dados possam ser compartilhados de maneira segura e eficiente, eliminando redundâncias, reduzindo custos e melhorando a prestação de serviços.

Tais iniciativas representam:

• Eficiência e economia: com a digitalização dos serviços públicos, os cidadãos da Estônia podem realizar uma variedade de transações de maneira rápida e conveniente. Isso economiza tempo e recursos tanto para os cidadãos quanto para o governo.

• Segurança e privacidade: a Estônia utiliza tecnologia avançada de criptografia e blockchain para garantir a segurança e a privacidade dos dados dos cidadãos, proporcionando um ambiente de confiança que incentiva o uso de serviços digitais.

• Inclusão digital: a ampla disponibilidade de serviços digitais promove a inclusão, permitindo que todos os cidadãos, independentemente de sua localização e características pessoais, tenham acesso a serviços essenciais.

• A Estônia é amplamente reconhecida como um pioneiro global no uso de identidade digital, servindo como um exemplo inspirador para países que buscam modernizar seus sistemas de identificação e governança digital. Embora represente um modelo valioso, a implementação de uma identidade digital semelhante no Brasil enfrenta desafios únicos devido às suas dimensões geográficas, diversidade populacional, infraestruturas tecnológicas e acessos desiguais entre as regiões do país.

Conclusão

A identidade digital integrada a tecnologias de blockchain e ao DREX representa uma oportunidade significativa para modernizar os serviços públicos e privados, promover a inclusão digital e reforçar a segurança e a privacidade dos dados dos cidadãos brasileiros. No entanto, a implementação bem sucedida desse projeto depende de uma abordagem cuidadosa e coordenada, que considere os desafios técnicos, legais e sociais envolvidos.

O advento de um marco regulatório claro e detalhado, alinhado com diretrizes internacionais, é essencial para assegurar a implementação eficaz e a evolução contínua da identidade digital no Brasil, proporcionando um ambiente digital mais seguro e eficiente para todos, além de garantir o desenvolvimento econômico.

A existência de um anteprojeto de Código Civil no Brasil que determina a implementação da identidade digital indica que o país está prestes a dar um passo significativo em direção à modernização de seus serviços públicos e privados. A inclusão de medidas robustas de cibersegurança é crucial para proteger indivíduos vulneráveis e garantir a confiança dos cidadãos nos serviços digitais. Com essas inovações e a interoperabilidade com sistemas estrangeiros, o Brasil pode avançar significativamente em sua transformação digital, beneficiando toda a sociedade.

03 A DESINDEXAÇÃO NA REFORMA DO CÓDIGO CIVIL

Marco Aurélio Bellizze

Ministro do STJ. Vice-presidente da Comissão de Juristas para reforma e atualização do Código Civil.

Ricardo Campos

Docente na Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha). Coordenador nacional de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional. Diretor do Legal Grounds Institute. Vencedor do prêmio Werner Pünder (2021) e da academia europeia de teoria do direito (2022) com trabalho sobre regulação do espaço digital.

Desde meados do ano passado, a Comissão de Juristas responsável pela reforma do Código Civil tem se debruçado sobre diversos temas que tocam aspectos centrais da sociedade brasileira, e m um processo de atualização das regras atualmente vigentes aos contornos da nova sociedade. Uma das grandes novidades desta iniciativa é que, para além dos atuais oito livros (das pessoas, dos bens, dos fatos jurídicos, dos direitos das obrigações, do direito de empresa, do direito das coisas, do direito de família, do direito das sucessões), foi proposta a criação de um nono, inteiramente dedicado ao direito digital.

A migração da vida cotidiana para o mundo digital e sua penetração nos mais diversos campos econômicos desafiam práticas e relações jurídicas, bem como o próprio conceito de direito, colocando a necessidade de que este reflita adequadamente o novo cenário - razão pela qual o novo livro se revela fundamental para lidar com os desafios de uma sociedade cada vez mais digital 1. Trata-se de iniciativa que visa estabelecer bases legais claras e sólidas para 1 Sobre a relação entre direito e tecnologia ver CAMPOS, Ricardo, Metamorfoses do Direito Global. Sobre a relação entre direito, tempo e tecnologia. Contracorrente 2022. Ver também VESTING, Thomas Gentleman, Gestor, Homo Digitalis. A Transformação da subjetividade jurídica na modernidade. Contracorrente 2022, p. 267 e ss.

uma série de questões e relações sociais permeadas pelas novas tecnologias, demonstrando a maturidade e a importância que o Direito Digital assumiu nas últimas décadas, não como uma mera prática transversal perante as demais áreas do direito (como no inicio da internet), mas com um grau de especialização típica de uma matéria que estrutura a própria sociedade moderna 2

No contexto da publicação do relatório final, o novo livro foi aprovado por aclamação pela comissão de juristas, confirmando a importância de sua autonomia para garantir maior proteção de direitos e maior segurança jurídica às relações privadas. Com este fim, foram previstas regras voltadas aos neurodireitos, ao patrimônio digital, às criptomoedas e tokens, à proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital, ao uso de sistemas de inteligência artificial, aos contratos e provas digitais e também ao chamado direito à desindexação. O direito, que se insere no capítulo II, “ Da pessoa no ambiente digital”, consiste “na remoção do link que direciona a informações inadequadas, não mais

2 Sobre o tema da importância do livro de direito digital ver Salomao, Luis Felipe, Campos, Ricardo, Um novo livro para uma nova sociedade. Atualização do Código Civil anda de mãos dadas com o espírito do seu tempo.

relevantes ou excessivas, que não possuem finalidade para a expo sição, de mecanismos de busca, websites ou plataformas digitais, permanecendo o conteúdo no site de origem”. Ou seja, caso obtenha êxito, o conteúdo desindexado não mais será encontrado nos resultados de determinado provedor de busca a partir de determinados termos ou expressões, apesar de ainda poder ser encontrado na página de origem.

Não se trata, portanto, de excluir absolutamente o conteúdo do acesso público, mas de restringir sua acessibilidade numa sociedade plataformizada 3. Como ensina Luciano Floridi, ao contrário do que ocorre no mundo analógico, há no mundo digital uma nova abordagem da informação, que passa a poder ser distinguida em dois níveis: disponibilidade (conteúdo) e acessibilidade (link) 4. Tal restrição, portanto, pode ser bastante eficiente na proteção do indivíduo interessado, tendo em vista a centralidade que plataformas digitais - e, neste caso, especificamente os motores de busca - assumem na difusão da informação no ambiente online. A desindexação, assim, pode significar, na prática, uma ampla redução da visibilidade do conteúdo, impactando seu alcance.

O paradigmático caso  Google Spain v. Mario Costeja Gonzále s , julgado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em 2014 abriu uma nova frente no tema no plano global influenciando não somente o regulador europeu, mas aos poucos o mundo todo 5. Naquela ocasião, em que se discutia notícias obsoletas o tribunal entendeu que, em determinados casos, os motores de busca, enquanto intermediários da informação, poderiam ser obrigados a suprimir determinados conteúdos da lista de resultados, em respeito à legislação de proteção de dados. A desindexação, no entanto, poderia ser utilizada para proteção de direitos de personalidade violados por outros tipos de expressão: seja por notícias falsas ou por exposição de imagens íntimas, por exemplo.

Ao servir, na prática, como um tensionador da liberdade de expressão, a desindexação coloca dúvidas quanto a sua aplicabilidade e seus limites. É especialmente relevante se definir os parâmetros adequados para que não haja utilização abusiva que viole o direito à memória, a liberdade da imprensa ou o interesse público (aqui também pensando no conceito de dados púbicos), e para que não seja instrumento de manipulação política, por exemplo. Nesse sentido, a proposta da subcomissão de juristas trouxe, já no  caput, delimitações ao instituto: só é aplicável no caso de informações inadequadas, irrelevantes ou excessivas, cuja exposição não possua

3 COHEN, Julie, Law for the Platform Economy, 51 U. C. Davis L. Rev. 15, 2017. WIELSCH, Dan, Private Law Regulation of Digital Intermediaries in: European Review of Private Law 27 (2019), S. 197 - 220.

4 FLORIDI, Luciano. The Right to be Forgotten: A Philosophical View, 2015. Disponível  aqui  (acesso em 06.06.2024).

5 Sobre o assunto e os contornos legais do art. 17 do Regulamento Europeu de Protecao de Dados ver DIX, Alexander, DSGVO Art. 17 Recht auf Löschung ("Recht auf Vergessenwerden") em: Simitis/Hornung/ Spiecker gen. Döhmann (Orgs.), Datenschutzrecht primeira edição, Nomos 2019. SARTOR, Giovanni, The right to be forgotten in the Draft Data Protection Regulation', IDPL, 2014, pgs. 64-72.

finalidade específica. Já logo afasta-se sua aplicação nas hipóteses de informações de interesse público e que tragam verdades e/ou fatos históricos, por exemplo.   Ainda, no §1º, são listados alguns casos aos quais a desindexação poderia ser aplicada: exposição de imagens pessoais explícitas ou íntimas; pornografia falsa involuntária envolvendo o usuário; informações de identificação pessoal ou conteúdo de doxxing; conteúdo que envolva a imagem de menores, especialmente nudez ou conteúdo sexual. Ou seja, as previsões demonstram como a aplicabilidade do instituto está condicionada à violação de outros direitos já previstos constitucional ou civilmente. Trata-se de situações bastante específicas que apontam para a excepcionalidade do instituto e para a preservação, em geral, da liberdade de expressão.  O jurista italiano Stefano Rodotà certa vez afirmou que “ diante do fluir da história, da perene mutação das coisas que ela produz, o problema do direito está sempre na pretensão de enclausurar esse movimento em um átimo determinado, dando-lhe ares de modelo e regra”. Com efeito, se o direito tiver a pretensão de esgotar as possibilidades de regulação de matérias relativas à inovação tecnológica, lançando-se como instrumento absoluto e suficiente para o seu controle, rapidamente restará esvaziado. Tentar prever todas as hipóteses de sua incidência seria não apenas prepotente, mas também ingênuo. Outro ponto importante do direito da sociedade digital é a introdução de mecanismos procedimentais e a sua observação do conhecimento gerado por entes públicos 6 Contudo, determinadas experiências e o amadurecimento delas decorrente também podem nos apontar caminhos mais seguros, isto é, podem nos indicar certas situações em que a força normativa do direito pode servir como um importante meio de proteção de prerrogativas. Uma delas é o reconhecimento do direito à desindexação. Não apenas no Brasil, mas em países como Espanha (e na União Europeia de modo geral), Canadá, Austrália, entre outros, as novas dinâmicas das relações sociais e do uso da Internet tornaram inconteste a necessidade de repensar a supostamente irrestrita liberdade existente no mundo virtual 7. A proposta de reforma do Código Civil, portanto, segue esse movimento e as melhores práticas globais trazendo para o debate brasileiro no congresso nacional um ponto de partida condizente com a importância do tema.

6 Sobre a interessante interpretação de uma nova instituição na sociedade informacional, o do curador, e seus direitos e deveres ver LADEUR, Karl-Heinz, Das BVerfG und der Wandel der Formen der Öffentlichkeit, em: ders. Verfassungsgerichtsbarkeit in der Krise? Mohr Siebeck 2023, p. 123.

7 Sobre os desafios do tema dentro do direito civil e direito público ver SPINDLER, Persönlichkeitsschutz im Internet - Anforderungen und Grenzen einer Regulierung, Gutachten F zum 69. Deutschen Juristentag, 2012; SPINDLER, Durchbruch für ein Recht auf Vergessen(werden)? - Die Entscheidung des EuGH in Sachen Google Spain und ihre Auswirkungen auf das Datenschutz- und Zivilrecht, JZ 2014, pg. 981; ROßNAGEL, Datenlöschung und Anonymisierung. Verhältnis der beiden Datenschutzinstrumente nach DS-GVO, ZD 2021, pg. 188 e ss.

04 O DIREITO CONTRATUAL NO ANTEPROJETO DE REVISÃO E ATUALIZAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL

Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk

Professor Associado de Direito Civil da UFPR. Doutor e Mestre em Direito Civil pela UFPR. Advogado.

1. Uma reforma dirigida por vetores estruturais

O mister de revisão da codificação civil não se realiza de modo aleatório. Propor a atualização da norma que rege a vida privada pressupõe consciência dos vetores estruturantes de cada parte do Código Civil, e da relação entre estes e os alicerces sobre os quais se erige a codificação, de modo a assegurar a unidade sua sistemática. Foi essa a tarefa realizada pela Comissão nomeada pelo Senado Federal para a elaboração do Anteprojeto de Revisão e Atualização do Código Civil.

por meio da boa-fé, seja na positivação de sua aplicação as diversas fases do processo obrigacional, seja pela afirmação de seu caráter de ordem pública; (d) modernização e aperfeiçoamento das regras gerais sobre direito contratual e dos contratos em espécie, em linha com as premissas assentadas nos vetores antes enunciados.

A subcomissão de contratos (composta pelas Professoras Angélica Carlini, Claudia Lima Marques, pelo Professor Carlos Eduardo Elias e pelo subscritor deste texto) e a relatoria geral (integrada pela Professora Rosa Nery e pelo professor Flávio Tartuce) dirigiram a elaboração da proposta, debatida e aprovada pela Comissão, à luz de quatro vetores fundamentais. São eles: (a) aprofundamento da autonomia privada e da força obrigatória em contratos paritários, de modo coerente com as alterações operadas pela Lei da Liberdade Econômica, da qual derivam a excepcionalidade da revisão contratual e o respeito à alocação de riscos definida pelas partes; (b) aperfeiçoamento da disciplina da dimensão funcional dos contratos, não apenas no que tange à sua função social, mas, também, à função econômica derivada das escolhas das partes, em reforço à ratio da obrigação como processo; (c) incremento da confiança legítima

De modo coerente com esses vetores, a Comissão se pautou na construção jurisprudencial consolidada, na doutrina cristalizada (especialmente nos enunciados das Jornadas de Direito Civil do CJF), e se inspirou em exemplos exitosos de ordenamentos estrangeiros, e de soft law, ainda que sem cópia servil das regras alienígenas - aqui, o cuidado foi recolher a experiência estrangeira, e adaptá-la à tradição e às necessidades próprias do Direito brasileiro.

Passo, em síntese, a apontar como o Anteprojeto apresentado ao Senado Federal contempla esses vetores.

2. Liberdade Econômica e força obrigatória

A discip lina do Direito Contratual no Código Civil sofreu relevantes alterações derivadas da Lei da Liberdade Econômica, que buscou equilibrar o sentido de socialidade1 que 1 REALE, Miguel. O projeto de código civil: situação atual e seus problemas fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 9-11. Nas palavras do Autor: "O contrato é um elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo como aquele que cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como o lugar onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e de medida. E é por esta razão que

permeava a redação original do Código Civil, aprovada em 2002, e o valor social intrínseco da livre iniciativa, assegurando a higidez do exercício da autonomia privada em contratos paritários, sejam eles civis ou empresariais

Na mesma lei, foi explicitada (porque já inerente ao sistema, pautado na livre iniciativa constitucional) a norma que assegura a intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.

O Anteprojeto de Revisão do Código Civil singra esse itinerário apontado pela legislação vigente, para aprofundar aquilo que decorreu da Lei de Liberdade Econômica quanto à ampliação da autonomia privada e a garantia da força obrigatória dos contratos.

Não se ocupa o Anteprojeto das relações de consumo, nem se orienta pela racionalidade que a elas é própria, e que é preservada sob a regência da lei especial (art. 421-A do Anteprojeto).

A proposta de revisão amplia os mecanismos que favorecem a prevalência da autonomia privada nos contratos paritários, com o incremento do espaço de escolhas dos contratantes, bem como aperfeiçoando as regras pertinentes a figuras jurídicas destinadas a reforçar a obrigatoriedade dos contratos.

Esses comandos vêm em linha com a declaração de direitos de liberdade econômica, especialmente o inciso VIII do artigo 3º, que dispõe ser direito de toda pessoa natural ou jurídica, em conformidade com o art. 170 da Constituição, “ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública”.

Mantêm-se, pois, as previsões sobre os princípios da intervenção mínima e excepcionalidade da revisão contratual nos contratos paritários, com redação congruente com o dispositivo acima citado.

Há, também a integral conservação da regra que prevê a presunção de paridade e simetria tanto dos contratos empresariais como dos contratos civis (art. 421-C do Anteprojeto), que somente pode ser afastada mediante a presença de elementos objetivos.

Trata-se de expressão, a rigor, de uma dimensão funcional mais ampla, que permeia os institutos fundamentais de direito privado, e que permite afirmar que a sua disciplina jurídica tem por função prima facie propiciar, como contributos, o exercício, a conservação e o incremento de liberdades.

estabelecemos um artigo do Projeto do Código Civil, que me parece muito importante ter presente, no qual se declara que contrato será terá que ser analisado em razão de sua função social. É o princípio da socialidade governando o Direito Obrigacional. É logo o primeiro artigo, quase que um preâmbulo de todo o direito contratual".

Em contratos paritários e simétricos, a liberdade substancial 2 para a realização de escolhas pelas partes está presente, a legitimar a sua chancela, como expressão da liberdade positiva 3 dos particulares, em um espaço de não coerção (liberdade negativa) 4 . Daí porque, mantendo-se hígida a presunção legal de paridade e simetria, dados espaços de coerção são mitigados pelo Anteprojeto, ampliando-se, assim, o âmbito de exercício do poder de escolha das partes, bem como sua força jurígena (ou seja, geradora de normas pelos particulares para as suas próprias esferas jurídicas).

O contrato paritário, ou seja, aquele que não é de adesão 5 , contém em si presunção de liberdade substancial das partes que justifica, de per se, a imposição de auto-limitação por parte do juiz (intervenção mínima) e, por consequência, a excepcionalidade da revisão contratual.

A presença, adicionalmente, da simetria (ou seja, a ausência de relação de dependência entre de um contratante frente ao outro), justifica ampliação dos espaços livres de coerção. As assimetrias que afastam a presunção legal precisam ser suficientemente relevantes, de modo a se constituírem como grave déficit concreto de liberdade substancial (ou seja, da possibilidade concreta de fazer escolhas valorosas), a ponto de ensejarem verdadeira relação de dependência de um contratante frente ao outro. Não é qualquer disparidade econômica ou informacional que afeta de modo relevante a possibilidade concreta de realizar escolhas.

Tudo isso vem em suporte aos pilares sobre os quais se erige a força obrigatória dos contratos, quais sejam, o valor jurídico da promessa, como expressão jurígena advinda do exercício da liberdade, e a tutela da confiança legítima.

Quanto à ampliação dos espaços de liberdade econômica, alguns relevantes exemplos podem ser citados - integrando, também, o vetor de modernização e aperfeiçoamento das regras sobre direito contratual:

- O parágrafo 1º do art. 421-C do anteprojeto traz regras interpretativas especiais aos contratos empresariais, podendo-se citar como exemplos o emprego dos “usos e dos costumes do lugar de sua celebração e do modo comum adotado pelos empresários para a celebração e para a execução daquele

2 Por liberdade substancial, entende-se a possibilidade concreta de realização de escolhas valorosas, considerando-se, assim, o contexto efetivo em que se situa o indivíduo ao qual as escolhas são formalmente oferecidas (SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 32).

3 A liberdade positiva é o poder de definição dos rumos da própria vida, o senhorio da própria esfera pessoal (HANDLIN, Oscar; HANDLIN, Mary. As dimensões da liberdade. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1964, p. 25.). Admitir-se que, por meio da autonomia privada, os particulares criam normas para suas esferas jurídicas, dotadas de oponibilidade e reconhecimento, a dizer que a autonomia privada é integrada, em sua refinada conformação estrutural, por liberdade positiva.

4 BERLIN, Isaiah. Two Concepts of Liberty. In: Four Essays on Liberty. Oxford: Oxford University Press, 1979, p. 131.

5 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Vol III. São Paulo: Saraiva, 1996.

específico tipo contratual” e o reconhecimento da atipicidade legal inerente a boa parte dos contratos empresariais, a determinar, como consequência, a prevalência do livremente pactuado;

- Os incisos IV e V do art. 421-D admitem, em contratos que não sejam de adesão (ou seja, paritários), que as partes pactuem glossário para a definição consensual dos termos empregados no contrato, bem como definam critérios de interpretação da lei, quando esta puder gerar controvérsias;

- Reforço à obrigatoriedade da observância da alocação de riscos definida pelas partes, inclusive como limitadora da revisão contratual por fatos supervenientes, consoante o parágrafo 1º do art. 478;

- Remissão, no artigo 421-F, aos princípios do Direito de Empresa (art. 966-A), como aplicáveis aos contratos empresariais, deixando explícita a “força obrigatória das convenções, desde que não violem normas de ordem pública”;

- Aperfeiçoamento da disciplina dos vícios ocultos, ampliando prazos de garantia, em proveito do credor e do bom adimplemento contratual, oferecendo ao credor, além dos direitos à redibição e ao abatimento do preço, a possibilidade de exigir saneamento do vício, mediante custeio de reparos

- Aperfeiçoamento das regras sobre exceção de inseguridade, sob inspiração, especialmente, da CISG, substituindo a necessidade de prova sobre diminuição patrimonial pela demonstração de “grave insuficiência em sua capacidade de cumprir as obrigações” (art. 477), assegurando ao credor, ainda, a resolução antecipada da avença quando “o devedor não satisfizer a prestação devida nem oferecer garantia bastante de satisfazê-la após interpelação judicial ou extrajudicial” 6 ;

- Previsão sobre a possibilidade de resolução antecipada, independentemente da exceção de inseguridade, quando “antes de a obrigação tornar-se exigível, houver evidentes elementos indicativos da impossibilidade do cumprimento da obrigação”. A regra (art. 477-A), inspirada na CISG e no BGB, visa a reforçar a obrigatoriedade dos contratos.

- Construção de mecanismo de revisão e resolução contratual 7 por fatos supervenientes (art. 478 e 479) que acolhe o conceito técnico de “circunstâncias objetivas que serviram de fundamento para a celebração do contrato”, (Grundlage) 8 sem, contudo, dispensar a necessidade de

6 Sobre o tema, vide BANDEIRA, Luiz Octávio Villela. Exceção de insegurança no direito brasileiro. São Paulo: Almedina, 2022.

7 A previs ão de uma regra que conjuga revisão e resolução é consagrada em ordenamentos estrangeiros, como a Alemanha (BGB, § 313), a França (Code Civil, art. 1.195) e a Argentina (Código Civil e Comercial da Nação Argentina, art. 1.091), estando presente também nos Princípios Unidroit, como fonte de soft law (art. 6.2.3.). A possibilidade de revisão contratual no Direito Francês foi isnerida no Code em recente reforma, entre os anos de 2016 e 2017. Sobre o tema, vide Sobre o tema, LARROUMET, Chistian; BROS, Sarah. Les Obligations. Le Contrat. 8e. ed. Paris: Economica, 2016, p. 413-415.

8 A inspiração da norma advém do BGB, sem, todavia, adotar-se, de modo puro, uma teoria da base do negócio, seja na linha de Oertmann,

demonstração da imprevisibilidade (aferível em concreto, conforme a “qualificação da parte prejudicada pela onerosidade excessiva e diante das circunstâncias presentes no momento da contratação). Além disso, o mesmo dispositivo projetado exige que a alteração de circunstâncias exceda os riscos normais do negócio, deixando claro que “para a identificação dos riscos normais da contratação, deve-se considerar a sua alocação, originalmente pactuada”, o que pretende assegurar o caráter excepcional da revisão contratual por fatos supervenientes, limitando-a ao necessário para “mitigar a onerosidade excessiva, observadas a boa-fé, a alocação de riscos originalmente pactuada pelas partes e a ausência de sacrifício excessivo às partes”;

- Prevalência daquilo que for livremente pactuado em contratos de seguro de grandes riscos (art. 757-A);

- Possibilidade de as partes afastarem a regra de revisão contratual por redução de preços de mão de obra e materiais nos contratos de empreitada paritários e simétricos (art. 620, parágrafo único);

- Validade da cláusula de limitação ou de exclusão da responsabilidade do depositário, desde que em contrato paritário e simétrico (art. 629, parágrafo único);

A unidade sistemática que se dirige pelos vetores aqui explicitados se revela também no fato de que as subcomissões de Obrigações, de Responsabilidade Civil e de Direito das Coisas caminharam pela mesma senda, propondo regras que se coadunam com a garantia da força jurígena da autonomia privada e, por consequência, com a força obrigatória dos contratos. Não por acaso, as propostas foram acolhidas pela Relatoria-Geral e aprovadas pelos demais membros da Comissão.

São exemplos disso, sempre em contratos paritários e simétricos: (a) a proposta de nova redação ao parágrafo único do art. 413, formulada pela subcomissão de obrigações, que veda ao juiz, nos contratos paritários e simétricos, proceder à redução da cláusula penal sob o fundamento de ser ela excessiva; bem como (b) a autorização para a pactuação de cláusulas de não indenizar e de limitação do dever de indenizar, proposta pela subcomissão de responsabilidade civil (parágrafo único do art. 629); (c) a possibilidade de celebração do pacto marciano, conforme o projetado parágrafo 1º do art. 1.428 9

de Larenz, ou de Canaris. O conceito de base/fundamento (Grundlage) do negócio é instrumento útil, mas não se vincula, necessariamente, à adoção de uma dada teoria a respeito da revisão contratual. Enquanto na Alemanha, sob inspiração de Larenz, a imprevisão integra a base objetiva, confundindo-se com o que excede os riscos ordinários do negócio, na regra projetada, diversamente, riscos e imprevisão são conceitos distintos. Sobre o tema, vide CANARIS, Claus-Wilhelm O novo direito das obrigações na Alemanha. Revista da EMERJ. V. 7, n. 27, 2004; LARENZ, Karl. Base del Negocio Juridico e cumplimiento de los contratos. Trad. Carlos Fernandez Rodriguez. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1956 (em especial, p. 226).

9 O pacto marciano, conforme Carvalho Santos, consiste em "estipulação pela qual uma das partes, o credor, pode ficar com o bem dado em garantia, se o devedor não paga a dívida no vencimento", (SANTOS,

A autonomia privada, bem como a liberdade contratual e a liberdade de contratar, advêm do princípio da livre iniciativa, cuja base constitucional se assenta nos arts. 1º, inciso IV e 170 da Constituição. O valor social intrínseco da livre iniciativa e do trabalho é afirmado como fundamento da República (ou seja, há o reconhecimento de que a livre iniciativa é socialmente valorosa de per se). Por isso, livre iniciativa é também fundamento da ordem econômica (art. 170 da Constituição)10

Como a livre iniciativa já é dotada de valor social intrínseco, a norma não atribui a ela uma função social - enquanto o valor é algo inerente ao ser, a função é algo que se acresce a dado instituto, como contributo/prestação cuja realização é devida, por força da norma (dever-ser).

Assim, o que é dotado de função social não é a liberdade, mas, sim, os instrumentos para o seu exercício (propriedade e contrato) que, com base na correta leitura do art. 170 da Constituição, são funcionalizados.

Daí a manutenção, na Lei da Liberdade Econômica, não apenas do princípio da função social do contrato, mas do seu caráter limitador da liberdade contratual, o que se conserva no Anteprojeto - restando, por força da referida lei, afastada a previsão original de que a liberdade de contratar seria exercida “em razão” da função social do contrato, regra que padecia de inconstitucionalidade, haja vista o caráter jusfundamental da própria autonomia privada11

O Anteprojeto de Código Civil preserva, como não poderia deixar de ser, a função social do contrato, explicitando, no parágrafo 2º do artigo 421, algo que já decorre dos comandos do caput do artigo 421 e do art. 2.035 vigentes: “A cláusula contratual que violar a função social do contrato é nula de pleno direito”.12

J.M. de Carvalho. Código civil brasileiro interpretado. v. X. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1964, p. 91). Sobre o tema, mais amplamente, MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Pacto comissório e pacto marciano no sistema brasileiro de garantias. Rio de Janeiro: Processo, 2017.

10 MOREIRA, Egon Bockmann. Os princípios constitucionais da atividade econômica. Revista da Faculdade de Direito UFPR, Curitiba, dez. 2006, p. 103- 111.

11 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2 ed, 2010, p. 199.

12 A nulidade de cláusulas contratuais que violam a função social é, desde a origem, consequência inerente à ratio do Código Civil, sendo afirmada desde a fase em que ainda tramitava no Congresso Nacional, como projeto de lei. Judith Martins-Costa, em seu clássico texto "O Direito Privado como um "sistema em construção": As cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro", aponta expressamente, ao versar sobre o princípio da função social do contrato no, à época, projeto do Código Civil, que "a função social é, evidentemente, e na literal dicção do art. 420, uma condicionante posta ao princípio da liberdade contratual, o qual é reafirmado, estando na base na disciplina contratual e constituindo o pressuposto mesmo da função (social) que é cometida ao contrato. Ao termo condição pode corresponder uma conotação adjetiva, de limitação da liberdade contratual", para concluir que "Na sua

Deixa claro, ainda, que a aferição das funções dos contratos deve levar em consideração os diferentes tipos contratuais, reconhecendo que as funções realizadas por contratos empresariais, que dizem respeito a “bens e serviços ligados à atividade de produção e de intermediação das cadeias produtivas”, não se confundem com aquelas próprias aos contratos de consumo, contratos de trabalho, ou contratos civis, cada qual merecendo tratamento próprio.

Quando o Anteprojeto se refere a “funções”, no plural, está a tratar não apenas da função social, mas, também, da função econômica.

Enquanto a função social decorre da norma, a função econômica decorre da liberdade das partes na realização da operação econômica13 que receberá as vestes jurídicas do contrato como instituto, sendo apreendida ex post pelo direito.

Essa função econômica é de extrema importância, pois diz respeito às necessidades concretas perseguidas pelos agentes econômicos por meio do contrato. O bom adimplemento é aquele no qual as prestações são também realizadas de modo a propiciar a realização do contributo econômico almejado pelos contratantes, e que se afere por meio da própria operação econômica, tomada em sua concretude.

O Anteprojeto trilha caminho coerente com o sentido da obrigação como processo, preconizado por Clóvis do Couto e Silva14

A dimensão funcional é, também, essencial para a identificação das hipóteses de coligação contratual, consoante proposto na redação do art. 421-E.

A função econômica, ao lado da função social, é empregada no Anteprojeto para permitir a aferição da essencialidade da parte perdida para a qualificação da evicção parcial como considerável (parágrafo único do artigo 461).

Também é a função econômica, no Anteprojeto, um limite à revisão contratual por fatos supervenientes (arts. 478 e 479, concreção, o juiz poderá, avaliadas e sopesadas as circunstâncias do caso, determinar, por exemplo, a nulificação de cláusulas contratuais abusivas".  (MARTINS-COSTA, Judith.  Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 35 n. 139 jul./set. 1998, p. 13). Embora a inconstitucional noção de "condicionante" da liberdade tenha sido superada, com acerto, pela Lei de Liberdade Econômica, permanece válida a conclusão sobre a nulidade das cláusulas que violarem a função social, haja vista os limites que esta pode impor à liberdade contratual naqueles contratos efetivamente dotados de uma função que transcenda a função econômica determinada pelas partes.

13 O contrato é, simultaneamente, operação econômica e instituto jurídico. ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 2009, p. 7-15.

14 Couto e Silva, em obra essencial para a compreensão do Direito das Obrigações, aponta o adimplemento como o fim do processo obrigacional, afirmando, sobre o fio-condutor do livro em que desenvolve a tese, que "o tratamento teleológico permeia toda a obra, e lhe dá unidade" (COUTO E SILVA, Clóvis do. A obrigação como processo. São Paulo: Bushatsky, 1976, p. 17). Parece fora de dúvida que, contemporaneamente, pensar nos fins do processo obrigacional demanda não apenas a realização do adimplemento, mas a efetivação de sua função econômica e quando houver, de sua função social.

inciso I). Ela também exerce papel relevante como um dos critérios qualitativos para determinar a viabilidade ou não do reconhecimento do adimplemento substancial (art. 475-A, inciso IV).

Propõe-se, também como expressão do aperfeiçoamento da expressão funcional dos contratos, a positivação da figura da frustação da finalidade do contrato, quando, “por fatos supervenientes”, “deixa de existir o fim comum que justificou a contratação, desde que isso ocorra por motivos alheios ao controle das partes e não integre os riscos normais do negócio ou os que tenham sido alocados pelas partes no momento da celebração do contrato”. A função econômica definida pelas próprias partes é, aqui, novamente, contemplada pelo Anteprojeto.

4. Boa-fé e confiança legítima

O Anteprojeto, na perspectiva dos deveres anexos, dispõe expressamente sobre aquilo que já estava consolidado na doutrina e n a jurisprudência, quanto à incidência do princípio da boa-fé nas fases pré e pós contratual. Nesse sentido, ao artigo 422, na norma projetada, passa a dispor que “os contratantes são obrigados a guardar os princípios da probidade e da boa-fé nas tratativas iniciais, na conclusão e na execução do contrato, bem como na fase de sua eficácia pós-contratual.”

O Anteprojeto também qualifica a violação da boa-fé como inadimplemento (art. 422-A). Com efeito, ela integra o conjunto de deveres contratuais, sendo certo que o respeito à força obrigatória dos contratos passa por assegurar o cumprimento, também, dos deveres laterais, em harmonia com os deveres de prestação.

A Lei da Liberdade econômica já havia reforçado o papel hermenêutico da boa-fé e da confiança legítima, mediante as alterações promovidas no artigo 113 do Código Civil especial seu parágrafo 1º.

O anteprojeto, especificamente no âmbito dos contratos empresariais, reforça essa função hermenêutica da boa-fé, com o necessário esclarecimento de que aplicação do princípio, nesses contratos, demanda critérios de densificação coerentes com o que se pode compreender como confiança legítima nas relações entre profissionais, que exige, por evidente, juízos de autorresponsabilidade. É por isso que o projetado inciso II do art. 421-C dispõe que o atendimento à boa-fé objetiva nos contratos empresariais também se mede “pela expectativa comum que os agentes do setor econômico de atividade dos contratantes têm, quanto à natureza do negócio celebrado e quanto ao comportamento leal esperado de cada parte”.15

15 Sobre a operatividade da boa-fé em contratos empresariais, explica Vinícius Klein: "No âmbito dos contratos empresariais a boa-fé objetiva é aplicável, entretanto, respeitado o contexto negocial. Afinal, a boa-fé já constava do Código Comercial de 1850, mesmo que em contexto

A boa-fé é, também, limite ao exercício de posições jurídicas. Um exemplo disso, no Anteprojeto, é o inciso II do parágrafo único do art. 479, que limita o direito à revisão contratual por meio da boa-fé.

No âmbito dos contratos em espécie, destaca-se o disposto na disciplina do contrato de prestação de serviços e de acesso a conteúdos digitais, permeado pela função integrativa da boa-fé, a dirigir, por exemplo, o emprego da inteligência artificial na prestação de serviço digital (art. 609-F) e as atividades dos “prestadores de serviços e de conteúdos digitais, em especial os de intermediação e de busca na internet” (art. 609-B).

Também se pode citar, a título exemplificativo, a disciplina projetada para os contratos de seguro, com especial ênfase aos deveres de boa-fé nos artigos 765, 771-D.

5. Notas conclusivas

Pretendeu-se, neste texto, mediante um vol d’oiseau, oferecer uma visão panorâmica dos vetores da proposta de Revisão do Código Civil em matéria contratual.

Esperamos que o trabalho submetido à apreciação do Congresso Nacional tenha o condão de atender à necessidade de assegurar a manutenção da relevância normativa do Código Civil como norma geral, evitando sua obsolescência16 , e primando pela segurança jurídica.

diverso. Assim, o grau de esclarecimento presente num contrato entre duas empresas sofisticadas não é o mesmo que o exigido na relação de consumo. Todavia, o comportamento leal, com a disponibilização das informações essenciais à realização do negócio e à conduta cooperativa, de modo a executar o objeto contratual, é claramente exigível num contrato empresarial". (KLEIN, Vinícius. Os contratos empresariais de longo prazo: Uma análise a partir da argumentação judicial.  Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014).

16 Nessa linha, preconiza o Ministro Luiz Edson Fachin: "Mas o sentido referencial do Código Civil para a compreensão da disciplina normativa do Direito Privado remanesce, o que faz avultar o desafio de construção de uma codificação que esteja, sempre, em sintonia com as demandas de seu tempo. Há, porém, limites estruturais e textuais. A tarefa hermenêutica precisa da norma formal a interpretar. A insuficiência textual e estrutural pode reduzir a relevância do Código, e dificultar a construção de sentido, limitando-o, e o condenando à obsolescência. Daí porque reformas são, de tempos em tempos, necessárias". FACHIN. Luiz Edson. Reforma e Atualização do Código Civil Brasileiro e o Novo Código Civil Argentino. Conjur. 1º de março de 2024.

A DOAÇÃO DO CÔNJUGE PARA TERCEIROS E A REFORMA

DO CÓDIGO CIVIL

Eroulths Cortiano Junior Pós-doutor em Direito. Professor da UFPR. Secretário-geral do IBDCONT. Advogado em Curitiba/PR.

O contrato de doação, instrumento principal das liberalidades, é um dos mais instigantes do ponto de vista de sua construção e regulação. Justamente por veicular atribuição patrimonial sem contraprestação, as possibilidades de utilização da doação no exercício da autonomia privada (no gerenciamento dos interesses econômicos e solidários) são variadíssimas. O amplo espectro de boa e má utilização do contrato de doação, chama regulações específicas, tendo em vista a sua causa, o seu conteúdo ou as partes do contrato. Bem por isso o legislador se preocupa com diversas modalidades de doação, como, por exemplo, a doação com cláusula de reversão, a doação universal, a possibilidade de revogação da doação por ingratidão do donatário, a doação como instrumento de adiantamento da herança, a doação inoficiosa etc.

Proíbem-se, total ou parcialmente, diversas modalidades de doação, considerando-as inválidas ou ineficazes. Uma destas hipóteses chama a atenção, por razões sensíveis (envolve as relações afetivas) mas também por sua construção jurídica. Trata-se da antes chamada “doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice”, tida como inválida pelo artigo 550 do Código Civil. Em poucas palavras, a lei diz que não vale a doação de pessoa casada, para alguém com quem teve relação adulterina.

“Art. 550. A doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo outro cônjuge, ou por seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal.”

A preocupação do legislador em proteger patrimonialmente a família constituída legalmente diante de relações espúrias já era prevista no artigo 1.177 do Código Civil de 1916, cuja redação foi praticamente repetida no art. 550 do Código Civil de 2002:

O dispositivo, tanto em 1916 como em 2022 (melhor seria dizer em 1975, quando o projeto do Código Civil foi encaminhado ao Poder Legislativo) tinha alvo firme: para o bem da família, ainda que o cônjuge tivesse pleno poder de disposição (basta pensar num bem móvel de propriedade exclusiva de um cônjuge) ele não podia fazer doação para aquele com quem tivesse praticado - ou praticasse - adultério.

A norma revela uma determinada concepção da família (no caso, a família matrimonial), uma preocupação de gênero (ainda que se aplicasse para o adultério da mulher, evidentemente mirava o adultério do marido), e a criminalização da infidelidade (adultério já foi considerado crime). A quaesti o envolvida na proibição de doação em tal circunstância era complexa. Bem por isso dizia SERPA LOPES, em 1991, que “Este dispositivo envolve uma parte do problema das liberalidades entre amantes, o que por si só já justifica uma monografia a respeito” 1

O dispositivo, tal qual escrito (diga-se: reproduzido do Código anterior), prestava-se a uma série de dúvidas interpretativas, decorrentes dos avanços sociais e da neces sidade de aplicá-lo na atualidade. Três exemplos de dúvidas que surgem na sua aplicação: - a invalidade aplica-se apenas ao 1 Miguel Maria de SERPA LOPES. Curso de Direito Civil, vol. III, Rio de Janeiro, Freitas Bastos: 1991, p. 374-375.

casamento (a lei fala em “cônjuge”) ou também à união estável? - o que se considera adultério (exige relação sexual com terceiro ou apenas relação  afetiva? Aplica-se ao “adultério virtual?) - o art. 550 prevalece sobre o artigo 1.642, V do Código (que fala da faculdade de o cônjuge reivindicar bens doado ao concubino)?

Além de ser de uma constitucionalidade duvidosa 2 a redação do artigo 550 do Código Civil merece críticas. Como disse Flávio TARTUCE,  “Na verdade, o art. 550 do CC é polêmico, parecendo-me a sua redação um verdadeiro descuido do legislador, um grave cochilo”.

Pois firme no propósito de atualizar e tornar mais operável a legislação civil, o reformador propõe alteração no dispositivo. A sugestão de redação é:

“Art. 550. A doação de pessoa casada ou em união estável a terceiro com quem mantenha relação na forma do art. 1.564D pode ser anulada pelo outro cônjuge ou convivente, ou por seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal ou a união estável.”

Vê-se bem que a lógica da vedação e suas linhas mestras continuam. A doação será inválida, o prazo decadencial para pleitear a anulação é de 2 anos e os legitimados são o cônjuge e os herdeiros necessários.

Mas, agora, o dispositivo (a) refere a união estável (a proibição, acertadamente, não se dirige apenas à família matrimonial), (b) afasta-se do adultério como tipo civil e (c) concatena-se com o tratamento dado ao antigo concubinato (expressão que deve ser defenestrada da ordem jurídica, mas é aqui utilizada por razão didática). O artigo 1.564 projetado cuida da união estável 3 e a sua letra D dispõe:

“Art. 1.564-D. A relação não eventual entre pessoas impedidas de casar não constitui família.

Parágrafo único. As questões patrimoniais oriundas da relação prevista no caput serão reguladas pelas regras da proibição do enriquecimento sem causa previstas nos arts. 884 a 886.”

O reformador então, enfrenta o problema das uniões paralelas, para reconhecer que elas não constituem família, que podem gerar demandas patrimoniais, as quais serão atingidas pelas regras do enriquecimento sem causa.

Por fim, a nova redação do dispositivo afasta-se do adultério como um tipo civil, facilitando sua aplicação, na medida em que a conceituação do art. 1.564 é mais objetiva.

Fatalmente situações fáticas imprevistas acontecerão, obrigando o julgador a adequar a normativa a cada caso concreto, em verdadeira criação da norma pela interpretação. Ademais, há que se aguardar o resultado do processo legislativo. De qualquer maneira, o tema, muito sensível como foi dito acima, foi objeto de atenção do reformador, e mostra a preocupação em destravar o direito sem descurar de sua sistematização

2 Paulo LOBO. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Saraivajur, 2021, p. 301.

3 Art. 1.564-A. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre duas pessoas, mediante uma convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida como família.

NA ATUALIZAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL

Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade Nery

Professora associada de Direito Civil da Faculdade de Direito da PUC/SP. Livre-Docente, doutora e mestre em Direito pela PUC/SP. Árbitra em diversas câmaras de arbitragem do Brasil. Foi Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo por 20 anos e desembargadora do Tribunal de Justiça o Estado de São Paulo por 15 anos. Titular da cadeira de número 60 da Academia Paulista de Direito. Professora do curso de graduação e de pós-graduação em Direito da PUC/SP e professora colaboradora do Centro Universitário Ítalo-Brasileiro. Relatora da proposta da reforma do Código Civil.

O sistema de responsabilidade civil é lógico e se destina a dar solução jurídica para as consequências dos danos que diminuem o patrimônio de alguém, de molde a permitir que outro patrimônio seja imputado para suportar a indenização, por meio de fl uxo de recursos que garanta o equilíbrio da economia patrimonial do lesado.

O dano é o fato, portanto, que põe em movimento todo o sistema jurídico de responsabilidade civil.

Imputar civilmente é buscar o patrimônio que garante a indenização do dano, dano assim considerado toda e qualquer forma de apequenamento do patrimônio de alguém.

O dano pode ter causa imputável a outrem, ou não.

Desde o Código de Napoleão, dano é o prejuízo que alguém sofreu e o lucro que deixou de realizar.

Juridicamente todo dano tem repercussão patrimonial e a ausência de dano não justifi ca indenização. Diferentemente do direito penal o sistema de direito privado, em regra, não acolhe um instituto semelhante ao denominado “crime de perigo”, como o faz o direito penal, ou a teoria dos danos punitivos (indenização sem dano) no direito civil.

Identifi cada a importância do dano na movimentação do sistema de responsabilidade civil, a pergunta que se impõe é: qual foi a causa do dano, cuja indenização se busca?

As teorias da causalidade são sempre estudadas entre nós, e a mais acolhida é a teoria da causalidade adequada : qual fato foi capaz de provocar este dano, fato sem o qual o dano não teria ocorrido?

À luz dos CC 186 e 927, entretanto, o ilícito é fundamentalmente a causa de uma imputação, que gera o dever de indenizar. Por isso a ideia de  ilicitude , nesse aspecto mais amplo, está ligada a outra que lhe é correlata, qual seja, à ideia de dano, e assim fala-se em  ilícito objetivo e em  ilícito subjetivo. Esta é a regra. Anote-se, também, que muita vez o ato  lícito que gera prejuízo pode ser causa de indenização.

O tema “responsabilidade civil ” ecoa em todos os livros do Código Civil e o texto de proposta de sua atualização, entregue pelo Presidente da Comissão de Juristas, Ministro Luis Felipe Salomão, ao Senador Rodrigo Pacheco, Presidente do Senado Federal Brasileiro, no dia 17.4.2024, traz mecanismos novos para a segurança das relações patrimoniais, nos

múltiplos aspectos da vida civil, como se pode observar a partir dos apontamentos ora apresentados.

Usa-se a expressão “responsabilidade civil” para aludir-se a um microssistema jurídico de fundamental importância para o direito privado, especificamente destinado a impor a alguém a  obrigação de indenizar danos, danos esses decorrentes de atos , de atividades civis , de operações jurídicas ou, até mesmo, os danos decorrentes do  risco ; em virtude do descumprimento de contrato, ou não, como consequência do querer culposo ou doloso do agente imputado, ou de mera situação de fato, cujas consequências podem vir a ser imputadas ao patrimônio de alguém.

Desse amplo mosaico de possibilidades nasceram termos jurídicos próprios para as várias classificações das hipóteses abarcadas pelo sistema jurídico de obrigações, como se pode perceber das expressões “responsabilidade civil”, “responsabilidade penal”, “responsabilidade objetiva”, “responsabilidade subjetiva”; “responsabilidade contratual; “responsabilidade extracontratual”.

Na teoria do  direito de obrigações  estão fincadas as balizas do estudo de responsabilidade civil, porque a  obrigação de indenizar danos é tema central para onde todas as contingências jurídicas do direito privado (civil e empresarial) convergem e onde todos os efeitos da vontade humana encontram ocasião de análise e teorização.

O princípio fundamental que norteia os estudos do assim chamado sistema de responsabilidade civil denomina-se princípio da “imputação civil dos danos” e já é celebrado no Código Civil Brasileiro no artigo 391: o patrimônio do devedor responde pelo pagamento da indenização.

A atualização que se propõe seja feita ao sistema de direito civil, nessa parte, encontra na sugestão do anteprojeto, uma série de ajustes voltados para o aperfeiçoamento do sistema de responsabilidade civil.

A primeira atualização está no texto do artigo 391-A do Código Civil - de redação inspirada pela Relatoria Geral, com adminículos do Professor Pablo Stolze Gagliano - que traça balizas seguras para a satisfação do credor e para a garantia do patrimônio impenhorável do devedor, que a redação atual do Código Civil não cuidou de considerar com a precisão que se impunha.

Imputar significa, em direito, apontar quem é responsável por algo. Em direito civil, significa apontar quem seja responsável pelo pagamento ou pela indenização a que está obrigado. “A imputabilidade é uma só, no terreno contratual ou extracontratual”. 1

O direito privado trabalha com o fenômeno da  imputação patrimonial e o direito penal com a imputação pessoal. A pena, diz o princípio de direito penal,  não ultrapassa a pessoa do

1 Agostinho Alvim, Da inexecução das obrigações e suas consequências, 4.a ed., Atualizada, São Paulo: Saraiva, 1972, p. 266

criminoso; no direito privado, a indenização  não ultrapassa o patrimônio penhorável do imputado.

4. Outra consideração interessante da atualização do Código Civil, conectada com o tema “responsabilidade civil” está na criação dos chamados “alimentos compensatórios” (artigos 1.709-A, 1.709-B, 1,709-C), no Livro de  Direito de Família , que a Subcomissão de Família criou, por inspiração do Professor Rolf Madaleno.

Chamamos de obrigação civil aquela (dever ou obrigação) que faz nascer um vínculo jurídico que justifica o poder coercitivo do estado em favor do credor. Essa coercibilidade não se vê presente em toda espécie de dever

Aqui verifica-se um caso em que contingências de ordem moral ultrapassam a fronteira da chamada “obrigação moral” e aportam no dever jurídico.

A doutrina jurídica reconhece uma espécie de dever (obrigação moral - um “constante esforço sobre si em favor de outrem” 2) que, conquanto possa despertar censura moral e social, não dá ao sistema jurídico o poder de submeter o faltoso à coercitividade para seu adimplemento.

No caso dos chamados “alimentos compensatórios” verifica-se um dever moral alçado à institucionalização jurídica.

A ilicitude é um conceito que num primeiro momento parece aludir à conduta  contrária de alguém ao comando legal, conduta essa visceralmente ligada a atos culposos e dolosos, de transgressão, lesivos da esfera jurídica de outrem e prejudiciais à segurança da vida jurídica.

Pontes de Miranda  refere-se a quatro possibilidades de o termo ilícito ser compreendido: A ilicitude pode ser enfrentada como juridicizante, isto é:

(a) determinadora da entrada do suporte fáctico no mundo jurídico para a irradiação da sua eficácia responsabilizadora [...], ou

(b) para a perda de algum direito, pretensão ou ação (caducidade com culpa, como se dá com o poder familiar [...]), ou

(c) como infratora culposa de deveres, obrigações, ações ou exceções, tal como acontece com toda responsabilidade culposa contratual, ou

(d) como nulificante [...] ”. 3

2 Nas eloquentes palavras de Manuel Inácio Carvalho de Mendonça, Doutrina e Prática das Obrigações Tratado Geral dos Direitos de Crédito, 4.a ed., aumentada e atualizada por José de Aguiar Dias, tomo I, Rio de Janeiro: Forense, 1956, cap. I, 2, p. 75. Nessa passagem, Carvalho de Mendonça cita Goethe para lembrar que não é a falta de obrigatoriedade jurídica que libera o adstrito de todo o dever, pois estar alguém livre não significa necessariamente estar "descomprometido": "Pode-se viver em verdadeira liberdade e ainda assim não se encontrar descomprometido" ("Man kann in wahrer Freiheit leben und doch nicht ungebunden sein"). Curiosamente, no direito de família há muitas "não obrigações jurídicas" que por vezes obrigam, porque o descompromisso, em família, tem limites.

3 Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda. Tratado de direito privado, Parte Geral, t. II, atualizado por Ovídio Rocha Barros Sandoval, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais/Thomson Reuters, 2012, § 164, p. 276.

Em todas essas hipóteses de ilicitude, no âmbito do direito privado (em virtude de vínculos civis ou empresariais), o tema irá aportar na patrimonialidade da pessoa, natural ou jurídica, responsável pela indenização, a quem o dano derivado da ilicitude, subjetiva ou objetiva, será imputado. A  Parte Geral do Código Civil cuida de maneira especial desse tema (artigos 185; 185-A, 186).

Em matéria de direito empresarial, em que a vitalidade patrimonial da empresa está conectada - em sua essência - à sua capacidade de produzir riquezas, os fatos da vida empresarial, os contratos entre empresas e a estrutura da formação da empresa, foram o ponto fulcral da preocupação da douta Subcomissão que cuido do  Livro de Empresas : os vínculos e a responsabilidade civil da empresa e do empresário, com poder de intervenção na gerência da sociedade, ou não.

Evidentemente, os temas civil e empresariais se entrelaçam: quando um contrato deixa de ser civil e se afeiçoa à atividade mercantil? Quando o mútuo é mecanismo de especulação lucrativa, por exemplo, e passa a ser negócio empresarial?

Essas discussões são muito antigas, anteriores mesmo ao fato de um elemento novo se somar a antigas preocupações do empresariado: o assim considerado “negócio de consumo”!

Talvez tenha sido o ponto de maior desafio para a Relatoria-Geral: manter o sistema do Código, separar o joio do trigo, não misturando as linhas estruturais dos contratos civis e empresariais com os denominados contratos de consumo e, ao mesmo tempo, resguardar as especificidades do direito empresarial, principalmente no que toca ao sistema de responsabilidade civil contratual ao ensejo de se perceberem criadas entre as partes obrigações contratuais de natureza  exclusivamente empresarial.

Pode-se dizer que ao ensejo dessas preocupações com as especialidades do direito empresarial, entre tantas atualizações importantíssimas propostas pela Douta Subcomissão, foram reavivadas expressões e cuidados que já estavam nas tradições do direito comercial brasileiro, desde seus marcos ancestrais inspiradores.

Não se pode deixar de perceber, nos artigos 421-F e 966-A da atualização proposta, um “revival” interessante dos artigos 131, 1º., 2º., 3º., 4º., 5º. e 133 do Código Comercial Brasileiro de 1850, que vigeu entre nós até 2003, quando do advento do Código Civil de 2002.

As mesmas preocupações, quanto à responsabilidade civil aparecem no livro de Direito Digital e na Parte Geral.

Na  Parte Geral , a matéria “responsabilidade civil” encontra tratativa inicial na temática da ilicitude de atos e de atividades  e perpassa o tema da prova, da prescrição e de seus prazos, bem como se alarga de maneira extraordinária nas considerações alusivas à amplitude que se deu aos temas do denominado “dano moral”, inspirando aquilo que será objeto de ampla

tratativa na sequência dos artigos 927 e seguintes, com modelação novidadeira, por inspiração da douta Subcomissão de Responsabilidade Civil.

Também em direito de  Sucessões e de  Contratos , principalmente pela redação que se deu ao artigo 426, vê-se um novo manancial de atos e de atividades que giram de maneira extraordinariamente nova diante da responsabilidade civil de quem se propõe a realizar negócios até ontem considerados de objeto ilícito: herança de pessoa viva

No  Direito Digital  vê-se a tratativa de temas novos abordados de maneira inovadora, que também desperta a teorização de novos mecanismos de excussão patrimonial e de fomento de responsabilidade civil, para garantia e segurança do ambiente digital.

Mas onde as novidades da responsabilidade civil dão um salto extraordinário na proposta de atualização da Comissão?

Justamente na parte destinada às garantias dos créditos, no Livro de Direito das Coisas

A ideia de risco está ligada à iminência de “perigo de prejuízo” (ou seja, perigo de dano) que assombra o sujeito, por decorrência de circunstâncias de fato, ou por consequência de celebração de  contratos , ou de  negócios jurídicos , bem assim, por decorrência da prática de atos, ou de desempenho de  atividades , com potencial de dano.

São muitas as hipóteses em que essa realidade de “risco” se impõe na experiência do direito, provocando diversas formas de controle de suas consequências, por todos quantos vivenciam e experimentam fenômenos jurídicos de perigo potencial.

Do ponto de vista civil, os efeitos das obrigações se confundem com a própria obrigação4 e se pode dizer que o  crédito, sob a perspectiva do credor, e a sujeição de cumprir a obrigação, satisfazendo o credor, sob o ponto de vista do devedor, exibem os elementos do “vinculum iuris” denominado obrigação.

O grande efeito da obrigação civil é autorizar o credor a recorrer às vias de  execução forçada, quando seu cumprimento não se dá de forma perfeita e voluntária.

Bem por isso, considera-se o  crédito como categoria de pretensão jurídica, correlativa a específico encargo que pesa sobre os ombros do devedor e considera-se o credor, desde o direito romano clássico e justinianeu, como titular de uma expectativa de ver-se satisfeito pela voluntária disposição do devedor de cumprir a obrigação, pena de este ver-se forçado a cumpri-la por ação do credor (actio in personam) 5

4 Ch. Beudant, Cours de Droit Français, 2.a ed., Tome VIII, Paris: Librairie Arthur Rousseau, 1936, n. 6, p. 3.

5 Max Kaser, Römisches Privatrecht, 16.a ed., Munique: C.H.Beck, 1992, § 32 I, p. 149.

O crédito é situação jurídica de vantagem, com conteúdo patrimonial, experimentada pelo credor, e pode decorrer de vínculos contratuais, ou de outras causas.

A fonte mais comum das obrigações é a convenção, o contrato, fonte derivada de liberdade própria do ser humano e inspirada pelo princípio da autonomia privada das pessoas, os sujeitos de direito.

A questão alusiva à satisfação do crédito, entretanto, passa por duas vicissitudes fundamentais: (i) a condição patrimonial de o devedor responder pelo débito; (ii) a prioridade de o credor receber o crédito. Isso porque o crédito, em eventual concurso de credores, pode ser disputado sobre a mesma garantia e é fundamental saber quem tem prioridade para obter satisfação do crédito.

Quando os direitos coexistem e tem conteúdos iguais, sem que seja possível o exercício de todos, é necessário providenciar o  concurso de credores, para que se possa resolver o impasse, ou que seja eliminado um dos pretendentes, para que se faça desaparecer a aparente colisão dos direitos. 6

Essas situações podem ocorrer:

a) com a prioridade do exercício de direito que um dos sujeitos fez valer para si, prevenindo o direito de outros;

b) com o exercício limitado de diversos direitos concorrentes;

c) com a conciliação do exercício desses direitos, por determinação judicial e pericial;

Nessa parte das garantias reais, o livro de  Direito das Coisas traz novidades interessantíssimas para atualização do Código Civil.

Pode-se antever dessa singela exposição que está em mãos dos Parlamentares Brasileiros uma audaciosa proposta de atualização do Código Civil, que precisa ser vista ao ensejo da modernidade que se espera que o Código Civil Brasileiro inaugure nas relações privadas.

6 G.P.Chironi, Instituzioni di diritto Civile italiano, v. I, 2.a ed., Milano-Torino-Roma: Fratelli Bocca Editori, 1912, § 85, p. 216.

O VALOROSO TRABALHO DA COMISSÃO DE REFORMA DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO:

PERSPECTIVAS PARA O DIREITO DE DANOS

André Luiz Arnt Ramos

Experiência pós-doutoral na UFPR. Doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Associado ao Instituto dos Advogados do Paraná, ao IBERC e ao IBDCONT. Professor universitário e advogado em Curitiba. E-mail: andre@arntramos. adv.br.

A Comissão de Revisão e Atualização do Código Civil presta serviço inestimável ao refinamento do governo jurídico das relações entre particulares, inclusive, mas não apenas, na seara do Direito de Danos.

Começarei perguntando: o que é a reputação? Eis a verdade: o que nós chamamos de reputação é a soma de palavrões que inspiramos através dos tempos. Não sei se em toda parte será assim. No Brasil é. Nada mais pornográfico, no Brasil, do que o ódio ou a admiração 1

O Código Civil Brasileiro de 2002 é um notável exemplar da segunda onda codificatória 2 , cuja marca distintiva é o emprego de textos normativos intencionalmente indeterminados. É um Código, portanto, que não aspira à completude e à perpetuidade. Antes, nasce ciente de sua incompletude, despido das pretensões caras ao Século XIX.

Os enunciados normativos deliberadamente indeterminados que pululam no Código Civil Brasileiro são, a um só

1 RODRIGUES, N. Memórias : a menina sem estrela. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, p. 153.

2 Sobre o tema, v. PEDRÓN, A. P. La segunda condificación. In: CENTRO DE ESTUDIOS REGISTRALES. Seguridad Jurídica y Codificación . Madrid: J. San José S.A., 1999.

tempo, (i) signos de um certo pragmatismo legislativo, (ii) compromissos interinstitucionais com a coerência do Direito e (iii) antídotos contra o envelhecimento precoce. Quer dizer: (i) consistem em opções pela viabilidade do trabalho legislativo, pelo enxugamento dos custos de oportunidade e de decisão por ele envolvidos 3 ; (ii) oportunizam a interpenetração entre as atividades de construção dos enunciados normativos e de interpretação-aplicação das normas jurídicas, sob o pálio da Ordem Constitucional 4 ; e (iii) permitem, justamente por isso, a perpetuação de soluções abertas às contingências da vida nas sociedades contemporâneas, em vez de prescrições datadas.

Isso não significa, entretanto, que o Código tenha nascido pronto e perfeito. Bem ao contrário: ao lado das virtudes que exibe orgulhosamente, acumula vícios congênitos e problemas aplicativos revelados ou surgidos durante seus

3 V. POSCHER, R. An intentionalist account of vagueness: a Legal perspective. In: KEIL, G. e POSCHER, R. (Orgs.). Vagueness and Law : Philosophical and Legal perspectives. Oxford: Oxford University Press, 2016, pp. 75 e 88.

4 Essa problemática foi abordada alhures, em ARNT RAMOS, A. L. Responsabilidade por danos e segurança jurídica . Curitiba: Juruá, 2018, p. 191.

primeiros vinte anos de vigência. Demais disso, no célebre dizer de Luiz Edson Fachin, “o Código se faz, não nasce feito 5

Nesse diapasão, uma reforma ampla e abrangente, por ocasião do festejo da abertura da terceira década do diploma civil brasileiro, é bem-vinda. Dessarte, a iniciativa da presidência do Senado Federal ao editar o ATS 11/2023 e nomear a “Comissão de Juristas Responsável pela Revisão e Atualização do Código Civil” se mostra induvidosamente oportuna.

O mesmo se pode dizer sobre os trabalhos da Comissão até o momento. Sob a batuta dos Ministros Luis Felipe Salomão e Marco Aurélio Bellizze, bem assim dos professores Flávio Tartuce e Rosa Maria de Andrade Nery, a Comissão se subdividiu em eixos temáticos e conduziu incontáveis reuniões internas e audiências públicas. Com isso, calcorreou contribuições de juristas dos quatro cantos do País, de modo a estruturar, sob o crivo da comunidade especializada, uma proposta abrangente e sistemática de reforma, a qual virá a subsidiar a elaboração de um futuro Projeto de Lei

A despeito de seu indiscutível mérito e da preocupação em ouvir a fazer valer a voz da comunidade jurídica brasileira, os trabalhos da Comissão de Reforma do Código têm recebido ataques de diversos setores da literatura e da imprensa. Alguns, animados pelo benfazejo espírito crítico da Academia, contribuem e valorizam o trabalho da Comissão – o qual será, depois e evidentemente, discutido e votado no Congresso Nacional. Outros, com sói acontecer em debates dessa magnitude, parecem ter motivações menos nobres. Mesmo com espaço nos meios de comunicação, não bastam para convincentemente lançar dúvidas sobre a reforma que começa a se esboçar.

Na ambiência do Direito de Danos, alguns temas contemplados pela Comissão de Juristas merecem especial destaque:

o zelo da subcomissão com a correção de atec nias da redação original do Código Civil, sobretudo no que toca aos nexos de causalidade e imputação e.g. em matéria de excludentes de responsabilidade, com a proposta de substituição das expressões “culpa da vítima” e “culpa de terceiro” por “fato da vítima” e “fato de terceiro” 6 ;

o cuidado com a sistematicidade do Direito, com o reavivamento de pontes e marcos divisórios com os

5 FACHIN, L. E. Direito Civil : sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 56.

6 A literatura não hesita em denunciar a impropriedade do emprego das expressões “culpa da vítima” e “culpa de terceiro”, face a situação das excludentes de responsabilidade no locus do nexo de causalidade – para o qual o elemento subjetivo é irrelevante – e não no do nexo de imputação – no qual os fatores de atribuição culpa , risco e outros critérios normativos são protagonistas. A propósito, v. CUNHA FROTA, P. e BRITO DA COSTA, J. P. Fatores fático-jurídicos obstativos da causalidade jurídica: as interrupções e a inexistência do nexo causal na responsabilidade civil e consumerista – fato da vítima, fato de terceiro e caso fortuito e de força maior. REDES , v. 5, n. 1, 2017.

regimes de responsabilidade civil existentes na legislação esparsa, bem assim com a incorporação ao texto legal de figuras consolidadas no acervo de decisões dos Tribunais;

o prudencial redesenho da responsabilidade por danos, com ênfase às funções que lhe são inerentes – a despeito da contemplação expressa de uma função punitiva, a qual, na leitura deste autor, extrapola os limites da responsabilidade no Direito Civil 7; e

o refinamento dos enunciados intencionalmente indeterminados presentes no Código mediante incorporação de parâmetros decisórios claros, em prol da promoção da segurança jurídica – compreendida desde o prisma da coerência normativa, que junge as concepções fracionárias da calculabilidade, confiabilidade, controlabilidade e cognoscibilidade celebradas pela literatura 8

A abordagem desse conjunto temático pela Comissão de Reforma, sem prejuízo de outros tópicos que, aos olhos de outrem, pareçam de igual ou maior relevância, é de extraordinário valor para a maturação das perspectivas de melhoria do Código Civil de 2002. Mormente à vista de sua integração às técnicas legislativas empregadas pelo texto hoje em vigor e ao potencial de reforço à segurança jurídica de cuja carência tanto se reclama. Isso sem que se fale, evidentemente, das contribuições dirigidas aos demais setores do governo jurídico das relações entre particulares, os quais são objeto de outras colunas deste portal.

O trabalho da Comissão, dessarte, não pode ser diminuído e certamente não cederá diante das reações negativas que inspirou. Oxalá as sementes lançadas pela Comissão de Reforma germinem, brotem e vicejem. O Direito Civil Brasileiro só tem a ganhar.

7 Neste ponto, seja facultado remeter a ARNT RAMOS, A. L. As fronteiras internas do Direito das Obrigações e a Responsabilidade por Danos. In: CAUMONT, A., ORSELLI, H., CATALAN, M., ZENI DE SÁ, P. (Orgs.). Mitos e rupturas no Direito Privado contemporâneo . Londrina : Toth, 2023.

8 V. ARNT RAMOS, A. L. Segurança jurídica e indeterminação normativa deliberada : elementos para uma Teoria do Direito (Civil) contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2021, passim

A DISCIPLINA DA RESPONSABILIDADE CIVIL POR RISCO

DA ATIVIDADE NA REFORMA DO CÓDIGO CIVIL

Nelson Rosenvald

Advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais..

Com o avanço da tecnologia nos últimos anos, e a velocidade com que esse avanço é incorporado no dia a dia das pessoas é impossível sobreviver profi ssionalmente sem aderir às tecnologias. A utilização de dados tem sido o combustível para a transformação digital. Precisamos de informações em tempo real e com precisão para a tomada de decisões em casos semelhantes, para assim termos maior assertividade e efi ciência.

No mês de fevereiro redigi uma  coluna no Migalhas de Responsabilidade Civil sobre a estruturação das propostas da Comissão de Responsabilidade Civil para a Reforma do Código Civil . Agora, trato especifi camente da responsabilidade civil pelo risco da atividade, tema que é parte integrante de um consenso entre os membros da comissão - Ministra Isabel Gallotti e Juíza Patricia Carrijo - e os relatores gerais da reforma, Professores Flavio Tartuce e Rosa Nery.

Por se tratar de uma reforma legislativa e não de um novo Código Civil, corroboramos as diretrizes da operabilidade, socialidade e eticidade, tão caras a Miguel Reale. Temos em mente que um sistema equilibrado de responsabilidade civil requer uma convergência entre a proteção da economia

de mercado e a mais ampla tutela das vítimas de danos e da coletividade perante toda a sorte de ilícitos. Outrossim, reputamos essencial a harmonização entre as cláusulas gerais e critérios decisórios objetivos, parametrizando a atuação de juízes e tribunais.

Como frisou Stefano Rodotá em um de seus últimos escritos, a responsabilidade civil atua como a campainha de um alarme.1 A fi nal, ela exerce o importante papel de repositório de todas as disfuncionalidades de um certo ordenamento. O Código Civil de 2002 é a fotografi a de uma responsabilidade civil exclusivamente atrelada às patologias da propriedade e do inadimplemento contratual. Contudo, hoje ela não apenas abraça múltiplas e complexas situações patrimoniais, recebendo também efeitos danosos da violação de direitos fundamentais e direitos da personalidade, da crise da parentalidade e conjugalidade e das consequências lesivas do emprego das tecnologias digitais emergentes, em todos os níveis.

1Entrevista com Prof. Stefano Rodotà, publicada na seção Diálogos com a Doutrina, na Revista Trimestral de Direito Civil, ano 3, vol. 11, jul./ set., 2022, p. 287-288.

Diante do desafio da construção de uma codificação que esteja em sintonia com as demandas atuais, sempre resta a opção de manter íntegro o Código Civil de 2002, apostando-se no protagonismo da jurisprudência como atualizador normativo. Contudo, com recorte na reforma do Código Civil, como apontou em recente publicação o Ministro Luiz Edson Fachin, “Há, porém, limites estruturais e textuais. A tarefa hermenêutica precisa da norma formal a interpretar. A insuficiência textual e estrutural pode reduzir a relevância do Código, e dificultar a construção de sentido, limitando-o, e o condenando à obsolescência”. 2

Tais limites interpretativos são sentidos de forma intensa na responsabilidade civil, que se encontra em um momento muito distante do estado da arte dos anos setenta do século XX, Fato é que a quase totalidade dos dispositivos do Código Reale projeta o conteúdo do Código Civil de 1916, apenas com pequenas alterações. Em cotejo com o seu antecessor, de relevante o CC/2002 tão somente inovou na cláusula geral do risco (parágrafo único do art. 927) e na redução equitativa da indenização (parágrafo único, art. 944). Acresça-se a isto que, diferentemente da fertilidade legislativa atuante sobre vários setores do direito civil nos últimos 20 anos, na temática da responsabilidade civil não houve sequer uma inovação legal. Em resumo, verifica-se um desajuste temporal de mais de 100 anos.

Com efeito, a oportunidade de modificação da lei civil não surge a todo momento, razão pela qual é necessário aproveitar o ensejo e realizar as reformas que se fizerem necessárias a colocar o Código Civil brasileiro em linha com o que há de mais atual em outros sistemas e, acima de tudo, em consonância com as necessidades da vida social contemporânea.

Para os fins aqui propostos, o Código Civil brasileiro de 2002 cuida da responsabilidade civil subjetiva no art. 927, caput, em combinação com os artigos 186 e 187, que tratam dos atos ilícitos. Além disso, contém várias previsões relativas à distintos nexos de imputação, especialmente nos casos de responsabilidade por fato de terceiro, por fatos dos produtos postos em circulação e por fato das coisas e dos animais, a partir do art. 931. Por fim, o parágrafo único do art. 927 esboça uma cláusula geral de responsabilidade civil objetiva, nos seguintes termos: Art. 927. (...)

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Não há dúvida sobre a relevância dessa previsão. Todavia, a regra sempre pareceu incompleta, a começar pela ausência de critérios objetivos que auxiliem os magistrados a concretizar a cláusula geral do risco da atividade. Além disso, o 2 Reforma e atualização do Código Civil brasileiro e o novo Código Civil argentino.

adverbio “normalmente” e a locução adverbial “por sua natureza” suscitam dúvidas sobre o verdadeiro sentido da norma.

No dia 12 de abril de 2024, a Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para Revisão e Atualização do Código Civil apresentou um Anteprojeto de Lei que introduz importantes modificações em todos os capítulos do Código. 3

Abre-se o estudo da função reparatória, identificando-se as três vigas mestras do nexo de imputação da obrigação de indenizar: Art. 927. Aquele que causar dano a outrem fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único: Haverá dever de reparar o dano daquele:  I - cujo ato ilícito o tenha causado; II - que desenvolve atividade de risco especial; III - responsável indireto por ato de terceiro a ele vinculado, por fato de animal, coisa ou tecnologia a ele subordinado.

O referido dispositivo concede racionalidade e coerência aos fatores de atribuição da obrigação de indenizar: ilícito, risco da atividade (art. 927-B) e responsabilidade pelo fato de terceiro ou da coisa (art. 932). Dessa forma, enfatiza-se a coexistência não hierarquizada das regras de responsabilidade subjetiva e objetiva.

Relativamente à responsabilidade civil por risco da atividade, a CJCODCIVIL redesenhou o parágrafo único do art. 927, agora renumerado como artigo 927-B, disciplinando a matéria de maneira mais abrangente.

Art. 927-B. Haverá obrigação de reparar o dano independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

§ 1º A regra do caput se aplica à atividade que, mesmo sem defeito e não essencialmente perigosa, induza, por sua natureza, risco especial e diferenciado aos direitos de outrem. São critérios para a sua avaliação, entre outros, a estatística, a prova técnica e as máximas de experiência.

§ 2º Para a responsabilização objetiva do causador do dano, bem como para a ponderação e a fixação do valor da indenização deve também ser levada em conta a existência ou não de classificação do risco da atividade pelo poder público ou por agência reguladora, podendo ela ser aplicada tanto a atividades desempenhadas em ambiente físico quanto digital.

§ 3º O caso fortuito ou a força maior somente exclui a responsabilidade civil quando o fato gerador do dano não for conexo à atividade desenvolvida pelo autor do dano.

Antes de justificarmos o conteúdo proposto para o art. 927-B, cumpre ressaltar que o risco da atividade não é enfrentado na reforma do Código Civil apenas pelo prisma da essencial função compensatória da responsabilidade civil, mas também pelo viés da função preventiva do dano potencial. Conforme se 3 Confira-se a  íntegra  do Anteprojeto e do Quadro Comparativo. Acesso em: 29 Abr. 2024.

extraí do caput do proposto art. 927-A: “Todo aquele que crie situação de risco, ou seja responsável por conter os danos que dela advenham, obriga-se a tomar as providências para evitá-los”.

Ou seja, tratando-se de atividade de risco, a responsabilidade do agente existe por antecipação, a partir do momento em que a atividade é colocada em curso e não apenas após a efetivação do dano. Atualmente danos não mais ostentam um perfil meramente individual e patrimonial, porém, manifestam-se como metaindividuais, extrapatrimoniais e por vezes anônimos e irreparáveis. Para evitar que prevaleça a aplicação jurisprudencial desordenada de respostas aos novos desafios que não são solucionados pela função compensatória, adequa-se a responsabilidade civil aos mais avançados ordenamentos, para que seja compreendida como um sistema de gestão de riscos e de restauração de um equilíbrio injustamente rompido.

Não se trata aqui de inibir um ilícito, porém de ampliar o escopo da função preventiva para as atividades de risco especial, cuja imputação objetiva da obrigação de indenizar dispensa a aferição de condutas antijurídicas, sendo suficiente a maior probabilidade de causação de dano pela própria natureza intrínseca da atividade. Isto é, não basta estipular o dever de prevenção no bojo da responsabilidade civil, mas é preciso dotar as vítimas potenciais de instrumentos para preservação de seus bens e interesses em face dos riscos que emanam das atividades desempenhadas por outrem. A vítima potencial poderá requerer ao juiz que obrigue o responsável pela atividade de risco a adotar medidas de prevenção, incluindo a mitigação dos riscos e dos danos. Com base em um juízo de ponderação o magistrado poderá exigir do legitimado passivo ações ou abstenções concretas tendentes à evitação de danos previsíveis. Os trágicos eventos de Minas Gerais envolvendo barragens e o recente episódio do “afundamento da mina” em Maceió evidenciam a importância de uma regra especial voltada à contenção do risco da atividade. No particular, cite-se o Enunciado 446 (V Jornada de Direito Civil): “A responsabilidade civil prevista na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do Código Civil deve levar em consideração não apenas a proteção da vítima e a atividade do ofensor, mas também a prevenção e o interesse da sociedade”. A bipartição entre função preventiva do ilícito e do dano também encontra guarida na reforma do Código Civil da França: Art. 1268 (n. 678, Sénat/2020) - «En matière extracontractuelle, indépendamment de la réparation du préjudice éventuellement subi, le juge peut prescrire les mesures raisonnables propres à prévenir le dommage ou faire cesser le trouble illicite auquel est exposé le demandeur».

Já no tocante a tutela ex post do risco da atividade, o caput do art. 927-B é praticamente idêntico ao atual parágrafo único do art. 927 do Código Civil, apenas com a supressão do termo “normalmente”, que já se infere pelo fato de se tratar de atividade “desenvolvida” pelo agente, com habitualidade e reiteração.

Os três parágrafos introduzidos no proposto art. 927-B minudenciam a definição do que é risco da atividade e de critérios objetivos para a sua identificação, mitigando a discricionariedade na atribuição deste fator objetivo de atribuição, em prol a segurança jurídica, tendo-se como parâmetros os enunciados 38, 4 448 5 e 555 6 e do CJF.

O paragrafo 1º do art. 927-B prevê a comprovação que a atividade represente risco especial e diferenciado, por todos os meios de prova admitidos em direito e, nomeadamente, por meio de estatística, de perícia e das máximas da experiência.  O que há de positivo no novo dispositivo é o esclarecimento a respeito dos critérios para avaliação da natureza da atividade. O primeiro indício acerca do grau de risco de determinada atividade é a existência de classificação pelo poder público ou agência reguladora, para fim de autorização de funcionamento. Ao lado disso ou na ausência de classificação de risco, a natureza da atividade pode ser demonstrada por todos os meios de prova admitidos em direito, mas a lei se refere expressamente à estatística, à prova técnica e às máximas da experiência. Com efeito, a combinação desses meios de prova pode compor um conjunto apto a formar a convicção judicial acerca do risco de determinada atividade.

O § 2º aperfeiçoa o critério inicialmente estipulado na Súmula 351 do STJ: “A alíquota de contribuição para o Seguro de Acidente do Trabalho (SAT) é aferida pelo grau de risco desenvolvido em cada empresa, individualizada pelo seu CNPJ, ou pelo grau de risco da atividade preponderante quando houver apenas um registro”.

Por seu turno, a proposta do § 3º do art. 927-B busca enfrentar o problema dos danos decorrentes de determinadas atividades, mas que são camuflados pela ocorrência de um caso fortuito ou força maior (art. 393, CC). Todavia, abre-se espaço, nas peculiaridades da responsabilidade civil, à inserção do Enunciado 443 do CJF 7, delimitando as figuras do fortuito interno e externo, conforme sedimentado doutrinariamente e já sumulado pelo STJ. 8

4 Enunciado 38 CJF: "A responsabilidade fundada no risco da atividade, como prevista na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do novo Código Civil, configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior do que aos demais membros da coletividade".

5 Enunciado 448 CJF: "A regra do art. 927, parágrafo único, segunda parte, do CC aplica-se sempre que a atividade normalmente desenvolvida, mesmo sem defeito e não essencialmente perigosa, induza, por sua natureza, risco especial e diferenciado aos direitos de outrem. São critérios de avaliação desse risco, entre outros, a estatística, a prova técnica e as máximas de experiência".

6 Enunciado 555 CJF: "'Os direitos de outrem' mencionados no parágrafo único do art. 927 do Código Civil devem abranger não apenas a vida e a integridade física, mas também outros direitos, de caráter patrimonial ou extrapatrimonial".

7 Enunciado 443: "O caso fortuito e a força maior somente serão considerados como excludentes da responsabilidade civil quando o fato gerador do dano não for conexo à atividade desenvolvida".

8 Em reforço a Súmula 479/STJ, "as instituições financeiras respon -

É cediço que o fortuito e a força maior são excludentes de responsabilidade civil, por ruptura do nexo de causalidade, mas há casos em que esses fenômenos se sobrepõem à causa verdadeira do dano, ocultando o verdadeiro responsável. Exemplo disso é o caso das chuvas e enchentes que fazem desabar uma construção realizada sem observância das normas técnicas, a qual provavelmente viria a pique em razão da precariedade de sua estrutura diante de qualquer intempérie. Nesse caso, não há falar em exclusão da responsabilidade civil porque a causa da ruína é a precariedade da estrutura e não a superveniência das chuvas e das enchentes.

As breves justifi cativas sobre o risco da atividade na reforma do Código Civil sinalizam que, longe de romper com a tradição ou de ameaçar a segurança jurídica, os dispositivos propostos pela Comissão de Juristas responsável pela Revisão e Atualização do Código Civil invocam o diálogo entre o passado e as demandas do presente. As propostas não surgiram de seis meses de debate no seio de uma Comissão Reformista. Elas perfi lham a jurisprudência dominante dos tribunais superiores e estabilizam vinte anos de sedimentação doutrinária, canalizada por enunciados do CJF.

dem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias".

A REFORMA DO CÓDIGO CIVIL E O ART. 931

Marcelo Junqueira Calixto

Doutor e mestre em Direito pela UERJ. Professor adjunto da PUC-Rio e associado fundador do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). Membro do IBDCivil, do IBDCONT e do IAB.

U m dos dispositivos do Código Civil de 2002 que sempre gerou controvérsia doutrinária é o art. 931, que afi rma: "Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação" . Em verdade, por força da própria ressalva à existência de um regime especial, - a saber, a "responsabilidade pelo fato do produto" contida no CDC -, o dispositivo teve questionada a sua própria pertinência, sendo afi rmado que "qualquer tentativa de salvar o dispositivo estaria fadada ao fracasso" 1

"Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, o fabricante responde independentemente de culpa pelos danos causados por defeitos nos produtos postos em circulação. Parágrafo único. O produto é considerado defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera quando é posto em circulação."

Talvez por essa razão tenha, de fato, sido proposta a sua revogação pela primeira versão do anteprojeto de reforma do Código Civil submetida à votação dos membros da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal. Contudo, no "Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil" , efetivamente entregue ao Senado Federal, o dispositivo constante do anteprojeto, anexo ao citado "Relatório" 2 , apresenta a seguinte redação:

1 CARNAÚBA, Daniel Amaral. "Para que serve o art. 931 do Código Civil? Considerações críticas sobre um dispositivo inútil", in Revista de Direito Civil Contemporâneo, São Paulo, v. 7, n. 22, pp. 203-239, jan./ mar. 2020.

2 As questões relativas à atuação da Comissão de Juristas, até a apresentação do "Relatório Final", podem ser acessadas no seguinte

O presente artigo, portanto, tem por escopo analisar as alterações propostas na redação do dispositivo acreditando, por certo, que o mesmo possa ser, ao fi nal do longo processo legislativo, convertido em norma vigente. Nesse sentido, a primeira observação que deve ser feita é a substituição da referência aos "empresários individuais e as empresas" pela previsão da responsabilidade do "fabricante". A alteração não é meramente terminológica, mas acarreta importante repercussão prática. De fato, representa o reconhecimento de que o "verdadeiro introdutor da coisa perigosa no mercado é o fabricante e não o distribuidor ". 3

endereço eletrônico: "CJCODCIVIL - Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil - Atividade Legislativa - Senado Federal", acesso em 28.06.2024.

3 Esta conhecida afirmação é de Fábio Konder COMPARATO, "A proteção do consumidor: importante capítulo do direito econômico", in Ensaios e Pareceres de Direito Empresarial, Rio de Janeiro, Forense, 1978, p. 491. No mesmo sentido pode ser recordada a doutrina de João Calvão da SILVA (Responsabilidade Civil do Produtor, Coimbra, Almedina, 1990, p. 24), segundo o qual é inegável que houve uma "desfuncionalização do comércio", a traduzir uma "alteração

Ao mesmo tempo, afasta a possibilidade de responsabilização do "comerciante" , o qual, por não ter nenhum controle sobre o produto, é igualmente surpreendido pela existência de um defeito no mesmo. Esta realidade já justificava o tratamento dado pelo CDC ao comerciante - o qual somente pode ser responsabilizado pelo "fato do produto" nos casos do art. 13 - e serve de fundamento para a alteração do Código Civil. Em consequência, passa a ser necessária uma leitura mais cuidadosa do enunciado 42 da "I Jornada de Direito Civil" na parte que se refere "à empresa e aos empresários individuais vinculados à circulação dos produtos" (grifou-se). Esta "vinculação à circulação", com a nova redação proposta, não deve, de fato, ser capaz de gerar, pelas razões já apontadas, a responsabilidade do comerciante.

Outra imp ortante alteração é a referência expressa à existência de um "defeito" no produto como elemento deflagrador do dano, sendo o defeito entendido, na forma do parágrafo único da norma projetada, como violação da legítima expectativa de segurança existente ao tempo da entrada em circulação do produto. É inegável que a nova redação proposta para o dispositivo buscou inspiração no art. 12, § 1º, do CDC, mas não com o intuito de, simplesmente, repetir um sistema já consagrado em nosso ordenamento jurídico, - levando a uma duplicidade talvez inútil -, mas sim com o nobre intuito de evitar a "ruptura do sistema", afastando a possibilidade de se reconhecer uma responsabilidade sem excludentes do fabricante. 4

De fato, a previsão, ainda em vigor, do Código Civil, imputando uma responsabilidade objetiva aos "empresários individuais e às empresas" sem qualquer excludente expressa, sempre foi motivo de grande apreensão doutrinária. Não foi por outra razão que, na VI Jornada de Direito Civil, foi aprovado o enunciado 5625 , o qual é corroborado pelo enunciado 661, da IX Jornada de Direito Civil. 6 O claro objetivo dos dois enunciados é evitar a possível interpretação de que o art. 931, indo além do sistema protetivo inaugurado pelo CDC, teria consagrado uma responsabilidade civil objetiva fundada no chamado "risco integral", isto é, sem excludentes.

da função ou do papel do comerciante: de especialista e conselheiro do adquirente passa a simples distribuidor, a entreposto ou "estação intermédia", mero elo de ligação entre o produtor e o consumidor e cuja função principal, quase exclusiva, está na armazenagem e distribuição dos produtos".

4 O perigo da "ruptura do sistema" foi corretamente apontado por Gustavo TEPEDINO em "Editorial" intitulado "O art. 931 do Código Civil e a antijuridicidade do dano injusto" publicado na Revista Brasileira de Direito Civil, Belo Horizonte, Forum, v. 22, pp. 11-13, out./dez. 2019.

5 Afirma o Enunciado 562: "Aos casos do art. 931 do Código Civil aplicam-se as excludentes da responsabilidade objetiva".

6 Eis o teor do Enunciado 661: "A aplicação do art. 931 do Código Civil para a responsabilização dos empresários individuais e das empresas pelos danos causados pelos produtos postos em circulação não prescinde da verificação da antijuridicidade do ato". Para um aprofundamento da "antijuridicidade" como pressuposto da responsabilidade civil extracontratual pode ser vista a doutrina de PETTEFI DA SILVA, Rafael. "Antijuridicidade como pressuposto da responsabilidade civil extracontratual: amplitude conceitual e mecanismos de aferição", in Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 18, ano 6, pp. 169-214. São Paulo: Ed. RT, jan.-mar. 2019.

Assim, caminhou bem o reformador ao incluir o "defeito" como um pressuposto para a responsabilidade objetiva do fabricante.7 Claro que, além deste requisito, também é indispensável a existência de um vínculo de necessariedade entre o defeito e o dano verificado, de forma que as demais excludentes do nexo causal também poderão ser validamente invocadas pelo fabricante. 8

Oportuno observar, porém, que, dentre estas excludentes, não se inclui aquela conhecida como "riscos do desenvolvimento" Ao contrário, a referência expressa ao "defeito" como requisito para a responsabilidade também no regime do Código Civil serve para confirmar que os riscos presentes no produto, desde o momento de sua entrada em "circulação" , devem ser imputados ao fabricante, ainda que desconhecidos pelo mais avançado estado da ciência e da técnica então em vigor. 9 Observa-se, assim, mais uma vez, uma aproximação entre o regime inaugurado pelo CDC e aquele constante do Código Civil.10

Considerando a (reforçada) proximidade entre os regimes da responsabilidade civil pelo fato do produto, prevista pelo CDC, e o que se pretende estabelecer com a reforma do art. 931 do Código Civil, deve ser respondida uma pergunta final: Qual a utilidade da manutenção deste último dispositivo? Certo é que não são conhecidos precedentes, na jurisprudência do STJ, que tenham sido fundamentados exclusivamente no disposto no Código Civil.11 A resposta parece residir no fato de que o re -

7 Para uma defesa do "defeito" como requisito da responsabilidade objetiva também no regime do Código Civil seja consentido remeter a Marcelo Junqueira CALIXTO, "O art. 931 do Código Civil de 2002 e os riscos do desenvolvimento", in Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, PADMA, v. 21, pp. 53-93, jan./mar. de 2005.

8 Esta afirmação foi precisamente sintetizada por Gustavo TEPEDINO, "O art. 931 do Código Civil e a antijuridicidade do dano injusto", cit., p. 13, ao afirmar: "Por esse motivo, também em homenagem à coerência do sistema, as excludentes do dever de reparar previstas no Código de Defesa do Consumidor devem incidir na busca de causalidade necessária entre o dano e o defeito que o produziu".

9 Sobre o tema dos "riscos do desenvolvimento" seja consentido remeter a obra específica: CALIXTO, Marcelo Junqueira. A Responsabilidade Civil do Fornecedor de Produtos pelos Riscos do Desenvolvimento, Rio de Janeiro, Renovar, 2004. Quanto ao tema, é oportuno recordar que, já na I Jornada de Direito Civil, foi elaborado o Enunciado 43 que afirma: "A responsabilidade civil pelo fato do produto, prevista no art. 931 do novo Código Civil, também inclui os riscos do desenvolvimento".

10 Nesse sentido, deve ser recordado que a afirmação de que o CDC não reconhece os "riscos do desenvolvimento" como uma possível excludente da responsabilidade do fornecedor deixou de ser uma questão meramente doutrinária, mas ganhou a adesão judicial. De fato, ao julgar, em 05 de maio de 2020, o Recurso Especial 1.774.372/ RS, a Min. Relatora (Nancy Andrighi), acompanhada pelos demais integrantes da Terceira Turma, asseverou, em seu voto, o seguinte: "Ainda que se pudesse cogitar de risco do desenvolvimento, entendido como aquele que não podia ser conhecido ou evitado no momento em que o medicamento foi colocado em circulação, tratar-se-ia de defeito existente desde o momento da concepção do produto, embora não perceptível a priori, caracterizando, pois, hipótese de fortuito interno" (grifou-se).

11 D e fato, o precedente "mais próximo' que se encontra na jurisprudência do STJ é relativo à contrafação de produtos em ação movida pelos titulares das marcas em face de "administradora de centro comercial" situado em área de comércio popular de São Paulo. No caso, a administradora foi solidariamente condenada por ser a locadora de "stands" e "boxes" nos quais eram comercializados os produtos considerados "violadores do direito de propriedade industrial" dos titulares das marcas (Recurso Especial 1.125.739/SP, Terceira Turma,

gime do CDC é caracterizado por sua capacidade expansiva, em especial se for recordado que, para fins do "fato do produto" , consumidor não deve ser entendido somente como "destinatário final" (art. 2º, caput), e sim como qualquer "vítima do evento danoso" (art. 17), o chamado bystander (expectador).12

Assim, o espaço reservado à incidência do art. 931 apresenta-se, de fato, restrito, ficando reservado às hipóteses em que não se mostra possível a aplicação do regime especial.13 Mas parece inquestionável que a aplicação do Código Civil poderá ocorrer em situações em que não se consegue reconhecer a figura do "destinatário final ", e tampouco a figura do bystander, uma vez que se considere inexistente prévia relação de consumo.14 Exemplo pode ser encontrado na venda de elevada quantidade de determinado produto (como, por exemplo, combustível) de um fabricante (pessoa jurídica) para ser utilizado como insumo pela pessoa jurídica adquirente, a qual é dotada de grande porte econômico. No ato da entrega do produto ocorre uma explosão destruindo os caminhões da empresa transportadora, sendo tal explosão decorrente de um defeito presente no produto transportado, o que foi confirmado por prova pericial.15

Para estas situações, ainda que, aparentemente, pouco numerosas, é sim recomendável a existência de norma específica consagradora de uma responsabilidade civil objetiva fundamentada na existência de um defeito no prod uto causador do dano.

Rel. Min. Sidnei Beneti, julgado em 03 de março de 2011). A solução da controvérsia, em verdade, não parece encontrar fundamento no art. 931 do Código Civil, mas o dispositivo havia sido citado pelo TJSP, juntamente com o art. 927 do mesmo diploma, e não houve provimento do Recurso Especial, quanto ao ponto, por força do óbice da Súmula 7 do STJ.

12 Oportuno recordar os dispositivos do CDC: "Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final; Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento".

13 Dessa forma, não se mostra correto o Enunciado 378 da IV Jornada de Direito Civil, que afirma: "Aplica-se o art. 931 do Código Civil, haja ou não relação de consumo". Como visto, o pressuposto para a aplicação do regime do Código Civil é que, efetivamente, inexista relação de consumo, pois, presente esta, o tratamento da controvérsia deve encontrar fundamento no previsto na lei especial.

14 O STJ, de fato, tem precedentes reconhecendo que a aplicação do art. 17 do CDC, reconhecendo o bystander como "vítima do evento danoso", exige a demonstração de "prévia relação de consumo". Assim, por exemplo, o taxista não é responsável, como fornecedor de serviços, se, no momento da colisão de seu carro com o de terceiro, não estivesse transportando nenhum passageiro. Este terceiro não será considerado "vítima" de um serviço defeituoso pelo fato de "inexistir prévia relação de consumo" (veja-se, nesse sentido, o julgamento do Recurso Especial 1.125.276/RJ, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 28 de fevereiro de 2012).    15 Outro interessante exemplo é dado por Gustavo TEPEDINO, "O art. 931 do Código Civil e a antijuridicidade do dano injusto", cit., p. 12, ao afirmar: "Em outras palavras, incide o art. 931, fora das relações de consumo, mas respondendo à mesma dinâmica objetiva de incidência, subordinada à presença de antijuridicidade estabelecida por vício de segurança que o legislador pretendeu coibir como um desvalor. Significa dizer que, em certa atividade lícita, há fato incidental que, independentemente de culpa ou de má utilização pelo destinatário, altera os efeitos legitimamente esperados do produto (imagine-se, a título ilustrativo, o vazamento de certo produto químico no ato de entrega à empresa destinatária)".

A IMPORTÂNCIA DA MULTIFUNCIONALIDADE

RESPONSABILIDADE CIVIL

Patrícia Carrijo

DA

Juíza, presidente da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego) e vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).

A proposta da Comissão de Juristas para alteração legislativa adota a aplicação do dever geral de cuidado, com inspiração na função preventiva, como necessidade de uma parcimônia de comportamentos antijurídicos e não apenas a contenção de danos.

Trata-se de uma nova abordagem, com ferramentas que se aproximem mais de uma forma de proteção positiva, sem que isso represente o fi m do juízo sobre a conduta que se reprova.

Em um desafi o concentrado para o aprimoramento legislativo da vida civil, frente às novas perspectivas para a transformação social, foi aprovada a proposta de atualização do Código Civil, agora em tramitação no Congresso Nacional.

A subcomissão de Juristas responsável pelo microssistema de responsabilidade civil apresentou sugestões que visam restabelecer o papel de coordenação do Código, interagindo com outros sistemas normativos, à luz dos notáveis avanços sociais e do desenvolvimento tecnológico. A fi nalidade primordial é de solidifi car os novos paradigmas da responsabilidade civil e manter o Código Civil como posição central no âmbito do direito privado.

um marco orientativo doutrinário que conduza ao aperfeiçoamento de decisões judiciais, o que, por sua vez, trará maior segurança jurídica.

Mas não é só: essa modernização possibilita oferecer critérios objetivos ao instituto da responsabilidade civil e valorizar as funções da responsabilização, situação capaz de fortalecer o sistema jurídico e a cidadania, além de estabelecer

Em geral, os estudos sobre responsabilidade civil começam relembrando o princípio romano de que a ninguém é dado o direito de causar danos a outrem (neminem laedere).  Assim, em atenção à liberdade individual, cada ação (ou omissão) praticada, traz uma consequência, de modo que a pessoa assume a responsabilidade por sua liberdade de escolha e por sua vontade.

Ao longo dos anos, houve uma abordagem do tema sob o enfoque de sua estrutura, sem que houvesse uma normatização bem clara de sua funcionalidade. No próprio Código Civil de 2002 há uma preocupação com a regra da responsabilidade contratual e da responsabilidade aquiliana, sem uma sistematização bem defi nida, o que retrata uma responsabilidade relacionada, sobretudo, aos problemas da propriedade e do descumprimento de obrigações.

Coube, portanto, à Doutrina e à Jurisprudência trazer contornos e alguns parâmetros para evitar decisões díspares.

Algumas difi culdades enfrentadas pelos operadores do Direito residem no modelo de subjetividade que foi adotado, pelo qual o agente só responderia se causasse dano a outrem, de

maneira intencional ou ao agir com imprudência, negligência ou imperícia.

Conscientes dessas questões, a jurisprudência e a Doutrina iniciaram uma das primeiras manifestações de avanço, ao conduzir uma interpretação mais sensível às exigências da sociedade, que trouxe o surgimento da inversão do ônus da prova e da presunção de culpa, o que, por sua vez, abriu fronteiras para a objetivação da responsabilidade.

Uma abordagem civil-constitucional - lastreada na dignidade humana e na valoração social - que foi a adotada para as propostas de alteração, parte do princípio de que a estrutura dos institutos e categorias só pode ser defi nida com base em sua função. Isso signifi ca que só é possível compreender a natureza de um instituto após entender para que ele serve, ou seja, qual é sua função1

No atual modelo, a responsabilidade civil atua apenas como um mecanismo de reparação; aliás, esse é o primeiro conceito que se tem à mente quando tratamos o assunto: indenização. Isso nos levou a um debate que possibilitou verifi car que a função tradicional do instituto é a reparatória, ou compensatória.

E, ao trilharmos um caminho compreensivo, é possível perceber, sem muito esforço, que a responsabilidade civil tem passado por mudanças signifi cativas desde o seu surgimento, sobretudo no que se refere ao reconhecimento de novos valores merecedores de tutela do Estado, mesmo porque "nem todo dano é ressarcível" 2

Além disso, há uma variedade de preocupações relacionadas à (in)sufi ciência que a função ressarcitória tem demonstrado 3 , sobretudo por se revelar uma medida mais genérica, bem distante do signifi cado de outrora, mesmo porque, não raras vezes, as consequências de condutas ilícitas ou riscos assumidos vão além do indivíduo afetado, afetando interesses coletivos e a própria estrutura social.

A alteração de conteúdo, signifi cado e função, deve ser vista como um acontecimento natural e até esperado nos institutos jurídicos, marcados pela sua historicidade e relatividade 4

As principais democracias liberais adotam a multifuncionalidade da responsabilidade civil 5 , tendo em vista a mudança de paradigma do sistema de responsabilização, além da segurança jurídica e previsibilidade que traz, exatamente o que os agentes econômicos buscam, até mesmo para prefi xar seus custos e calcular investimentos.

Nesse contexto, ao reconhecer o grande avanço que a sociedade contemporânea sofreu nos últimos anos, sobretudo relacionado à realidade tecnológica, somado à objetivação da responsabilidade civil e ao crescimento das hipóteses de dano, emerge a necessidade de se identifi car os riscos e se verifi car o papel - e a relevância - de suas funções, bem como de seus instrumentos de atuação.

A proposta de reforma manteve a primazia da função clássica de reparação - compensatória -, à luz do princípio da reparação integral, com uma abordagem que visa maior efetividade ao instituto, conforme parâmetro do "princípio da tutela efetiva".

Nesse contexto, propusemos a reforma do art. 927 e a redação de novos artigos, para a organização do fator jurídico determinante da responsabilidade - nexo de imputação -, além da identifi cação dos aspectos que determinam a obrigação de indenizar, o que permitiria a coexistência de regras da responsabilidade subjetiva e objetiva da ação antijurídica.

Com a ressignifi cação da responsabilidade civil e a ampliação da "tutela efetiva da vítima", cresce uma tendência de maior aplicação da função preventiva, tido como retrato da importância de combater de forma incisiva a prática de comportamentos considerados inaceitáveis na sociedade.

Para alguns estudiosos, a medida possuiria também um efeito didático, pois o receio "de ser tachado como culpado por descurar da adoção de medidas necessárias de prevenção de danos, pedagogicamente impele potenciais causadores de danos a uma atuação cautelosa no exercício de sua atividade econômica". (Rosenvald, 2022, p. 430).

1 Sobre esse assunto, o Professor Pietro Perlingieri afirma que "o fato jurídico, como qualquer outra entidade, deve ser estudado nos dois perfis que concorrem para individuar sua natureza: a estrutura (como é) e a função (para que serve). (...) A função do fato determina a estrutura, a qual segue - não precede - a função" (PERLINGIERI. 2008, p. 642).

2 "Define-se o dano como a lesão a um bem jurídico. A doutrina ressalva, todavia, que nem todo dano é ressarcível. Necessário se faz que seja certo e atual. Certo é o dano não-hipotético, ou seja, determinado ou determinável. Atual é o dano já ocorrido ao tempo da responsabilização. Vale dizer: em regra, não se indeniza o dano futuro, pela simples razão de que o dano ainda não há. Diz-se 'em regra' porque a evolução social fez surgir questões e anseios que desafiam a ideia de irreparabilidade do dano futuro". (TEPEDINO, et. al. 2006. p. 338).

3 "Uma certa ineficácia do instrumento ressarcitório, sobretudo no campo de lesões a interesses coletivos e extrapatrimoniais, no eco de um 'sentimento de insatisfação com os institutos tradicionais', veio despertar a doutrina e a jurisprudência para a busca de novos modelos de tutela das relações privadas". (TEPEDINO, et. al. 2006, p. 501-502).

O STJ tem enfatizado que "a função preventiva essencial da responsabilidade civil é a eliminação de fatores capazes de produzir riscos intoleráveis". (Informativo n. 574, REsp 1.371.834-PR, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti; e Informativo n. 538, REsp 1.354.536-SE, Rel. Min. Luís Felipe Salomão).

A proposta da Comissão de Juristas para alteração legislativa, adota a aplicação do dever geral de cuidado, com inspiração

4 "Com o transcorrer das experiências históricas, institutos, conceitos, instrumentos, técnicas jurídicas, embora permaneçam nominalmente idênticos, mudam de função, de forma que, por vezes, acabam por servir a objetivos diametralmente opostos àqueles originais." (PERLINGIERI. 2008, p. 141).

5 Nesse sentido: "Especificamente, no setor da responsabilidade civil há uma pluralidade de funções, sem qualquer prioridade hierárquica de uma sobre outra." (ROSENVALD, 2022, p. 313).

na função preventiva, sobretudo após o advento do Código Civil da Nação Argentina (art. 1.710), como necessidade de uma parcimônia de comportamentos antijurídicos e não apenas a contenção de danos.

Esse novo olhar certamente colocará em foco o comportamento do agente, mas em um contexto diferente do caráter punitivo da tutela negativa - reativa - do direito. Trata-se de uma nova abordagem da responsabilidade civil que intervenha antes da ocorrência do dano, com ferramentas que se aproximem mais de uma forma de proteção positiva - tutela positiva -, sem que isso represente o fi m do juízo sobre a conduta que se reprova.

Nas palavras de Norberto Bobbio, "a noção de sanção positiva deduz-se, a contrário sensu, daquela mais bem elaborada de sanção negativa. Enquanto o castigo é uma reação a uma ação má, o prêmio é uma reação a uma ação boa". (BOBBIO. 2007, p. 24).

Exatamente por isso que há a necessidade de que o Código Civil reassuma esse papel de centralidade e traga defi nições claras para fortalecer o sistema jurídico e a cidadania, bem como assegurar os avanços sociais e tecnológicos que temos experimentado.

Foi exatamente esta a proposta de redação do art. 927-A, em uma releitura constitucional do direito civil, a fi m de que a tutela positiva pudesse assumir o um mecanismo complementar à tutela negativa - amplamente conhecida, diretamente relacionada às fi nalidades substanciais estabelecidas na Constituição.

Não é demais lembrar que a prevenção de danos corresponde ao anseio de toda uma sociedade, principalmente quando relacionados à atividades potencialmente de risco, de modo que as decisões judiciais poderão valorizar essa tutela positiva e as medidas adotadas para evitar o dano.

Essas funções interagem entre si e se fortalecem mutuamente, possibilitando que o sistema de responsabilidade civil cumpra seu papel social, como um meio para diminuir os custos dos acidentes e promover o bem-estar da sociedade, o que, repito, se traduz em segurança jurídica.

A importância da multifuncionalidade da responsabilidade civil reside, portanto, na sua capacidade de adaptar-se às demandas de uma sociedade em constante transformação, atuando como um instrumento de regulação social. Ao reconhecer a responsabilidade civil como um mecanismo multifuncional, o direito amplia seu escopo de atuação, contribuindo não apenas para a solução de confl itos, mas também para a prevenção de danos e a promoção de uma convivência social mais harmônica e segura.

Essa releitura é fundamental para o atual momento da sociedade brasileira, quando recordamos que o estudo do direito civil, à luz da Constituição de 1988, não pode se esquivar de alguns

pontos norteadores, quais sejam: (i) a superioridade e a efi cácia normativa da Constituição; (ii) a integração e a complexidade do sistema jurídico; e (iii) a interpretação com propósitos práticos, somados a uma abordagem metodológica, relacionada ao pensamento pós-positivista; (iv) a consideração da historicidade dos institutos e categorias; (v) a prevalência dos interesses existenciais sobre os de natureza patrimonial; e (vi) a reinterpretação funcional.

Portanto, há uma necessidade, evidente e crucial, de se superar a natureza monofuncional da responsabilidade civil, sobretudo por uma análise constitucional e pela leitura contemporânea, de uma sociedade plural, marcada por avanços tecnológicos, como forma de nos adequar à atual realidade, como forma de reforçar a segurança jurídica frente a transformação social.

Referências

BOBBIO, Norberto. Trad. Daniela Beccaccia Versiani.  Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole, 2007.

MORAES, Ana Beatriz; LOPES, Carlos Eduardo.  A Função Preventiva da Responsabilidade Civil no Direito Brasileiro Rio de Janeiro: Forense, 2020.

MORAES, Maria Celina Bodin de.  Danos à pessoa humana: uma releitura civil-constitucional dos danos morais. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Processo, 2017.

PERLINGIERI, Pietro.  O direito civil na legalidade constitucional . Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

RIBEIRO, Mariana Souza.  Responsabilidade Civil: Aspectos Reparatórios e Sancionatórios . Belo Horizonte: Del Rey, 2021.

ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil . 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2022. E-book.

SILVA, João Carlos.  Multifuncionalidade da Responsabilidade Civil: Uma Análise Contemporânea . 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2022.

TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson.  As penas privadas no direito brasileiro. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flavio. Direitos fundamentais: estudos em homenagem Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto.  Responsabilidade civil preventiva: a proteção contra a violação dos direitos e a tutela inibitória material . São Paulo: Malheiros, 2014.

USUCAPIÃO

FAMILIAR NA ATUALIZAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL: UM OLHAR À LUZ DA PROTEÇÃO DAS

VULNERABILIDADES

Maria Cristina Santiago

Doutora em direito pela UFPB, integra a Comissão de Juristas de atualização do CC do Senado Federal. Pesquisadora do grupo de pesquisa Constitucionalização das relações privadas - Conrep da UFPE. Juíza do TER/PB - categoria Jurista. Advogada e sócia-fundadora do Santiago & Rangel advogados. Professora de Direito dos cursos de graduação e pós-graduação do UNIPÊ. @mariacristinasantiago_

Com imensa honra integrei a Comissão de Juristas, responsável pela apresentação de um anteprojeto de lei de atualização e reforma do Código Civil. Ingressei na Comissão em setembro de 2023 e a partir de então foram horas de intensa imersão no Direito Civil, especialmente, no Direito das Coisas, por fazer parte dessa subcomissão ao lado do Desembargador Marco Oliveira Milagres (TJMG) e do Advogado Carlos Antônio Vieira Fernandes Filho, sob a relatoria do Desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo (TJRJ). Trago algumas paixões na vida, e a propósito deste escrito compartilho com os leitores minha paixão pela literatura. Assim, não poderia iniciar estas linhas, sem dividir com o leitor uma imagem que sempre me vem à mente, quando penso no Código Civil vigente.

trabalho impecável dos atores Brad Pitt, Cate Blanchet e Julia Ormond2

Sabe-se que o Código Civil brasileiro de 2002, em muitos aspectos, assemelha-se ao personagem Benjamin Button, imortalizado pela escrita precisa de Fitzgerald, na década de 1922 1 e, posteriormente, conhecido também por aqueles que nutrem o fascínio pelas telas de cinema numa produção magnifi camente dirigida por David Fincher e interpretada pelo

1 FIZGERALD, F. Socott. O curioso caso de Benjamin Button. Trad. JÚNIOR MOREIRA, Francisco; ilustrado por CAITANO, Venez. São Paulo: Principis, 2023. Disponível  aqui . Acesso em: 01 jun. 2024.

Quem assistiu ao fi lme ou leu o romance de Fitzgerald, sabe que Benjamin Button dribla a ordem de  Chronos3 e rejuvenesce com o passar dos anos. Assim, apesar de nascer idoso, com os achaques próprios da idade, à medida que o tempo passa, Benjamin vai atingindo o seu auge em aptidão física, psíquica e intelectual. Nas telas do cinema esse apogeu é retratado pela beleza do ator Brad Pitt. Embora tanto o romance quanto o fi lme homônimo nos proponham certas conclusões a respeito da solidão inerente a esse caminho inverso, trilhado pelo personagem, permite-nos também sonhar com o tempo, como um fi el amigo, conduzindo-nos à nossa melhor forma.

Infelizmente, a semelhança entre o Código Civil de 2002 e Benjamin Button guarda semelhança apenas quanto ao nascimento. Ambos nasceram velhos, mas enquanto o herói de Fitzgerald rejuvenesce, o nosso Código, infelizmente, permaneceu velho por todo o tempo. Por essa razão, antes de tudo, é preciso registrar a importância fundamental da 2 Disponível aqui. Acesso em: 02 jun. 2024.

3 Cf. em FERRY, Luc. A Sabedoria dos Mitos Gregos. Aprender a Viver II. Trad.: Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2012, recurso digital. Kindle.

jurisprudência brasileira que transcendeu a norma e a aproximou da realidade social que a alberga.

Para tanto, é suficiente lançar um olhar para o passado, para compreender que a aprovação do Projeto de 1975, transformado posteriormente na Lei nº 10.406, de 2002, inauguraria, invariavelmente, novas dificuldades de harmonização das fontes normativas revisitadas pelos valores axiológicos introduzidos pela redemocratização do país e cristalizados na Carta Política de 1988 4

Desse modo o trabalho da Comissão 5 , sob a condução dos incansáveis Relatores Gerais Professores Rosa Maria Nery e Flávio Tartuce, foi pautado na manutenção das diretrizes principiológicas da operabilidade, sociabilidade e eticidade, marcas indeléveis do Código Reale, que representa extrema sensibilidade e acerto na normatização da vida privada.

Destarte, procurou-se incorporar ao texto normativo aquilo que já estava consolidado na Jurisprudência dos Tribunais Superiores; nos Enunciados das Jornadas de Direito Civil e na Legislação extravagante afeita a cada área do Direito Civil.

Feitas essas considerações iniciais, passa-se a abordar o tema que será objeto dessa reflexão: usucapião familiar.

A escolha do tema se deveu a dois fatores. Primeiro por se tratar de um dos institutos mais utilizados para resolver a questão fundiária no Brasil, desempenhando importante papel de regularização fundiária e de proteção da posse. O segundo motivo, igualmente importante, deve-se aos dados da estatística demonstrando que mais da metade da população brasileira tem seus domicílios liderados por mulheres.

No censo 20226 , dos 75 milhões de lares, 50,8% eram chefiados por mulheres, o que corresponde a 38,1 milhões de lares. Nesse panorama, não se pode furtar de lançar na atividade de atualização desse normativo uma análise sob a perspectiva de gênero. Essa recomendação, inclusive, pode ser vista em outros dispositivos que serão objeto de futuras reflexões. Pois bem. Por essa razão, a lei 12.424, de 20117, em seu Art. 9, alterou o Código Civil trazendo nova modalidade de aquisição de propriedade por usucapião. Veja-se a redação vigente: Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade dívida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

4 Confirmar em PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad.: CICCO, Maria Cristina de. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

5 Disponível  aqui . Acesso em: 02 jun. 2024.

6 Disponível  aqui . Acesso em: 02 jun. 2022.

7 BRASIL. Lei 12.424, de 16 de junho de 2011. Altera a Lei nº 10.188, de 12 de fevereiro de 2001, e o Decreto-Lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941, para dispor sobre o programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV e sobre a usucapião especial de imóvel urbano, e dá outras providências. Disponível  aqui . Acesso em: 2 jun. 2024.

§ 1o O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

A nova modalidade de usucapião, imediatamente, passou a ser palco de intensas digressões doutrinárias e jurisprudenciais. Sabe-se que a usucapião tem incidência para possibilitar a aquisição de propriedade de um bem por aquelas pessoas que exercem atos de posse por certo período, sobre imóveis rurais e urbanos, dando-lhes destinação social e econômica, sem, contudo, dispor do título de propriedade necessário a transferências e negociações imobiliárias.

Controverte a doutrina tratar-se de aquisição originária ou derivada, embora se veja na dogmática brasileira a prevalência do entendimento de consubstanciar-se em forma de aquisição originária de direitos reais, uma vez que sua incidência não pressupõe a existência de uma relação jurídica anterior entre aquele que exerce a posse com  animo domini e o que vem a perder a coisa em razão de sua inércia, associada ao transcurso do tempo 8

A doutrina imediatamente passou a denominar a nova forma de aquisição de propriedade de usucapião familiar ou por meação, também concebida como forma de aquisição "especialíssima". Explica-se. Como dito, a maioria da doutrina pátria concebe a usucapião como forma originária de aquisição da propriedade por não pressupor relação jurídica anterior entre a pessoa do usucapiente e o anterior proprietário. Nessa nova modalidade, porém, ao que parece, a aquisição seria derivada, porquanto é imprescindível a existência de uma relação de conjugalidade (firmada no casamento) ou de convivência (firmada na união estável) entre o usucapiente e o anterior proprietário. Desse modo, para atrair a incidência normativa, são exigidos alguns requisitos, a saber:  i) extensão do imóvel; ii) relação de conjugalidade ou união estável; iii) abandono do lar, iv) o transcurso do tempo.

Outra situação que rendeu calorosa digressão na doutrina foi a respeito de o objeto dessa modalidade de usucapião ser alvo de composse ou de condomínio, na medida em que a norma de forma expressa aduz "de 250 metros de área que  dívida com seu ex-cônjuge ou ex-companheiro", o que levantaria a dúvida sobre a possibilidade de sua incidência nos casos de entidades familiares regidas por regimes de bens em que não houvesse a comunicação do patrimônio, a exemplo da separação convencional de bens, prevista no art. 1.687 do Código Civil de 2002; ou, ainda, se seria possível sua incidência caso se

8 Usucapião é compreendido como aquisição originária por PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das coisas. Atualizado por Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russell Editores, 2003. Tomo I, p. 112; GOMES, Orlando. Direitos reais. 20. ed. Atualizada por FACHIN, Luiz Edson. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 80; DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas, 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 179; LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1964. v. VI, p. 155. Defendem a natureza derivada da usucapião: BEVILAQUA, Clovis. Direito das coisas. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Borba, 1951. v. I, p. 131; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Atualizada por Carlos Edson do Rêgo Monteiro Filho. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 120

tratasse de bem particular pertencente ao cônjuge ou convivente que deixou o lar.

Nesse ponto, parece-me que atenderia melhor à exegese da norma e, em uma interpretação conforme a constituição, ser possível a incidência do instituto ainda que a composse se desse apenas na ordem dos fatos, sem a imprescindível mancomunhão do bem em razão do regime patrimonial a incidir na entidade familiar. Nesse passo de ideia, o fato de o imóvel ser registrado no nome de um ou de ambos os cônjuges ou conviventes se demonstra irrelevante. O importante é que a posse direta do bem seja compartilhada por ambos.

Outro ponto igualmente debatido pela doutrina familiarista9 , logo após a alteração legislativa, deveu-se ao vocábulo "abandono". Para alguns, poderia reabrir a possibilidade de perquirição de "culpa" nas rupturas familiares, indo na contramão da exegese introduzida pela Emenda Constitucional nº 66, de 2010, que transpôs essa inferência para o âmbito privado da vida do ex-casal, primando pela concretização do direito fundamental à intimidade.

É digno de registro que grande parte desses questionamentos já foi paulatinamente enfrentada pela jurisprudência pátria e pelos enunciados das Jornadas de Direito Civil10 , que têm contribuído fortemente para a consolidação da hermenêutica privatística. Assim, por óbvio não pode sofrer com a perda da propriedade a mulher que necessita sair de casa em razão de violência doméstica. Pensar diferente seria afrontar a hermenêutica do julgamento na perspectiva de gênero introduzida pela Resolução nº 492, do CNJ11  e que igualmente serviu de baliza hermenêutica para os trabalhos da Comissão de atualização do Código Civil de 2002.

Ultrapassadas essas questões, passa-se à nova redação do dispositivo:

Art. 1.240-A Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição,  posse com intenção de dono, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou  ex-convivente que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á a  propriedade integral , desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural

§ 1o O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

§ 2. O prazo mencionado neste dispositivo, deve ser contado da data do fim da composse existente entre os ex-cônjuges ou os ex-conviventes.

§3. Presume-se cessada a composse quando, a partir do fim da posse com intenção de dono, em conjunto, o

ex-cônjuge ou ex-convivente deixa de arcar com as despesas relativas ao imóvel.

§ 4. As expressões ex-cônjuge e ex-convivente, contidas neste dispositivo, correspondem à situação fática da separação, independentemente de divórcio ou de dissolução de união estável.

§ 5. O requisito do abandono do lar deve ser interpretado como abandono voluntário da posse do imóvel, não importando em averiguação da culpa pelo fim da sociedade conjugal, do casamento ou da união estável.

A atualização deste dispositivo, como pode ser observado, pautou-se na atualização do instituto para albergar no vernáculo as entidades familiares homoafetivas, não fazendo mais referência a ex-companheiro e sim ex-convivente, por alcançar a tutela da pessoa independentemente de gênero ou orientação sexual.  Restou consignado o termo inicial da fluência do prazo, trazendo para a norma o que já era conteúdo de enunciado. Outra alteração foi a substituição do termo "domínio" por "propriedade", posto que o domínio é o poder sobre a coisa, é o próprio pressuposto da pretensão, e o que se busca com a usucapião é o título de propriedade.

Além disso, resta clara a questão de o abandono ser voluntário, protegendo dessa forma aquela mulher que sai de casa em razão de violência doméstica. Outro ponto que merece destaque é a questão de explicitação da posse indireta a impedir a incidência do instituto. Ou seja, é imprescindível que o anterior compossuidor ou coproprietário deixe de efetivar todo pagamento relativo ao imóvel ou à assistência material da família.   Assim, pode-se perceber que a atualização proposta foi no sentido de acompanhar as mudanças sociais na tentativa de garantir que a legislação reflita a realidade contemporânea.

No campo do direito das famílias emerge a imprescindibilidade de um olhar mais aguçado em razão das múltiplas transformações nos padrões de comportamento, de modo a reclamar um cuidado especial.

Infelizmente, na realidade em que o país ocupa o 7º lugar no  ranking de feminicídio12 e violência doméstica, é fundamental fornecer mais proteção às mulheres que são abandonadas e permanecem na residência familiar, pois essas situações frequentemente as deixam em uma posição de extrema vulnerabilidade econômica e social.

9 Cf. DIAS, Maria Berenice. Disponível  aqui . Acesso em: 02 jun. 2024.

10 Cf. Enunciados 498; 499; 500; 501 e 502, da V JDC; 595 da VII JDC e 664, da IX JDC. Disponível  aqui . Acesso em: 02 jun. 2024.

11 Disponível  aqui . Acesso em: 02 jun. 2024.

A usucapião familiar surge como importante mecanismo jurídico, permitindo que essas mulheres adquiram a propriedade do imóvel onde residem após um período de tempo, garantindo-lhes segurança habitacional e estabilidade. Esse instituto é crucial para assegurar que essas mulheres não sejam desamparadas, reconhecendo seu direito à moradia e proporcionando uma base mais sólida para reconstruírem suas vidas. 12 Disponível  aqui . Acesso em: 02 jun. 2024.

12

REFORMA DO CÓDIGO CIVIL

Ana Cláudia Scalquette

Doutora em Direito Civil pela USP. Professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e do Mestrado da Escola Paulista de Direito. Conselheira Estadual da OABSP. Membro Consultor da Comissão de Juristas para a atualização e revisão do Código Civil.

Muito se tem falado e se tem ouvido sobre o projeto de atualização e reforma do Código Civil, sobretudo após a entrega ofi cial do Anteprojeto de Lei nas mãos do Senador Rodrigo Pacheco, ocorrida no dia 17 de abril.

A periodicidade dos artigos publicados nesta coluna tem sido de suma importância para trazer alguns esclarecimentos quanto a pontos que vêm sendo discutidos, desde então, em Congressos, palestras e em salas de aula dos cursos de Direito.

Importante frisar que não é um Anteprojeto de um "Novo Código Civil". Mesmo que o número de artigos apresentado possa, aos olhos de alguns, representar uma modifi cação bastante extensa a ponto de poder ser tida como um novo diploma, essencial ressaltar que muitas das modifi cações propostas foram, apenas e tão somente, adequações do texto legal ao mandamento constitucional de igualdade, mormente porque o projeto do Código Civil de 2002 já tramitava quando da promulgação da Constituição Federal, sendo esperado que as atualizações feitas por emenda pudessem deixar escapar, como ocorreu em vários dispositivos, discriminações não mais aceitas, desde 1988, em que pese a aprovação do texto civil tenha se dado mais de uma década depois.

Focando no Direito de Família, um dos livros com grande número de atualizações propostas, podemos dar como exemplo a discriminação com relação aos fi lhos adotivos, como aquela que proíbe o casamento do "adotado com o fi lho do adotante" (artigo 1.521, V, do Código Civil). Ora, o que seriam estes se não irmãos?

Não se justifi ca uma disposição neste sentido e o que se tem feito em salas de aulas, há mais de 20 anos, é comentar sobre o deslize de nossos legisladores ao manterem dispositivo previsto no Código Civil de 1916, categorizando a fi liação, uma vez que, desde 1988, temos a vedação expressa de discriminação entre os fi lhos (artigo 227, parágrafo 6º, Constituição Federal).

Outro exemplo de não atenção ao princípio da igualdade, agora relacionado ao gênero, pode ser citado na redação do inciso V do artigo 1.597 do Código Civil, no qual se considera fi lho por presunção aquele havido "por inseminação artifi cial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido", ou seja, pode ser utilizado na inseminação espermatozoide de doador apenas com a concordância do marido. Não se exige, dessa forma, a anuência da esposa. Saberia o marido o que é melhor para o casal? O projeto parental não teria de ser de ambos?

Mais um destaque pode ser feito com o próprio caput do artigo 1.597 que presume concebidos "na constância do casamento" os fi lhos nas situações descritas em seus cinco incisos. Questiona-se, neste caso, se há presunção apenas para fi lhos concebidos na constância do casamento... Não seriam também fi lhos por presunção aqueles concebidos na constância da união estável, reconhecida, constitucionalmente, como entidade familiar, desde 1988?

No âmbito patrimonial, a extinção da obrigatoriedade do regime da separação total de bens para o maior de 70 (setenta) anos é também medida que atende à igualdade, garantida na CF de 88, uma vez que, em lei, existe idade para adquirir a capacidade, mas não para perdê-la, sendo a obrigatoriedade imposta pelo atual texto civil prática de etarismo com "roupagem" de proteção patrimonial, absolutamente contrária à igualdade constitucional.

Estes são alguns exemplos que demonstram que os três grandes pilares constitucionais que modifi caram substancialmente o Direito de Família, quais sejam, igualdade entre homens e mulheres, igualdade entre fi lhos e o reconhecimento da União Estável como entidade familiar não foram integralmente observados no texto do Código Civil atual.

Fazendo uma análise um pouco mais acurada da proposta apresentada ao Senado, pode-se observar que a palavra convivente aparece 150 (cento e cinquenta) vezes no Anteprojeto proposto para a reforma, o que demonstra a necessidade de termos a proteção, prevista em lei e de forma clara, das pessoas que vivem em união estável, considerada um núcleo familiar e, assim sendo, merecedora de ser tratada como tal.

No quesito da atualização, percebe-se pela novidade do Livro proposto para o Direito Civil Digital que, nestas últimas décadas, surgiram temas tão novos que não se poderia supor, nos idos dos anos 70 - início da tramitação do projeto do atual Código - que seriam tantos os nossos desafi os. Máquinas que antes eram apenas ferramentas, hoje disputam com seres humanos a resolução de problemas com o uso da Inteligência Artifi cial, ao fi nal, trazendo-nos, ao invés de apenas soluções, inúmeros impasses.

Outro importante exemplo de situação não existente quando da elaboração do projeto do Código Civil de 2002 é o da Reprodução Humana Assistida por meio de emprego de técnicas médicas.

O primeiro bebê concebido por fertilização "in vitro", chamado de "bebê de proveta", veio ao mundo, em 1978, na Inglaterra, sendo a técnica utilizada, no Brasil, pela primeira vez, em 1984, portanto, há 40 (quarenta) anos.

No Código Civil em vigor há apenas 3 (três) incisos que tratam do tema, mas em todos há imperfeições técnicas e, sobretudo, discriminações.

Atenderia ao princípio da igualdade prever que são fi lhos por presunção aqueles havidos a qualquer tempo quando se tratar "de embriões excedentários, decorrentes de concepção artifi cial homóloga"? Ou seja, apenas aqueles que estão congelados e foram feitos com material do próprio casal (homóloga)? Se estiverem congelados e tiverem sido concebidos com material de doadores (heteróloga) não são fi lhos por presunção?

Outras reverberações, omissões e incongruências sobre a aplicação e uso das técnicas de Reprodução Humana Assistida serão trazidas em uma próxima contribuição a esta coluna, uma vez que ensejaram a apresentação no Anteprojeto de detalhamento em capítulo específi co chamado de Filiação decorrente de Reprodução Assistida (Artigos 1.629-A e seguintes).

Os pontos ressaltados, contudo, ilustram a desigualdade da atual disciplina legal, mais uma demonstração de que urge a revisão.

A parentalidade socioafetiva, há muito reconhecida pelos tribunais, é também apresentada no Anteprojeto para que possa ser regulada em lei, o que lhe confere a segurança e a igualdade de tratamento necessárias (Artigos 1.617-A e seguintes).

Embora muitos outros temas possam ser destacados, os acima escolhidos contribuem para que os leitores compreendam que muito do que se propõe é uma adequação necessária a mandamentos constitucionais e às exigências de novos temas que ainda não foram regulados pelo texto civil, aprovado em 2002.

Necessário, por fi m, ressaltar que a reforma, no Livro de Família, trouxe mudanças signifi cativas na ordem de alguns dispositivos.

Em primeiro lugar, as Relações de Parentesco foram trazidas logo no início, em capítulo próprio nominado "Das Pessoas na Família", alteração defendida pela relatora Rosa Maria Nery como mudança primordial para podermos, de pronto, saber "quem é quem" nas relações familiares.

Observamos, na consultoria, a necessidade de se retirar a União Estável de um tratamento apartado para colocá-la no mesmo local em que estão os dispositivos relativos ao Casamento, pois estariam ambas as famílias tuteladas de forma equânime.

Outro mote dos trabalhos foi o de buscar a simplifi cação dos procedimentos e prestigiar a autonomia da vontade.

Notam-se estas características na simplifi cação do então chamado processo de habilitação do casamento, agora na proposta - Procedimento Pré-nupcial, e na opção pela supressão das causas suspensivas, ambos os pontos bem justifi cados pelo relator Flávio Tartuce.

A liberdade de pactuar pode ser vista na  Sunset Clause (Artigo 1.653-B), inserção defendida pelo relator da Subcomissão de Direito de Família, Pablo Stolze.

Merece distinção a preocupação com a proteção de vulneráveis, demonstrada, exemplifi cativamente, no reconhecimento de fi liação, tendo sido incluído, no texto da proposta, o registro da paternidade para aquele que foi apontado como genitor, em via administrativa, em caso de negativa de realização do exame de D.N.A, restando a ele eventual contestação e respectivo ônus da prova (artigo 1.609-A), texto aprovado após as ponderações de Maria Berenice Dias.

A proteção dos vulneráveis pode ainda ser observada com a inserção na proposta dos Alimentos Compensatórios, com alinhamentos de Rolf Madaleno (Artigo 1.709-A e seguintes), e com a Tomada de Decisão Apoiada, com as ponderações do Ministro Marco Buzzi (Artigo 1.783-A e seguintes).

É bem verdade que prestigiar a igualdade e a autonomia exige sair do antigo modelo e passar a viver sob a perspectiva da responsabilidade pelas escolhas e consequentes renúncias, alterações que, embora fundamentais, nem sempre são fáceis ou de simples implementação.

Por fi m, para aqueles que desaprovam as mudanças propostas com o argumento de que elas, muito em breve, também estarão desatualizadas, seguem as lições de Miguel Reale, quando, na qualidade de Supervisor da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil de 2002, na exposição de motivos que fez, em 1975, ressaltou que "o que importa é ter olhos atentos ao futuro, sem o temor do futuro breve ou longo que possa ter a obra realizada" 1 , afi rmando que "Códigos defi nitivos, intocáveis não os há, nem haveria vantagem em tê-los, pois sua imobilidade signifi caria a perda do que há de mais profundo no ser do homem, que é o seu desejo perene de perfectibilidade" 2

Que a imobilidade não nos domine, que o desejo de perfectibilidade nos mova e que a noção da nossa falibilidade sempre nos acompanhe para que mantenhamos a humildade própria daqueles que sempre evoluem e aceitam discutir ideias novas sem a paralisia do medo de errar.

Minhas mais sinceras homenagens ao bravo grupo de 40 (quarenta) juristas, nas pessoas dos Relatores Gerais Rosa Maria de Andrade Nery e Flávio Tartuce, e do Presidente e Vice-Presidente da Comissão Ministros do STJ Luis Felipe Salomão e Marco Aurélio Belizze que lideraram por meses os trabalhos árduos, porque democráticos, realizados com tanta dedicação por todos. Foi, é e sempre será um orgulho fazer parte deste tão valoroso grupo.

1 M. REALE, O projeto do Novo Código Civil: situação após aprovação pelo Senado Federal, 2ª ed., Saraiva, São Paulo, 1999, p. 47. 2 Idem.

A CLÁUSULA DO

PÔR-DO-SOL (SUNSET CLAUSE ) NO DIREITO

DE FAMÍLIA

Concluiu a graduação na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, em solenidade ocorrida em 1998, tendo recebido o diploma de honra ao mérito (láurea). É pós-graduado em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia, tendo obtido nota dez em monografi a de conclusão. É mestre em Direito Civil pela PUC-SP, tendo obtido nota dez em todos os créditos cursados, nota dez na dissertação, com louvor, e dispensa de todos os créditos para o doutorado. Foi aprovado em primeiro lugar em concursos para as carreiras de professor substituto e professor do quadro permanente da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, e também em primeiro lugar no concurso para Juiz do Tribunal de Justiça da Bahia (1999). É autor e coautor de várias obras jurídicas, incluindo o Manual de Direito Civil, o Novo Curso de Direito Civil, O Contrato de Doação e o Manual da Sentença Cível (Saraiva). É professor da Universidade Federal da Bahia. Já ministrou palestras e cursos em diversas instituições brasileiras, inclusive no Supremo Tribunal Federal. Atuou como Relator de Comissão na IX Jornada de Direito Civil (STJ/CJF). Membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual e da Academia Brasileira de Direito Civil. Membro da Comissão de Juristas constituída pela Presidência do Senado Federal para a Reforma do Código Civil.

1. A Autonomia Privada e as Relações de Família no Anteprojeto de Reforma do Código Civil

Seguindo a diretriz e critérios editoriais objetivos desta coluna, começo tecendo breves considerações sobre o espaço de destaque dado à autonomia privada, no Livro de Direito de Família, no Anteprojeto de Reforma do Código Civil1

Um maior espaço para a autonomia privada já era esperado.

Aliás, já não era sem tempo.

Primando pela segurança jurídica, a Comissão de Juristas do Senado, presidida pelo eminente Ministro Luis Felipe

1 Disponível em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630.

Salomão, concluiu pela imperiosa necessidade de se conceder mais espaço à autodeterminação dos brasileiros e brasileiras no âmbito das suas próprias questões – e vivências –de Direito de Família.

Afi nal, já não havia mais ambiente para um dirigismo estatal asfi xiante.

Há muito, a doutrina compreendeu que autonomia privada não seria mera tradução de liberdade contratual, indo além, pois implicaria o reconhecimento de uma autodeterminação volitiva inclusive no âmbito existencial.

Isso não signifi ca, por óbvio, a consagração de uma autonomia rebelde, temerária e anárquica, mas sim, projetada nos limites da função social e da boa-fé objetiva.

Diversas proposições sugeridas, no Livro de Direito de Família, comprovam esse novo espaço de liberdade.

Destaco algumas delas2 :

Formação de Família Parental e Assunção de Corresponsabilidade Pessoal e Patrimonial

Art. 1.511-B. § 2° - Para a preservação dos direitos atinentes à formação da família parental, é facultado a todos os seus membros declararem, em conjunto, por escritura p ú blica, a assunção da corresponsabilidade pessoal e patrimonial entre seus membros e postularem a averbação dessa declaração nos respectivos assentos de nascimento, na forma do § 1° do art. 10 deste Código, sem que essa providência lhes altere o estado familiar;

Doação Pura de Gametas

Art. 1.629-F. É permitida a doação pura e simples de gametas, vedada a sua comercialização a qualquer título.

Art. 1.629-G. O doador deve ser maior de 18 (dezoito) anos e manifestar, por escrito, a sua vontade livre e inequívoca, de doar material genético.

Parágrafo ú nico. É vedado ao médico responsável pelas clínicas, unidades ou serviços e aos integrantes da equipe multidisciplinar que nelas trabalham serem doadores de gametas na unidade ou rede que integram.

Manifestação Volitiva para Uso Post Mortem de Material Genético

Art. 1.629-Q. É permitido o uso de material genético de qualquer pessoa após a sua morte, seja óvulo, espermatozoide ou embrião, desde que haja expressa manifestação, em documento escrito, autorizando o seu uso e indicando:

I - a quem deverá ser destinado o gameta, seja óvulo ou espermatozoide, e quem o deverá gestar após a concepção;

II - a pessoa que deverá gestar o ser já concebido, em caso de embrião.

Parágrafo ú nico. Em caso de filiação post mortem, o vínculo entre o filho concebido e o genitor falecido se estabelecerá para todos os efeitos jurídicos de uma relação paterno-filial.

Livre Estipulação de Bens e Interesses Patrimoniais Antes ou Depois de Celebrado o Casamento ou a União Estável

Art. 1.639. É lícita aos c ô njuges ou conviventes, antes ou depois de celebrado o casamento ou constituída a união estável, a livre estipulação quanto aos seus bens e interesses patrimoniais.

1° O regime de bens entre os c ô njuges ou conviventes começa a vigorar desde a data do casamento ou da constituição da união estável.

2° Depois da celebração do casamento ou do estabelecimento da união estável, o regime de bens pode ser modificado por escritura p ú blica e só produz efeitos a partir do ato de alteração, ressalvados os direitos de terceiros.

Cláusulas Especiais (para Guarda e Sustento dos Filhos) em Pactos Conjugais e Convivenciais

Art. 1.655-A. Os pactos conjugais e convivenciais podem estipular cláusulas com solução para guarda e sustento de filhos, em caso de ruptura da vida comum, devendo o tabelião informar a cada um dos outorgantes, em separado, sobre o eventual alcance da limitação ou ren ú ncia de direitos.

Parágrafo ú nico. As cláusulas não terão eficácia se, no momento de seu cumprimento, mostrarem-se gravemente prejudiciais para um dos c ô njuges ou conviventes e sua descendência, violando a proteção da família ou transgredindo o princípio da igualdade.

Essa breve seleção de dispositivos confirma a premissa aqui exposta: a autonomia privada, com as justas limitações impostas pela segurança jurídica, ganhou protagonismo na Reforma, com a percepção, cada vez maior, do fenômeno de contratualização nas relações de família.

E, desde que esse movimento seja pautado pela segurança e preservação de valores existenciais, resultará, sem dúvida, em um aperfeiçoamento de todo o sistema, com mais espaço de liberdade e autodeterminação 3

Note-se, aliás, que todo esse processo de mudança projeta as suas luzes, inclusive, no âmbito sucessório, conforme se pode

2 Para facilitar a compreensão, cuidei de inserir um breve título em cada dispositivo citado.

3 Sobre a autodeterminação, merece transcrição o ensinamento de Otávio Luiz Rodrigues Jr.: “A autodeterminação, a seu modo, seria um poder juridicamente reconhecido e socialmente ú til, de caráter ontológico, baseado numa abertura do homem para o mundo e suas experiências e solicitações sensíveis ou não. O plano da autodeterminação estaria no poder de cada indivíduo gerir livremente a sua esfera de interesses, orientando a sua vida de acordo com as suas preferências (RIBEIRO, 1999, p. 22)”. (RODRIGUES Jr., Otávio Luiz. Autonomia da Vontade, Autonomia Privada e Autodeterminação - Notas sobre a Evolução de um Conceito na Modernidade e na Pós-modernidade. Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 41 n. 163 jul./set. 2004, p. 126).

verificar, por exemplo, em face da importante mudança sugerida quanto à regra proibitiva do contato que tenha por objeto a herança de pessoa viva ( pacta corvina)4

Nesse contexto, merece destaque a interessantíssima sunset clause (“cláusula do pôr-do-sol”), proposta no âmbito do Regime de Bens, objeto deste texto.

2. Compreendendo a Sunset Clause: terminologia, conceito, aplicação nas relações contratuais, aplicação no Direito de Família e a experiência estrangeira.

A denominada sunset clause (“cláusula do p ô r-do-sol”), também conhecida como “cláusula de caducidade”, é oriunda da experiência anglo-saxô nica.

É importante compreender o seu conceito: por meio dessa estipulação negocial, prevê-se um termo ou uma condição resolutiva, que opera a alteração de uma situação jurídica ou a extinção dos seus efeitos.

Encerra-se um panorama ou horizonte jurídico, para iniciar-se outro, como se dá, diariamente, após o p ô r-do-sol, daí derivando a origem da expressão “sunset clause ”.

A sua aplicação não é restrita ao Direito de Família, estando presente, em especial, no campo das obrigações contratuais, e, até mesmo, nas relações internacionais 5

4 Nova redação do art. 426, segundo o anteprojeto de Reforma do Código Civil: Art. 426. Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva.

§ 1º Não são considerados contratos tendo por objeto herança de pessoa viva, os negócios:

I - firmados, em conjunto, entre herdeiros necessários, descendentes, que disponham diretivas sobre colação de bens, excesso inoficioso, partilhas de participações societárias, mesmo estando ainda vivo o ascendente comum;

II - que permitam aos nubentes ou conviventes, por pacto antenupcial ou convivencial, renunciar à condição de herdeiro.

§ 2º Os nubentes podem, por meio de pacto antenupcial ou por escritura p ú blica pós-nupcial, e os conviventes, por meio de escritura p ú blica de união estável, renunciar reciprocamente à condição de herdeiro do outro c ô njuge ou convivente.

§ 3º A ren ú ncia pode ser condicionada, ainda, à sobrevivência ou não de parentes sucessíveis de qualquer classe, bem como de outras pessoas, nos termos do art. 1.829 deste Código, não sendo necessário que a condição seja recíproca.

§ 4º A ren ú ncia não implica perda do direito real de habitação previsto o no art. 1.831 deste Código, salvo expressa previsão dos c ô njuges ou conviventes.

§ 5º São nulas quaisquer outras disposições contratuais sucessórias que não as previstas neste código, sejam unilaterais, bilaterais ou plurilaterais.

§ 6º A ren ú ncia será ineficaz se, no momento da morte do c ô njuge ou convivente, o falecido não deixar parentes sucessíveis, segundo a ordem de vocação hereditária.

5 disposición con-forme a la cual ´p]ara mayor seguridad, las Partes

Estudando o instituto, com olhos na aplicação da sunset clause em pedidos formulados perante a Administração P ú blica, à luz da Lei da Liberdade Econ ô mica – Lei n º 13.874/19, escreveu Carlos Eduardo Elias de Oliveira:

“Trata-se da regra que estabelece o deferimento tácito de pedidos administrativos de liberação de atividade econ ô mica após o transcurso de um prazo especificamente estipulado (art. 3º, IX e §§ 7º e 8º, LLE) 6 ”.

“Naturalmente, el acuerdo también resultaría de aplicación respecto de la ´sunset clause´ de 20 años contenida en el art. 47.3 del TCE en relación con las inversiones anteriores a la denuncia del Tratado22, permitiendo así evitar arbitrajes intra-UE basados en el art. 26 tanto respecto de Estados miembros de inversión que hubieran denunciado el Tratado con anterioridad a su con-clusión (como es el caso de Italia) como que lo hagan en el futuro. En este sentido, la propuesta de acuerdo de la Comisión incluye uma

Logicamente, aqui, o foco é o Direito de Família.

No âmbito dos pactos antenupciais, segundo a experiência estrangeira, não é incomum a inserção de uma cláusula sunset a qual “can cancel or substantially alter the agreement during the marriage. Sunset clauses take effect after a certain period of time or upon the occurrence of a certain event”. Vale dizer, a referida estipulação pode extinguir ou substancialmente alterar o pacto, durante o casamento. A referida cláusula vigorará após um certo lapso de tempo ou em face do implemento de determinado evento.7

contratantes confirman[...] que [...] el artículo 47, apartado 3, del TCE no se aplica ni se ha aplicado nunca a las relaciones en el interior de la Unión´, añadiendo que ´[e]n consecuencia, dicha disposición no puede haber producido efectos jurídicos en el interior de la Unión cuando un Estado miembro se haya retirado del TCE antes de la ce-lebración del presente Acuerdo, ni producirá efectos jurídicos en el interior de la Unión si un Estado miembro se retira del TCE posteriormente´. Así pues, la celebración de dicho acuerdo entre los Estados miembros, la UE y Euratom resulta necesaria (o, al menos, muy conveniente) aun cuando todos ellos se retiren del Tratado, como propugna el Parlamento Europeo, si se quieren evitar nuevos arbitrajes intra-UE basados en el TCE.” (DIEZ-HOCHLEITNER, Javier. Prática Española de Derecho Internacional P ú blico – España Anuncia su Decisión de Denunciar el Tratado sobre la Carta de la Energia, disponível nohttps://www.revista-redi.es/ redi/article/view/83/83, acesso em 23 de junho de 2024). (grifei) Cf. tb. Sunset Clauses in International Law and their Consequences for EU Law. Antonios Kouroutakis, IE University, Madrid, Spain, disponível no https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2022/703592/ IPOL_STU(2022)703592_EN.pdf, acesso em 24 de junho de 2024.

6 Lei da Liberdade Econ ô mica: Diretrizes Interpretativas da Nova Lei e Análise Detalhada das Mudanças no Direito Civil nos Registros P ú bicos, disponível nohttps://meusitejuridico.editorajuspodivm.com. br/2019/09/25/lei-da-liberdade-economica-diretrizes- interpretativas-da-nova-lei-e-analise-detalhada-das-mudancas-no-direito-civil-e-nos-registros-publicos/, acesso em 21 de junho de 2024.

7 Fonte: https://www.stratlaw.org/blog/what-is-a-sunset-clause-in-a-prenuptial-agreement-and-how-does-it-work/, acesso em 19.06.2024.

Nessa linha, o casal pode, em um primeiro momento, nos dois p rimeiros anos do casamento, por exemplo, estabelecer normas patrimoniais mais restritivas, de maneira que, após o decurso do prazo, o regime passaria a ser mais comunitário ou compartilhado.

Como se houvesse um “período de teste” ou “estágio probatório”, que, por medida de segurança, recomendaria inicialmente um estatuto normativo mais cauteloso.

Matéria publicada no Chicago Tribune traz essa ideia, no sentido de que, por meio da cláusula sunset, o casal objetiva “testar” o casamento: se não der certo, pretende-se, com aquela previsão normativa, que o fim do matrim ô nio se opere com o menor índice de dano patrimonial possível; mas, se o casamento for exitoso, projetar-se-ão as regras “normais” do pacto pré-conjugal:

Many couples who use sunset clauses in their prenuptial agreements do it because they essentially want to test the marriage out. If it doesn’t work and that becomes quickly apparent, they both want to get out of the marriage with all of their assets intact and with as little trouble as possible. However, if the marriage does work and continues on for years, they want to revert back to a “normal” arrangement and do away with the prenuptial agreement8

A mesma matéria aponta uma interessante situação de risco na previsão de uma sunset clause : “after all, if you set your sunset clause at 10 years and get divorced after 11 years, you could lose a lot because of that one extra year of marriage” 9 . Explico esse trecho com um exemplo. Imagine-se que, por estipulação no pacto, nos dez primeiros anos do casamento, houvesse completa separação patrimonial, com clara exclusão de comunicabilidade de bens, além de outras regras restritivas. Ultrapassado o decênio, a cláusula sunset operaria a “ativação” de um regime de comunhão total de bens. O casal permaneceu unido apenas um ano após o termo previso na sunset. Esse “ano extra” poderá significar (ou custar) muito...

Por tais razões, penso que, na perspectiva do planejamento familiar, deve a cláusula ser redigida com extrema cautela, evitando-se prazos demasiadamente longos para efeito de “teste” da relação conjugal.

8 A Sunset Clause Can Test a Marriage - On Behalf of Weinman & Associates, P.C. | May 20, 2016 | Prenuptial Agreements. Source: Chicago Tribune, “Is a prenup expiration date an ex-wife’s best revenge?,” Margaret Littman, accessed May 20, 2016, disponível no: https://www.weinmanfamilylaw.com/blog/2016/05/a-sunset-clausecan-test-a-marriage/ acesso em 19 de junho de 2024.

9 Em tradução livre: afinal, se você estipular a mudança do regime de bens após 10 anos e vier a se divorciar após 11 anos, você poderá ter grande perda patrimonial apenas por causa de um ú nico ano adicional de casamento.

Mas, logicamente, cada caso recomendará tratamento próprio, não havendo, portanto, regra imutável e absoluta a ser seguida.

3. Sunset Clause na Reforma do Código Civil: introdução, a proposta de tratamento legal (art. 1.653-B), compreensão da sua dinâmica e do seu termo eficacial, efeitos “ex nunc” (irretroatividade eficacial), cláusula sunset e pacto pós-nupcial, cláusula sunset em face da prática de atos fraudulentos, aplicabilidade imediata no atual sistema jurídico brasileiro.

Como já tive a oportunidade de escrever, a Reforma do Código Civil é, na atualidade, o tema mais importante do Direito Privado:

A efervescência tecnológica da virada do século, a reconstrução profunda dos standards familiares, a velocidade da comunicação são apenas alguns fatores que não puderam - ou não podiam – ser absorvidos por aquele importante diploma.

Dou-lhes um exemplo simples.

Vasculhe em sua memória os cinco ú ltimos contratos que você pactuou. Certamente, não o fez por correspondência epistolar ou sequer utilizou uma chamada telefô nica. Provavelmente, o negócio fora consumado pelo computador ou, simplesmente, pela tela do seu celular, utilizando um aplicativo. Aliás, por meio de um “app”, atualmente, nós comemos, passeamos, viajamos, compramos, jogamos, trabalhamos, ou, até mesmo, podemos encontrar o amor das nossas vidas. Um enredo que causaria espanto até mesmo a George Orwell.

O Código de 2002 não p ô de antever essa realidade.

Mas é a realidade da vida de cada brasileiro.

A atualização das suas normas não podia mais tardar, inclusive diante da l ú cida advertência feita por Otávio Rodrigues Jr., no sentido de que o Direito Privado vive um “renascimento” como esfera de desenvolvimento das relações jurídicas.”

Comentando a codificação de 1916, o grande Eduardo Espínola ponderou que “antes de publicado o nosso Código Civil, todos aqueles que, por dever de ofício ou inclinação de espírito, se dedicavam ao estudo do Direito Civil entre nós, reconheciam as in ú meras dificuldades que se lhe apresentavam, a cada passo, quer provenientes, em certos pontos, da deficiência do nosso direito positivo então em vigor, quer, em outros, do excesso de leis incompletas e contraditórias”.

Por certo, avanço legislativo houve, embora não isento de críticas, a partir da edição e publicação do Código Beviláqua, e, muitos anos mais tarde, com o advento do Código Civil de 2002.

Mas os novos tempos impõem urgente atualização10

Sem d ú vida, nesse esforço necessário de atualização, o Direito de Família desponta com grande força e importância.

Como dito linhas acima, o trabalho empreendido pela Comissão de Juristas do Senado, no sentido de fazer dialogar, com mais proximidade e clareza, as “normas familiaristas” e a sociedade brasileira, resultou no reconhecimento da necessidade de um espaço mais adequado para a autonomia privada.

Nesse contexto, a consagração de uma regra prevendo a sunset clause no âmbito patrimonial do casamento ou da união estável – no pacto conjugal ou no convivencial, respectivamente - tem um grande significado social e jurídico. Confira o dispositivo sugerido pelo Anteprojeto:

Art. 1.653-B. Admite-se convencionar no pacto antenupcial ou convivencial a alteração automática de regime de bens após o transcurso de um período de tempo prefixado, sem efeitos retroativos, ressalvados os direitos de terceiros

Com isso, consagra-se um interessante instituto oriundo do direito comparado e que, sem d ú vida, confere mais liberdade e segurança jurídico-patrimonial aos casais brasileiros.

Trata-se, sem d ú vida, de relevante (e inovadora) regra, limitada ao âmbito patrimonial: não poderá, pois, dispor sobre aspectos existenciais ou de ordem p ú blica, como, por exemplo, a alteração de deveres cogentes emanados da autoridade parental.

Discorrendo sobre o instituto, observa Flávio Tartuce:

Trata-se da chamada "sunset clause" ou cláusula de caducidade - literalmente, "cláusula do p ô r do sol" -, com origem no sistema da Common Law, tendo sido destacada pelo Professor Pablo Stolze Gagliano em vários momentos dos encontros da Comissão de Juristas. Como constou do Relatório da Subcomissão de Direito de Família, da qual ele fez parte, sempre foi a sua intenção tratar da "regra inovadora (sunset clause), no sentido de permitir ao casal optar, após um lapso de tempo, pela alteração automática do regime de bens ('é admitido pactuar a alteração automática de regime de bens após o transcurso de um período de tempo prefixado')". Assim, a título de exemplo, os c ô njuges 10 GAGLIANO, Pablo Stolze. A Cessão da Posição Contratual no Direito Brasileiro, artigo inédito a ser publicado na obra coletiva “Os 35 Anos do Superior Tribunal de Justiça: A Concretização da Interpretação do Direito Federal Brasileiro”, volume 2, Direito Privado, Ed. Thoth, coordenador geral Min. Mauro Campbell Marques.

e companheiros poderão convencionar que nos cinco anos iniciais do relacionamento o regime patrimonial será o da separação convencional de bens, convertendo-se em comunhão parcial depois desse período de experiência. A previsão, mais uma vez, é essencialmente patrimonial, não havendo qualquer lesão a normas cogentes ou de ordem p ú blica, o que foi uma preocupação constante da Reforma. Mais uma vez, segue-se a linha de redução de burocracias, de desjudicialização, de destravar a vida das pessoas, como tenho destacado de forma constante11

De acordo com a regra sugerida (art. 1.653-B), a sunset clause brasileira não está adstrita a condição resolutiva (acontecimento futuro e incerto), mas, sim, a termo (acontecimento futuro e certo), porquanto é claramente mencionado que a alteração automática do sistema patrimonial inicialmente adotado ocorrerá “após o transcurso de um período de tempo prefixado.”

E note-se: “sem efeitos retroativos”, o que reforça a regra segundo a qual a alteração de regime de bens projeta efeitos para o futuro (ex nunc) e não para o passado (ex tunc).

Assim, por exemplo, pode, o casal, estabelecer que, no primeiro ano do casamento, vigorará o regime da separação total de bens, com a administração exclusiva do patrim ô nio pessoal, sem nenhuma comunicabilidade patrimonial.

Ultrapassado o primeiro ano, por aplicação da cláusula sunset, o regime, conforme acordado, converter-se-á, automaticamente, em comunhão parcial de bens, imediatamente a partir de findo o lapso de um ano.

Observe-se que essa alteração não retroagirá para a data da convolação das n ú pcias, de maneira que, até a data da conversão, o regime aplicável, inclusive em face de terceiros, será, para todos os fins, o da separação total (tempus regit actum).

A regra proposta é clara: “sem efeitos retroativos”.

Ora, operada a conversão automática, o que for apurado como patrim ô nio pessoal de cada c ô njuge deve ser considerado bem exclusivo de cada um, na perspectiva do novo (e convertido) regime da comunhão parcial.

Trata-se, sem d ú vida, de uma consequência natural decorrente da escolha que fizeram, ao estabelecer um período inicial de “teste” no casamento, sujeitando-se aos efeitos das regras patrimoniais do regime escolhido naquele primeiro momento.

Logicamente, se a alteração for para o regime da comunhão universal, ter-se- a impressão de que a mudança operou 11 TARTUCE, Flávio. A Reforma do Código Civil e as Mudanças quanto ao Regime de Bens – Parte 1, disponível no https://www.migalhas.com. br/coluna/familia-e-sucessoes/406125/a-reforma-do-codigo-civil-e-as-mudancas-quanto-ao-regime-de-bens, acessado em 24 de junho de 2024.

efeitos retroativos, o que não é verdade, porquanto essa falsa impressão decorre da própria natureza do regime comunitário adotado que opera a comunicabilidade de bens passados e futuros.

Interessante ainda destacar que a cláusula do pôr-do-sol também pode ser estipulada em contrato convivencial, ou seja, na perspectiva da união estável. Aliás, a Comissão de Reforma, em diversos momentos, no anteprojeto, teve o cuidado de atentar para a situação dos conviventes, razão por que, a título exemplifi cativo, ao abrir o Título II, do Direito Patrimonial, expressamente mencionou, no Subtítulo I, “Do Regime de Bens entre Cô njuges e Conviventes”. Embora casamento e união estável não sejam, por certo, institutos idênticos, merecem, em certos pontos, tratamento equiparável ou isonô mico.

Uma ponderação interessante ainda pode ser feita.

A regra proposta (art. 1.653-B) menciona que a cláusula pode ser inserida “no pacto antenupcial” o que conduziria à falsa conclusão de não ser possível a sua pactuação após o casamento. De fato, a ambiência natural para a pactuação da sunset é o pacto antenupcial (ou convivencial), mas nada impede que, após o início do enlace conjugal, o casal conclua ser mais seguro e adequado convencionar uma cláusula dessa natureza.

Su ponha-se, por exemplo, que, um ou dois meses após convolarem nú pcias, os cô njuges (o mesmo, claro, seria aplicável à união estável) busquem assistência jurídica para estabelecer uma cláusula no sentido de que, a partir da data da sua pactuação, sujeitar-se-ão, por um ano, ao regime de separação total, admitindo-se a conversibilidade automática em comunhão parcial após a consumação do prazo ajustado.

Aliás, a possibilidade de se ajustar um “pacto pós-nupcial” é algo perfeitamente possível, inclusive em outros sistemas no mundo.

No dizer de Polly Morgan,

An agreement made before de marriage is a prenuptial agreement , sometimes called an ´antenuptial´ agreement. An agreement made during the marriage but before it has broken down is a postnuptial agreement 12

O anteprojeto de Reforma, nesse ponto, é claro:

Art. 1.639. É lícita aos cô njuges ou conviventes, antes ou depois de celebrado o casamento ou constituída a união estável, a livre estipulação quanto aos seus bens e interesses patrimoniais. (grifei)

É desnecessário anotar – mas, por cautela, vale o registro –que a previsão da cláusula sunset não pode encobrir prática de ato fraudulento (para prejudicar, por exemplo, o direito de credores ou de terceiros de boa-fé).

Por fi m, a despeito da inegável importância de se consagrar, em texto de lei, o instituto aqui estudado, penso já ser perfeitamente possível, no sistema jurídico atual, pactuar-se a sunset clause, na perspectiva da admissibilidade de um regime de bens progressivo, à luz da autonomia privada, desde que não haja violação a direitos de terceiros.

Nessa linha, discorrendo sobre essa admissibilidade do regime patrimonial progressivo, sustentam Carlos Eduardo Elias de Oliveira e João Costa-Neto:

Regime progressivo é o regime de bens que, após o transcurso de tempo ou ocorrência de evento futuro indicado no pacto antenupcial, muda de regras. Por exemplo, pactua-se que as regras do regime da separação de separação de bens vigorarão até o 10º ano de casamento, a partir de quando passará a viger as regras do regime da comunhão parcial.

Esse regime progressivo é plenamente viável, desde que o evento futuro indicado no pacto antenupcial seja inteligível e operacional. Em regra, recomendamos que o evento futuro seja meramente temporal (uma data ou um tempo de casamento)13

Portanto, defendo, fi rmemente, a possibilidade, pelos argumentos supra, de se já poder convencionar a cláusula sunset no atual sistema jurídico brasileiro.

4. Refl exão Final

É de inegável valor a proposta, constante no anteprojeto de Reforma do Código Civil, no sentido de se consagrar, no âmbito do Direito Patrimonial de Família, a cláusula do pô r-do-sol (sunset clause).

Essa consagração dialoga com a autonomia privada, respeitando a autodeterminação e a liberdade dos casais brasileiros.

12 MORGAN, Polly. Property Division on Divorce, in Family Law (edited by Ruth Lamont), Oxford University Press, 2018, p. 152. A ideia aqui sustentada é simples. Um acordo, um pacto, firmado antes do casamento é pré-nupcial, algumas vezes denominado ´pacto antenupcial´. Um acordo feito no curso do casamento, e antes do seu fim, é um pacto ´pós-nupcial´ (tradução livre).

Ao longo desse texto, partindo da experiência estrangeira, cuidei de conceituar o instituto, além de analisar a sua dinâmica, alcance e características fundamentais, sua irretroatividade efi cacial, com a utilização de exemplos, a admissibilidade da cláusula sunset inclusive em pacto pós-nupcial, a sua vedação diante da prática de atos fraudulentos, e, por fi m, concluí no sentido da sua imediata aplicabilidade no atual sistema jurídico brasileiro, a despeito da ausência de norma legal expressa. Trata-se, sem dú vida, de um instituto útil, fascinante, e que, por certo, vai ao encontro do anseio de inú meros casais brasileiros.

13 Oliveira, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO, João. Direito Civil. 3. Ed. Rio de Janeiro: Forense/Método, 2024, p. 1.344.

PACTOS CONJUGAIS E CONVIVENCIAIS E O ANTEPROJETO DE REVISÃO DO CÓDIGO CIVIL

Luciana Faisca Nahas

Doutora em Direito pela PUC-SP. Mestre pela UFSC. Advogada. Professora. Coordenadora do curso de pós-graduação em Direito de Família e Sucessões da UNICESUSC. Diretora do IBDCONT em Santa Catarina. Presidente da Comissão de Jurisprudência do IBDFAM Nacional. Diretora do Núcleo de Direito de Família e Sucessoes da ESA - OAB/SC.

A ampliação da liberdade de pactuar nas relações familiares conjugais e convivenciais é uma demanda crescente no cenário jurídico e social, e é impulsionada pela conquista jurídica da liberdade de escolha do modelo familiar.

É importante, inicialmente, romper a barreira do discurso contrário à contratualização das relações familiares conjugais e convivenciais, como se a realização de um pacto ou ajuste a respeito dos efeitos patrimoniais do relacionamento fosse um indicativo de ausência de afeto.

Todos os relacionamentos conjugais ou convivenciais geram efeitos patrimoniais contratados. Ao celebrar um casamento ou iniciar uma união estável, os cônjuges ou conviventes estão contratando o regime de bens de comunhão parcial de bens, que está previsto de maneira supletiva nos artigos 1.640 e 1.725 do Código Civil, ainda que não elaborem um pacto ou contrato escrito ou específi co. Por esta razão, inclusive, a fi gura do contrato de namoro vem ganhando destaque na doutrina e na jurisprudência, a fi m de evitar o reconhecimento de união estável contrário a vontade das partes, e presumir a existência de uma contratação de regime de bens1

1 Sobre este assunto, recomendamos a leitura da coluna do mês anterior, escrita pela prof. Marilia Xavier  https://www.migalhas.com.br/ coluna/migalhas-contratuais/408949/contrato-de-namoro-tem-validade-confirmada-pelo-tj-pr

O que estamos a defender, acima de tudo, é a ampliação da liberdade de pactuar um modelo patrimonial adequado à cada relacionamento. A elaboração de pactos conjugais e convivenciais tornam possível que cada casal formate os efeitos patrimoniais do seu relacionamento de acordo com as individualidades existentes em sua relação.

Cada relação conjugal ou convivencial é única, e a escolha do modelo patrimonial mais adequado passa pela análise de diversos fatores pessoais, familiares e patrimoniais únicos.  A escolha de um regime de separação total de bens, por exemplo, tem diferentes consequências pessoais e patrimoniais a depender da situação pessoal, patrimonial e familiar de cada um dos cônjuges.

O casamento entre duas pessoas jovens, sem fi lhos, e que estão iniciando a vida profi ssional e aquisição de patrimônio, bem como planejando ter fi lhos durante a relação, por exemplo, merece um olhar mais cuidadoso sobre a distribuição e cuidados fi nanceiros, já que nesta fase da vida é mais comum que as mulheres abdiquem de crescimento profi ssional e fi nanceiro em razão do cuidados dos fi lhos que serão gerados na constância da união, de forma que a escolha de um regime simples de separação total de bens, por exemplo, poderá trazer desequilíbrio econômico e insegurança na relação.

Por outro lado, o casamento entre  pessoas com fi lhos adultos, e que já tem p atrimônio e vida profi ssional defi nido, pode ter um bom resultado com o regime de separação total de bens, garantindo a independência patrimonial e fi nanceira de cada um. E seguindo nos exemplos, o casamento entre duas pessoas em situações pessoais e patrimoniais diferentes também precisa de um olhar único. Pode existir uma grande diferença econômica e familiar entre os cônjuges na hipótese em que um deles seja detentor de patrimônio e já tenha fi lhos, e o outro cônjuge não tenha patrimônio e fi lhos.   É certo que não conseguimos esgotar os exemplos, já que as dinâmicas familiares são muito mais complexas e individualizadas. E justamente por isso que não podemos supor que todas as relações familiares devem se submeter às mesmas regras tipifi cadas de regime de bens.  A individualização do modelo patrimonial é muito mais do que escolher um dos regimes de bens previsto no código, como a comunhão parcial, a comunhão universal ou a separação total de bens. Pensar desta forma é limitar por demais as possibilidades jurídicas de enriquecer os arranjos individuais de cada casal. As regras gerais são importantes em todas as relações contratuais pois defi nem os contornos jurídicos dos institutos, simplifi cando a sua aplicabilidade, em especial para aqueles que não desejam elaborar um contrato mais complexo.

A autonomia das partes na realização de pactos e contratos conjugais e convivenciais, no entanto, pode ir além da utilização dos modelos previstos em lei. O contrato de compra e venda é um bom exemplo da importância de regras gerais, sem excluir as individualizações em cada situação concreta. A grande maioria dos contratos de compra e venda realizados diariamente é feito por meio de contratos simples, e muitas vezes até verbais. Isso, no entanto, não limita a realização de contratos com cláusulas específi cas, individualizando cada situação, respeitando por evidente as normas de ordem pública.

O anteprojeto de Lei para revisão e atualização do Código Civil2 caminha exatamente nesta direção, mantendo as regras de regime de bens de maneira supletiva, permitindo aqueles que iniciarão um casamento ou união estável apenas aderirem aos regimes de bens existentes. Inclusive, o texto aprovado pela comissão de juristas aprimora os regimes de bens existentes a fi m de facilitar a sua compreensão e aplicabilidade. No regime de comunhão parcial, por exemplo, o rol de comunicabilidades é atualizado (art. 1.659 e 1.660), inserindo expressamente temas que há anos são objeto de embates doutrinários e jurisprudenciais, como a comunicabilidade do FGTS, de participação em previdência privada, bem como a controvertida questão da participação do cônjuge nas quotas sociais do outro,  na valorização destas quotas e nos lucros gerados. Também o regime de separação total de bens tem importante modifi cação, inserindo dois parágrafos no art. 1.688 prevendo a possibilidade de partilha de bens adquiridos com contribuição econômica direta de ambos bem como prevendo compensação pelo trabalho na residência da família e cuidado da prole. E ainda, o texto do anteprojeto tem disposições específi cas revogando as normas que  o regime de participação fi nal nos aquestos e o da separação obrigatória de bens.

2 Disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/ download/68cc5c01-1f3e-491a-836a-7f376cfb95da  ou https://legis. senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630

E mais do que isso, o texto do anteprojeto consolida e amplia de maneira expressa a liberdade de pactuar nas relações conjugais e convivenciais para aqueles que assim o quiserem. Muito além de optar por um dos regimes previstos no Código Civil, o anteprojeto traz, no art. 1.640, § 2º, a previsão de possibilidade expressa das partes em pactuarem um regime misto ou atípico, tendo por limite as normas cogentes ou de ordem pública. Assim poderiam escolher, por exemplo, a separação total para participações societárias, e adotar a comunhão parcial para bens imóveis adquiridos na constância da união.

Considerando que as relações conjugais e convivências podem se modifi car com o tempo, o art. 1.639, § 2º do anteprojeto prevê a facilitação da mudança de regime de bens, possibilitando que o seja de maneira extrajudicial.  Desta forma, um casal que, no início do casamento ou da união entendeu que determinado regime era mais adequado, pode com mais facilidade modifi car esse regime de bens na constância do casamento, tornando mais dinâmica a relação patrimonial. Como novidade, foi inserida pelo art. 1.653-B do anteprojeto a previsão expressa de possibilidade de cláusula prevendo a modifi cação automática do regime de bens, conhecida como sunset clause.  E a dinamicidade do momento de elaboração dos pactos conjugais ou convivenciais segue reforçada pela previsão art. 1.656-A., que prevê expressamente que os pactos poderão ser fi rmados antes ou depois de celebrado o matrimônio ou constituída união estável. Esta liberdade de modifi car ou pactuar os regimes de bens na constância do casamento ou da união estável é limitada pela irretroatividade desta mudança, o que deve ser observado pelos contratantes.

Não pretendemos com este texto esgotar as situações que consolidam a ampliação da liberdade de pactuar, uma vez que foram diversos ponto no anteprojeto que a reforçam, ultrapassando os limites do direito familiar. A título de exemplo, a previsão de inserir a liberdade de contratar sobre a herança no pactos conjugais ou convivenciais, com a inserção de parágrafos no art. 426 do Código Civil, que expressamente trata sobre a renuncia antecipada da condição de herdeiro; também há no anteprojeto previsão de ajustes no direito empresarial, por exemplo nos artigos 1.027 e 1.028, na questões relativas a participação do cônjuge ou herdeiro do sócio em relação à sociedade , entre outras previsões de modifi cações no Código Civil que direta ou indiretamente ampliam a liberdade do casal.

A ampliação da liberdade de ajustes patrimoniais entre os cônjuges e conviventes é uma conquista, mas que não deve vir desacompanhada do olhar criterioso quando presente desequilíbrio econômico, social ou pessoal entre os cônjuges. A liberdade contratual somente se faz presente, efetivamente, em um cenário de igualdade entre as partes. Devemos atentar que muitas vezes, em relações conjugais e convivenciais, há uma vulnerabilidade social e econômica da mulher contratante, o que não se ignorar ao se interpretar o pacto na situação específi ca quando presente a desigualdade.

A ampliação da liberdade de pactuar também aumenta a responsabilidade das partes nas suas escolhas ao explicitar antecipadamente as decisões  daquele casal para reger a sua vida patrimonial, e portanto amplia a necessidade de comunicação, evidenciando os pilares que fundamentam o seu relacionamento. Desta forma, é o possível a redução de confl itos pela maior previsibilidade dos efeitos patrimoniais.

Flávio Tartuce

A REFORMA DO CÓDIGO

CIVIL E AS ALTERAÇÕES

A

RESPEITO DO PARENTESCO E DA PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA

Pós-Doutor e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador do curso de mestrado e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Patrono regente da pós-graduação lato sensu em Advocacia do Direito Negocial e Imobiliário da EBRADI. Diretor-Geral da ESA da OABSP. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico..

Em minha primeira participação nesta coluna do Migalhas sobre a Reforma do Código Civil, abordarei os temas do parentesco e da parentalidade socioafetiva, assuntos de enorme relevância, teórica e prática, não só para o Direito de Família e das Sucessões como também para todo o Direito Civil, pelas numerosas repercussões que gera.

O direito parental e as relações de parentesco trazem como conteúdo as relações jurídicas estabelecidas entre pessoas que mantêm entre si um vínculo familiar. A palavra "parentesco"  vem de  "parente" , do latim "parens-tis" , particípio passado do verbo pario-ere, que significa parir, dar à luz, gerar. Assim, o parentesco pode ser definido como o vínculo jurídico existente entre as pessoas que descendem umas das outras, entre o cônjuge ou companheiro e os parentes do outro cônjuge ou companheiro; bem como entre as pessoas que mantêm entre si um vínculo civil.

Em sentido amplo, a matéria engloba, no atual Código Civil, disposições gerais (arts. 1.591 a 1.595), regras quanto à filiação (arts. 1.596 a 1.606), preceitos sobre o reconhecimento de fi lhos (arts. 1.607 a 1.617), normas referentes à adoção

(arts. 1.618 a 1.629) e comandos relacionados ao poder familiar (arts. 1.630 a 1.638).

Pois bem, três são as modalidades de parentesco, levando-se em conta a sua origem. A primeira delas é o parentesco consanguíneo ou natural, existente entre pessoas que mantêm entre si um vínculo biológico ou de sangue, ou seja, que descendem de um ancestral comum, de forma direta ou indireta. A segunda modalidade é o parentesco por afinidade, existente entre um cônjuge ou companheiro e os parentes do outro cônjuge ou companheiro. Cumpre sempre lembrar e advertir que marido e mulher e companheiros não são parentes entre si, havendo vínculo de outra natureza, decorrente da conjugalidade ou convivência. A grande inovação do Código Civil de 2002 frente ao seu antecessor foi reconhecer o parentesco de afinidade decorrente da união estável, como se retira do seu art. 1.595, e que se pretende manter com a sua reforma. Por fim, há o parentesco civil, aquele decorrente de  "outra origem" , que não seja a consanguinidade ou a afinidade, conforme estabelece o art. 1.593 do CC/02. Em relação ao último, no Direito de Família Contemporâneo, o parentesco civil decorre da adoção, da parentalidade socioafetiva e do uso das técnicas de reprodução assistida.

Diante do seu caráter geral para o Direito de Família, a Comissão de Juristas encarregada da reforma do Código Civil sugere que o tema abra o livro respectivo, tratando "das pessoas na família" , entre os novos arts. 1.512-A e 1.512-G. Seguiu-se, portanto, proposição feita pela relatora geral, professora Rosa Maria de Andrade Nery, que é melhor do ponto de vista metodológico.

O primeiro dispositivo proposto sobre o tema tratará das modalidades gerais de parentesco, como deve ser, prevendo que "a relação de parentesco pode ter causa natural ou civil. § 1º O parentesco é natural se resultar de consanguinidade, ainda que o nascimento tenha sido propiciado por cessão temporária de útero. § 2º O parentesco é civil, conforme resulte de socioafetividade, de adoção ou de reprodução assistida em que há a utilização de material genético de doador"  (art. 1.512-A). E o segundo deles, também com um sentido genérico, tratará do parentesco na linha reta ou colateral: "qualquer que seja a causa, o parentesco pode se dar em linha reta ou colateral" (art. 1.512-B).

Como se pode perceber, objetiva-se positivar expressamente na norma civil o reconhecimento expresso das hipóteses em que há parentesco civil, além da adoção, como está no enunciado 103, aprovado na I Jornada de Direito Civil:  "o Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho" . No que diz respeito às técnicas de reprodução assistida, almeja-se incluir na codificação privada o seu tratamento legal, o que é igualmente mais do que necessário (arts. 1.629-A a 1.629-V). Na atualidade, o tema é apenas tratado por regulamentação administrativa, do Conselho Federal de Medicina e do CNJ - dirigida para os oficiais dos cartórios de registro civil das pessoas naturais -, sendo primordial a sua normatização, a fim de lhe trazer segurança jurídica e estabilidade institucional.

Sobre a inclusão da parentalidade socioafetiva, concretiza-se o teor do julgamento do STF sobre a temática que reconheceu efeitos jurídicos não só para ela como também para a multiparentalidade. Consoante o seu Tema 622 de repercussão geral, que analisou a prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica, "a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios" (STF, RE 898.060, relator ministro Luiz Fux). A jurisprudência do STJ também é uníssona no seu reconhecimento como forma de parentesco civil, tendo o CNJ regulamentado o reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva e a viabilidade da multiparentalidade, pelos provimentos 63 e 83, em 2023 incorporados ao seu Código Nacional de Normas (CNN-CNJ).

Em verdade, a parentalidade socioafetiva é uma construção jurídica totalmente consolidada no nosso país - por doutrina e jurisprudência dominantes, quase unânimes -, não havendo qualquer razão plausível para que não seja incorporada ao texto do Código Civil. A esse propósito, lembro que o anteprojeto do Código Civil foi orientado pela doutrina hoje amplamente majoritária - consubstanciada pelos enunciados doutrinários das Jornadas de Direito Civil -, e não por posições isoladas.

Além disso, a metodologia empregada pela Comissão de Juristas, nomeada no âmbito do Senado Federal - e liderada pelos ministros Luis Felipe Salomão e Marco Aurélio Bellizze -, procurou inserir na legislação a posição dos Tribunais Superiores, sobretudo do STF e do STJ, o que é justamente o caso do tema em análise neste breve artigo.

O anteprojeto de reforma e atualização coloca a parentalidade socioafetiva em posição de igualdade com o parentesco consanguíneo, sem que haja hierarquia entre eles, o que foi o norte da decisão do STF, e para todos os fins possíveis, além dos próprios pais e filhos que estabelecem esse vínculo, fundado na posse de estado de filhos.

A título de exemplo, o novo sistema trará a presença de impedimentos matrimoniais entre os parentes socioafetivos, incluindo os irmãos, situação hoje não tratada expressamente pela norma e que gera dúvidas na prática. Atualmente, ao tratar dos impedimentos para o casamento, o art. 1.521 do Código Civil prevê o seguinte: "não podem casar:

I. Os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;

II. Os afins em linha reta;

III. O adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;

IV. Os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;

V. O adotado com o filho do adotante;

VI. As pessoas casadas;

VII. O cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte".

A Comissão de Juristas sugere ajustes pontuais no comando, mais uma vez urgentes e necessários, no tratamento dos impedimentos. Para os fins do que trata este texto, no inciso IV do art. 1.521 propõe-se mencionar apenas os irmãos, não importando a sua origem, justamente porque o parentesco civil gera os mesmos efeitos do parentesco consanguíneo, a incluir a adoção, a parentalidade socioafetiva e o uso de técnicas de reprodução assistida. Essa conclusão, inafastável, será retirada do antes destacado projeto de art. 1.512-A da codificação

privada. Também se almeja retirar a menção aos irmãos bilaterais - mesmo pai e mesma mãe - e unilaterais - mesmo pai ou mesma mãe -, uma vez que o impedimento matrimonial existe em qualquer hipótese de vínculo colateral de segundo grau.

Seguindo, ainda para os fins do estudo do tema deste texto, destaco a revogação do inciso V do art. 1.521, que hoje menciona o adotado com o filho do adotante. De todo modo, apesar da retirada do inciso, a restrição se manterá, pelo inciso anterior, pois devem ser considerados irmãos também os adotivos. Desse modo, ao contrário do devaneio de alguns - baseado em interpretações totalmente equivocadas da lei ou mesmo mal-intencionadas, com o fim de  "sabotar" a reforma do Código Civil -, essas alterações do dispositivo que trata dos impedimentos do casamento não permitirão o incesto, ou seja, o casamento entre irmãos. Muito ao contrário, há uma ampliação a respeito dos impedimentos, a fim de atingir os irmãos socioafetivos.

Acrescento, pela relevância para a temática, que o STJ já reconheceu efeitos sucessórios em relação ao que denominou como fraternidade ou irmandade socioafetiva. Em acórdão muito bem relatado pelo ministro Marco Buzzi - membro da Comissão de Juristas -, em que se evidencia a abrangência da aplicação da parentalidade na Corte Superior, "a atual concepção de família implica um conceito amplo, no qual a afetividade é reconhecidamente fonte de parentesco e sua configuração, a considerar o caráter essencialmente fático, não se restringe ao parentesco em linha reta. É possível, assim, compreender-se que a socioafetividade constitui-se tanto na relação de parentalidade/filiação quanto no âmbito das relações mantidas entre irmãos, associada a outros critérios de determinação de parentesco (de cunho biológico ou presuntivo) ou mesmo de forma individual/autônoma. Inexiste qualquer vedação legal ao reconhecimento da fraternidade/irmandade socioafetiva, ainda que post mortem, pois o pedido veiculado na inicial, declaração da existência de relação de parentesco de segundo grau na linha colateral, é admissível no ordenamento jurídico pátrio, merecendo a apreciação do Poder Judiciário"  (STJ, REsp 1.674.372/ SP, relator ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 4/10/22, DJe de 24/11/2022). Ora, se a irmandade socioafetiva gera bônus - como a sucessão entre os irmãos socioafetivos -, deve gerar o ônus - o impedimento matrimonial entre eles, sendo imperioso o reconhecimento de efeitos amplos para a parentalidade socioafetiva. As conclusões desse último decisum, como não poderia ser diferente, orientaram o anteprojeto de reforma.

Voltando-se ao estudo dos dispositivos relativos ao parentesco, em especial as propostas sobre a parentalidade socioafetiva, há também proposições de se incluir os novos arts. 1.617-A a 1.617-C no Código Civil, para regular expressamente a parentalidade socioafetiva e a multiparentalidade, afastando-se dúvidas, incertezas e instabilidades ainda existentes.

De acordo com o novo 1.617-A, e na linha do entendimento jurisprudencial superior antes exposto,  "a inexistência de vínculo genético não exclui a filiação se comprovada a presença de vínculo de socioafetividade". Em outras palavras, admite-se a multiparentalidade, com a presença de vínculos concomitantes, consanguíneo e socioafetivo, o que confirma a tese julgada pelo STF, em repercussão geral, bem como o entendimento majoritário da doutrina e da jurisprudência.

A respeito dos deveres parentais advindos da parentalidade socioafetiva, o novo art. 1.617-B passará a prever que  "a socioafetividade não exclui nem limita a autoridade dos genitores naturais, sendo todos responsáveis pelo sustento, zelo e cuidado dos filhos em caso de multiparentalidade" . Nesse contexto, é perfeitamente possível a autoridade parental compartilhada, sobretudo nos casos de vínculos concomitantes, sendo necessário um texto que deixe essa questão afirmada, para maior efetividade do instituto.

Por fim, prevaleceu na Comissão de Juristas o entendimentocontra o meu voto e o de outros - de que somente é possível o reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva de pessoas com menos de 18 anos e incapazes no âmbito judicial, o que afasta toda a regulamentação pelo CNJ hoje vigente, originária dos seus provimentos 63 e 83, incorporados ao seu Código Nacional de Normas (arts. 505 a 509).

Consoante o novo art. 1.617-C proposto para o Código Civil,  "o reconhecimento de filiação socioafetiva de crianças, de adolescentes, bem como de incapazes, será feito por via judicial". Porém, para pessoas capazes e maiores de dezoito anos, havendo a concordância dos pais naturais, dos pais socioafetivos e do filho, o reconhecimento poderá ser feito extrajudicialmente, cabendo ao oficial do Registro Civil reconhecer a existência do vínculo de filiação e levá-lo a registro (§ 1º). Em casos de discordância de um ou de ambos os genitores naturais, o reconhecimento da multiparentalidade poderá ser buscado apenas judicialmente (§ 2º).

Essas mudanças propostas, que acabaram prevalecendo pelo voto da maioria e pela democracia que orientou os nossos trabalhos, fará com que o CNJ tenha que regulamentar novamente o tema, quando as mudanças emergirem. De toda sorte, apesar da minha posição contrária, acabam por espelhar a posição que hoje é até majoritária na doutrina, com o fim de se trazer mais segurança e certeza para o reconhecimento da filiação socioafetiva e da multiparentalidade.

REFORMA DO CÓDIGO CIVIL, MITO DO “MINI” CÔNJUGE E COMBATE À DESIGUALDADE DE GÊNERO

Mário Delgado

É Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP) e Mestre em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor dos cursos de especialização em Direito Privado nas Escolas da Magistratura e da Advocacia. Diretor de Relações Institucionais do Instituto dos Advogados de São Paulo- IASP. Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família-IBDFAM, Membro do Instituto dos Advogados do Brasil (IAB), do Instituto dos Advogados de Pernambuco (IAP), do Instituto dos Advogados de Minas Gerais (IAMG), Membro da Academia Brasileira de Direito Civil – ABDC e da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ). Advogado e parecerista.

A comissão de juristas encarregada pelo Senado de elaborar um anteprojeto de lei para reforma do Código Civil entregou ao presidente Rodrigo Pacheco o resultado do seu trabalho, para a oportuna e percuciente análise do Poder Legislativo quanto à sua conveniência e juridicidade.

Como relator da subcomissão de sucessões, coube-me coordenar os debates, ouvir os especialistas e compilar as sugestões recebidas no que tange ao Livro V da Parte Especial do CC.

O objetivo buscado foi o de aprimoramento e simplifi cação das regras atinentes à sucessão hereditária, a partir de pesquisas realizadas perante a sociedade civil, a comunidade jurídica, a jurisprudência, os enunciados das Jornadas promovidas pelo Conselho da Justiça Federal e as experiências legislativas de outros países.

Nessa perspectiva, um dos primeiros temas tratados no texto proposto diz respeito aos direitos sucessórios de cônjuges e companheiros.

A nossa maior preocupação, nessa matéria, foi a de atender às demandas da comunidade, para solução ou prevenção de

confl itos, que conturbam a vida das famílias e atrasam a tramitação dos inventários, e, por isso, a sugestão para afastar a condição de herdeiro necessário (artigo 1.845) e, também, o direito de concorrência sucessória (artigo 1.829, I e II) de cônjuges e companheiros com descendentes e ascendentes, principalmente quando o casamento ou a união estável estivessem submetidos ao regime de separação convencional de bens, alvo de grande rejeição da população em geral.

Ninguém entendia que a escolha do casal pelo regime de incomunicabilidade de bens não se estenderia para após a morte, muito menos se compreendia a lógica do legislador em assegurar a concorrência justamente sobre os bens particulares, em relação aos quais o viúvo ou a viúva nada contribuíram.

A situação torna-se ainda mais dramática nas famílias recompostas, em que o novo cônjuge, normalmente mais jovem ou com menos tempo de casamento, pode concorrer com os fi lhos unilaterais do falecido, sobre o patrimônio construído no relacionamento anterior ou adquirido por sucessão.

Anteprojeto

O anteprojeto encaminhado ao Senado corrige distorções do Código Civil de 2002, que havia promovido o cônjuge ao posto de principal personagem da sucessão hereditária1 , restaurando o equilíbrio entre os herdeiros legítimos, chamados a suceder de acordo com a sua classifi cação na ordem da vocação hereditária.

O cônjuge, nos termos da proposição legislativa, passa a ser herdeiro exclusivamente da terceira classe e só recolherá a herança, no âmbito da sucessão legítima, na ausência de descendentes (herdeiros de primeira classe) e de ascendentes (herdeiros de segunda classe), afastando-se o direito concorrencial, que tantos problemas ocasionou nessas últimas duas décadas. Além disso, cônjuges e companheiros passam a ser herdeiros facultativos, o que implica a possibilidade de serem excluídos da sucessão por ato voluntário do testador.

A escolha legislativa de suprimir o direito concorrencial, retornando, o artigo 1.829 do CC/2002, parcialmente, à redação do art. 1.603 do CC/1916, como não poderia ser diferente, logo foi alvo de críticas. Fala-se que a alteração causará maior impacto nas mulheres do que nos homens, agravando a desigualdade de gênero que ainda subsiste no Brasil.

Há quem diga que foi “criada a fi gura de um ‘mini cônjuge’, sem direitos, salvo se inexistirem descendentes e ascendentes” e que “tal sistema não contribuirá para o alcance da igualdade de gênero e, por consequência, da igualdade social, norte que deve permear toda e qualquer alteração legislativa” 2

Cabe esclarecer, de proêmio, que a proposta apresentada não signifi ca um retorno ao período em que vigorou o Código Civil de 1916, muito menos à Lei Feliciano de Pena, de 19073 . Em primeiro lugar, porque a sociedade daquela época era outra,

1 Com o CC/2002, o cônjuge sobrevivente assumiu lugar de destaque, passando a concorrer na herança com os descendentes e ascendentes, inclusive no regime de separação absoluta de bens (art. 1.829), além de ostentar a qualidade de herdeiro necessário (art. 1.845). Esses novos direitos atribuídos ao cônjuge (e, de quebra, ao companheiro, segundo alguns autores) não foram bem compreendidos pela sociedade. A concorrência na herança com descendentes e ascendentes (arts. 1.829, I e 1.837), e o lugar de destaque como herdeiro necessário (art. 1.845), pareceram incoerentes com a realidade atual de fluidez dos relacionamentos, de facilitação do divórcio e de prevalência das famílias recompostas no cenário das entidades familiares. A ideia de um “super cônjuge”, protagonista da sucessão, era contemporânea da sociedade pré-divórcio, marcada pelo casamento indissolúvel, em que o integrante do núcleo familiar mais longevo era sempre o cônjuge, forçado a ficar ao lado do outro “até que a morte os separasse”.

2NEVARES, Ana Luiza Maia Nevares. Do “super” cônjuge ao “mini” cônjuge: A sucessão do cônjuge e do companheiro no anteprojeto do Código Civil. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/406048/ do-super-conjuge-ao-mini-conjuge-a-sucessao-do-conjuge

3 A partir da Lei nº 1.839/1907, chamada de Lei Feliciano Pena, o cônjuge passou a figurar no terceiro lugar da ordem de vocação hereditária, suplantando os colaterais, os quais ainda foram limitados até o quarto grau. No sistema das Ordenações, o cônjuge só seria chamado a suceder se não houvesse colaterais até o décimo grau.

completamente diversa, que outorgava ao “Homem-Marido-Cabeça do Casal-Chefe da Sociedade Conjugal” privilégios e recompensas que refl etiam o poder de um sexo sobre o outro.

Predominava uma ideologia masculina e heteronormativa que justifi cou a construção de uma relação jurídica e sociológica entre masculinidade e autoridade. A regulação jurídica da família, de certa forma, legitimava essa supremacia sexista.

O Livro do Direito das Sucessões, do Código Civil de 2002, inspirado na reforma do Código Civil Português de 1977, foi concebido com os olhos voltados para esse modelo de coletividade, patriarcal, misógina e pré-divórcio.

Lembre-se que, até 1977, o casamento era indissolúvel no Brasil, mantendo a legislação os resquícios coloniais das Ordenações do Reino, as quais, impregnadas pelo Direito Canônico, consideravam o casamento um sacramento, sem possibilidade de dissolução.

Nesse cenário, os privilégios sucessórios atribuídos ao cônjuge sobrevivente (viúvo ou viúva) eram justifi cados e imperiosos, pois entre os integrantes da família nuclear, era o consorte aquele que fi cava ao lado do outro até a hora da morte, não obstante, em muitos casos, o vínculo de afetividade que orienta a ordem da vocação sucessória sequer existisse.

O pré-legislador setentista, seguido pelo codifi cador de 2002, optou por premiar, com a condição de herdeiro necessário, que limita o poder de disposição sobre o patrimônio; e com a concorrência sucessória, que reduz a herança dos descendentes; aqueles que, presumivelmente, se prestariam assistência moral recíproca “até que a morte os separasse”.

Esse olhar protetivo para o casamento, e que paulatinamente se estendeu à união estável, não se mostrou adequado à sociedade do século 21, notadamente após 2010, com a EC 66, a facilitar de tal forma a dissolução do vínculo conjugal que, nos dias atuais, o casamento se transformou em um instituto quase provisório. É muito mais fácil se divorciar do que se casar.

Os relacionamentos conjugais se sucedem e se multiplicam com diferentes parceiros, e aquele que tiver a sorte de ocupar a posição de cônjuge ou convivente ao tempo da abertura da sucessão, pouco importando o tempo de conjugalidade, se tornará o grande premiado, em detrimento dos próprios fi lhos do autor da herança. Salta aos olhos a injustiça desse paradigma.

Ao mesmo tempo, e felizmente, o espaço de cidadania feminino tem crescido signifi cativamente. De uma condição servil de tutela em relação a pais e maridos, a mulher vem cada vez mais garantindo uma participação maior na vida pública e privada da comunidade, o que igualmente se refl ete na sucessão.

A isonomia entre homem e mulher, nos relacionamentos conjugais, vem sendo alcançada, ora pela sua crescente autonomia e independência profi ssionais, ora pelas regras que regem

o patrimônio familiar (regime de bens), a privilegiar, sempre, a presunção de comunhão.

Esse é o contexto hodierno nas grandes cidades, marcado, simultaneamente, pela expansão das famílias recompostas e pelo crescente empoderamento feminino. A reforma do Código Civil foi concebida e pensada sob essas premissas.

Nessa conjuntura, o reposicionamento sucessório de cônjuges e companheiros, em benefício de descendentes e ascendentes, pari passu com uma maior autonomia privada atribuída ao autor da sucessão, mostra-se conveniente e contemporâneo com as novas realidades da família brasileira.

Acrescente-se que ao anteprojeto não se pode imputar o estigma de reduzir direitos de cônjuges e companheiros, pois se o texto projetado, por um lado, requalifi cou a vocação sucessória decorrente da conjugalidade, de outro, concedeu àqueles sujeitos outros direitos não previstos no CC/2002.

A começar pelo usufruto sobre determinados bens da herança (legado ex lege), instituído para garantir a subsistência do cônjuge ou convivente sobrevivente que comprovar insufi ciência de recursos ou de patrimônio, previsto no § 1º do art. 1.850 e que se somará ao direito real de habitação.

Ainda que o pressuposto “insufi ciência de recursos ou de patrimônio” caracterize um conceito jurídico indeterminado, o seu adequado preenchimento pelo operador do Direito possibilitará uma proteção ao viúvo ou à viúva, “conforme o caso concreto”, e sem limitação a uma parcela do patrimônio, como ocorria com o usufruto vidual do CC/1916. Propositadamente se optou por não restringir o objeto do usufruto, que recairá sobre tantos bens quantos bastem para subsidiar a subsistência digna ao supérstite economicamente vulnerável4

A proteção sucessória de cônjuges e conviventes é complementada pelas propostas apresentadas na disciplina dos regimes de bens, locus mais apropriado à inserção de medidas de combate à desigualdade de gênero, pois enfeixam regras que disciplinam as relações patrimoniais do casal durante a vida, período em que as assimetrias se manifestam e precisam ser suprimidas e equalizadas.

É o caso dos artigos que regulam a fi xação de alimentos compensatórios, os quais também se prestarão para corrigir distorções materiais em caso de dissolução da sociedade conjugal por morte.

4 A propósito, a preocupação com as pessoas em situação de vulnerabilidade também se concretizou com a ampliação do direito real de habitação, de modo a extrapolar a titularidade de cônjuges e companheiros, dando maior concretude ao seu caráter protetivo, passando a alcançar, igualmente, outros herdeiros ou sucessores vulneráveis cujas moradias dependiam daquela do autor da herança por ocasião da abertura da sucessão, podendo o referido benefício ser exercido coletivamente, enquanto os titulares não adquirirem renda ou patrimônio suficiente para manter sua respectiva moradia, ou não casarem nem constituírem união estável.

No regramento da comunhão parcial de bens, foi prevista a comunicação da valorização das quotas ou das participações societárias ocorrida na constância do casamento ou da união estável, ainda que a aquisição das quotas ou das ações tenha ocorrido anteriormente ao início da convivência do casal, incluindo as situações em que a valorização decorre de lucros reinvestidos, atualmente considerada incomunicável de acordo com precedentes do STJ. Considerando que na maioria das famílias, o homem é o titular da empresa, a medida proporcionará inegável benefício patrimonial à mulher.

E, até mesmo no regime de separação total de bens, foi prevista a partilha de bens havidos por ambos os cônjuges ou conviventes com a contribuição econômica direta de ambos, respeitada a sua proporcionalidade, além de uma compensação econômica pelo trabalho realizado na residência da família e os cuidados com a prole, a ser fi xada pelo juiz, na falta de acordo, tudo isso a ratifi car e corroborar a preocupação em proteger e valorizar o trabalho feminino dentro de casa, o que se convencionou chamar de “dupla jornada da mulher”. Diversas outras proposições reforçam essa ideia, a permear todo o livro do Direito de Família.

Em conclusão, as mudanças efetivadas na sucessão de cônjuges e companheiros, muito longe de instituir as fi guras de um “mini cônjuge” ou de um “mini convivente”, desfalcado de direitos sucessórios, promove a requalifi cação desses sujeitos em consonância com o corrente patamar evolutivo da sociedade brasileira, conferindo-lhes outros direitos, privilégios e prerrogativas, especialmente na seara do Direito de Família, hábeis a combater a desigualdade de gênero.

A HERANÇA DIGITAL NA PROPOSTA DE ATUALIZAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL: PROTEGENDO SEU PATRIMÔNIO DIGITAL

Advogada especialista em Direito Digital, Proteção de Dados e Direito Notarial e Registral. Membro da Comissão de Proteção de Dados do CNJ, Membro do GT de Inteligência Artifi cial no Poder Judiciário do CNJ, Membro da Comissão de Juristas para a reforma do Código Civil de 2002. DPO certifi cada internacionalmente pela EXIN. Consultora em matéria de tecnologia e privacidade.

A máxima do fi lósofo grego Heráclito, "Não há nada mais permanente que a mudança", é, hoje em dia, extremamente atual e palpável. Vivemos em uma era onde nossa vida digital é tão ou mais importante que nossa vida analógica. Pense em todas as suas contas de redes sociais, e-mails, arquivos em nuvem e até mesmo em moedas digitais. Agora pense como o simples ato de ver a bateria do celular descarregar pode nos causar ansiedade, pois perdemos o acesso imediato a todos esses nossos recursos e informações. Sim, os aparelhos tecnológicos se tornaram uma extensão de nossas vidas, o que torna o valor desses ativos digitais ainda maior.

No mundo de hoje, onde assinar um cheque e enviar cartas quase não existem mais, essa sociedade digitalizada que vivemos, torna o tema ainda mais relevante. E fato é que a sociedade atual não comporta mais as soluções já existentes, fi cando nossa legislação com uma lacuna que precisa ser preenchida.

Com a evolução constante das tecnologias e a digitalização de praticamente todas as esferas de nossas vidas, desde comunicações pessoais até transações fi nanceiras, as antigas metodologias de gestão patrimonial e sucessão tornaram-se obsoletas frente ao digital, e a proposta de atualização do Código Civil vem também tratando dessa questão.

Já se perguntou o que acontece com todo esse "patrimônio digital" quando falecemos? Provavelmente nunca, não é? Isso se justifi ca porque as antigas gerações não possuíam patrimônios digitais relevantes, mas hoje, com uma geração nato digital, a realidade mudou. Atualmente, nosso ordenamento jurídico não oferece uma resposta clara para essa questão, evidenciando a urgente necessidade de regulamentação. Mas como essa regulamentação deve ser desenvolvida?

Este tema já foi objeto de alguns Projetos de Lei no Brasil1 e já possuímos algumas legislações e julgados internacionais sobre o assunto. No Brasil, iniciativas legislativas têm buscado regulamentar a herança digital, refl etindo a crescente importância dos ativos digitais na vida cotidiana. No cenário internacional, países como Alemanha 2 , Estados Unidos 3 e

1 A maioria dos PL sobre o tema estão apensados ao PL 3051/2020. Disponível  aqui , acesso em 22/05/224.

2 LEADING CASE - BUNDESGERICHTSHOF (BGH)

3 Fiduciary Access to Digital Assets Act. Legislação promulgada em vários estados dos Estados Unidos para abordar questões relacionadas ao acesso e controle deativos digitais após a morte de uma pessoa ou em caso de incapacidade; Disponível  aqui , acesso em 22/05/224.

Espanha4 já possuem discussões e abordagens sobre a gestão e a transmissão de bens digitais após a morte.

Mas antes de falarmos sobre a sucessão desses bens digitais, precisamos estabelecer quais são eles, e na proposta de atualização do Código Civil incluímos um capítulo inteiro (Capítulo V) denominado "Patrimônio Digital", onde, dentre outras questões, definimos patrimônio digital da seguinte forma:

Art. . Considera-se patrimônio digital o conjunto de ativos intangíveis e imateriais, com conteúdo de valor econômico, pessoal ou cultural, pertencente a pessoa ou entidade, existentes em formato digital.

Parágrafo único. A previsão deste artigo inclui, mas não se limita a dados financeiros, senhas, contas de mídia social, ativos de criptomoedas, tokens não fungíveis ou similares, milhagens aéreas, contas de games ou jogos cibernéticos, conteúdos digitais como fotos, vídeos, textos, ou quaisquer outros ativos digitais, armazenados em ambiente virtual."

Agora que entendemos que há uma definição, e que é inegável que hoje as pessoas de fato possuem um patrimônio digital, devemos pensar no que acontece com todos esses ativos e contas quando não estamos mais por aqui para gerenciá-los.

Um primeiro aspecto relevante é que a pessoa, ao se cadastrar em uma plataforma digital, está concordando com os termos ali impostos. Isso traz à baila a necessidade de que as plataformas digitais também se adaptem às novas vertentes do direito. Então quer dizer que com essa atualização estaremos entregando nossa herança digital às plataformas? De forma alguma. Caso a proposta seja aceita, estas precisarão criar mecanismos para respeitar a vontade do titular e os direitos dos herdeiros. Vamos então entender como deve se dar essa sucessão.

A subcomissão de direito digital colocou o respeito à privacidade do falecido como premissa, respeitando tanto sua intimidade, como dos possíveis terceiros e interlocutores envolvidos. Logo, a proposta foi no sentido de que sendo transmitido, este não deve possibilitar o acesso ao herdeiro das mensagens privadas, por exemplo. Mas essa regra comporta a exceção de que mediante autorização judicial, as mensagens poderão ser acessadas.

E mesmo que haja divergência entre doutrinadores, optamos, ainda que não de forma expressa, por dividir o patrimônio digital por naturezas. Essas categorias são: essenciais e personalíssimas, patrimoniais e híbridas.

As essenciais e personalíssimas englobam informações e dados que possuem apenas valor pessoal, como mensagens privadas. São elementos intrinsecamente ligados à identidade e privacidade do indivíduo, e sua gestão após a morte exige uma abordagem cuidadosa que respeite a intimidade do falecido e de terceiros envolvidos.

4 LEY ORGÁNICA 3/2018. Artículo 96. Derecho al testamento digital. Disponível  aqui , acesso em 22/05/224.

As patrimoniais 567, por outro lado, incluem ativos que possuem valor econômico agregado. Exemplos disso são criptomoedas, contas de investimentos digitais, milhagens aéreas e outros bens digitais que podem ser quantificados em termos financeiros. A transmissão desses bens é crucial para garantir a continuidade do patrimônio do falecido e a segurança financeira dos herdeiros.

As híbridas, como o próprio nome sugere, possuem características de ambas as naturezas mencionadas. São ativos que, além de terem um valor pessoal significativo, também possuem um valor econômico agregado. Um exemplo típico seria uma conta de mídia social monetizada.

Ponto relevante a ser destacado neste momento, é que os bens digitais que possuem valor econômico agregado, seja puro ou híbrido, integram a herança e devem ser transmitidos aos herdeiros. No mundo atual, onde a economia digital cresce exponencialmente, muitos indivíduos acumulam significativos ativos digitais que possuem valor financeiro. Esses ativos podem incluir criptomoedas, contas de investimentos online, milhagens aéreas e tokens não fungíveis (NFTs), entre outros. A inclusão desses bens na herança é crucial para garantir que o patrimônio do falecido seja devidamente administrado e transmitido aos seus sucessores. O que significa que as plataformas digitais onde esses ativos estão armazenados também precisam adaptar-se às novas realidades jurídicas, implementando políticas e procedimentos que permitam a transferência segura e legal dos ativos digitais aos herdeiros, respeitando as disposições legais aplicáveis.

Mas se apenas os bens com valor econômico são transferidos automaticamente aos herdeiros e integram a herança, como ficam os demais? Estabeleceu-se então, que a transmissão hereditária dos dados e informações contidas em qualquer aplicação de internet, bem como das senhas ou códigos de acesso, pode ser regulada em testamento ou meios administrativos oferecidos pela plataforma.

A ideia é justamente dar o poder de decisão ao usuário, que pode então se utilizar de testamento para tal finalidade, o que é o mais aconselhável, ou definir dentro da própria plataforma este herdeiro (como muitas já fazem, o Facebook, por exemplo) e mais, seguimos o entendimento de que o compartilhamento de senhas ou de outras formas para acesso a contas pessoais será equiparado a disposições contratuais ou testamentárias expressas, para fins de acesso dos sucessores, desde que tais disposições estejam devidamente comprovadas.

Importante é que as plataformas sigam esta regulamentação, ficou-se então definido que quaisquer cláusulas contratuais voltadas a restringir os poderes do titular da conta, de dispor

5 Flávio Tartuce. Disponível aqui. Acesso 22/05/24

6 Rolf Madaleno - Sucessão Legítima, Rio de Janeiro: Forense, 2019.

7 Bruno Zampier -  Bens digitais. Foco, 2021.

sobre os próprios dados e informações, serão nulas de pleno direito. Desta forma, fica claro que cada um de nós tem o total controle sobre o que quer que seja transmitido para os herdeiros ou não.

Mas e se não houver esta definição pretérita do falecido, as plataformas então ficarão com este conteúdo para elas? Não, ficou também definido que os sucessores ou representantes legais do falecido poderão pleitear a exclusão ou a manutenção da sua conta, bem como sua conversão em memorial, garantida a transparência de que a gestão da conta será realizada por terceiro.

Isso assegura que, mesmo na ausência de instruções explícitas, os herdeiros legais não fiquem sem alternativas. Eles poderão decidir o que fazer com as contas e os dados do falecido, sempre com o respaldo legal para agir conforme os melhores interesses da memória e privacidade do titular. Este mecanismo evita que as plataformas digitais mantenham indevidamente o controle sobre dados respeitando assim os direitos dos herdeiros.

Mas e se não houver sucessores para aquela conta? Este aspecto também foi pensado e no caso de contas públicas de usuários brasileiros falecidos, que não deixarem herdeiros ou representantes legais, essas contas devem ser excluídas em até 180 dias a partir da comprovação do óbito. Essa medida é fundamental para evitar que dados e informações pessoais permaneçam online indefinidamente. O que contribui tanto para uma melhor gestão de dados pelas plataformas digitais, que não precisarão manter contas inativas sem propósito definido, quanto assegura que a memória digital do falecido seja tratada com respeito e dignidade. Ao remover contas públicas sem sucessores, evitamos situações em que perfis ou conteúdos possam ser utilizados de maneira inadequada ou prejudicial à imagem do falecido.

Não resta então dúvidas que a proposta de atualização sugerida neste tema, visa o respeito a vontade do titular e o direito dos herdeiros, e em nenhuma hipótese garante que a herança digital de um indivíduo seja entregue às plataformas digitais.

Salienta-se ainda que o titular de um patrimônio digital tem o direito à proteção plena de seus ativos digitais, incluindo a proteção contra acesso, uso ou transferência não autorizados. Os prestadores de serviços digitais devem garantir medidas adequadas de segurança para proteger o patrimônio digital dos usuários e fornecer meios eficazes para que os titulares gerenciem e transfiram esses ativos com plena segurança, de acordo com a sua vontade.

Isso denota que o viés da regulamentação é fazer com que as plataformas criem medidas para assegurar os direitos do usuário, do falecido e de seus sucessores. As plataformas digitais devem adaptar-se a essas exigências, implementando políticas que respeitem a privacidade e a vontade do titular, além de garantir que os herdeiros possam acessar e administrar os

bens digitais de forma segura e conforme a lei. Essa abordagem visa a proteção integral do patrimônio digital, alinhando-se às necessidades contemporâneas.

Sendo assim, é evidente que a proposta de atualização do Código Civil em relação ao patrimônio digital é uma medida essencial e oportuna. Vivemos em um mundo cada vez mais digitalizado, onde nossa presença online e nossos ativos digitais têm valor significativo, tanto econômico quanto pessoal. Garantir que esses bens sejam adequadamente protegidos e transmitidos aos herdeiros é uma questão de justiça e respeito pela vontade do titular.

A regulamentação proposta não só oferece segurança jurídica, mas também assegura que a memória digital dos indivíduos seja tratada com a devida consideração. Ao definir claramente como os bens digitais devem ser geridos após a morte, protegemos não apenas o valor econômico desses ativos, mas também a privacidade do falecido. As plataformas digitais, por sua vez, são incentivadas a criar mecanismos robustos que respeitem e facilitem a gestão desses bens conforme a vontade dos usuários.

Em suma, a atualização do Código Civil para incluir disposições sobre patrimônio digital é um passo crucial para alinhar nosso ordenamento jurídico com as realidades deste século. Ela oferece uma estrutura clara e justa para a gestão de bens digitais, garantindo que a vontade do titular seja respeitada e que os herdeiros possam acessar e administrar esses ativos de forma segura e eficiente. A proteção do patrimônio digital não é apenas uma questão legal, mas um imperativo moral em uma era dominada pela tecnologia.

Assim, podemos olhar para o futuro com a confiança de que nossas vidas digitais serão tratadas com o cuidado e respeito, assegurando um legado justo e bem gerido para as gerações vindouras.

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