Revista Científica da ESA: Perspectivas Contemporâneas do Direito - Ed. 46

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OAB SP (Gestão 2022/2024)

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Sumário

1. A ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA EXTRAJUDICIAL NO CONTEXTO DA DESJUDICIALIZAÇÃO

Aparecida de Fátima Pereira Luiz Francisco Borges

20

2. MEMÓRIA, RECONHECIMENTO DE PESSOAS E A RESOLUÇÃO 484 DO CNJ

Alex Tincani Pacheco 32

3. EXECUÇÕES FISCAIS DE BAIXO VALOR: REFLEXÕES SOBRE O RECURSO EXTRAORDINÁRIO 1.355.208

Antônio Marcos Ferreira da Silva Orlett

Fátima Carolina Pinto Bernardes

39

4. LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (LGPD) E O CASO DE EDWARD SNOWDEN

Eduardo Spetic Scriptore

Rodrigo Guedes de A. B. Gonçalves

Daniela Nunes Veríssimo Gimenes

46

5. ÉTICA E RESPONSABILIDADE NA CRIAÇÃO E DISSEMINAÇÃO DE DEEPFAKES: UM ESTUDO DE CASO DE CYBERBULLYING COM O USO DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Gisele Aparecida Lima de Oliveira

Julia Lima de Oliveira

57

6. A SUCESSÃO CAUSA MORTIS DOS DIREITOS AUTORAIS NA ATUALIDADE

Iriana Maira Munhoz Salzedas

7.OS REFLEXOS DO USO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NOS CONTRATOS CONTEMPORÂNEOS

Isabela Tazinaffo Gaona

10. CONSIDERAÇÕES

SOBRE IMPARCIALIDADE E SUBJETIVIDADE NA RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL Nº 43.007/DF

Monique Mazon Queiroz

8.A TRANSFORMAÇÃO

DIGITAL E A INTELIGÊNCIA

ARTIFICIAL: IMPACTOS NA PREVIDÊNCIA

Janaina Milene Coalha Parro

Gabriel Leme Rocha 89

11. EVOLUÇÃO DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS NO DECORRER DE 200 ANOS DE CONSTITUIÇÃO

Monique Mazon Queiroz

9. A NÃO INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA EM ALIMENTOS OU PENSÃO ALIMENTÍCIA

Letícia Gibelle

Juliana Losnake Pereira 98

12. A IMPORTÂNCIA DO MOVIMENTO FEMINISTA NA LUTA PELOS DIREITOS DAS MULHERES

Natasha Tozzi

Guilherme Bittencourt Martins 104

13. VISÃO HISTÓRICA E CONTEMPORÂNEA DA ADMINISTRAÇÃO DIRETA E INDIRETA JUNTO AO DIREITO COMPARADO

Nilo Kazan de Oliveira

Taís Nader Marta 110

14. MODULAÇÃO DE EFEITOS E PROCESSOS

ADMINISTRATIVOS EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

Ramon Leandro Freitas Arnoni

117

15. DANO TEMPORAL A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS FORNECEDORES DE PRODUTOS E SERVIÇOS PELA PERDA DO TEMPO ÚTIL DO CONSUMIDOR

Samuel Marxan Basani

Thiago Munaro Garcia

132

16. A IMPORTÂNCIA DA INTERSETORIALIDADE NA CAPACITAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DA REDE DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS INFANTOJUVENIS: INTEGRANDO ESFORÇOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM FUTURO MAIS

JUSTO E SEGURO

Simone Miranda Rascachi

141

17. A POSSÍVEL

INCONSTITUCIONALIDADE E INAPLICABILIDADE DA TUTELA PENAL NO CRIME DE BIGAMIA

Tulio Emer Damasceno

150

18. CONFLITOS NORMATIVOS NA INTERFACE ENTRE A PSICOLOGIA E O DIREITO

Vinicius de Carvalho Carreira

Marianne Ramos Feijó

Ano 2024

ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA

São Paulo, OAB SP - 2024

COORDENAÇÃO TÉCNICA

COORDENADOR GER AL

Adriano de Assis Ferreira

COORDENADOR ACADÊMICO

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PROJETO GRÁFICO

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Pubicação Trimestral

ISSN - 2175-4462

Direitos - Periódicos. Ordem dos Advogados do Brasil

Apresentação

Esta edição especial da Revista da Escola Superior de Advocacia de São Paulo é composta por uma coleção de artigos provenientes do IX Congresso de Atualização Jurídica da OAB de Bauru, realizado nos dias 7, 8 e 9 de agosto de 2024. O evento é destacado pela rica diversidade de temas envolvidos, refletindo os desafios contemporâneos enfrentados pelo Direito em suas diversas áreas. Nesta edição, os leitores encontrarão reflexões aprofundadas sobre temas cruciais, como a desjudicialização e suas implicações práticas, o impacto das tecnologias digitais no reconhecimento de pessoas e nos contratos contemporâneos, bem como as mudanças no campo da proteção de dados, à luz de casos emblemáticos e da legislação atual.

As questões tributárias também têm destaque, com análises sobre a modulação de impostos e as execuções fiscais de baixo valor, além de discussões sobre a não incidência de impostos em situações específicas e os desafios da transformação digital na previdência.

A interface entre Direito e Inteligência Artificial surge como um tema relevante, especialmente no contexto da criação e disseminação de deepfakes, e no estudo dos reflexos dessas tecnologias na administração pública e na responsabilidade civil dos fornecedores de produtos e serviços.

A proteção dos direitos fundamentais, ao longo de 200 anos de evolução constitucional, é revisitada, ao lado da discussão sobre a intersetorialidade na capacitação de profissionais na rede de proteção infantojuvenil e os impactos das políticas de descriminalização e despenalização.

Além disso, temas como a sucessão de direitos autorais, os movimentos feministas e suas contribuições para os direitos das mulheres, a interface entre Psicologia e Direito, e os conflitos normativos emergentes completam esta edição, trazendo à tona questões que continuam a moldar o cenário jurídico atual.

Esta revista, portanto, não apenas compila debates de alta relevância para o meio jurídico, como também promove uma reflexão sobre as transformações em curso no Direito. Convidamos os leitores a explorar os artigos desta edição, que certamente enriquecerão o entendimento e a prática jurídica em um mundo cada vez mais complexo e interconectado.

1 Coordenadora da ESA-Bauru Coordenadora Científica do IX Congresso de Atualização Jurídica da OAB de Bauru.

Foto: Fábio Cres

A

ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA EXTRAJUDICIAL NO CONTEXTO DA DESJUDICIALIZAÇÃO

Palavras-chave

Desjudicialização. Adjudicação Compulsória. Extrajudicial. Lei 14.382/2022.

Aparecida De Fátima Pereira

Estudante de Direito da Faculdade Nove de Julho de Bauru

Luiz Francisco Borges

Professor da Faculdade Nove de Julho de Bauru. Advogado

Resumo

Tem-se ampliado na sociedade brasileira a busca da providência jurisdicional das controvérsias na via administrativa. Nesse contexto, estão a arbitragem, a conciliação, a mediação, assim como a usucapião, o inventário, a partilha, a separação e o divórcio consensual e a extinção consensual de união estável e, mais recentemente, a adjudicação compulsória. O presente estudo tem por objetivo analisar as mudanças trazidas pela Lei 14.382/2022, que permitiu a realização da adjudicação compulsória pela via extrajudicial. Trata-se de mais uma inovação trazida pelo legislador com o objetivo de solucionar o acúmulo de processos no âmbito judicial, movimento que foi denominado de desjudicialização. A análise englobou a normatização pertinente, qual seja, a Lei 6.015/73, que disciplina os registros públicos, e que foi alterada pela Lei 14.382/2022, e o Provimento nº. 149, que institui o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra), instrumento regulamentador dos serviços notariais e de registro. Demonstrou-se a importância dos procedimentos administrativos como alternativa para desafogar o Judiciário, aliviar os cofres públicos, trazendo comodidade e rapidez para o cidadão. Destaque-se que a legislação impôs a presença de advogado para exercer o jus postulandi, fato que demanda o desafio de especialização a tais profissionais e oportuniza crescimento. Discorreu-se, por fim, acerca da possibilidade de outros procedimentos transmutarem-se para o campo administrativo, como a busca e apreensão de veículos com financiamento garantido por alienação fiduciária.

1. INTRODUÇÃO

A Lei 14.382/2022, de 27 de junho de 2022, estabeleceu a possibilidade da realização do procedimento de adjudicação compulsória pela via extrajudicial através dos cartórios de registro de imóveis. A norma foi entendida como mais um avanço, como o foram a usucapião, o inventário, a partilha, a separação e o divórcio consensual e a extinção consensual de união estável.

Conforme dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o total de processos pendentes na justiça brasileira até 30/06/2023 era de mais de 79 milhões, além de os casos novos apresentarem crescimento ano após ano. Até o fim do primeiro semestre, o ingresso de novas lides ultrapassou 15 milhões de processos, segundo as Estatísticas do Poder Judiciário, 2023, do CNJ.

Nesse cenário, retirar do Judiciário contingentes de casos novos permitirá a redução de custos para o Estado, gerando economia para os cofres públicos e o correspondente direcionamento de esforços para a extinção do contingente represado. Para o cidadão, haverá o diferencial em termos de agilidade e simplicidade na prestação de serviços.

Essa inovação insere-se no contexto da chamada desjudicialização, que, em síntese, pode ser definida como a adoção de medidas que dispensem o processo judicial, solucionando a lide através de métodos alternativos de solução de conflitos, como a mediação, a conciliação e a arbitragem, ou facultando a realização de procedimentos por meio das serventias extrajudiciais. (tabelionatos e registros públicos).

A Lei 14.382 alterou a Lei de Registros Públicos e trouxe, em seu bojo, a indicação dos legitimados a requerer a adjudicação, os documentos necessários ao pedido e o modo de atuação do oficial do registro de imóveis, fazendo alusão à execução do processo de maneira genérica, o que na opinião do Corregedor Nacional de Justiça, Ministro Luís Felipe Salomão, foi um dos pontos mais trabalhosos apresentados pela Lei 14.382/2022 – que atualizou a Lei 6.015/1973 (Registros Públicos), pois “a lei tratou do comando do procedimento, mas faltou a complementação dos pontos vazios, como as hipóteses de utilização (MIGALHAS,2023). Para tanto, foi formado um grupo de trabalho por integrantes da Câmara de Regulação e do Conselho Consultivo do Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR), que se incumbiu de apresentar proposta de ato normativo referente à regulamentação da adjudicação compulsória extrajudicial.

De acordo com o CNJ, a adjudicação compulsória é um procedimento utilizado nos casos em que o vendedor se recusa a cumpriu um contrato pactuado e já quitado, ou ainda quando tenha se dado a morte ou declarada a ausência do transmitente, ou sua localização seja incerta e ignorada, além dos

casos de extinção da pessoa jurídica. Até então, o procedimento era realizado somente pela via judicial.

A nova Lei, ao possibilitar que a adjudicação seja feita em cartório de registro de imóveis, permitiu que o processo seja mais célere e menos oneroso para o cidadão, alterando-se a norma que regulamenta os serviços concernentes aos registros públicos numa perspectiva de modernização e simplificação dos procedimentos relativos a esses registros públicos de atos e negócios jurídicos:

Artigo 216-B. Sem prejuízo da via jurisdicional, a adjudicação compulsória de imóvel objeto de promessa de venda ou de cessão poderá ser efetivada extrajudicialmente no serviço de registro de imóveis da situação do imóvel, nos termos deste artigo.

As regras com o detalhamento do procedimento foram disciplinadas pelo CNJ por meio do Provimento 150, de 11 de setembro de 2023, que trouxe modificações para o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça – Foro Extrajudicial (CNN/CN/ CNJ-Extra), instituído pelo Provimento 149, de 30 de agosto de 2023, um dos normativos que integra a consolidação de normas para serventias extrajudiciais.

Ressalte-se a necessidade do jus postulandi através de advogado para requerer a adjudicação compulsória extrajudicial, como bem definiu a parte final do parágrafo 1º., do artigo 216-B:

§ 1º São legitimados a requerer a adjudicação o promitente comprador ou qualquer dos seus cessionários ou promitentes cessionários, ou seus sucessores, bem como o promitente vendedor, representados por advogado [...]

Nessa seara, vislumbra-se a importância de analisar e compreender os contornos desse novo procedimento com vistas a identificar as oportunidades e desafios da seara extrajudicial para a advocacia.

2. OS MEIOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS

“A obrigação surge para ser cumprida, de modo que, se for voluntariamente satisfeita a prestação, não mais se terá vínculo obrigacional, pois o sujeito passivo se libera com o adimplemento da obrigação” (DINIZ, 2023).

De outra feita, “havendo o descumprimento ou inadimplemento obrigacional, poderá o credor satisfazer-se no patrimônio do devedor” (TARTUCE, 2023). Ensina o professor Caio Mário Pereira que “inadimplemento da obrigação é a falta da prestação devida. Conforme a sua natureza (de dar, de fazer, de não fazer), o devedor está adstrito à entrega de uma

coisa, certa ou incerta, à prestação de um fato ou a uma abstenção.

Assim, a satisfação pelo cumprimento extingue o vínculo obrigacional existente entre as partes. Na outra face, descumprindo-se uma avença, existem as diversas formas à disposição da parte prejudicada para evitar prejuízo, a exemplo da execução.

O Código de Processo Civil (CPC) de 2015 elenca no Livro II da parte especial as formas de execução, e disciplina que a execução por quantia certa realizar-se-á pela expropriação de bens do executado. Essa expropriação executiva para obter o numerário a ser aplicado na realização do crédito exequendo se opera, ordinariamente, por meio da alienação forçada do bem afetado, seja em favor de terceiros - artigo 825, II, seja em favor do próprio credor - artigo 825, I. Excepcionalmente, limitar-se à apropriação de frutos e rendimentos de empresa ou de estabelecimentos e de outros bens com o fim de propiciar numerário para a cobertura do crédito insatisfeito - artigo 825, III. (JR, Humberto, 2023).

Neves apud Alvim (2017, pg. 1.028) anota que a adjudicação constitui o meio de satisfação do crédito exequendo mediante a transferência do próprio bem penhorado ao credor ou a outro legitimado contemplado nos §§ 5º e 7º do artigo 876 do CPC.

Humberto Teodoro (JR, Humberto T., 2022) define a adjudicação como:

o ato executivo expropriatório, por meio do qual o juiz, em nome do Estado, transfere o bem penhorado para o exequente ou para outras pessoas a quem a lei confere preferência na aquisição. Não se confunde com a arrematação, porque a função precípua da adjudicação, quando a exerce o próprio credor, não é a de transformar o bem em dinheiro, mas o de usá-lo diretamente como meio de pagamento.

Ainda, ressalta que “tanto como na arrematação, há neste ato expropriatório atuação processual executiva do Judiciário, no exercício da tutela jurisdicional”.

Quando deferida ao exequente, guarda semelhanças com a dação em pagamento, pois ocorre a apropriação do bem como pagamento parcial ou total do débito, distinguindo-se dela por ser forma voluntária de cumprimento das obrigações, ao passo que a adjudicação é forma de expropriação forçada. Se deferida a outros legitimados, cumpre-lhes depositar o valor de avaliação, para que possa ser levantado pelo credor. (GONÇALVES, 2023).

O artigo 877, em seu parágrafo 1º., esclarece que tanto bens móveis quanto imóveis podem ser adjudicados, expedindo-se a carta de adjudicação quando se tratar de bem imóvel,

e a ordem de entrega ao adjudicatário quando for o caso de bem móvel.

A inovação trazida pela Lei 14.382/2022 admitiu a adjudicação compulsória extrajudicial apenas em relação a bens imóveis, a teor da nova redação dada ao caput do artigo 216-B da Lei 6.015/1973.

2.1. Os meios alternativos de solução de conflitos

A expressão “meios alternativos de solução de conflitos” (MASC) correspondente à homônima em língua inglesa “alternative dispute resolution” e representa uma variedade de métodos de resolução de disputas distintos do julgamento que se obtém ao final de um processo judicial conduzido pelo Estado. São exemplos a arbitragem, a mediação, a conciliação, a avaliação neutra, a própria negociação, entre outros. (SALLES, et al., 2023)

A arbitragem foi o primeiro procedimento de solução de controvérsias no âmbito extrajudicial a ser positivado no Brasil. A Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, consolidou no país práticas internacionais ao disponibilizar via alternativa de solução de conflitos efetiva, ágil e relevante (JR, Humberto T., 2022), atribuindo às pessoas capazes a opção de valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

Em 2015, a lei de arbitragem foi alterada pela Lei 13.129, de 26 de maio de 2015, para, entre outros, permitir o uso do procedimento pela administração pública direta e indireta.

A sentença arbitral possui força idêntica à sentença judicial, podendo, igualmente, ser levada à execução judicial, de acordo com o artigo 515, II, do CPC.

Segundo Luiz Antonio Scavone Júnior (2023), a arbitragem pode ser definida:

[.......] como o meio privado, jurisdicional e alternativo de solução de conflitos decorrentes de direitos patrimoniais e disponíveis por sentença arbitral, definida como título executivo judicial e prolatada pelo árbitro, juiz de fato e de direito, normalmente especialista na matéria controvertida.

Por sua vez, o Código Civil de 2015 ratificou no artigo 3º. a possibilidade de realização do procedimento e acresceu a conciliação e mediação como demais formas alternativas de resolução das lides.

Ao mesmo tempo que o legislador assegura no CPC/2015 o acesso irrestrito à justiça, preconiza também as virtudes da solução consensual das controvérsias, atribuindo ao Estado o encargo de promover essa prática pacificadora, sempre

que possível (artigo 3º, § 2º). Da mesma forma, atribui legitimidade à substituição voluntária da justiça estatal pelo juízo arbitral (artigo 3º, § 1º).

A mediação foi regulamentada pela Lei 13.140/2015, aplicando-se, no que couber, por extensão, as mesmas regras à conciliação, notadamente em razão de ambos os meios terem sido previstos no Código de Processo Civil, empreendendo-se interpretação sistemática ante a ausência de procedimento detalhado de conciliação na legislação processual. (JUNIOR, LUIZ ANTONIO S., 2023).

Em seu artigo 1º, a lei define que se considera mediação a atividade técnica exercida por terceiro imparcial e sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para o litígio.

O instituto da mediação assemelha-se à conciliação: os interessados utilizam a intermediação de um terceiro, particular, para chegarem à pacificação de seu conflito. Na mediação, busca-se, prioritariamente, trabalhar o conflito, tendo o acordo como objetivo secundário. É indicada nos casos de contendas que se prologam no tempo, como relações de família e vizinhança. A conciliação objetiva o acordo entre as partes e é destinada a controvérsias que não se protraem no tempo, a exemplo de acidentes de veículos, relações de consumo.

(DINAMARCO, et al., 2020, pg. 52-54)

É preciso observar que a mediação é sempre voluntária, pois conforme o artigo 2º, § 2º da Lei 13.140/2015, ninguém será obrigado a permanecer em procedimento de mediação. A participação na conciliação, contudo, pode ser compulsória, notadamente na modalidade judicial, nos termos do artigo 334 do CPC, que impõe ao juiz a determinação da audiência. A transação é o resultado da mediação e da conciliação que atingiram o seu objetivo: o consenso entre os contendores. Sempre haverá um impasse na vida. Os envolvidos tentam resolvê-lo, ou sozinhos ou com o auxílio de um terceiro. Existindo uma afronta a um direito, o descontente tende a procurar o Poder Judiciário, contudo, a solução via judicial é uma das alternativas. (JUNIOR, Luiz Antonio, 2023)

O consenso pode ser atingido e a solução dar-se por definitiva através de outras formas. E nessa perspectiva, a via administrativa torna-se cada vez mais viável para dirimir as situações conflituosas de maneira menos beligerante, mais eficiente e ágil, contribuindo para a manutenção da paz social num cenário de sociedades dinâmicas e com elevada tendência de exposição às mais diversas situações geradoras de discórdia.

2.2. Inventário, partilha, separação e divórcio consensual extrajudiciais

A Lei 11.441, de 4 de janeiro de 2007, trouxe a possibilidade de realização dos procedimentos de inventário, partilha, separação e divórcio consensual na via extrajudicial se todos os envolvidos forem capazes e inexistir testamento. Promulgada em 04 de janeiro de 2007, alterou os artigos 982 e 983 Código de Processo Civil de 1973.

No atual Código de Processo Civil de 2015, a previsão foi inserida nos artigos 610 e 611 em relação ao inventário:

Artigo 610. Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial.

§ 1º Se todos forem capazes e concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras.

Artigo 611. O processo de inventário e de partilha deve ser instaurado dentro de 2 (dois) meses, a contar da abertura da sucessão, ultimando-se nos 12 (doze) meses subsequentes, podendo o juiz prorrogar esses prazos, de ofício ou a requerimento de parte.

Acerca do divórcio e da separação consensuais e da extinção consensual de união estável, temos os comandos disciplinados nos artigos 731 a 734, com destaque para o artigo 733 e seus parágrafos, os quais definem que não havendo nascituro ou filhos incapazes e observados os requisitos legais, tais atos poderão ser realizados por escritura pública, sendo que esta escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras.

Ao tabelião foi estabelecida a condição de lavrar a escritura se os interessados estiverem assistidos por advogado ou defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.

O novo modo de inventário, qualificado como extrajudicial, notarial ou administrativo, tem o propósito de facilitar a prática do ato de transmissão dos bens, ao permitir modo mais simples e rápido para resolver a partilha, reduzindo a pletora dos serviços judiciários, e levando o procedimento extrajudicial para o Ofício de Notas, afastando os rigores da burocracia forense para a celebração de um ato notarial que visa chancelar a partilha amigavelmente acordada entre meeiros e herdeiros e o recolhimento dos impostos devidos. Ao juiz, portanto, reserva-se a análise das questões mais complexas, conquanto se resguarde o direito dos cidadãos de recorrerem, quando entenderem necessário, na esfera judicial. (OLIVEIRA, AMORIM, 2021)

Semelhante entendimento é esposado por Coltro e Delgado, ao dizer que a Lei 11.441/07, sem excluir a opção pelo Judiciário, contribui para desobstruí-lo e liberar caminhos para uma atuação mais célere deste em outras contendas, racionalizando a congestionada atividade jurisdicional que atualmente impera nos nossos foros.

A fim de regulamentar e disciplinar os procedimentos a serem adotados nos tabeliões de notas, foi editada pelo Conselho Nacional de Justiça a Resolução 35, de 24 de abril de 2007, que “revelou-se de grande importância para a compreensão desse novo instituto” (Tartuce, 2022) e atribuiu às escrituras públicas de inventário e partilha, separação e divórcio consensuais a qualidade de títulos hábeis para o registro civil e o registro imobiliário, para a transferência de bens e direitos, bem como para promoção de todos os atos necessários à materialização das transferências de bens e levantamento de valores (DETRAN, Junta Comercial, Registro Civil de Pessoas Jurídicas, instituições financeiras, companhias telefônicas, etc.) nos termos do artigo 3º. da Resolução 35, independentemente de homologação judicial.

Destaque-se que na lavratura de tais escrituras, é necessária a presença do advogado, devendo estar apostos nesses documentos o nome e o número de registro do profissional na OAB.

2.3.

Usucapião extrajudicial

A partir do novo Código de Processo Civil, a Lei de Registros Públicos passou por alteração para permitir o reconhecimento da aquisição da propriedade imobiliária por meio da usucapião, através dos oficiais de registro de imóveis, configurando em mais uma alternativa ao cidadão, mantendo, entretanto, a liberalidade de pleitear a causa na esfera judicial:

Artigo 216-A.  Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado [...]

Trata-se de importante novidade que veio recentemente introduzida no ordenamento jurídico brasileiro, possibilitando, em casos de ausência de litígio, o reconhecimento da aquisição de direitos reais imobiliários diretamente no Registro Imobiliário, sem a necessidade de processo judicial, tornando, assim, o caminho mais célere, menos custoso e auxiliar da redução da carga desumana de processos submetidos ao Poder Judiciário. (BRANDELLI, 2015)

De acordo com a nova sistemática, ampliou-se o espectro do procedimento extrajudicial da usucapião, passando a abarcar todo e qualquer pedido em que haja consenso entre o

possuidor e demais interessados (confrontantes, proprietário, titulares de direitos reais sobre o imóvel, entre outros). (PEREIRA, 2022)

Cabe ao interessado reunir todos os documentos descrito no artigo 216-A da Lei de Registros Públicos e comparecer ao Cartório de Registros de Imóveis. Havendo oposição, no entanto, o processo é remetido ao juízo competente, que o processará por meio do procedimento comum.

3. A ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA EXTRAJUDICIAL

A adjudicação compulsória de bens imóveis é o mais novo instituto a integrar o rol de procedimentos que podem ser realizados no âmbito administrativo. Isso se deu por meio de alteração na Lei de Registros Públicos, com o acréscimo do artigo 216-B. Recentemente, por meio do Provimento 150, de 11 de setembro de 2023, o CNJ disciplinou e uniformizou o regramento para os cidadãos e cartórios.

A adjudicação é instrumento que consta do Código Civil com a finalidade de garantir o direito real de aquisição ao promitente comprador que se viu privado da escritura definitiva de propriedade, consoante os artigos 1.417 e 1.418:

Artigo 1.417. Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel.

Artigo 1.418. O promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme o disposto no instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel.

É um serviço à disposição de qualquer adquirente ou transmitente, bem como quaisquer cedentes, seus cessionários ou sucessores.

Assim, permite-se ao adquirente de um imóvel registrá-lo em seu nome nas hipóteses em que o alienante descumprir a avença pactuada, falecer, for declarado ausente, for civilmente incapaz ou, ainda, estiver em local incerto e ignorado. Em se tratando de pessoa jurídica, na situação em que for extinta, segundo esclarece o Ministério Público do Paraná.

Podem fundamentar a adjudicação compulsória quaisquer atos ou negócios jurídicos que impliquem promessa de compra e venda ou promessa de permuta, bem como as relativas a cessões ou promessas de cessão, contanto que não haja direito de arrependimento exercitável, entendido como o prazo de reflexão, que, podendo ser exercitado, não depende de

problemas com o objeto da compra, cabendo ao comprador a possibilidade de desistir da aquisição no prazo estabelecido na Lei 8.078/90, artigo 49, e Decreto-Presidencial 7.962/13.

Nesse aspecto, quando a norma fala em quaisquer atos ou negócios jurídicos, deve-se atentar para a prova da realização do negócio jurídico, seja por quaisquer formas admitidas em direito, que claramente identifiquem os requisitos que caracterizem a promessa de compra e venda, conforme ensina Carolina Mosmann.

Importante notar que o parágrafo 2º. do artigo 216-B não impõe a necessidade de registro prévio do contrato de promessa de compra e venda ou de cessão:

§ 2º O deferimento da adjudicação independe de prévio registro dos instrumentos de promessa de compra e venda ou de cessão e da comprovação da regularidade fiscal do promitente vendedor.

Entendimento que foi ratificado pelo Superior Tribunal de Justiça, ao afirmar que “o direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis.”

Compete ao ofício de registro de imóveis da situação atual do imóvel proceder à qualificação e registro da adjudicação compulsória extrajudicial, podendo o interessado cumular pedidos relativos a imóveis diversos, se todos estiverem na circunscrição do mesmo ofício de registro de imóveis, se forem coincidentes os interessados ou legitimados, ativa e passivamente e se dessa cumulação não resultar dificuldades ou prejuízo para o bom andamento do processo.

A norma ressalva que será admitido o processo de adjudicação compulsória ainda que estejam ausentes alguns dos elementos de especialidade objetiva ou subjetiva, se, a despeito disso, houver segurança quanto à identificação do imóvel e dos proprietários descritos no registro.

Relativamente ao registro, também ensina Carolina Mosmann, a adjudicação só cabe para imóvel regular, aquele que tenha matrícula ou transcrição no registro imobiliário. Se assim não o for, pode ser causa de usucapião. Essa disposição consta expressa no Provimento 150, artigo 440-G ao exigir, para fins de adjudicação, a referência à matrícula ou à transcrição e a descrição do imóvel com seus ônus e gravames.

A usucapião, no entanto, requer o consentimento expresso dos confrontantes e titulares de direitos reais e esse consentimento pode advir de justo título ou instrumento que demonstre a existência de relação jurídica com o titular registral, acompanhado de prova da quitação das obrigações, nos termos do artigo 410, caput e parágrafo 1º.

Nessas situações, deverá ser justificado o óbice à correta escrituração das transações para evitar o uso da usucapião como meio de burla dos requisitos legais do sistema notarial

e registral e da tributação dos impostos de transmissão incidentes sobre os negócios imobiliários, conforme determina o parágrafo 2º. do mesmo artigo 410.

Em síntese, temos que, embora ambos os institutos tenham por objetivo registrar formalmente na matrícula do imóvel a propriedade do bem, promovendo a regularização dessa propriedade, a usucapião é um modo de aquisição originária da propriedade, ao passo que a adjudicação é meio de aquisição derivada, que envolve a transmissão forçada entre proprietários.

Para que possam ocorrer na via administrativa, é necessário que haja consentimento dos envolvidos para a transmissão da propriedade. Em caso de litígio, apenas o Poder Judicial pode atuar e decidir. A lei também é clara ao indicar que a forma extrajudicial é uma faculdade dos postulantes e que, a qualquer tempo, podem recorrer ao Judiciário.

Na usucapião, não se prova o pagamento pela aquisição do bem, a prova é do uso prolongado no tempo. Na adjudicação, por envolver uma promessa de compra e venda ou de cessão, é necessária a prova do pagamento.

A regularidade registral é outro diferencial entre a usucapião e a adjudicação. Para aquela, não se exige a inscrição do imóvel no registro imobiliário, porquanto a adjudicação somente pode ser requerida nos casos em que o imóvel possua matrícula ou transcrição no correspondente cartório de registro de imóveis.

O consentimento dos titulares que detêm o direito real de posse e dos confrontantes é condição necessária para a usucapião, bem como a manifestação do Poder Público para confirmar que não se trata de bem público, requisitos que são dispensados na adjudicação.

Por fim, tanto o procedimento para a usucapião ou adjudicação demandam a elaboração de ata notarial. No primeiro caso para provar a posse, e no segundo para provar o inadimplemento.

3.1. O procedimento inicial do interessado

O postulante deverá apresentar requerimento de instauração do processo de adjudicação compulsória ao oficial de registro, que efetuará o devido protocolo, e deverá atender, naquilo que for pertinente, aos requisitos do artigo 319 do Código Civil, como a identificação do requerente e requerido, do imóvel, contendo todos os fatos que se deram em relação à cessão ou à sucessão de titularidades, a declaração de inexistência de processo que impeça o registro da adjudicação, o pedido de notificação ao requerido, o deferimento da adjudicação e da lavratura do registro de transferência da propriedade.

Ainda, deve acompanhar o requerimento inicial a ata notarial e o instrumento do ato ou negócio jurídico em que se funda a adjudicação compulsória.

Sobre a ata notarial, a norma disciplina que deverá ser lavrada por tabelião de notas. Cumpre mencionar que o registro de fatos por meio da ata foi procedimento incluído no artigo 384 do atual Código de Processo Civil, todavia, a Lei não logrou em defini-la, tarefa que coube à doutrina, sendo conceituada como “o testemunho oficial de fatos narrados pelo notário no exercício de sua competência em razão de seu ofício”, ou, ainda, como o “documento em que foram narrados os fatos presenciados pelo tabelião” (CHAVES, REZENDE apud JR, Humberto, 2022)

Da ata notarial, para fins de adjudicação compulsória extrajudicial, deverá constar a identificação do imóvel, com matrícula ou transcrição, os ônus e gravames que incidem sobre o bem, a identificação dos atos e negócios jurídicos que dão fundamento à adjudicação compulsória, incluído o histórico de todas as cessões e sucessões, bem como a relação de todos os que figurem nos respectivos instrumentos contratuais, a prova do pagamento do respectivo preço ou cumprimento da prestação avençada, a caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade, descrevendo as providências que deveriam ser adotadas pelo requerido para a transmissão da propriedade e o valor venal atribuído ao imóvel adjudicando.

A ata notarial conterá a ressalva de que não possui valor de título de propriedade, que objetiva compor o pedido de adjudicação perante o cartório de registro de imóveis, podendo, igualmente, ser aproveitada em processo judicial.

A ata pode, ainda, trazer imagens, documentos, gravações de sons, depoimentos de testemunhas e declarações do requerente, com a ressalva às testemunhas de que configura crime a afirmação falsa.

Para comprovar a quitação do imóvel, poderão ser objeto de constatação os seguintes documentos, sem prejuízo de outros: ação de consignação em pagamento com valores depositados, mensagens, inclusive eletrônicas, em que se declare quitação ou se reconheça que o pagamento foi efetuado, comprovantes de operações bancárias, informações prestadas em declaração de imposto de renda, recibos cuja autoria seja passível de confirmação, averbação ou apresentação do termo de quitação ou notificação extrajudicial destinada à constituição em mora.

Uma importante inovação trazida pelo Provimento 150 diz respeito ao fato de o tabelião poder dar fé às assinaturas, com base nos cadastros nacionais dos notários, se assim for viável à vista do estado da documentação examinada. Ainda, nos termos do artigo 301 do Provimento 149, poderá realizar a identificação, o reconhecimento e a qualificação das partes de forma remota, o que se coaduna com o disposto no artigo 411 do CPC:

Art. 411. Considera-se autêntico o do cumento quando:

I - o tabelião reconhecer a firma do signatário;

3.2. Do oficial de registro de imóveis

Recebido o requerimento inicial com todos os requisitos devidamente cumpridos, caberá ao oficial de registro de imóveis notificar o requerido, que terá 15 dias para anuir na transmissão da propriedade ou impugnar a pretensão.

A notificação segue os parâmetros do Código de Processo Civil, inclusive, em relação à publicação de edital para fins de notificar o requerido.

A anuência poderá ser concedida a qualquer tempo, seguida das providências para a efetiva celebração do negócio translativo de propriedade, sob pena de prosseguimento do processo extrajudicial.

Apresentada a impugnação, o requerente será notificado para manifestar-se em 15 dias, sendo proferida decisão em 10 dias, com ou sem a manifestação do requerente.

Acolhida ou rejeitada a impugnação, as partes poderão manifestar-se em 10 dias. Se não houver insurgência do requerente contra o acolhimento da impugnação, o processo será extinto e cancelada a prenotação. Nesse ponto, com ou sem manifestação sobre o recurso ou havendo manifestação de insurgência do requerente contra o acolhimento, os autos serão encaminhados ao juízo que, de plano ou após instrução sumária, examinará apenas a procedência da impugnação.

Acolhida a impugnação, afastada a que houver sido apresentada, ou anuindo o requerido ao pedido, o oficial de registro de imóveis, em 10 (dez) dias úteis: I – expedirá nota devolutiva para que se supram as exigências que ainda existirem; ou II – deferirá ou rejeitará o pedido, em nota fundamentada, e aguardará 5 dias para o pagamento do imposto de transmissão, que se dará antes da lavratura do registro. Se não houver pagamento do imposto, o processo será extinto.

Ainda, existe a possibilidade de os oficiais de registro de imóveis instalarem a conciliação e mediação durante todo o procedimento e a necessidade de acompanhamento por um advogado.

4. CONCLUSÃO

No atual contexto da sociedade moderna, tem-se buscado meios que permitam dispensar a interferência jurisdicional do Estado na busca de soluções para os dissensos, crescendo, dessa forma, o fenômeno da desjudicialização, caracterizado pelo compartilhamento da competência de processar e julgar determinadas demandas com outras instituições, não integrantes do Judiciário. Contudo, permanece no ordenamento jurídico a ordem constitucional da inafastabilidade do Poder Judiciário, conforme preconiza o artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988.

A partir da promulgação do novo Código de Processo Civil, em 2015, houve a consolidação e incentivo em relação às práticas da conciliação, mediação e arbitragem.

A legislação brasileira evoluiu para pautar na seara extrajudicial outras lides como o inventário, a partilha, a separação e o divórcio consensuais, a usucapião e a recente adjudicação compulsória.

São inovações necessárias e desafiantes para a sociedade e o conjunto de profissionais que atuam na área, como advogados e cartorários. De toda forma, dirimir controvérsias e atuar na pacificação social externamente ao poder judiciário parece ser um caminho que veio para firmar-se em definitivo.

O crescente número de ações judiciais e a complexidade que elas apresentam impõe a retirada de parte dessas lides do âmbito puramente estatal. É um processo que traz ganhos para o cidadão, que poderá ter o cumprimento de seus direitos de forma mais ágil e menos burocrática e dispendiosa, e para o Estado a diminuição de custos, com a possibilidade de haver a prestação jurisdicional de maneira mais satisfatória.

Nesse sentido, seguindo a tendência da desjudicialização, infere-se que outros procedimentos poderão apresentar a opção de resolução na seara administrativa. Cabe mencionar o Projeto de Lei 606/22, em tramitação na Câmara dos Deputados, que propõe estender a possibilidade da realização de inventário e partilha extrajudiciais, por escritura pública, mesmo no caso de existência de testamento, menores ou incapazes, atendidos determinados requisitos, como no caso de o testamento ter sido previamente registrado judicialmente ou haver expressa autorização do juízo competente.

Há, certamente, outras demandas que podem ser abarcados pela via administrativa, a exemplo da busca e apreensão de veículos com cláusula de alienação fiduciária ao credor, pois trata-se de procedimento que guarda até mesmo menos complexidade, em termos de atos processuais, que a usucapião e a adjudicação compulsória e, em linhas gerais, demanda a prova da formalização do negócio jurídico e o inadimplemento, compreendida a notificação ao devedor.

Outro procedimento que poderia ganhar a liberalidade de opção pela via administrativa é a execução de título extrajudicial, inclusive a expropriação de bens, com o estabelecimento de controles pelo Judiciário.

Dentro da lógica da desjudicialização, o advogado é a primeira porta que se abre para o cidadão, considerando que a lei estabelece sua presença nos procedimentos por meio de procuração específica, à exceção da mediação e conciliação. Mostrar as possibilidades à disposição de quem busca a prestação jurisdicional e as vantagens da escolha da via extrajudicial são fatores importantes que devem ser demonstrados para a sociedade, levando-a compreender os trâmites além da ação judicial, as facilidades em termos de menor burocracia, com igual segurança da decisão e da solução judiciais.

Caberá ao profissional advogado a clareza na distinção quanto à rotina processual de ambas as vias, distinguir os meios mais adequados de prova, os critérios para enquadramento do pedido e dispor-se, igualmente, na busca de resultados por meio da conciliação e mediação. A boa atuação do advogado, na qualidade de facilitador, será um diferencial para a adesão crescente dos postulantes até que o caminho extrajudicial seja tão natural quanto a disputa judicial.

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MEMÓRIA, RECONHECIMENTO DE PESSOAS E A RESOLUÇÃO 484 DO CNJ

Palavras-chave

Processo Penal. Reconhecimento. Garantias Constitucionais. Memória

Alex Tincani Pacheco

Advogado, OAB/SP 465.130, especialista em Direito Processual Penal (Damásio), Mestrando em Direito Constitucional (Sistema Constitucional de Garantia de Direitos) pela Instituição Toledo de Ensino (Bauru). E-mail: adv.atpacheco@gmail.com

Resumo

O presente trabalho analisa a importância das formalidades no reconhecimento de pessoas no direito processual penal brasileiro, destacando a transição do sistema inquisitório para o acusatório. Historicamente, as formalidades do Art. 226 do Código de Processo Penal (CPP) foram consideradas recomendações devido ao caráter inquisitório do sistema. Com a Constituição de 1988, que estabeleceu um sistema acusatório, garantias como a presunção de inocência, o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa se tornaram fundamentais, exigindo o rigor no cumprimento das formalidades processuais. A Lei nº 13.964 de 2019 consolidou essa transformação ao introduzir o Art. 3º-A no CPP. No sistema acusatório, busca-se a verdade processual, vinculada às garantias constitucionais e formas legais. Mesmo na fase pré-processual, não são admissíveis elementos que impeçam o contraditório. A jurisprudência recente do STJ exige que as formalidades legais sejam seguidas para a validade do reconhecimento de pessoas, como demonstrado em decisões como HC nº 598.888/STJ. A Resolução nº 484 de 2022 do CNJ estabeleceu diretrizes para o reconhecimento de pessoas em processos criminais, visando minimizar erros judiciários. O artigo conclui que o direito penal brasileiro está se transformando para um modelo acusatório, respeitando as garantias constitucionais e impondo limites ao poder punitivo estatal. A Resolução nº 484/2022 representa um avanço significativo, regulamentando as formalidades no reconhecimento de pessoas para garantir os direitos constitucionais.

INTRODUÇÃO

Durante a maior parte do tempo de vigência do Código de Processo Penal Brasileiro (Decreto-Lei Nº 3.689 de 3 de outubro de 1941) as formalidades do reconhecimento de pessoa, dispostas no Art. 226 do Código de Processo Penal, foram consideradas pela doutrina e pela jurisprudência como mera recomendação, haja vista o caráter inquisitório do referido código.

Contudo, a partir da ordem constitucional iniciada com a Constituição Federal de 1988 passaram a preponderar características de um sistema processual penal acusatório, em que a presunção da inocência, o devido processo penal, o exercício do contraditório e da ampla defesa, são garantias fundamentais do réu contra o arbítrio estatal, de tal sorte que as formalidades processuais não são filigranas jurídicas disponíveis, ou seja, em um processo penal constitucional e democrático a forma é garantia.

Ainda que as codificações penal e processual penal sejam anteriores à ordem constitucional vigente é evidente que foram recepcionadas pela Constituição de 1988, assim, os Códigos Penal e Processual Penal devem ser interpretados à luz da vontade constitucional dada pela redemocratização.

A Lei nº 13.964 de 2019 (Pacote Anticrime) deu fim a quaisquer debates sobre a estrutura do processo penal brasileiro ao introduzir o Art. 3º-A ao Código de Processo Penal, que dispões que o processo penal terá estrutura acusatória. Não há que se falar, portanto, em uma estrutura processual penal mista em que em fase pré-processual predominam características inquisitoriais e na fase processual as acusatórias.

Se em um processo penal inquisitório vige a busca pela verdade real, independente dos meios para sua obtenção, em um processo penal acusatório a verdade que se busca é a processual, ou seja, os atos processuais estão todos conectados às garantias constitucionais e formas legais, o que significa dizer que não há que se falar em meras recomendações, mas deveres processuais.

Mesmo na fase pré-processual, tradicionalmente classificada como inquisitória, não cabem mais elementos puramente inquisitoriais que impeçam o exercício do contraditório, ainda que o contraditório seja mitigado, haja vista a impossibilidade de a defesa acessar todos os elementos de prova, mas apenas os já documentados, conforme inteligência da Súmula Vinculante nº 14 do Supremo Tribunal Federal.

Destarte, os elementos probatórios produzidos no inquérito policial devem seguir os ritos estabelecidos na legislação processual penal, sobretudo quando a natureza da prova que se pretende produzir é de prova irrepetível, caso em que se enquadra, em regra, o reconhecimento de pessoas.

Nesse sentido, desde 2019 o Superior Tribunal de Justiça construiu um novo entendimento jurisprudencial acerca do reconhecimento de pessoas, rotacionando a antiga interpretação em cento e oitenta graus, tal que as formalidades legais, no entendimento da Corte Cidadã, são condições necessárias para a licitude do reconhecimento.

Pretende-se, no presente trabalho, apresentar o novo entendimento posto pelo Superior Tribunal de Justiça, a partir de algumas decisões paradigmáticas, como o HC nº 598.888/ STJ, o HC nº 652.284/STJ e o RHC nº 206.846/STF, as quais modificaram a compreensão acerca do rito do reconhecimento de pessoas o que culminou na edição, pelo Conselho Nacional de Justiça, da Resolução nº 484 de 2022, estabelecendo as diretrizes para a realização do reconhecimento de pessoas em procedimentos e processos criminais e sua avaliação no âmbito do Poder Judiciário.

O presente trabalho tem como objetivo geral a análise das formalidades necessárias ao reconhecimento de pessoas, para isso, far-se-á uma análise dialética entre a doutrina jurídica, os precedentes das cortes superiores e as mais recentes descobertas acerca da memória e suas implicações na Psicologia do Testemunho, por fim, será analisada, sem pretensões de esgotamento, a Resolução nº 484 de 2022 do Conselho Nacional de Justiça.

1. CONSIDERAÇÕES ACERCA DOS SISTEMAS PROCESSUAIS

Com o intuito de introduzir um tema necessário à compreensão das novas diretrizes para o reconhecimento de pessoas, é necessário que sejam traçadas algumas linhas sobre os sistemas processuais penais inquisitório e acusatório.

As origens do sistema inquisitório remontam o direito canônico da Europa Medieval, ganhando tração a partir do século XIII com a instituição do Tribunal da Inquisição, que buscava “reprimir a heresia e tudo o que fosse contrário ou que pudesse criar dúvidas acerca dos Mandamentos da Igreja Católica” (LOPES Jr., 2021, p. 44).

As principais características desse sistema são a combinação da competência acusatória e jurisdicional em uma só entidade, a ausência de publicidade dos atos e a atuação de ofício do juiz-inquisidor. Conforme explica de Lima (2020, p. 42):

No sistema inquisitivo, não existe a obrigatoriedade de que haja uma acusação realizada por órgão público ou pelo ofendido, sendo lícito ao juiz desencadear o processo criminal ex officio. Na mesma linha, o juiz inquisidor é dotado de ampla iniciativa probatória, tendo liberdade para determinar de ofício a colheita de provas, seja no curso das investigações, seja no curso do processo penal, independentemente de sua

proposição pela acusação ou pelo acusado. A gestão das provas estava concentrada, assim, nas mãos do juiz, que, a partir da prova do fato e tomando como parâmetro a lei, podia chegar à conclusão que desejasse.

Trata-se de um sistema de matiz autoritária, uma vez que a iniciativa e gestão probatória são de competência do próprio julgador que concentra em si “funções tão antagônicas como investigar, acusar, defender e julgar” (LOPES JR., 2021, p. 45).

Sintetiza Lopes Jr. (2021, p. 44):

É da essência do sistema inquisitório a aglutinação de funções na mão do juiz e atribuição de poderes instrutórios ao julgador, senhor soberano do processo. Portanto, não há uma estrutura dialética e tampouco contraditória. Não existe imparcialidade, pois uma mesma pessoa (juiz-ator) busca a prova (iniciativa e gestão) e decide a partir da prova que ela mesma produziu.

Nessa perspectiva, mais do que a limitação há o abandono completo do ne procedat iudex ex officio afinal o juiz-ator atua sem prévia provocação, determina quais provas devem ser produzidas e julga conforme aquilo que ele próprio determinou que se produzisse. Além disso, o acusado “é mero objeto do processo, não sendo considerado sujeito de direitos” (LIMA, 2020, p. 42), sendo que a confissão é a prova máxima e a tortura é do acusado é prática comum.

Lopes Jr. (2021, p. 45) sintetiza as principais características do sistema inquisitório, sendo elas: a gestão e a iniciativa probatória nas mãos do juiz (princípio inquisitivo); a ausência de separação entre as funções de acusar e julgar, que são aglutinadas nas mãos do juiz; violação do princípio do ne procedat iudex ex officio afinal o juiz atua de ofício sem provocação prévia; juiz parcial; inexistência de contraditório pleno; desigualdade de armas e oportunidades.

Em igual sentido, explica Lima (2020, p. 43):

Em síntese, podemos afirmar que o sistema inquisitorial é um sistema rigoroso, secreto, que adota ilimitadamente a tortura como meio de atingir o esclarecimento dos fatos e de concretizar a finalidade do processo penal. Nele, não há falar em contraditório, pois as funções de acusar, defender e julgar estão reunidas nas mãos do juiz inquisidor, sendo o acusado considerado mero objeto do processo, e não sujeito de direitos. O magistrado, chamado de inquisidor, era a figura do acusador e do juiz ao mesmo tempo, possuindo amplos poderes de investigação e de produção de provas, seja no curso da fase investigatória, seja durante a instrução processual.

O fim último do processo penal instruído na lógica inquisitória é a busca ilimitada pela condenação, afinal o juiz-ator (ou juiz-inquisidor), que dá início e determina toda a instrução probatória do processo, está intimamente contaminado por suas percepções anteriores, em outras palavras:

Não há nenhum exagero ao se afirmar que o sistema inquisitório busca um determinado resultado (condenação). Basta compreender como funciona sua lógica. Ao atribuir poderes instrutórios a um juiz - em qualquer fase - opera-se o primato dell’ipotesi sui fatti gerador de quadri mentale paranoidi Isso significa que mentalmente (e mesmo inconscientemente) o juiz opera a partir do primado (prevalência) das hipóteses sobre os fatos, porque como ele pode ir atrás da prova (e vai), decide primeiro (definição da hipótese) e depois vai atrás dos fatos (prova) que justificam a decisão (que na verdade já foi tomada). O juiz, nesse cenário, passa a fazer quadros mentais paranoicos. (LOPES JR., 2021, p. 406)

De maneira semelhante compreende Silveira Filho (2018, p. 85)

Em outras palavras, no sistema inquisitório, o protagonismo do juiz permite que ele execute sua tarefa da maneira como bem entender: ao conceber “a” hipótese, sobre ela edifica cabalas indutivas; e aí a ausência do debate contraditório abre uma fenda lógica ao pensamento paranoide; as tramas são destiladas e eclipsam os fatos; o dono do tabuleiro dispõe as peças como melhor lhe convém; cria-se um mundo verbal semelhante ao onírico: tempos, lugares, coisas, pessoas, acontecimentos, flutuam e se movem em quadros manipuláveis. (GRIFOS NOSSOS)

A ilimitação probatória, a busca impossível pela verdade real, a iniciativa ex officio do juiz-ator, a ausência de publicidade dos atos, a posição do acusado como objeto do processo e não como sujeito de direitos, são tergiversações de direitos e garantias fundamentais do réu, pois afastam as necessárias formalidades delimitadoras do poder punitivo estatal, o que torna o sistema inquisitório imiscível em uma ordem constitucional e democrática, sendo típico de ordenamentos jurídicos autoritários, coerentes com um direito penal do inimigo.

Se a natureza do sistema inquisitório é autoritária e ilimitada, a natureza do sistema acusatório é democrática e limitada pelos direitos e garantias fundamentais do réu, ao ponto que se pode inferir que o grau de solidez democrática de um estado é diretamente proporcional ao grau de proteção das garantias fundamentais do acusado em uma ação penal.

Nesse sentido, afirma Lopes Jr. (2022, p 36) que:

Como aponta J. Goldschmidt, os princípios de política processual de uma nação não sou outra coisa senão o segmento da sua política estatal em geral; e o processo penal de uma nação não é outra coisa que um termômetro dos elementos autoritários ou democráticos da sua Constituição. A uma Constituição autoritária vai corresponder um processo penal autoritário, utilitarista. Contudo, a uma Constituição democrática, como a nossa, necessariamente deve corresponder um processo penal democrático, visto como instrumento a serviço da máxima eficácia do sistema de garantias constitucionais do indivíduo.

Assim, o direito penal, em sentido amplo (Penal, Processual e Execução), precisa ser “moderado, sério e igualitário” (BARROSO, 2023, p. 671), sendo que:

Moderado significa que se deve evitar a expansão desmedida do seu alcance, seja pelo excesso de tipificações, seja pela exacerbação desproporcional de penas. Sério significa que sua aplicação deve ser efetiva, de modo a desempenhar o papel dissuasório da criminalidade, que é da sua essência. Igualitário significa que a aplicação da lei não deve distinguir entre pobres e ricos, poderosos e comuns. (BARROSO, 2023, pp. 671-672)

Com efeito, pode-se inferir que o corolário fundante de um direito processual penal democrático é o da efetiva separação das funções de acusar, julgar e defender, sendo imprescindível que o exercício da jurisdição seja sempre provocado e que a iniciativa probatória seja das partes e não do juiz (princípio dispositivo). Em outras palavras, vigora em sua máxima potência o ne procedat iudex ex officio e há efetiva equidistância entre as partes e imparcialidade do juiz, que não é ator, mas espectador do processo.

Trata-se de inferência de maior importância, uma vez que se no momento do crime o sujeito passivo é a vítima, que absorve os efeitos dos atos de outrem, no decorrer do processo penal o sujeito passivo é o acusado, que absorve os impactos do poder punitivo do Estado, o qual, se ilimitado for, tem o condão de esboroar a própria condição humana do indivíduo que está em julgamento.

Destarte, é no sistema acusatório que se encontram os fundamentos democráticos do processo penal, podendo-se caracterizá-lo pela “clara separação entre juiz e partes, que assim deve se manter ao longo de todo o processo” (LOPES JR., 2021, p. 46) isso porque “é a separação de funções e, por decorrência, a gestão da prova na mão das partes e não do juiz (juiz-espectador), que cria as condições de possibilidade para que a imparcialidade se efetive” (LOPES JR., 2021, p. 46).

De Lima (2020, p. 44) explica que:

o juiz não pode ser dotado do poder de determinar de ofício a produção de provas, já que estas devem ser fornecidas pelas partes, prevalecendo o exame direto das testemunhas e do acusado. Portanto, sob o ponto de vista probatório, aspira-se uma posição de passividade do juiz quanto à reconstrução dos fatos. A gestão das provas é, portanto, função das partes, cabendo ao juiz um papel de garante das regras do jogo, salvaguardando direitos e liberdades fundamentais. Diversamente do sistema inquisitorial, o sistema acusatório caracteriza-se por gerar um processo de partes, em que autor e réu constroem através do confronto a solução justa do caso penal.

Assim, conforme ensina Lopes Jr. (2021, p. 45) o sistema acusatório possui as seguintes características: a) a clara distinção entre as atividades de acusar e julgar; b) a iniciativa probatória deve ser das partes (decorrência lógica da distinção entre as atividades); c) mantém-se o juiz como um terceiro imparcial, alheio, a labor de investigação e passivo no que se refere à coleta de prova, tanto de imputação como de descargo; d) tratamento igualitário das partes (igualdade de oportunidades no processo); e) procedimento é em regra oral (ou predominantemente); f) plena publicidade de todo o procedimento (ou de sua maior parte); g) contraditório e possibilidade de resistência (defesa); h) ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a sentença pelo livre convencimento motivado do órgão jurisdicional; i) instituição, atendendo a critérios de segurança jurídica e social da coisa julgada; j) possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição. Assim:

o grande valor do processo acusatório está no seu conteúdo ético, externado do estrito respeito às regras do jogo (forma) e, principalmente, no fato de que condenação ou absolvição são equivalentes axiológicos para o resultado, abandonando o ranço inquisitório de buscar a condenação. (LOPES JR., 2021, p. 409) H á uma tendência doutrinária, no Brasil, em classificar o processo penal brasileiro como misto, que, em apartada síntese, divide o processo em duas fases, uma pré-processual, com características inquisitórias e outra processual, com características acusatórias. No entanto, a interpretação sistemática da Constituição Federal em conjunto com o Código de Processo Penal, é de que o sistema escolhido pelo legislador e que vigora no país é o acusatório. Isso porque o Art. 129, I, da carta constitucional estabelece como competência privativa do Ministério Público a promoção da ação penal de iniciativa pública, tal que “a relação processual somente tem início mediante a provocação de pessoa encarregada de deduzir a pretensão punitiva (ne procedat judex ex officio) (DE LIMA, 2020, p. 44), assim, o juiz deve “abster-se de promover atos

de ofício na fase investigatória e na fase processual” (DE LIMA, 2020, p.44).

Evidente que no Brasil a atribuição probatória é, em regra, da autoridade policial e do Ministério Público, na fase de investigação, e das partes, no curso da investigação penal. Ademais, quaisquer debates sobre a natureza do sistema processual penal brasileiro foram dirimidos com a edição da Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime) que adicionou ao Código de Processo Penal o Art. 3º-A que é expresso ao dispor que:

Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.

Em síntese, a opção legislativa brasileira foi pelo estabelecimento do sistema acusatório, o qual coaduna-se em perfeição com a ordem constitucional vigente, democrática e com um amplo sistema de direitos e garantias fundamentais, em especial a garantia do juiz natural (Art. 5º, XXXVII da CF), a garantia ao contraditório e à ampla defesa (Art. 5º, LV da CF), a inadmissibilidade de provas ilícitas (Art. 5º, LVII da CF) e a presunção de inocência (Art. 5º, LVII da CF).

Conforme Streck e Oliveira (2019, p. 56):

(...) é possível afirmar que o sistema acusatório é o modo pelo qual a aplicação igualitária do Direito Penal penetra no Direito Processual-penal. É a porta de entrada da democracia. É o modo pelo qual se garante que não existe um “dono da prova”; é o modo pelo qual se tem a garantia de que o Estado cuida de modo igualitário da aplicação da lei; enfim, é o locus onde o poder persecutório do Estado é exercido de um modo, democraticamente, limitado e equalizado.

Em conclusão, sendo o sistema acusatório com garantias constitucionalmente postas, as quais são indisponíveis e destinadas à limitação do poder punitivo do Estado, se impõe o estrito respeito às formalidades legalmente postas, justificando o dever de observação, pelas autoridades competentes, da forma prescrita para o reconhecimento de pessoas, tal que o reconhecimento procedido em desconformidade com o dispositivo legal é necessariamente ilícito e imprestável ao processo.

2. MEMÓRIA E RECONHECIMENTO DE PESSOAS

O reconhecimento de pessoas e coisas está disciplinado no Título VII, Capítulo VII do Código de Processo Penal, e “pode ocorrer tanto na fase pré-processual como também na processual” (LOPES JR., 2021, p. 546). Da Rosa (2021, p. 503) assim o define: “O reconhecimento de Pessoas e Coisas é o procedimento formal pelo qual se afere a equivalência entre a memória da fonte humana e os bens e/ou agentes

investigados pela prática da conduta”. Segundo o doutrinador:

O objetivo do reconhecimento de pessoas é o de verificar o grau de “coincidência entre a memória da fonte humana que reconhece e o agente suspeito, operando-se por meio de fotografias e pessoalmente. O reconhecimento por fotografia não é descrito no CPP, consolidando-se como “prática investigatória” preliminar. O reconhecimento, para fins legais, pressupões a “imediação”, acrescida da fiel observação das cautelas legais; (DA ROSA, 2021, p. 503)

De partida importa que, conforme explicitado no excerto anterior, o reconhecimento por fotografia é prática preparatória e é inservível como prova em ação penal, mesmo que confirmado em juízo, conforme já decidido pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no Habeas Corpus nº 598.886/SC. Aponta Lopes Jr. (2021, p. 549) que:

Exemplo típico de prova inadmissível é o reconhecimento do imputado por fotografia, utilizado, em muitos casos, quando o réu se recusa a participar do reconhecimento fotográfico pessoal, exercendo seu direito de silêncio ( nemo tenetur se detegere). O reconhecimento fotográfico somente pode ser utilizado como ato preparatório do reconhecimento pessoal, nos termos do art. 226, inciso I, do CPP, nunca como um substitutivo àquele ou como uma prova inominada.

O ato de reconhecer é sempre uma reconstrução mental do passado, reconhecer é rememorar e toda rememoração é uma criação mental imperfeita, pois a memória é “a multifaceted cognitive process that involves diferente stages: encoding, consolidation, recovery and reconsolidation ” 1 (SRIDHAR et al, 2023), ou seja, a memória dinâmica, se modifica no tempo, não é uma representação perfeita dos fatos ocorridos, sua construção está submetida às sensações, preconceitos e percepções internas daquele que presencia o evento. Conforme explica Witmer (2023):

We tend to think that having a memory is somewhat like wathcing a movie in our head and being able to see events play out, but actually we remember some things while our mind fills in the gaps to create a narrative that makes sense. When we remember something, we often see in our mind’s eye what we expect see rather than what really happened, with our mind filling in things that are missing – as your mind probaly filled in the missing word “to” in this sentence, changing “what we expect see” to “what we expect to see” 2

1 Em tradução livre: A memória é um processo cognitivo multifacetado que envolve diferentes estágios: codificação, consolidação, recuperação e reconsolidação.

2 Em tradução livre: Tendemos a pensar que rememorar é um pouco

A Psicologia do Testemunho, campo de estudo que se consolidou nas últimas décadas, visa “à compreensão da memória humana e dos vícios de técnicas de recuperação de lembranças utilizadas por sistemas de investigação” (INNOCENCE PROJECT BRASIL, 2020, p. 3). Segundo o relatório Prova de Reconhecimento e Erro Judiciário da organização Innocence Project Brasil (2020, p. 3):

A Psicologia do Testemunho desenvolveu duas noções-chave para uma compreensão analítica do reconhecimento: variáveis de sistema e variáveis estimáveis Esses dois tipos de variáveis auxiliam na identificação de reconhecimentos equivocados a partir da observação de elementos que tipicamente conduzem ao erro quando uma pessoa é instada a reconhecer alguém que pode ou não ter praticado um crime.

Variáveis de sistema são passíveis de controle pelos agentes encarregados da persecução penal em casos reais, como a estrutura de um interrogatório, por exemplo. Por sua vez, variáveis estimáveis são circunstâncias que não podem ser controladas, como características pessoais da testemunha, iluminação do local do crime.

Algumas variáveis estimáveis importantes para a identificação dos equívocos são o ambiente e tempo que o crime ocorreu 3 , a diferença de raça4 entre as pessoas e emprego de arma ou violência 5 São variáveis determinantes na formação da memória do indivíduo que presencia os fatos, afinal se relacionam diretamente com as percepções sensoriais, os juízos e preconceitos internos da vítima ou testemunha.

De maior importância é o efeito do estresse pois “ao contrário do que sugere o senso comum acerca das experiências traumáticas, as pessoas possuem maior capacidade de como assistir a um filme em nossa cabeça e ser capaz de ver os eventos se desenrolarem, mas na verdade lembramos de algumas coisas enquanto nossa mente preenche as lacunas para criar uma narrativa que faça sentido. Quando lembramos de algo, muitas vezes vemos em nossa mente o que esperamos ver em vez do que realmente aconteceu, com nossa mente preenchendo o que está faltando – como sua mente provavelmente preencheu a palavra "to" que estava faltando nesta frase, mudando "what we expect see" para "what we expect to see".

3 O tempo de duração do eventual evento criminoso é mais um fator que impacta a capacidade de realizar um reconhecimento. Um roubo pode levar apenas alguns segundos, enquanto um sequestro pode implicar o contato entre a vítima e o autor por diversos dias. (INNOCENCE PROJECT BRASIL, 2020, p. 4)

4 Pesquisas mostram que as pessoas possuem mais dificuldade em identificar indivíduos de outra raça, pois, via de regra, estão mais habituadas a identificar os detalhes fisionômicos dos seus semelhantes.

(INNOCENCE PROJECT BRASIL, 2020, p. 4)

5 O fator “foco na arma: vítimas de crimes praticados com armas de qualquer tipo tendem a focar no objeto que as ameaça, o que prejudica o registro de outros elementos da dinâmica criminosa, até mesmo do rosto do autor. (INNOCENCE PROJECT BRASIL, 2020, p. 4).

lembrar detalhes de um evento não-violento do que de um evento violento” (INNOCENCE PROJECT BRASIL, 2020, p.4). A vítima de um crime, seja ele cometido com violência ou grave ameaça ou não, está sempre em posição passiva e sujeita aos mais diversos tipos de estresses, físicos, morais e psíquicos, que prejudicam a compreensão do evento.

A formação da memória é uma atividade neurológica complexa, multifacetada e não linear, não é um fenômeno unitário, há evidências que de que pode ser subdividida em uma série de processos distintos e interrelacionados (SRIDHAR et al, 2023), uma eventual falha em qualquer um destes processos biológicos, os quais envolvem o contexto e as percepções sensoriais visuais, olfativas, auditivas etc, podem ocasionar fenômenos conhecidos como falsas memórias, como por exemplo o Efeito Mandela 6 , que ocorre quando um grupo de pessoas afirma recordar de eventos históricos ou pessoais que nunca aconteceram (ESKE, 2024).

Uma falsa memória produzida na mente da vítima e por ela externalizada tem o condão de induzir a vítima ou testemunha a erro. As falsas memórias “se diferenciam da mentira, essencialmente, porque, nas primeiras, o agente crê honestamente no que está relatando” (LOPES JR., 2021), ou seja, a percepção do indivíduo sobre a realidade é aquela, não há uma intenção deliberada de criar uma narrativa falsa.

A memória e toda prova que dela dependa deve ser menos valorada, ainda mais se considerado o transcurso do tempo entre os fatos e a produção probatória e os efeitos do estresse sobre a vítima e as testemunhas. Nesse sentido o Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Rogério Schietti Cruz, ao relatar o Habeas Corpus nº 598.886/SC, concluiu, ao tratar do reconhecimento de pessoas e a memória humana, que:

O valor probatório do reconhecimento, portanto, deve ser visto com muito cuidado, justamente em razão da sua alta suscetibilidade de falhas e distorções. Justamente por possuir, quase sempre, um alto grau de subjetividade e de falibilidade é que esse meio de prova deve ser visto com reserva. (STJ - HC: 598886 SC 2020/0179682-3, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 27/10/2020, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 18/12/2020)

6 A escritora e pesquisadora Fiona Broome cunhou o termo há mais de uma década, quando criou um site detalhando suas lembranças da morte do ex-presidente sul-africano Nelson Mandela na prisão na década de 1980. Nelson Mandela não morreu na prisão na década de 1980. Depois de cumprir 27 anos de prisão, Mandela tornou-se presidente da África do Sul entre 1994 e 1999. Ele morreu em 2013. Apesar disso, Broome lembrou-se da cobertura noticiosa internacional da morte de Mandela na década de 1980. Ela encontrou outras pessoas que compartilhavam essas falsas memórias. (ESKE, 2024)

As variáveis estimáveis possuem alta carga de subjetividade e não são controláveis pelas agentes da persecução, mas seus impactos devem ser sempre analisados para a melhor tomada de decisão. Por outro lado, as variáveis de sistema estão intimamente ligadas ao sistema processual penal e são controláveis pelos seus agentes.

3. VARIÁVEIS DE SISTEMA E IRREPETIBILIDADE DO

RECONHECIMENTO

Se as variáveis estimáveis devem ser valoradas para a cognição e tomada de decisões pela autoridade policial, ministério público, defesa e jurisdição, as variáveis de sistema devem ser controladas, e submetem-se à ordem jurídico-constitucional vigente, com a observação das formalidades constitucionais e infraconstitucionais. Nesse sentido, concluiu o Ministro Rogério Schietti que “O reconhecimento de pessoas deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime” (STJ - HC: 598886 SC 2020/0179682-3, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 27/10/2020, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 18/12/2020).

O respeito aos direitos e garantias fundamentais é “elemento fundamental daquilo que podemos nomear de conceito normativo de democracia” (STRECK; DE OLIVEIRA, 2019, p. 14), e é aí que se enquadra o controle das variáveis de sistema, através do estabelecimento de “protocolos desenvolvidos para os diferentes momentos da persecução penal, desde a delegacia até os tribunais” (INNOCENCE PROJECT BRASIL, 2020, p. 4).

Os objetivos dos protocolos são a diminuição de efeitos negativos das variáveis estimáveis, a otimização das variáveis de sistemas, adequando-as às variáveis estimáveis caso a caso e a avaliação da confiabilidade do reconhecimento, permitindo que a prova seja corretamente valorada ante a outros elementos de prova (INNOCENCE PROJECT BRASIL, 2020, p. 4).

Não são raros os erros no procedimento do reconhecimento que culminam em condenações equivocadas, como é o caso de Carlos Edmilson da Silva que foi preso em 10 de março de 2012, após ser reconhecido por foto e após presencialmente por vítimas de estupros, foi condenado a 137 anos, 9 meses e 28 dias de reclusão. No entanto, 12 anos depois a condenação foi anulada, uma vez que exames de DNA comprovaram que ele não era o autor dos crimes. (Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/05/16/ apos-12-anos-preso-injustamente-homem-condenado-por-10-estupros-e-inocentado-por-exame-de-dna-e-solto.ghtmlm acesso em 12/07/2024).

Note-se que nesse caso e em outros tantos há um elemento em comum: a autoridade policial apresentou às vítimas fotografias antes do reconhecimento pessoal presencial ser procedido. Lopes Jr. (2021, p. 553) disserta sobre a questão:

Muitas vezes, antes da realização do reconhecimento pessoal, a vítima/testemunha é convidada pela autoridade policial a examinar “álbuns de fotografia”, buscando já uma pré-identificação do autor do fato. O maior inconveniente está no efeito indutor disso, ou seja, estabelece-se uma “percepção precedente”, ou seja, um pré-juízo que acaba por contaminar o futuro reconhecimento pessoal. Não há dúvida de que o reconhecimento por fotografia (ou mesmo quando a mídia noticia os famosos “retratos falados” do suspeito) contamina e compromete a memória, de modo que essa ocorrência passada acaba por comprometer o futuro (o reconhecimento pessoal), havendo uma indução em erro. Existe a formação de uma imagem mental da fotografia, que culmina por comprometer o futuro reconhecimento pessoal. Trata-se de uma experiência visual comprometedora.

Portanto, é censurável e deve ser evitado o reconhecimento por fotografia (ainda que seja mero ato preparatório do reconhecimento pessoal), dada a contaminação que pode gerar, poluindo e deturpando a memória. Ademais, o reconhecimento pessoal também deve ter seu valor probatório mitigado, pois evidente sua falta de credibilidade e fragilidade.

O reconhecimento de pessoa é um tipo de prova irrepetível, portanto imprescindível que as formalidades para a sua produção sejam estritamente observadas. A organização Innocence Project Brasil (2020, p. 12) estabeleceu que “Na contramão do que presume o senso comum, a ciência aponta que a repetição de procedimentos de identificação não é capaz de conferir maior grau de confiabilidade a um reconhecimento” e que:

Uma pesquisa conduzida pelo professor Brandon Garrett, nos Estados Unidos, apontou que, em uma amostra de 161 condenações de inocentes revertidas por exame de DNA, a maioria contou com mais de um procedimento de identificação. Em 57% desses casos a testemunha admitiu em juízo que, inicialmente, não teve certeza quanto a autoria e que passou a reconhecer o acusado apenas depois do primeiro reconhecimento.

Por serem confirmados em juízo, o judiciário acreditava que esses reconhecimentos embasavam uma condenação segura. No entanto, os exames de DNA realizados posteriormente comprovaram que o

condenado não era o autor do crime, a despeito dos múltiplos reconhecimentos.

A pesquisa de Garrett indica que não há correlação entre a confiabilidade de um reconhecimento e o número de vezes que o procedimento foi realizado. Há, contudo, uma correlação entre o número de vezes que alguém é instado a identificar uma mesma pessoa e a produção de uma resposta positiva. Ou seja, quanto mais vezes uma testemunha é solicitada a reconhecer uma mesma pessoa, mais provável passa a ser que ela desenvolva uma falsa memória a seu respeito.

É por isso que as psicólogas Nancy K. Steblay e Jennifer E. Dysart recomendam que (1) sejam evitados procedimentos de identificação usando o mesmo suspeito; (2) que identificações produzidas por procedimentos repetidos não sejam consideradas confiáveis. (INNOCENCE PROJECT BRASIL, pp. 12-13)

O decano do Supremo Tribunal Federal, no Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 206.846/SP sustentou o mesmo entendimento:

Ademais, destaca-se que a repetição do ato de reconhecimento por diversas vezes não é uma garantia de maior precisão e confiabilidade, especialmente se a primeira vez foi realizada de um modo a eventualmente induzir uma falsa memória. Ou seja, simplesmente repetirem juízo um reconhecimento realizado na fase policial em total desrespeito à forma não garante a precisão da prova produzida. (STF - RHC: 206846 SP 0218471-28.2020.3.00.0000, Relator: GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 22/02/2022, Segunda Turma, Data de Publicação: 25/05/2022)

Também argumentou que “a repetição em juízo do ato anteriormente produzido em desconformidade legal não garante a sua confiabilidade, de modo que igualmente não se presta a fundamentar a condenação” (STF-RHC: 206846 SP). Não por acaso a Resolução nº 484 de 2022 do Conselho Nacional de Justiça dispôs em seu Art. 2º, §1º que:

§1º O reconhecimento de pessoas, por sua natureza, consiste em prova irrepetível, realizada uma única vez, consideradas as necessidades da investigação e da instrução processual, bem como os direitos à ampla defesa e ao contraditório.

Portanto, em razão da natureza irrepetível, o reconhecimento procedido sem a escorreita observância do procedimento legal não poderá ser refeito, deverá ser reconhecida sua ilicitude e ordenado o desentranhamento do processo.

4.

COMENTÁRIOS À RESOLUÇÃO CNJ Nº 484 DE 2022

Em 19 de dezembro de 2022 foi publicada pelo Conselho Nacional de Justiça a Resolução nº 484 que “Estabelece diretrizes para a realização do reconhecimento de pessoas em procedimentos e processos criminais e sua avaliação no âmbito do Poder Judiciário”, evidente que se trata de regulamentação a ser respeitada tanto na fase de investigatória quanto na fase processual, sendo indispensável seja para o reconhecimento realizado em sede policial, seja para o realizado em instrução processual, isso porque, dada a natureza irrepetível da prova em regra o procedimento é realizado ainda em fase pré-processual.

Questão tormentosa, que não faz parte do escopo do presente artigo, é a baixa observância, pela magistratura de primeiro grau e pelos Tribunais de Justiça, dos procedimentos indicados, aos precedentes e à jurisprudência das cortes superiores, o que tende a pressionar o sistema de justiça com recursos e revisões criminais evitáveis, aumentando de maneira indevida a morosidade processual.

Importante questão anterior à realização do reconhecimento é se o investigado ou réu são obrigados a participar do procedimento. Por evidente que não, haja vista o direito de não autoincriminação. explica Lopes Jr. (2021, p. 547) que: (...) o réu ou investigado não é obrigado a participar do reconhecimento pessoal, podendo se recusar. Trata-se de exercício do direito de defesa negativo, ou seja, de não autoincriminação. Corrobora esse entendimento a declaração de inconstitucionalidade da condução coercitiva feita nas ADPF 395 e 444, em que decidiu o STF que a condução coercitiva de investigados e réus para serem interrogados é inconstitucional, na esteira do voto do relator Min. Gilmar Mendes.

Tal conclusão é reforçada pela inteligência do Art. 7º, I da Resolução nº 484 cujo texto dispõe:

Art. 7º Imediatamente antes de iniciar o procedimento de reconhecimento, a vítima ou a testemunha será alertada de que:

– a pessoa investigada ou processada pode ou não estar entre aquelas que lhes serão apresentadas;

Se a pessoa investigada ou ré pode ou não estar entre as apresentadas, evidente que pode se negar a participar do reconhecimento, portanto, deve ser comunicada, de maneira prévia, pela autoridade que presidir o ato de que tem o direito de não participar.

O Art. 2º, §2º, da resolução reforça a garantia ao investigado ou réu do direito ao contraditório e a ampla defesa ao dispor que: “§2º A pessoa cujo reconhecimento se pretender tem direito a constituir defensor para acompanhar o

procedimento de reconhecimento pessoal ou fotográfico, nos termos da legislação vigente”, mais uma vez a comunicação do direito pela autoridade que presidir o ato é indispensável.

Sem pretensões de realização de análise extensiva e completa da resolução, alguns apontamentos serão tecidos adiante.

O Art. 3º atribui competência às autoridades judiciais para admissão e valoração do reconhecimento, o qual deverá ser procedido “à luz das diretrizes e procedimentos descritos em lei e nesta Resolução”, note-se, portanto, que a resolução obriga a observância do procedimento, a qual, conforme Parágrafo único do referido artigo:

Art. 3º, Parágrafo único. A observância das diretrizes e dos procedimentos estabelecidos nesta Resolução e no Código de Processo Penal será considerada pelos magistrados para avaliação da prova.

Significa dizer que o magistrado, ao reconhecer que as diretrizes e procedimentos não foram observados, deverá declarar a ilicitude do reconhecimento, sua inadmissibilidade e desentranhamento dos autos do processo, conforme Art. 157 do Código de Processo Penal, por evidente que as provas derivadas do reconhecimento ilícito também devem ser inadmitidas e desentranhadas do processo, conforme §1º do referido artigo.

A depender do momento processual, se o único indício ou prova presentes for o reconhecimento, ou se todas os demais indícios ou provas derivarem diretamente do reconhecimento ilícito, ou o juiz rejeitará a denúncia, com fulcro no Art. 395, II e III, do Código de Processo Penal ou absolverá o réu com fundamento no Art. 386, V e VII, do Código de Processo Penal.

Reforça o argumento anterior o dispositivo do Art. 11, caput e Parágrafo único da Resolução nº 484, que possuem o seguinte teor:

Art. 11. Ao apreciar o reconhecimento de pessoas efetuado na investigação criminal, e considerando o disposto no art. 2º, § 1º, desta Resolução, a autoridade judicial avaliará a higidez do ato, para constatar se houve a adoção de todas as cautelas necessárias, incluídas a não apresentação da pessoa ou fotografia de forma isolada ou sugestiva, a ausência de informações prévias, insinuações ou reforço das respostas apresentadas, considerando o disposto no art. 157 do Código de Processo Penal.

Parágrafo único. A autoridade judicial, no desempenho de suas atribuições, atentará para a precariedade do caráter probatório do reconhecimento de pessoas, que será avaliado em conjunto com os demais elementos do acervo probatório, tendo em vista a falibilidade da memória humana.

O caput do Art. 11 é expresso ao dispor que a autoridade judiciária ao apreciar o reconhecimento efetuado deverá considerará que se trata de prova irrepetível (Art. 2º, §1º da resolução), e que declarará a sua ilicitude (Art. 157 do Código de Processo Penal) quando produzido sem as devidas cautelas e formalidades. O Parágrafo único reconhece que o reconhecimento é prova frágil, tal que deve ser valorado em conjunto com as demais provas do processo, sendo que as provas mais conclusivas devem ser mais valoradas do que o reconhecimento, ou seja, se houver uma prova mais potente, um exame de DNA por exemplo, que dê conta de demonstrar que o autor é outra pessoa, o reconhecimento terá menor valor, ou nenhum valor a depender das outras provas, e será insuficiente para uma condenação.

Os artigos 4º, 5º, 6º, 7º e 8º da Resolução nº 484 devem ser analisados em conjunto com o Art. 2267 do Código de Processo Penal. Não é objeto deste trabalho a análise extensiva e pormenorizada de cada um dos artigos, mas a apresentação de um panorama dos pontos mais importantes ou controversos da resolução.

A ressalva do Art. 5º, §2º é determinante para a realização do reconhecimento, uma vez que a inclusão da pessoa investigada ou processada no procedimento estará atrelada à existência de outros indícios de sua participação no delito.

As etapas do reconhecimento de pessoas estão no Art. 5º da resolução, que possui a seguinte redação:

Art. 5º O reconhecimento de pessoas é composto pelas seguintes etapas:

– entrevista prévia com a vítima ou testemunha para a descrição da pessoa investigada ou processada;

II – fornecimento de instruções à vítima ou testemunha sobre a natureza do procedimento;

7 Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:

I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;

II - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;

III - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;

IV - do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.

Parágrafo único. O disposto no no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.

III – alinhamento de pessoas ou fotografias padronizadas a serem apresentadas à vítima ou testemunha para fins de reconhecimento;

IV – o registro da resposta da vítima ou testemunha em relação ao reconhecimento ou não da pessoa investigada ou processada; e

V – o registro do grau de convencimento da vítima ou testemunha, em suas próprias palavras.

De partida salienta-se que, conforme Art. 4º, Parágrafo único, da resolução, se houver impossibilidade de realização do reconhecimento conforme os parâmetros indicados, outros meios de prova para identificação do autor do delito devem ser priorizados.

As formalidades da entrevista prévia (Art. 5º, I da resolução) estão inscritas no Art. 6º da resolução. Em apertada síntese deverá ser solicitado à vítima ou testemunha que descreva a pessoa que se pretende reconhecer bem como a dinâmica e condições em que os fatos ocorreram, o relato será livre, as perguntas devem ser abertas e não são admissíveis questões que induzam ou sugiram respostas.

De maior importância é a determinação do Art. 6º, IV8 em conjunto com o §2º 9 do mesmo artigo, isso porque se tiver ocorrido apresentação anterior de alguma pessoa ou fotografia, acesso ou visualização prévia de imagem de quem se pretende reconhecer, ou ocorrência de conversa com agente policial, vítima ou testemunha sobre as características da pessoa a ser reconhecida, o reconhecimento não será realizado. De igual maneira, não será realizado o reconhecimento se a descrição apresentada pela vítima ou testemunha não coincidir com as características do investigado ou processado.

As instruções do Art. 5º, II estão discriminadas no Art. 7º da resolução e consistem em alertar à vítima ou testemunha de que a pessoa a ser reconhecida pode não estar entre as que serão apresentadas (Art. 7º, I), que poderá reconhecer uma ou nenhum das pessoas (Art. 7º, II), que os fatos serão apurados independente do resultado do reconhecimento (Art. 7º, III) e que ao final deverá indicar, com suas próprias palavras, o grau de confiança na resposta dada (Art. 7º, IV).

O Art. 7º, IV, deve ser lido em conjunto com o parágrafo único do Art. 9º:

8 Art. 6º A entrevista prévia será composta pelas seguintes etapas: (...) IV – indagação referente à apresentação anterior de alguma pessoa ou fotografia, acesso ou visualização prévia de imagem das pessoas investigadas ou processadas pelo crime ou, ainda, ocorrência de conversa com agente policial, vítima ou testemunha sobre as características da(s) pessoa(s) investigada(s) ou processada(s). 9 § 2º Nas hipóteses do inciso IV deste artigo ou naquelas em que a descrição apresentada pela vítima ou testemunha não coincidir com as características das pessoas investigadas ou processadas, o reconhecimento não será realizado.

Art. 9º. Parágrafo único. Após a resposta da vítima ou testemunha, será solicitado que ela indique, com suas próprias palavras, o grau de confiança em sua resposta, de modo que não seja transmitida à vítima ou à testemunha qualquer tipo de informação acerca de sua resposta coincidir ou não com a expectativa da autoridade condutora do reconhecimento.

Trata-se de questão tormentosa, uma vez que presentes vieses cognitivos como o de confirmação e a dissonância cognitiva, que, em síntese, geram na pessoa um grau maior de confiança sobre a exatidão da resposta ou crença, ou seja, por se tratar de uma autoavaliação da vítima ou testemunha sobre as respostas dadas, tendo em vista a tendência humana de supervalorizar suas habilidades e opiniões, essa resposta deverá ser analisada com a cautela pelas autoridades, tendo-se sempre em mente todo o conjunto indiciário e probatório disponível (Art. 11 da Resolução).

Dispõe o Art. 4º, caput da resolução que:

Art. 4º O reconhecimento será realizado preferencialmente pelo alinhamento presencial de pessoas e, em caso de impossibilidade devidamente justificada, pela apresentação de fotografias, observadas, em qualquer caso, as diretrizes da presente Resolução e do Código de Processo Penal.

O dispositivo deve ser compreendido em conjunto com o Art. 8º e com o Art. 226, II do Código de Processo Penal. Em apertada síntese, o alinhamento das pessoas ou fotografias deve garantir que “nenhuma se destaque das demais” (Art. 8º, caput) e poderá ser simultâneo, com todas as pessoas apresentadas em conjunto, ou sequencial, com a exibição uma a uma das pessoas, em iguais condição de espaço e períodos (Art. 8º, I). A pessoa a ser reconhecida deve ser apresentada com pelo menos outras 4 (quatro) pessoas não relacionadas com o fato investigado e que atendam as características da pessoa investigada ou processada (Art. 8º, II), sendo assegurado que as características físicas, o sexo, a raça/cor, a aparência, as vestimentas, a exposição ou condução da pessoa investigada ou processada não sejam capazes de diferenciá-la em relação às demais (Art. 8º, §3º).

Para redução de danos é de fundamental importância que as pessoas alinhadas possuam características semelhantes às características previamente informadas pela vítima ou testemunha, trata-se de reconhecimento lineup que consiste na “formação de uma linha em que são colocadas lado a lado pessoas com fisionomias similares entre si, selecionadas de acordo com as características fornecidas pela testemunha em sua primeira narração dos fatos” (INNOCENCE PROJECT BRASIL, 2020, p. 8).

Importa salientar que é dada preferência ao reconhecimento pessoal, sendo o reconhecimento fotográfico subsidiário, e sua utilização deve ser devidamente justificada, feita a

ressalva de que o reconhecimento fotográfico não é elemento de prova, mas preparatório, conforme já demonstrado. Nesse sentido, explica Rosa (2021, p. 508):

O reconhecimento prévio por fotografia induz o posterior reconhecimento pessoal, através do “efeito perseverança” já apontado pela teoria da dissonância cognitiva, potencialmente contaminando o resultado, ao mesmo tempo em que reduz a incidência de erros, desde que seja bem conduzido. Situação similar ocorre quando há prévia divulgação, pela mídia, de fotos do suspeito. São fatores ‘poluidores’ capazes de gerar falsos reconhecimentos. Por isso, a importância de cuidados metodológicos capazes de mitigar os possíveis erros;

O Art. 8º, §1º determina que a autoridade deve zelar pela higidez do procedimento e evitar a apresentação isolada de pessoa (showup), de sua fotografia ou imagem, o que é uma importante inovação em direção às garantias fundamentais do investigado ou réu, isso porque o modelo showup de reconhecimento tem caráter sugestivo o que leva a reconhecimentos equivocados. Conforme o Innocence Project Brasil (2020, p. 7-8):

A pesquisa concluiu que, tanto na fase pré-investigativa (atuação da polícia assim que um crime é comunicado) quanto na investigativa, a prática de reconhecimento mais comum no Brasil é o showup ou exibição unipessoal, que consiste na apresentação de um único suspeito para ser reconhecido pela vítima ou testemunha. Essa prática, no entanto, é criticada por todos os especialistas, por seu enorme e comprovado potencial de produzir reconhecimentos equivocados.

Os reconhecimentos realizados por fotografia somam cerca de 30% das respostas dos entrevistados, informação preocupante já que esse tipo de método é altamente indutor de equívocos no reconhecimento. O cenário é ainda pior quando o showup é empregado de forma atécnica (com a apresentação de fotos arranjadas de maneira assistemática, algumas de suspeitos algemados, como ocorre na exibição de álbuns de suspeitos em delegacias) ou, pior ainda, com a exibição somente da foto do suspeito (showup fotográfico).

O dispositivo deve ser interpretado de maneira a vedar o showup o que é reforçado pelo Art. 8º, §2º da resolução, in verbis

Art. 8º. §2º A fim de assegurar a legalidade do procedimento, a autoridade zelará para a não ocorrência de apresentação sugestiva, entendida esta como um conjunto de fotografias ou imagens que se refiram somente a pessoas investigadas ou processadas, integrantes de álbuns de suspeitos, extraídas de redes sociais ou qualquer outro meio.

O Art. 5º, §1º, determina que para a aferição da legalidade e garantia do direito de defesa, o procedimento será integralmente gravado, desde a entrevista prévia até a declaração do grau de convencimento. Evidente que a gravação do procedimento dá maior segurança jurídica tanto para a pessoa investigada ou processada, mas também para as autoridades que realizarem o ato.

Por fim, determina o Art. 10 que:

Art. 10. O ato de reconhecimento será reduzido a termo, de forma pormenorizada e com informações sobre a fonte das fotografias e imagens, para juntada aos autos do processo, em conjunto com a respectiva gravação audiovisual.

Em conjunto com o citado Art. 5º, §1º, é instrumento de garantia de segurança jurídica ao processo, ao investigado ou processado e às autoridades que realizarem o ato, no entanto, a resolução não dispõe sobre a degravação das filmagens, o que pode implicar em consequências importantes, principalmente o perdimento, extravio, ou corrompimento do arquivo de gravação, o que pode prejudicar a instrução criminal.

O Conselho Nacional de Justiça, ao editar e publicar a Resolução nº 484 introduziu, de maneira acertada, ao ordenamento jurídico, um patamar mínimo de qualidade probatória para a produção do reconhecimento pessoal, em vias de reduzir os erros judiciários e as condenações equivocadas que aumentam a injustiça e seletividade sistêmica.

CONCLUSÃO

O direito penal brasileiro, considerado em seu sentido amplo, possui bases autoritárias, em que predominou, na maior parte da história do Estado brasileiro um sistema processual penal inquisitório, voltado à condenação a qualquer custo, independente dos meios utilizados. O juiz-ator, que age de ofício e sem prévia provocação, foi a regra dos tribunais brasileiros.

Com a introdução da ordem constitucional de 1988 o sistema processual penal passa a se transmutar, ainda que de maneira vagarosa, para um sistema acusatório, cujo fundamento é o respeito às garantias constitucionais do indivíduo investigado ou processado pelo cometimento de um crime, de modo que são impostos limites ao poder punitivo estatal, e a verdade real, buscada a qualquer custo, é substituída pela verdade processual, em que somente são admissíveis as provas cuja produção respeitou as formalidades específicas e necessárias ao ato.

Por décadas o procedimento para o reconhecimento de pessoas foi considerado mera recomendação, de tal sorte q ue são inumeráveis as condenações advindas de

reconhecimentos informais, com induzimento da percepção da vítima ou testemunha a erro.

Demonstrou-se, no presente trabalho, que a memória humana é imperfeita, e que fenômenos como as falsas memórias não são incomuns, daí que cabe às autoridades minimizarem, através da adoção de protocolos sólidos e respeito às formalidades legais, os reconhecimentos falhos.

Ademais, demonstrou-se que o reconhecimento é tipo de prova precária, sendo necessário que seja avaliada com cautela e que a cognição do julgador seja formulada sopesando o reconhecimento com as outras provas que instruírem eventual ação criminal, dando-se menor valor ao reconhecimento, de modo que uma condenação não seja alicerçada tão somente, ou principalmente, no reconhecimento pessoal, sobretudo nos casos em que há apenas o reconhecimento pela vítima ou por uma única testemunha, afinal quanto menor o número de indivíduos que reconhecem, maiores as chances de erro de reconhecimento.

Nos últimos anos, principalmente a partir da edição do Pacote Anticrime, observou-se uma acertada modificação jurisprudencial quanto ao procedimento para o reconhecimento de pessoas, principalmente no Superior Tribunal de Justiça, sendo pacífico o entendimento de que o respeito às formalidades legais é um dever, ou seja, não há mais que se falar em mera recomendação.

Por fim, a edição, pelo Conselho Nacional de Justiça, da Resolução nº 484 de 2022, estabelecendo as diretrizes para a realização do reconhecimento de pessoas, normatizou e regulamentou as formalidades necessárias, a fim de que os erros judiciários sejam mitigados.

Por se tratar de norma recente, ainda não há dados suficientes para que sejam mensurados os impactos gerais nos processos penais em andamento, contudo inciativas como a Innocence Project Brasil tem logrado sucesso em reverter condenações embasadas em reconhecimentos falhos.

Em que pesem as imperfeições da resolução, há de se considerar que se trata de um grande avanço do sistema processual penal brasileiro rumo à implementação totalizante do princípio acusatório seja na fase processual, seja na pré-processual, dando-se potência ao sistema constitucional de direitos e garantias, afinal o processo penal deve ser compreendido à luz da Constituição Federal e não o contrário.

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EXECUÇÕES FISCAIS DE BAIXO VALOR: REFLEXÕES

SOBRE O RECURSO EXTRAORDINÁRIO 1.355.208

Palavras-chave

Execução Fiscal. Tema 1184. Lei 12.767/2012. Eficiência Administrativa.

Antônio Marcos Ferreira da Silva Orletti

Possui Graduação em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (2020), Especialista em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (2021), Advogado desde 2020, Agente de Administração na Secretaria Municipal dos Negócios Jurídicos da Prefeitura Municipal de Bauru, e-mail: orlettiantonio@gmail.com.

Fátima Carolina Pinto Bernardes

Possui Graduação em Direito e Mestrado pela Instituição Toledo de Ensino (1997 e 2007, respectivamente), Doutorado em Saúde Coletiva pela Universidade de São Paulo - USP/Bauru (2020), Procuradora Jurídica do Município de Bauru desde 2003, Docente no Curso de Direito da Faculdade Anhanguera de Bauru e professora no Curso de Pós-Graduação em Direito Civil e Processual Civil “Stricto Sensu” na Instituição Toledo de Ensino de Bauru - ITE/Bauru, e-mail: fatimacarolina2021@ gmail.com.

Resumo

O estudo examina o julgamento colegiado do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 1.355.208 (Tema nº 1.184), de 19 de dezembro de 2023, sobre a extinção de execuções fiscais de baixo valor por falta de interesse de agir. Destaca-se a viabilidade do protesto extrajudicial da dívida ativa como uma alternativa administrativa eficiente, regulamentada pela Lei nº 12.767/2012, para reduzir a carga processual do Judiciário e promover uma gestão pública tributária mais racional e econômica, respeitando a autonomia dos entes federativos na definição de critérios para o ajuizamento de execuções fiscais.

1. INTRODUÇÃO

Em 19 de dezembro de 2023, o órgão pleno do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, negou provimento ao Recurso Extraordinário nº 1.355.208, interposto pelo Município de Pomerode, em relação ao julgamento proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, que manteve a extinção de uma execução fiscal em razão da falta de interesse de agir, fixando tese relativa ao Tema 1.184. O recurso foi interposto com fundamento na alínea “a” do inciso III do art. 102, à luz dos artigos 1º, II, 2º, 5º, XXXV, 18 e 150, I e § 6º, todos da Constituição da República, devido à violação uma vez que as instâncias ordinárias consideraram que a tramitação de uma execução fiscal de baixo valor, entendida como inferior a um salário mínimo, não seria razoável e proporcional ao custo de uma ação executiva.

O julgamento trouxe à tona uma comparação analítica com o Recurso Extraordinário nº 591.033, o qual foi o “leading case” do Tema de Repercussão Geral nº 109, relatado pela Ministra Ellen Gracie, que fixou a tese de que uma lei estadual que estabelece valores mínimos para o ajuizamento de execução fiscal não pode ser aplicada para extinguir execuções municipais, sob pena de violar sua competência tributária.

No julgamento do Tema 1.184, o Supremo Tribunal Federal adotou entendimento diferente, especialmente considerando a Lei nº 12.767 de 2012, que autoriza expressamente a União, estados, Distrito Federal, municípios, autarquias e fundações públicas a protestar certidões de dívida ativa.

O protesto extrajudicial da dívida ativa é considerado um requisito mínimo para o ajuizamento de execuções fiscais de baixo valor. Sua ausência, junto com outros parâmetros estabelecidos no julgamento, configura falta de interesse de agir.

A maior preocupação com a definição da tese que permite a extinção das execuções fiscais está relacionada à competência legislativa sobre os valores das certidões de dívida ativa, considerando que cada ente federado possui realidade econômica diferente. Utilizar legislação estadual poderia resultar em prejuízos para a receita pública.

Cada ente federado pode e deve estabelecer o valor mínimo para o ajuizamento de execuções fiscais, e o julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.355.208 enfatizou aos municípios a importância de considerar diversas formas de resolver conflitos, incluindo o protesto extrajudicial da dívida ativa.

2. ANÁLISE DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 1.355.208: IMPLICAÇÕES DO TEMA 1184

O Recurso Extraordinário nº 1.355.208 foi interposto pelo Município de Pomerode contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, que manteve a extinção de uma execução fiscal de baixo valor por considerar que o baixo valor da causa configura falta de interesse de agir.

O Município fundamentou a interposição com base no art. 102, inciso III, alínea “a” da Constituição da República, sustentando violação à inafastabilidade do Poder Judiciário e à autonomia para instituir e cobrar seus tributos como ente federativo, nos termos do art. 150, §6º, da Constituição da República, argumentando que a extinção da execução com base na Lei Estadual nº 14.266/07 é inconstitucional.

No entanto, o Supremo Tribunal Federal, ao negar provimento ao recurso, afirmou que a falta de interesse de agir em execuções fiscais de baixo valor deve ser analisada à luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. O julgado reforçou a importância de evitar a movimentação desnecessária da máquina judiciária para cobranças de valores ínfimos, os quais podem ser mais eficientemente cobrados por meio de mecanismos extrajudiciais, como o protesto da CDA.

A ementa do julgado, publicada no Diário Judicial Eletrônico em 02/04/2024, foi registrada da seguinte maneira: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. EXTINÇÃO DE EXECUÇÃO FISCAL DE BAIXO VALOR POR FALTA DE INTERESSE DE AGIR: POSTERIOR AO JULGAMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO N. 591.033 (TEMA N. 109). INEXISTÊNCIA DE DESOBEDIÊNCIA AOS PRINCÍPIOS FEDERATIVO E DA INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO. FUNDAMENTOS EXPOSTOS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA TESE DO TEMA N. 109 DA REPERCUSSÃO GERAL: INAPLICABILIDADE PELA ALTERAÇÃO LEGISLATIVA QUE POSSIBILITOU PROTESTO DAS CERTIDÕES DA DÍVIDA ATIVA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO.

1. Ao se extinguir a execução fiscal de pequeno valor com base em legislação de ente federado diverso do exequente, mas com fundamento em súmula do Tribunal catarinense e do Conselho da Magistratura de Santa Catarina e na alteração legislativa que possibilitou protesto de certidões da dívida ativa, respeitou-se o princípio da eficiência administrativa.

2. Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade devem nortear as práticas administrativas e financeiras na busca do atendimento do interesse público. Gastos de recursos públicos vultosos para obtenção de cobranças de pequeno valor são desproporcionais e sem razão jurídica válida.

3. O acolhimento de outros meios de satisfação de créditos do ente público é previsto na legislação vigente, podendo a pessoa federada valer-se de meios administrativos para obter a satisfação do que lhe é devido.

4. Recurso extraordinário ao qual se nega provimento com proposta da seguinte tese com repercussão geral: “É legítima a extinção de execução fiscal de baixo valor, pela ausência de interesse de agir, tendo em vista o princípio da eficiência administrativa”. (BRASIL, 2023)

O julgamento trouxe mudanças significativas no tratamento das execuções fiscais de baixo valor, ao estabelecer requisitos mínimos para o ajuizamento da execução fiscal de pequeno valor, sendo o principal deles a necessidade de protesto extrajudicial da dívida ativa perante os cartórios de notas e protestos.

A partir da promulgação da Lei nº 12.767 de 2012, que autorizou expressamente o protesto das CDAs pela União, estados, Distrito Federal e municípios, o protesto extrajudicial passou a ser um requisito mínimo para o ajuizamento de execuções fiscais de pequeno valor. Essa medida visa garantir que a cobrança de créditos tributários seja eficiente e economicamente viável.

A decisão do STF no Tema 1.184 também promove uma maior harmonização entre as diversas esferas de governo, permitindo que cada ente federativo estabeleça critérios adequados à sua realidade econômica para a cobrança de dívidas ativas.

Com isso, busca-se evitar que legislações estaduais interfiram de maneira desproporcional na competência tributária dos municípios.

Os processos de competência fiscal são os principais fatores de congestionamento da justiça brasileira. Nas palavras de Danilo Marques de Queiroz (2024, p. 54):

Na análise das execuções fiscais e do panorama da litigiosidade tributária, a taxa de congestionamento permaneceu com 87% (oitenta e sete por cento), demonstrando a ineficiência da resolução dos referidos processos, representando um assoberbamento de processos no judiciário. Cumpre registrar que o referido estudo demonstra que houve um aumento nos tribunais da taxa de 90% de congestionamento das execuções fiscais, no ano de 2021, demonstrando um número extremamente alarmante em relação à resolução dos referidos processos.

Segundo o Justiça em Números 2021, a situação das execuções fiscais vem se agravando gradativamente em relação à falta de resolubilidade dos processos e ressalta o impacto das execuções fiscais e sua contribuição para o alto índice de congestionamento e assoberbamento de processos no poder judiciário.

Em estudos mais recentes do Conselho Nacional de Justiça, da quantidade atual de processos judiciais, 34% (trinta e quatro por cento) de todo o acervo correspondem a execuções fiscais, com uma taxa de congestionamento de 88% (oitenta e oito por cento). (QUEIROZ, 2024, p. 57)

Nas palavras do Ministro Luís Roberto Barroso, ao proferir seu voto durante o julgamento do Tema 1184: [...] das 80 milhões de ações em curso no Brasil, 34% são ações de execução fiscal, responsáveis por uma taxa de congestionamento de 88%. Isso significa que de cada 100 processos de execução fiscal que tramitaram, apenas 12 foram efetivamente concluídos. Os números são os seguintes: na Justiça estadual estão concentrados 85% dos processos, como é o caso desta ação, pois o município ajuíza suas execuções fiscais perante a Justiça estadual. E na prática, muitas vezes, por circunstâncias políticas internas, os prefeitos municipais não cobram o IPTU, não protestam o IPTU e, quando se aproxima o final do mandato, para evitar problemas com a lei de responsabilidade fiscal e improbidade, ajuízam milhares de ações ao final do mandato, muitos anos após a constituição do crédito. Portanto, 85% das execuções fiscais estão na Justiça estadual; 15% estão na Justiça federal; a trabalhista e a eleitoral são apenas residuais. Na Justiça federal, os processos de execução fiscal correspondem a 39% do seu acervo de primeiro grau e, na Justiça estadual, a 38%. Estamos lidando aqui com o maior problema da Justiça brasileira, e sua solução é extremamente importante. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 2023)

Como demonstrado no julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.355.208, fica evidente a necessidade de uma reforma profunda no sistema de execuções fiscais, com foco na eficiência administrativa e na redução do congestionamento judicial.

A adoção de mecanismos extrajudiciais, como o protesto das Certidões de Dívida Ativa (CDAs), mostra-se crucial para garantir uma cobrança mais célere e menos onerosa dos créditos tributários. Além disso, as municipalidades podem adotar câmaras de conciliação extrajudicial, com remissão dos juros, desde que previsto em lei municipal.

A tese fixada no Tema 1184 promove maior autonomia e flexibilidade para que cada ente federativo ajuste suas práticas de cobrança conforme suas realidades econômicas e administrativas. Essa abordagem permite que municípios e estados desenvolvam políticas tributárias mais eficientes e ajustadas às suas necessidades específicas, evitando a sobrecarga do sistema judiciário com execuções fiscais de valores ínfimos.

A repercussão geral reconhecida no Tema 1184 também estabelece um precedente importante para outras ações similares, proporcionando diretrizes claras para o tratamento das execuções fiscais de baixo valor. Esse entendimento do STF contribui para maior uniformidade e previsibilidade nas decisões judiciais, reduzindo a litigiosidade e promovendo uma gestão mais eficaz dos recursos públicos.

É essencial que gestores públicos e operadores do direito compreendam e apliquem as diretrizes estabelecidas pela tese do Tema 1184, buscando sempre eficiência e economicidade na administração tributária.

A valorização de meios alternativos de cobrança, como o protesto extrajudicial, deve ser vista como uma ferramenta estratégica para a melhoria da arrecadação e a redução do congestionamento judicial, beneficiando toda a sociedade com um sistema mais justo e equilibrado.

3. REVISÃO CRÍTICA DO TEMA 109: APLICABILIDADE ATUAL

O Recurso Extraordinário nº 591.033, de relatoria da Ministra Ellen Gracie, foi interposto em relação à decisão da Primeira Vara da comarca de Votorantim/SP, em 14 de julho de 2008, que manteve sentença de extinção por carência de interesse de agir, considerando o pequeno valor da execução fiscal ajuizada, conforme estabelecido na Lei n. 1.468/1984 do Estado de São Paulo.

Naquela ocasião, o Supremo Tribunal Federal deu provimento ao recurso para anular a sentença de origem e determinar o prosseguimento da execução fiscal, conforme ementa abaixo:

TRIBUTÁRIO. PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. MUNICÍPIO. VALOR DIMINUTO. INTERESSE DE AGIR. SENTENÇA DE EXTINÇÃO ANULADA. APLICAÇÃO DA ORIENTAÇÃO AOS DEMAIS RECURSOS FUNDADOS EM IDÊNTICA CONTROVÉRSIA. 1. O Município é ente federado detentor de autonomia tributária, com competência legislativa plena tanto para a instituição do tributo, observado o art. 150, I, da Constituição, como para eventuais desonerações, nos termos do art. 150, § 6º, da Constituição. 2. As normas comuns a todas as esferas restringem-se aos princípios constitucionais tributários, às limitações ao poder de tributar e às normas gerais de direito tributário estabelecidas por lei complementar. 3. A Lei nº 4.468/84 do Estado de São Paulo - que autoriza a não-inscrição em dívida ativa e o não ajuizamento de débitos de pequeno valor - não pode ser aplicada a Município, não servindo de fundamento para a extinção das execuções fiscais que promova, sob pena de violação à sua competência tributária. 4. Não é dado aos entes políticos valerem-se de sanções políticas

contra os contribuintes inadimplentes, cabendo-lhes, isto sim, proceder ao lançamento, inscrição e cobrança judicial de seus créditos, de modo que o interesse processual para o ajuizamento de execução está presente. 5. Negar ao Município a possibilidade de executar seus créditos de pequeno valor sob o fundamento da falta de interesse econômico viola o direito de acesso à justiça. 6. Sentença de extinção anulada. 7. Orientação a ser aplicada aos recursos idênticos, conforme o disposto no art. 543-B, § 3º, do CPC. (BRASIL, Recurso Extraordinário nº 591.033, Tribunal Pleno, 2011).

O voto da Ministra relatora foi acompanhado por todo o colegiado, sendo fixada a seguinte tese:

Lei estadual autorizadora da não inscrição em dívida ativa e do não ajuizamento de débitos de pequeno valor é insuscetível de aplicação a Município e, consequentemente, não serve de fundamento para a extinção das execuções fiscais que promova, sob pena de violação à sua competência tributária. (BRASIL, 2011)

O entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Tema 109 não vigora nos dias atuais, considerando os avanços legislativos para a persecução da dívida ativa municipal, especialmente quanto à previsão expressa de que as certidões de dívida ativa constituem títulos aptos a serem protestados perante os cartórios de notas e protestos.

A Lei nº 12.767/2012 alterou a Lei nº 9.492/1997, incluindo no parágrafo único do art. 1º que “Incluem-se entre os títulos sujeitos a protesto as certidões de dívida ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas autarquias e fundações públicas.” (NR)

Embora sempre houvesse a possibilidade de os municípios protestarem extrajudicialmente suas certidões de dívida ativa, havia divergência jurisprudencial quanto à sua efetiva aplicabilidade, pois a prática tradicional era o ajuizamento das execuções fiscais para satisfação do débito.

Como fundamentado pela Ministra relatora no julgamento do Tema 1.184:

Com essa alteração legislativa, posterior ao julgamento do Recurso Extraordinário n. 591.033, possibilitou-se outro instrumento para a satisfação do que era devido às entidades públicas, suas autarquias e fundações. Assim, com a possibilidade de levar a protesto as certidões de dívida ativa, a Fazenda Pública de qualquer dos entes federados passou a dispor de outro instrumento para conduzir o devedor a regularizar sua situação fiscal, além do ajuizamento da execução fiscal. Esse quadro, insista-se, inexistia na data do julgamento daquele Recurso Extraordinário n. 591.033. (BRASIL, 2011)

O interesse processual do ente federado, então, vai além do cumprimento dos requisitos processuais tradicionais, envolvendo a demonstração da utilidade do processo judicial e a necessidade de o Estado-juiz dar prosseguimento a medidas coercitivas quando esgotados todos os meios para cobrança extrajudicial da dívida.

Portanto, o protesto extrajudicial da certidão de dívida ativa, amparado expressamente pela legislação, constitui-se como um dos meios para cobrança extrajudicial, podendo ocorrer também através de legislações municipais de parcelamentos ordinários e especiais, com amortização dos juros, ou mesmo pela instalação de câmaras de conciliação municipal.

Esses avanços legislativos e operacionais visam otimizar a arrecadação e reduzir a morosidade do judiciário nas execuções fiscais de pequeno valor, conferindo aos municípios maior eficiência na gestão de suas receitas e no cumprimento de suas obrigações fiscais.

A mudança no cenário jurídico e administrativo impacta diretamente na sustentabilidade financeira das administrações municipais, permitindo uma abordagem mais pragmática e menos onerosa na cobrança de créditos tributários.

A relevância dessa transformação é destacada pelo aumento da eficiência no processo de cobrança e pela diminuição da sobrecarga do Poder Judiciário, possibilitando que os municípios se concentrem em questões de maior complexidade e valor econômico significativo. Dessa forma, a execução fiscal deixa de ser o único caminho, abrindo espaço para soluções alternativas mais céleres e menos custosas.

Ademais, essa evolução normativa reflete uma adaptação às necessidades contemporâneas de gestão pública, onde a tecnologia e a inovação jurídica desempenham papéis cruciais na modernização dos procedimentos administrativos. A implementação de medidas como o protesto extrajudicial e a conciliação extrajudicial demonstra a busca por um sistema tributário mais ágil e eficiente, que atenda tanto aos interesses do fisco quanto aos direitos dos contribuintes.

Em suma, o julgamento do Recurso Extraordinário nº 591.033 e a subsequente evolução legislativa evidenciam a dinâmica do direito tributário brasileiro, adaptando-se às novas realidades e promovendo a eficiência na administração pública. Através dessas mudanças, busca-se um equilíbrio entre a necessidade de arrecadação e a justiça fiscal, garantindo que os municípios possam exercer plenamente sua autonomia tributária sem sobrecarregar o sistema judiciário.

4. EFICIÊNCIA ADMINISTRATIVA

E

O INTERESSE DE AGIR NAS EXECUÇÕES FISCAIS

O interesse de agir é uma das condições da ação, ao lado da legitimidade ad causam, ambos previstos nos artigos 17, 330, incisos II e III, 337, inciso IX e 485, inciso VI, da Lei nº 13.105/2015.

As condições da ação são requisitos para que a jurisdição seja exercida, com o objetivo de filtrar processos manifestamente inadmissíveis e evitar ações temerárias que poderiam prejudicar outros jurisdicionados.

O interesse-necessidade expressa a ideia de que o processo deve ser o último recurso para o autor, sendo viável somente na ausência de meios mais céleres ou econômicos, judiciais ou extrajudiciais, para satisfazer o interesse alegado (CABRAL, 2015 apud OLIVEIRA, 2024).

No contexto deste texto, surge a questão do interesse de agir ao ajuizar uma execução fiscal cujo valor da causa evidencie a inviabilidade econômica do processo?

A definição de valores mínimos para o ajuizamento de execuções fiscais é um tema delicado, pois cada ente federativo enfrenta realidades econômicas distintas. A decisão do STF no Tema 1.184 reitera que a competência para estabelecer esses valores deve respeitar a autonomia dos entes federativos e as particularidades locais.

É crucial que os municípios, ao determinarem os valores mínimos para ajuizar execuções fiscais, considerem não apenas o custo-benefício do processo judicial, mas também a necessidade de garantir a eficácia na cobrança dos créditos tributários. A fixação desses valores deve ser embasada em estudos técnicos e análises econômicas que levem em conta a realidade financeira do município e a capacidade de pagamento dos contribuintes.

É certo que uma vez constituída a Dívida Ativa municipal, sua cobrança ocorrerá pela via judicial, através da execução fiscal, regulamentada pela Lei nº 6.830/80. Inicialmente, o legislador não considerou outras formas de cobrança da dívida ativa, tampouco estabeleceu valores.

A norma passou a ser que qualquer dívida tributária ou não tributária, inscrita em dívida ativa, será cobrada conforme o rito da Lei nº 6.830/80, conforme os artigos 1º e 2º, §1º:

Art. 1º - A execução judicial para cobrança da Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respectivas autarquias será regida por esta Lei e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil.

Art. 2º - Constitui Dívida Ativa da Fazenda Pública aquela definida como tributária ou não tributária na Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, com as alterações posteriores, que estabelece normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.

§ 1º - Qualquer valor cuja cobrança seja atribuída por lei às entidades mencionadas no artigo 1º será considerado Dívida Ativa da Fazenda Pública (BRASIL, 1980).

Com o passar dos anos e as mudanças na sociedade brasileira, percebe-se que a obrigação de cobrar judicialmente todo crédito, sem considerar sua viabilidade econômica, pode paradoxalmente prejudicar o interesse público, que deve ser protegido pela administração (OLIVEIRA, 2024).

O princípio da eficiência administrativa é fundamental para uma boa gestão pública. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, a administração pública deve buscar os melhores resultados com o menor custo e no menor tempo possível. Esse princípio está diretamente ligado à ideia de uma gestão pública voltada para o bem comum, utilizando os recursos públicos de maneira responsável e produtiva (MELLO, 2022, p. 106).

No contexto das execuções fiscais de baixo valor, a aplicação do princípio da eficiência administrativa justifica a extinção dessas execuções, pois manter processos judiciais cujo custo seja superior ao benefício econômico viola a boa gestão pública. A decisão do STF em racionalizar as execuções fiscais está alinhada à necessidade de uma gestão pública eficiente e eficaz.

A extinção das execuções fiscais de baixo valor não deve ser vista como abandono do crédito tributário, mas como uma reorientação estratégica para otimizar recursos e maximizar resultados. Isso está em consonância com a priorização da cobrança de créditos de maior valor e maior probabilidade de recuperação, permitindo ao judiciário lidar com casos mais complexos e relevantes.

Adicionalmente, o uso de métodos alternativos de cobrança, como o protesto extrajudicial de certidões de dívida ativa e programas de parcelamento incentivado, oferece uma abordagem mais flexível e adaptável à realidade dos contribuintes. Essas medidas promovem a recuperação de créditos de maneira menos onerosa e mais eficiente, seguindo os princípios da economicidade e da celeridade processual.

Portanto, a eficiência administrativa exige que os gestores públicos adotem as melhores práticas de cobrança e gestão da dívida ativa, incorporando inovações tecnológicas e jurídicas que facilitem a recuperação de créditos com menor

custo e maior efetividade. A implementação de sistemas informatizados para controle e gestão da dívida ativa pode melhorar significativamente a capacidade de monitoramento e cobrança de débitos, aumentando a arrecadação sem sobrecarregar o sistema judicial.

Na atualidade, a administração pública deve ser proativa na busca por soluções criativas e eficazes para os desafios da gestão fiscal. A adoção de políticas públicas que incentivem o pagamento voluntário de tributos e a regularização de débitos, juntamente com o uso de mecanismos extrajudiciais de cobrança, pode contribuir para um ambiente fiscal mais equilibrado e justo.

Em resumo, o interesse de agir e a eficiência administrativa são conceitos interligados na gestão da dívida ativa municipal. A racionalização das execuções fiscais de baixo valor, o uso de métodos alternativos de cobrança e a adoção de práticas de gestão moderna são essenciais para garantir uma administração pública eficiente, eficaz e orientada para o bem comum. Essas medidas não apenas respeitam os princípios constitucionais e legais, mas também promovem uma gestão fiscal responsável e sustentável, beneficiando toda a sociedade.

5. CONCLUSÃO

O Recurso Extraordinário nº 1.355.208, que fixou tese de repercussão geral do Tema 1.184, trouxe à tona a necessidade de repensar as práticas tradicionais de cobrança fiscal, especialmente no que tange à utilização judiciária de recursos em demandas de valor reduzido.

O julgamento reforça a importância da eficiência administrativa na gestão pública, particularmente no setor tributário, ao estabelecer que o protesto extrajudicial da dívida ativa é um requisito para ajuizamento de execuções fiscais de pequeno valor, o tribunal sinaliza para uma mudança de paradigma. Essa medida não apenas busca reduzir o congestionamento judicial, mas também promove uma utilização mais racional dos recursos públicos.

A aplicação do princípio da eficiência administrativa, conforme preconizado pelo jurista Celso Antônio Bandeira de Mello, implica em utilizar os meios disponíveis de maneira que se obtenham os melhores resultados com o menor custo possível. Nesse sentido, a tese fixada favorece uma abordagem mais pragmática na cobrança de créditos tributários, privilegiando soluções extrajudiciais que se mostram menos onerosas e mais ágeis.

Ademais, a autonomia dos entes federativos para estabelecerem critérios adequados à sua realidade econômica e administrativa foi reafirmada, pois cada município pode adaptar suas práticas de cobrança conforme suas necessidades

locais, desde que respeitados os princípios constitucionais e legais. Essa flexibilidade permite uma gestão tributária mais eficiente e ajustada às particularidades regionais, evitando a imposição de normativas estaduais que poderiam prejudicar a autonomia municipal.

A adoção de medidas como o protesto extrajudicial das certidões de dívida ativa não apenas simplifica o processo de cobrança, mas também fortalece a capacidade de arrecadação dos municípios. Essa modernização nas práticas administrativas reflete uma adaptação às novas realidades sociais e tecnológicas, promovendo uma administração pública mais responsiva e transparente.

Por fim, é crucial que os gestores públicos e os operadores do direito compreendam e apliquem as diretrizes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 1.184. A busca contínua por eficiência e economicidade na administração tributária não apenas beneficia os cofres públicos, mas também contribui para uma justiça fiscal mais equitativa e eficaz.

Assim, diante das transformações jurídicas e administrativas discutidas neste estudo, conclui-se que a eficiência na gestão das execuções fiscais de baixo valor não é apenas desejável, mas essencial para o fortalecimento da capacidade financeira dos municípios e para a promoção de um sistema tributário mais justo e equilibrado.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Justiça em Números 2024. Brasília, 2024. Disponível em: https://www. cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/. Acesso em: 15 jul. de 2024.

BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 mar. 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 16 jul. 2024.

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 16 jul. 2024.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 1.355.208 Santa Catarina. Relatora: Min. Carmem Lúcia. Julgamento em: 19 dez. 2023. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 01 abr. 2024. Disponível em: https://portal.stf.jus. br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=6291425&numeroProcesso=1355208&classeProcesso=RE&numeroTema=1184. Acesso em: 16 jul. 2024.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2013.

OLIVEIRA FILHO, Silas Dias de. A (im)pertinência do valor do crédito e do prévio protesto do título para a caracterização do interesse de agir na execução fiscal. 2020. Disponível em: https://bd.tjmg.jus.br/items/bfc0a56f-0500-4f8f-a6e6-e4f99206c0a9/full. Acesso em: 16 jul. 2024.

MOREIRA, André Mendes; GALDINO, Breno Santana. Congestionamento judiciário e execução fiscal: a falta de interesse processual em débitos de baixo valor. Disponível em: https://sachacalmon.com.br/wp-content/ uploads/2020/11/131-154.pdf. Acesso em: 16 jul. 2024.

QUEIROZ, Danilo Marques de. Supremacia do interesse público, eficiência arrecadatória e transação tributária: um novo panorama constitucional para resolução de conflitos de ordem fiscal à luz da Lei n. 13.988/2020. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Programa de Pós-Graduação em Direito, Natal, 2024.

04

LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (LGPD)

E O CASO DE EDWARD SNOWDEN

Palavras-chave

Lei Geral de Projetação de Dados. LGPD. Edward Snowden. Regulamento Geral de Proteção de Dados. GDPR.

Eduardo Spetic Scriptore

Rodrigo Guedes de Azevedo Bento Gonçalves

Daniela Nunes Veríssimo Gimenes

Resumo

O artigo aborda Edward Snowden, seu impacto global e sua conexão indireta, mas significativa, com a criação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil e o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) na União Europeia. Snowden, por meio de suas revelações, desencadeou um debate global sobre privacidade, liberdades civis e segurança nacional. Embora o GDPR da UE tenha sido elaborado antes das revelações de Snowden, sua implementação em 2018 foi influenciada pelo contexto global de preocupações com a privacidade. Isso motivou a criação da LGPD no Brasil, que visa proteger os direitos fundamentais de liberdade e privacidade dos cidadãos, garantindo maior controle sobre seus dados pessoais. Ambos os regulamentos destacam a importância da privacidade e proteção de dados em um mundo digital.

Foto: Fábio Cres

Antes de qualquer tópico, é interessante abordar todos os aspectos divulgados sobre a vida de Edward Snowden, para contextualizar o leitor. Para enfim, mostrar sua relevância no ordenamento jurídico brasileiro.

1. INTRODUÇÃO

Atualmente com quarenta anos, Edward Joseph Snowden, nascido em 21 de julho de 1983, em Elizabeth City, Carolina do Norte, nos Estados Unidos. Snowden viveu em uma família de classe média norte-americana e estudou em escolas públicas em Maryland, estado da região do Médio Atlântico dos EUA. Desde jovem, Edward detinha habilidades e exalava interesses na área de computadores e tecnologias, levando a se envolver em atividades online e desenvolver conhecimentos em assuntos de tecnologia da informação.

Antes de se tornar pertinente por suas revelações sobre a NSA (Agência de Segurança Nacional), o analista conheceu Lindsay Mills, uma dançarina e fotógrafa, com quem se casou e, apesar das consequências de suas ações, se permaneceram unidos até então.

Após a exposição dos documentos secretos, Snowden teve que deixar sua vida nos Estados Unidos da América e procurar asilo em outros países.

Em julho de 2013, Edward voou para China, Hong Kong, para se encontrar com jornalistas e divulgar as informações sigilosas. Logo em seguida, o agente embarcou até a Rússia em agosto de 2013, onde recebeu asilo temporário e, em setembro de 2022, recebeu sua cidadania russa.

Descrito como um aluno menos que espetacular, o norte americano, abandonou o ensino médio durante o segundo ano do colegial. Arrependido, optou por realizar um teste chamado GED - “General Educational Development”, feito para pessoas que não concluíram o ensino médio e buscam um diploma. Para isso, ele se inscreveu em um curso de computação em uma faculdade comunitária local. Em 1999, ingressou na Anne Arundel Communnity College(AACC), em Arnold, Maryland.

Todavia, o espião não levou a sério o curso, fazendo o básico para conseguir seu diploma. Logo após conquistar o diploma, ele estudou online para um mestrado em segurança de computadores na Universidade de Liverpol, no reino Unido.

Na sua juventude, Snowden trocava suas tarefas escolares e deveres de casa por horas no computador. Sempre fascinado por tecnologias, Edward buscava métodos para burlar suas provas na escola e alterar seu boletim. Estudando sobre o funcionamento do sistema de notas de sua instituição de ensino, ele percebeu que conseguia “hackea-lo”.

Mesmo sua vida acadêmica não sendo um exemplo, o espião norte americano construiu uma vida profissional de grande notoriedade. Em 2004, após finalizar seus estudos, e motivado pelas ondas patrióticas dos acontecimentos do 11 de Setembro de 2001, o jovem alistou-se como soldado das Forças Especiais no Exército dos Estados Unidos. Porém, quatro meses depois de ingressar, ele sofreu um grave acidente durante os treinamentos militares, quebrando suas duas pernas.

Por conta dos ocorridos nas Forças Armadas Estadunidenses, Edward Snowden se exonerou, deixando o Exército para trás. Em 2005, foi trabalhar como segurança de sistemas no Centro de Estudos Avançados de Linguagem, unidade de pesquisa da Universidade de Maryland, uma afiliada da NSA (National Service Allience).

Um tempo depois, não demorou muito para a CIA (Agência Central de Inteligência) despertar um olhar engajador ao antigo segurança em TI. Que em 2006, foi contratado pelo Governo Norte Americano, para atuar na cidade de Langley, Estado da Virgínia, onde residiu até ser transferido para outro país. Na Suíça, o espião trabalhou em Genebra, fazendo a manutenção da rede de computadores local na área de segurança digital.

Decorrido três anos, o norte americano deixou a CIA para trabalhar na DELL, empresa de hardware de computadores multinacional fundada em 1984 no EUA. Em seguida ele foi trabalhar para a Booz Allen Hamilton, empresa do setor privado que presta serviços para o Governo estadunidense. De modo mais específico, esta empresa privada tinha como cliente a Agência de Segurança Nacional (NSA), onde Edward prestou serviços.

2. O CASO DE EDWARD SNOWDEN

No livro “Eterna vigilância: Como montei e desvendei o maior esquema de espionagem do mundo”, Snowden conta que seu emprego na DELL e na Booz Allen Hamilton, serviram de faixada para seu principal cargo: analista de sistemas da NSA. Após alguns anos trabalhando discretamente para o Governo norte americano, Edward obteve acesso a vários documentos altamente sigilosos. Esses documentos continham programas que envolviam a coleta indiscriminada de dados de comunicações de cidadãos norte-americanos e estrangeiros, tanto dentro como fora do território estadunidense. As informações sigilosas incluíam detalhes sobre a coleta de registros de chamadas telefônicas, acesso a dados de empresa de tecnologia e outras práticas de monitoramento. Farto de tanto poder governamental sob o povo e de tantas informações escondidas da população, Snowden copiou em um pein drive os programas sigilosos, e pós à tona revelações que chocaram o mundo.

Essas revelações desencadearam uma série de eventos: Em maio de 2013 o espião começa a vazar documentos altamente confidenciais para jornalistas e organizações de mídia. Em julho do mesmo ano, Glenn Greenwald, do jornal estadunidense The Guardian, e Laura Poitras, do jornal The Washington Post, publicam as primeiras reportagens sobre as revelações de Edward, expondo a vigilância em massa conduzida pela NSA. Ainda no mesmo ano, em junho/julho, o analista revela sua identidade, assume sua autoria pelos vazamentos, se tornando o inimigo número um dos Estados Unidos, e busca asilo em vários países. No mês seguinte, ele recebe asilo temporário da Rússia. Em outubro o diretor de Inteligência Nacional dos EUA, James Clapper, reconhece pela primeira vez a existência dos programas de vigilância revelados pelo opositor. E por fim, em dezembro de 2013, uma comissão do governo norte americano divulga um relatório criticando a NSA por suas práticas de vigilância.

Os arquivos secretos do pein drive de Snowden não só difamou informações sobre a NSA, mas também, de vários outros Órgãos Governamentais e Agências de Inteligência. A CIA (Agência Central de Inteligência), empresa a qual Snowden havia trabalhado, não ficou de fora das exposições públicas. O Departamento de Defesa (DoD), de Estado e o Congresso dos Estados Unidos foram alvo de notícias pela mídia mundial. Inclusive o presidente da época, Barack Obama, estava envolvido nas decisões relacionadas à vigilância em massa. Empresas privadas de tecnologia também foram atingidas pelas alegações do analista. O Google, por exemplo, a Microsoft, Apple, entre outras, estiveram envolvidas nas discussões sobre privacidade e segurança cibernética.

Sabendo dos impactos de suas alegações, Edward, em sua entrevista com Glenn, foi questionado sobre os reais motivos de suas ações. Snowden estava profundamente preocupado com o resultado das operações de vigilância em massa na privacidade dos cidadãos e nas liberdades civis. Além disso, ele acreditava que as pessoas tinham o direito de saber o que estava sendo feito em seu nome pelo governo. Acreditava que suas obrigações éticas como ser humano superavam seu dever contratual de manter as informações em segredo.

O caso de Edward Snowden teve um impacto profundo e duradouro tanto em seu país de origem quanto no mundo.

O fato desencadeou um debate global sobre privacidade, liberdade civis e segurança nacional. Levou uma maior conscientização sobre a extensão das operações de vigilância em massa. Gerou reformas nas políticas de vigilância global. Além do detalhe de que o espião teve que enfrentar acusações criminais nos EUA. Se tornando um ícone mundial de denúncia e um defensor da privacidade digital e das liberdades civis.

3. LGPD

“A LGPD é um marco na proteção da privacidade no Brasil, equiparando nosso país a outros com legislações de privacidade avançadas. Ela define direitos fundamentais dos cidadãos e responsabilidades claras para as empresas”, afirma Juliana Abrusio, advogada especializada em Direito Digital.

A Lei Federal n° 13.709/2018, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, foi promulgada dia 14 de agosto de 2018 e entrou em vigor dois anos depois, em 18 de setembro de 2020. Sendo um marco legal que regulamenta o uso, a proteção e a transferência de dados pessoais no país. Garantindo maior controle dos cidadãos em relação às suas informações pessoais, exigindo consentimento explícito para a coleta e uso dos dados. Em seus artigos a LGPD ressalta seu principal objetivo: proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.

Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural

O ordenamento teve origem no Projeto de Lei da Câmara (PLC) n° 53, de 2018, aprovado por unanimidade, em regime de urgência pelo Plenário do Senado em julho do mesmo ano. A sanção foi realizada pelo então presidente da República Michel Temer no mês de agosto. Na época o tema mobilizou o Congresso Nacional principalmente depois do escândalo de vazamento de dados ocorrido nos Estados Unidos. Onde os usuários norte-americanos do Facebook, tiveram seus dados vazados, coletados e utilizados nas eleições do Senado Americano.

Antes da publicação da LGPD, estava em vigor outro ordenamento semelhante, a Lei n° 12.965, de 23 de abril de 2014. Nomeada de Marco Civil da Internet, este regulamento contia princípios que regulavam o uso da Internet no Brasil. Esta Lei estabeleceu alguns dispositivos legais que, posteriormente, conflitaram com a LGPD. Porém, o MCI (forma abreviada da norma) não foi arquitetado para regulamentar de maneira ampla e completa o tema da proteção de dados pessoais. Logo, a solução para o conflito entre a Lei de 2014 e a Lei de 2018 foi reconhecer a revogação tácita dos dispositivos do MCI que são incompatíveis com a LGPD. Aliás, deve-se ressaltar que ambas as normas se fundamentam em princípios muito parecidos. Desse modo, segue a comparação entre os Artigos 2°.

Art. 2º A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão, bem como:

- o reconhecimento da escala mundial da rede;

II - os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais;

III - a pluralidade e a diversidade;

IV - a abertura e a colaboração;

V - a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e

VI - a finalidade social da rede.

LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS:

Art. 2º A disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos:

- o respeito à privacidade;

II - a autodeterminação informativa;

III - a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião;

IV - a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem;

V - o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação;

VI - a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e

VII - os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.

A Lei Geral de Proteção de Dados, surgiu em um contexto histórico de evolução tecnológica, crescente coleta de dados individuais e a necessidade de regulamentar e proteger a privacidade dos cidadãos. Nas últimas décadas, ocorreu um aumento exponencial no uso da internet, dispositivos móveis e tecnologias digitais em geral. Isso levou a uma maior coleta e processamento de dados pessoais, muitas vezes sem o conhecimento ou consentimento das pessoas. Ao modo que mais informações pessoais passaram a ser armazenadas online por banco de dados públicos e privados, surgiram preocupações com a privacidade dos seres humanos. Escândalos de vazamentos de dados e uso indevido de informações particulares por empresas despertaram a atenção sobre o tema. No Brasil, houve casos significativos de vazamento de dados, por exemplo, em dezembro de 2020, a

reportagem do jornal O Estado de São Paulo revelou que os dados de 242 milhões de brasileiros registrados no Sistema Único de Saúde (SUS) ficaram expostos na Internet por falhas de segurança do Ministério da Saúde. Outro caso ocorreu em 21/01/2022, onde o Banco Central comunicou uma falha de segurança com vazamento de dados atrelados a chaves PIX que estavam sob a guarda e a responsabilidade da empresa: Acesso Soluções de Pagamento.

Em um contexto global, a recente cultura da proteção de dados adveio na década de 1970, na Alemanha, resultado do avanço da computação e da constante preocupação alemã em proteger seus cidadãos dos períodos apocalípticos do regime nazista. Logo, foram elaboradas as primeiras normas que resultaram na legislação do Estado da Alemanha de 1978. 17 anos depois, em 1995, foi criada a Diretiva 95/46/CE, da União Europeia, contendo o primeiro regulamento para o bloco econômico, versando sobre o conceito da proteção de dados. Já em 2018, inspirando a futura criação da LGPD e substituindo a Diretiva 95/46/CE, surge o Regulamento Geral sobre Proteção de Dados, o “General Data Protection Regulation – GDPR”. É válido ressalvar que o primeiro resultado dessa norma europeia foi obrigar o Facebook e o Google a mudar a maneira como ambas as empresas coletavam e tratavam dos dados das pessoas.

Retornando mais uma vez ao Brasil, os primeiros passos para a regulamentação da proteção de dados já haviam sido dados no Artigo 5° da Constituição Federal de 1988.

Art. 5º, X - são invioláveis a intimidade , a vida privada a honra e a imagem das pessoas assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

Avançando no tempo, no ano de 1993, o Código de Defesa do Consumidor implementou uma forma de proteger as informações pessoais específica sobre cadastros e banco de dados. Salvaguardando o direito do consumidor de acessar seus dados armazenados no banco de memória de determinada empresa. Além de ter a possibilidade de solicitar que estes sejam excluídos ou corrigidos. Anos depois, em 2013, foi implementado ao CDC o Decreto 7.962, onde acrescentou algumas orientações como: autodeterminação, privacidade, confidencialidade, segurança das informações de dados pessoais prestados ou coletados. Para enfim, em 2018, ser sancionada a Lei Federal 13.709.

“A criação da ANPD é um importante passo tanto para dar segurança jurídica necessária aos entes públicos e privados que realizam operações de tratamento de dados pessoais e que terão que se adequar ao previsto pela LGPD, como também para viabilizar transferências internacionais de dados que sigam

parâmetros adequados de proteção à privacidade, o que pode abrir novos mercados para empresas brasileiras”. Frase dita pela Secretaria-Geral da Presidência da República.

A Agência Nacional de Proteção de Dados, a ANPD, é um resultado da implementação da Lei Geral de Dados no ordenamento jurídico brasileiro. Sendo ela um órgão governamental idealizado para regulamentar, fiscalizar e promover a proteção de dados pessoais no Brasil. Ou seja, sua função é colocar em prática e fiscalizar a aplicação de todas as regras e princípios estabelecidos pela LGPD. Tal fato está expressamente escrito no ANEXO 1, Art. 2°, do Decreto n ° 10.474, de 26 de agosto de 2020.

Art. 2º Compete à ANPD:

- zelar pela proteção dos dados pessoais, nos termos da legislação;

II - zelar pela observância dos segredos comercial e industrial, observada a proteção de dados pessoais e do sigilo das informações, quando protegido por lei ou quando a quebra do sigilo violar os fundamentos do art. 2º da Lei nº 13.709, de 2018 ;

III - elaborar diretrizes para a Política Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade;

IV - fiscalizar e aplicar sanções na hipótese de tratamento de dados realizado em descumprimento à legislação, mediante processo administrativo que assegure o contraditório, a ampla defesa e o direito de recurso;

VI - promover na população o conhecimento das normas e das políticas públicas sobre proteção de dados pessoais e das medidas de segurança;

VII - promover e elaborar estudos sobre as práticas nacionais e internacionais de proteção de dados pessoais e privacidade;

IX - promover ações de cooperação com autoridades de proteção de dados pessoais de outros países, de natureza internacional ou transnacional;

XIII - editar regulamentos e procedimentos sobre proteção de dados pessoais e privacidade e sobre relatórios de impacto à proteção de dados pessoais para os casos em que o tratamento representar alto risco à garantia dos princípios gerais de proteção de dados pessoais previstos na Lei nº 13.709, de 2018

§ 3º A ANPD e os órgãos e entidades públicos responsáveis pela regulação de setores específicos da atividade econômica e governamental devem

coordenar suas atividades, nas respectivas esferas de atuação, com vistas a assegurar o cumprimento de suas atribuições com a maior eficiência e promover o adequado funcionamento dos setores regulados, conforme legislação específica, e o tratamento de dados pessoais, na forma da Lei nº 13.709, de 2018

Essa Agência é uma autarquia federal de natureza especial, subordinada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Criada pela Medida Provisória n° 869, de dezembro de 2018, posteriormente transformada na Lei n° 13.853, sancionada no governo do Presidente Jair Messias Bolsonaro, em oito de julho de 2019. Contudo, o Decreto n° 10.474, de agosto de 2020, trouxe consigo a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança da ANPD. Este órgão tem 36 cargos, sendo 16 em comissão remanejados e 20 funções comissionadas do Poder Executivo. De acordo com o Anexo I, Capítulo II, Art. 3º deste decreto, a estrutura organizacional da ANPD segue a seguinte forma:

Art. 3º A ANPD é constituída pelos seguintes órgãos:

- Conselho Diretor;

II - órgão consultivo: Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade;

III - órgãos de assistência direta e imediata ao Conselho Diretor:

a) Secretaria-Geral;

b) Coordenação-Geral de Administração; e

c) Coordenação-Geral de Relações Institucionais e Internacionais;

IV - órgãos seccionais:

a) Corregedoria;

b) Ouvidoria; e

c) Assessoria Jurídica; e

V - órgãos específicos singulares:

a) Coordenação-Geral de Normatização;

b) Coordenação-Geral de Fiscalização; e

c) Coordenação-Geral de Tecnologia e Pesquisa.

§ 1º O Conselho Diretor é o órgão máximo de decisão da ANPD.

§ 2º Cabe ao Diretor-Presidente a gestão e a representação institucional da ANPD.

“Se os juízes e as cortes entenderem que as empresas de tecnologia têm os advogados mais caros do mundo, que entendem bem a razão de ser da lei e sabem que eles tentam violar essa intenção, e multaram as empresas de tecnologia por isso, a lei da União Europeia pode ser muito efetiva. Mas não sabemos por que não vimos esses casos ainda. O Brasil adotou o mesmo modelo e acredito que tenham sido adotados os mesmos números de multa sobre o faturamento global. Talvez o Brasil seja o primeiro país a evitar esses contornos. Mas teremos que esperar pelos casos realmente irem à Justiça”. Esta frase for dita por Edward Snowden, durante o Exame Fórum de Segurança da Informação.

Para entender a conexão entre a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) com o Caso de Edward Snowden, primeiro é preciso entender a concordância deste com a criação do Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR). Á primeira vista, não há uma relação direta entre os dois, tanto a criação a LGPD quanto a GDPR, foram de maneira indireta, mas importante, influenciados pelo caso ocorrido em 2013. Visto o grande lapso temporal entre a criação das duas normas e a data das divulgações feitas pelo espião norte americano. Ou seja, a criação de um ordenamento jurídico em 2018 que regulasse a coleta de informações pessoais e o tratamento de dados sensíveis não foi uma resposta direta as revelações em 2013.

Entretanto, as revelações de Snowden geraram preocupações significativas em todo o mundo sobre a privacidade e a segurança dos dados pessoais, tanto em nível governamental quanto empresarial. As pessoas ao redor do mundo passaram a questionar como seus dados pessoais estavam sendo coletados, armazenados e usados e se estavam sendo protegidos adequadamente. As confissões de Edward Snowden favoreceram a moldar o debate global sobre privacidade e proteção dos dados. Suas declarações evidenciaram a necessidade de regulamentação mais rigorosa para a proteção dos direitos individuais em relação aos dados pessoais.

O GDPR foi o pioneiro em relação a criação de normas de proteção de dados, influenciando diretamente a criação de outros ordenamentos em outros países, inclusive o Brasil. o que poucos sabem é que ele foi desenvolvido antes das revelações de Snowden, mas sua implementação e entrada em vigor em maio de 2018 foram indiretamente influenciadas por esse contexto global de preocupação com a privacidade e a proteção de dados causado por Edward. O “General Data Protection Regulation” estabeleceu padrões rigorosos para o

tratamento de dados pessoais e fortificou os direitos dos titulares de dados. Além de introduzir multas substanciais para organizações que descumprissem as regulamentações estabelecidas por ele.

Portando, embora o GDPR não tenha sido criado como uma reposta direta ao Caso de Edward Snowden, a conscientização global resultante dessas revelações desempenhou um papel superimportante na promoção de regulamentações mais rigorosas de proteção de dados pessoais.

Ou seja, as revelações do analista norte americano foram cruciais para criar uma preocupação geral no mundo e criar debates sobre a proteção de dados, originando ordenamentos jurídicos ao redor do mundo.

No Brasil, a criação da LGPD foi resultado direto da criação do ordenamento jurídico europeu e resultado indireto do contexto global deixado pelo Caso de Snowden.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo fornece um panorama geral do contexto que envolve o analista/espião norte americano Edward Snowden, seu caso sobre as suas revelações contra a o governo dos Estados Unidos, a criação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e sua relação com o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) da União Europeia. A seguir estão considerações finais sobre cada tópico tratado:

Edward Snowden e o Impacto Global

O caso do norte americano teve um impacto significativo no mundo, pois suas alegações sobre a o sistema de vigilância em massa realizado pela NSA abriram um debate mundial sobre a privacidade, as liberdades civis e a segurança nacional dos países ao redor do mundo. Suas atitudes resultaram em uma maior conscientização sobre a extensão das operações de vigilância em massa e levaram a reformas nas políticas de vigilância em muitos países.

Criação do GDPR e da LGPD

Embora o “General Data Protection Regulation” da União Europeia tenha sido elaborado anos antes das exposições de Edward, sua implementação em maio de 2018 ganhou forças pelo contexto global de preocupações com a privacidade e a proteção de dados gerados pelo escândalo norte americano em 2013. O GDPR implementou normas rigorosas para a proteção dos direitos pessoais e fortaleceu os direitos dos titulares de dados. Isto influenciou a criação de um ordenamento jurídico semelhante em outros países, incluindo a LGPD no Brasil.

LGPD e a Proteção de Dados no Brasil

A Lei Geral de Proteção de Dados é um marco importantíssimo na proteção da privacidade dos cidadãos brasileiros. Ela define direitos fundamentais dos cidadãos e responsabilidades claras para as empresas em relação ao tratamento de dados pessoais. A LGPD tem como objetivo proteger os direitos fundamentais de liberdade e privacidade, garantindo maior controle dos cidadãos sobre suas informações pessoais.

Conexão Indireta, mas importante

Embora a LGPD e o GDPR não tenham sido criados como uma resposta direta ao caso envolvendo Edward Snowden, as revelações do analista norte-americano desempenharam um papel fundamental na promoção de regulamentações mais rigorosas de proteção de dados pessoais em torno do mundo. A conscientização global resultante dessas revelações desencadeou um debate que influencio a criação de ordenamento jurídico brasileiro para tratar da proteção de dados pessoais.

Importância da Privacidade e Proteção de Dados

O Caso de Edward Snowden e a subsequente criação de leis como a LGPD e o GDPR destacaram a crescente importância da privacidade de dados em um mundo cada vez mais digital. Essas leis visam equilibrar a necessidade de segurança e proteção de dados com os direitos individuais à privacidade e ao controle de informações pessoais.

Em geral, este artigo evidenciou uma visão abrangente das complexas interconexões entre Edward Snowden, as regulamentações de proteção de dados e a importância da privacidade no mundo digital contemporâneo.

6. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

SNOWDEN, Edward; COHEN, Joshua, Eterna vigilância: Como montei e desvendei o maior esquema de espionagem do mundo/ Eduard Snowden; tradução Sandra Martha Dolinshy; publicação 17 de setembro de 2019; BRASIL, Constituição Federal de 1988, Disponível em:

<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 21 de setembro de 2023

BRASIL, Lei N.º 13.709, de 14 de agosto de 2018, Lei Geral de Proteção De Dados Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm> Acesso em: 02 de outubro de 2023

BRASIL, Medida Provisória N. º869, de dezembro de 2018 Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/

ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Mpv/mpv869.htm> Acesso em: 14 de outubro de 2023

BRASIL, Lei N.º 13.853, de 8 de julho de 2019 Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20192022/2019/lei/l13853.htm> Acesso em: 09 de outubro de 2023

BRASIL, Lei N.º 12.965, de 23 de abril de 2014 Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20112014/2014/lei/l12965.htm> Acesso em: 05 de agosto de 2023

INTERSOFT CONSULTING, General Data Protection Regulation, GDPR , Disponível em: < https://gdpr-info.eu> Acesso em: 15 de julho de 2023

BRASIL, Perguntas Frequentes – ANPD, Disponível em: < https://www.gov.br/anpd/pt-br/acesso-a-informacao/perguntas-frequentes-2013-anpd#:~:text=A%20ANPD%20é%20 uma%20autarquia,cumprimento%20da%20LGPD%20 no%20Brasil> Acesso em: 09 de outubro de 2023

BRASIL, Biográfia de Edward Snoden - eBiográfia, Disponível: < https://www.ebiografia.com/edward_snowden/ > Acesso em: 27 de junho de 2023

ÉTICA

E RESPONSABILIDADE NA CRIAÇÃO E DISSEMINAÇÃO DE DEEPFAKES : UM ESTUDO DE CASO DE CYBERBULLYING COM O USO DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Palavras-chave

Deepfakes Ética. Responsabilidade. Cyberbullying. Inteligência Artificial.

Gisele Aparecida Lima de Oliveira

Advogada formada pela ITE/Bauru. Especialista em LGPD, privacidade e proteção de dados pela UCAM/RJ. Vice-presidente da Comissão OAB vai à Escola da OAB/Bauru. Membro Efetivo Regional da Comissão Especial de Privacidade, Proteção de Dados e Inteligência Artificial da OAB/SP. E-mail: gisele@galoadvocacia.adv.br

Julia Lima de Oliveira

Estudante de Direito pela ITE/Bauru. Membro da Comissão OAB vai à Escola da OAB/Bauru. E-mail: julia1xx1@gmail.com

Resumo

Este artigo examina a interseção entre a criação e disseminação de deepfakes que são uma forma de manipulação de mídia baseada em inteligência artificial - IA, que criam vídeos falsos realistas, levantando questões éticas e legais. Deepfakes podem ser usados para cyberbullying, desinformação e violação de privacidade e intimidade, afetando especialmente crianças e adolescentes, por sua vulnerabilidade. Apresenta-se, neste artigo, uma análise das implicações éticas e legais associadas aos deepfakes bem como na responsabilidade dos criadores e desenvolvedores de tecnologias de IA. Utilizando um estudo de caso específico, são discutidos os impactos psicológicos, sociais e legais do cyberbullying por meio de deepfakes. Pensando em uma abordagem acolhedora dos envolvidos, especialmente das vítimas, uma das soluções proposta é a justiça restaurativa, que apesar de relativamente nova, tem se revelado relevante na compreensão dos fatos. Finalmente, são propostas estratégias de prevenção e combate ao uso indevido de deepfakes visando promover uma abordagem ética e responsável na era digital.

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, o avanço da inteligência artificial (IA) tem possibilitado a criação de conteúdos digitais com um nível de realismo sem precedentes. Entre essas inovações, destacam-se os deepfakes uma tecnologia que permite a manipulação de vídeos para criar imagens e áudios falsos, porém altamente convincentes.

Os deepfakes emergiram como uma das tecnologias mais preocupantes da era digital· Esses vídeos e imagens manipuladas com inteligência artificial têm o potencial de enganar espectadores e criar narrativas falsas que podem ser usadas para manipulação, desinformação, violação de privacidade, difamação, cyberbullying, ameaças e até mesmo extorsão. Enquanto a tecnologia por trás dos deepfakes continua a avançar, por mais que possa ser utilizada para entretenimento e outras aplicações legítimas, surge uma série de questões éticas e legais sobre sua criação e disseminação.

Crianças e adolescentes, pela sua vulnerabilidade, são especialmente afetados, tornando-se alvos fáceis de ataques que utilizam essas tecnologias para humilhação e coerção. A capacidade de gerar vídeos falsos que parecem reais pode amplificar os danos emocionais e sociais causados às vítimas, configurando um novo e perturbador cenário para o cyberbullying.

Diante desse contexto, é essencial examinar as responsabilidades éticas e legais dos criadores e desenvolvedores de tecnologias de IA. Este estudo propõe uma análise dessas responsabilidades, utilizando um estudo de caso específico para ilustrar os impactos psicológicos, sociais e legais do uso de deepfakes no cyberbullying.

O cyberbullying, o uso de tecnologia para assediar, intimidar ou difamar outros indivíduos, representa uma das formas mais insidiosas de abuso online. Quando combinado com a tecnologia de deepfake o cyberbullying pode causar danos devastadores às vítimas, comprometendo sua saúde mental, física, reputação e segurança pessoal.

Além disso, o artigo discute a aplicação da justiça restaurativa como uma abordagem potencialmente eficaz para lidar com os danos causados às vítimas, promovendo um processo de reparação e compreensão mútua.

Por fim, são apresentadas estratégias de prevenção e combate ao uso indevido de deepfakes Tais estratégias visam promover uma utilização ética e responsável das tecnologias de IA garantindo que seus benefícios possam ser aproveitados sem comprometer a integridade e a segurança dos indivíduos. Este artigo, portanto, busca contribuir para o debate sobre a ética na era digital, oferecendo insights e soluções para um problema emergente que desafia nossas concepções de verdade, privacidade e responsabilidade.

1. INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: CONCEITO

E HISTÓRICO

A Inteligência Artificial (IA) refere-se à capacidade de sistemas computacionais executarem tarefas que normalmente exigiriam inteligência humana. Isso inclui funções como reconhecimento de padrões, aprendizado, raciocínio, resolução de problemas e compreensão da linguagem natural. O conceito de IA remonta à década de 1950, quando pesquisadores começaram a explorar a ideia de criar máquinas que pudessem imitar funções cognitivas humanas. Desde então, houve avanços significativos na área, com o desenvolvimento de algoritmos e tecnologias cada vez mais sofisticados.

“Em geral, o termo “Inteligência Artificial” é atribuído ao professor de ciência da computação de Standford, John McCarthy, que conceituou a IA como “a ciência e a engenharia de construir máquinas inteligentes”. Esse conceito foi apresentado em 1956 durante a celebrada Conferência de Darthmouth em New Hampshire nos Estados Unidos, quando vários estudiosos da IA se reuniram por dois meses para debater o que viria a ser uma das ideias mais importantes de nossa era.

Entretanto, a compreensão em torno de uma Inteligência Artificial já havia aparecido em 1950 com o cientista da computação inglês, Alan Turing. Em seu artigo seminal intitulado “Computing Machine and Experience” Turing propôs que as máquinas pudessem ser consideradas “inteligentes” quando conseguissem simular o comportamento humano” (Alencar, 2021, p.13)

Um conceito de Inteligência Artificial que nos parece uma boa definição é o trazido por Bigonha, vejamos:

Inteligência Artificial é um campo de estudo que surgiu na década de 50, cujo objetivo principal é o estudo e a construção de sistemas capazes de exibir comportamentos normalmente associados às pessoas, como aprendizado e resolução de problemas. Algumas linhas de estudo de Inteligência Artificial são mais focadas em reproduzir a maneira como pensamos e raciocinamos, ao passo que outras se concentram no entendimento e na simulação de comportamento. (BIGONHA, 2020)

Aqui estão alguns marcos importantes no desenvolvimento da IA:

Dartmouth Conference (1956): Considerado o marco inicial da IA, a conferência realizada na Universidade Dartmouth reuniu pesquisadores para discutir e explorar o potencial de criação de máquinas inteligentes.

Perceptrons (1958): O psicólogo Frank Rosenblatt desenvolveu o conceito de perceptrons, uma forma inicial de redes neurais artificiais, que permitiu às máquinas reconhecerem padrões e aprenderem com exemplos.

O surgimento da lógica simbólica: Pesquisadores como John McCarthy, Marvin Minsky e Allen Newell desenvolveram abordagens baseadas em lógica formal para modelar a inteligência artificial. Isso incluiu a criação de linguagens de programação como o Lisp, que se tornou popular para desenvolvimento de IA.

Primeiros sistemas especialistas (1970s-1980s): Surgiram os primeiros sistemas especialistas, programas de computador projetados para imitar a capacidade de um especialista humano em resolver problemas em um domínio específico. Um exemplo notável é o sistema MYCIN, desenvolvido para diagnosticar doenças infecciosas.

Revolução do Aprendizado de Máquina (anos 1980 em diante): Com o aumento da capacidade computacional e o acesso a grandes conjuntos de dados, o aprendizado de máquina tornou-se uma abordagem central na IA. Algoritmos como redes neurais artificiais, árvores de decisão e algoritmos de agrupamento foram desenvolvidos e refinados.

Deep Learning e Redes Neurais Profundas (anos 2010 em diante): Com avanços em hardware e algoritmos, as redes neurais profundas tornaram-se uma técnica dominante em aprendizado de máquina. Essas redes, inspiradas no funcionamento do cérebro humano, permitem que as máquinas aprendam representações complexas de dados e realizem tarefas como reconhecimento de imagem, processamento de linguagem natural e tradução automática com desempenho cada vez mais próximo do humano.

Nos últimos anos, a IA tornou-se parte integrante de muitos aspectos da vida cotidiana, com aplicações que vão desde assistentes virtuais em smartphones até sistemas de recomendação em plataformas de streaming e diagnósticos médicos. Crianças e adolescentes também estão cada vez mais expostos à IA, muitas vezes de forma inconsciente, por meio de aplicativos e serviços digitais que fazem uso dessa tecnologia. Por exemplo, assistentes virtuais como a Siri da Apple, o Google Assistant e a Alexa da Amazon são comumente usados por crianças para realizar tarefas simples, como fazer perguntas, definir lembretes e reproduzir música.

1.1. Deepfakes: Definição e Funcionamento

Os deepfakes são uma forma de manipulação de mídia que utiliza inteligência artificial, em particular técnicas de aprendizado de máquina, para criar vídeos ou imagens falsos que parecem autênticos. Essa tecnologia permite que pessoas comuns criem conteúdo falso com facilidade, substituindo o rosto de uma pessoa em um vídeo por outro, por exemplo· Os deepfakes têm sido usados de diversas maneiras, desde fins humorísticos até a disseminação de informações falsas e o cyberbullying.

Embora o termo original fosse fakevideo, o nome deepfake se popularizou a partir da história de um usuário do site Reddit, que se apelidou de Deepfake e, especializado em inteligência artificial, passou a substituir rostos de pessoas em filmes. O termo passou então a ser associado a essa técnica, que opera a fusão de imagens em movimento, gerando um novo vídeo, cujo grau de fidedignidade é elevado a um patamar que somente com muita atenção se consegue notar se tratar de uma montagem. (MEDON, 2021)

O Instituto das Nações Unidas (ONU) para Pesquisa sobre Desarmamento (UNIDIR) conduz pesquisas independentes sobre desarmamento e questões de segurança internacional. Em 25 de agosto de 2021, realizou um evento online nomeado “Inovações: diálogo sobre Deepfakes Confiança e Segurança Internacional. Durante a conferência definiram que deepfake inclui vídeo, texto, imagens e áudio, ou seja, toda forma de conteúdo digital que foi manipulado ou criado do zero utilizando algoritmos de aprendizagem visando enganar e manipular um público.

O funcionamento dos deepfakes é baseado em algoritmos de aprendizado de máquina que analisam e sintetizam grandes quantidades de dados para criar representações realistas de pessoas e situações. Quando maior e de mais qualidade (considera-se a iluminação, o ângulo, o som ambiente, distância) for o banco de dados com informações de vídeos, fotos e áudios, maior será a fidelidade da criação do deepfake

Considerando que este trabalho é com foco em crianças e adolescentes, uma das preocupações mais sérias relacionadas aos deepfakes é o seu potencial para serem utilizados como ferramentas de cyberbullying· Por meio da criação de vídeos e imagens falsos e difamatórios, humilhantes, que causem constrangimentos e danos significativos às vítimas.

1.2. Ética na Criação e Disseminação de Deepfakes

Antes de mergulharmos na discussão sobre responsabilidade, é importante entendermos as questões éticas subjacentes à criação e disseminação de deepfakes Vale destacar que, no contexto jurídico, ética e moral desempenham papéis fundamentais na regulamentação e na aplicação das leis, especialmente em áreas emergentes como a inteligência artificial (IA). A ética refere-se aos princípios que guiam o comportamento humano, enquanto a moral envolve os valores e normas que determinam o que é certo ou errado em uma sociedade.

Do ponto de vista etimológico, o termo “Ética” vem de duas palavras gregas: a) Ēthos (ἦθος – com “eta”), que significa

“morada”, “abrigo”, “lugar onde se habita” etc·; b) Éthos (ἔθος – com “épsilon”), que significa “costume”, “hábito”, “uso” etc·

Do primeiro termo (ēthos) decorre, enquanto raiz semântica, o significado do segundo (éthos): ou seja, é justamente da realização daqueles comportamentos que se repetem no “lugar onde se habita” que nascem os “costumes” e os “hábitos”, que moldam, po r sua vez, a personalidade e o caráter dos indivíduos e dos grupos.

No Brasil, assim como em muitos outros países, há uma preocupação crescente com o desenvolvimento e o uso ético da IA, devido às suas amplas implicações sociais, econômicas e legais.

As situações envolvendo IA ainda não regulamentadas levantam questões éticas complexas· Por exemplo, questões de privacidade, transparência, discriminação algorítmica e responsabilidade legal são desafios cruciais que requerem diretrizes éticas robustas para orientar a legislação.

Em muitos casos, o Brasil pode olhar para regulamentações de outros países como referências ou “nortes”, adaptando e incorporando melhores práticas internacionais às suas próprias leis de IA. Como aconteceu com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD, que foi orientada a partir do Regulamento Geral de Proteção de Dados – GDPR (General Data Protection Regulation, norma GDPR 2016/679), pode-se usar a recém aprovada Regulamentação de Inteligência

Artificial da União Europeia que determina que os sistemas de IA utilizados sema seguros, transparentes, rastreáveis, não discriminatórios. Devem além disso, ser supervisionados por pessoa, para evitar resultados prejudiciais, comumente nos automatizados.

No entanto, simplesmente adotar regulações de outros países não é suficiente. Cada nação enfrenta contextos jurídicos, sociais e culturais únicos que devem ser considerados ao desenvolver políticas regulatórias. Além disso, a implementação de IA sem uma estrutura ética adequada pode resultar em consequências adversas significativas· Por exemplo, sistemas de IA que não são transparentes ou que perpetuam preconceitos podem minar a confiança pública e violar princípios fundamentais de justiça.

Portanto, é primordial que as legislações brasileiras sobre IA sejam informadas por princípios éticos sólidos que garantam o uso responsável e ético da tecnologia. Isso envolve não apenas o desenvolvimento de regulamentações claras e aplicáveis, mas também mecanismos eficazes de supervisão e responsabilização.

A colaboração internacional e a troca de experiências com outros países são importantes, mas a adaptação às necessidades e valores locais é fundamental para promover um ambiente jurídico que proteja os direitos individuais e promova o bem-estar social no contexto da IA.

Em sua essência, os deepfakes representam uma forma de manipulação digital que pode distorcer a verdade e

comprometer a integridade das informações. Os criadores de deepfakes enfrentam dilemas éticos significativos ao decidir como usar essa tecnologia, especialmente quando se trata de representações falsas de pessoas reais.

Uma das principais preocupações éticas relacionadas aos deepfakes é o potencial de causar danos às vítimas. Quando uma pessoa é retratada de forma falsa em um vídeo ou imagem deepfake, isso pode ter sérias consequências para sua reputação e bem-estar emocional, especialmente se tratando de crianças e adolescentes, por pertencerem a um grupo vulnerável, devido a estarem ainda em desenvolvimento mental e físico.

Outra questão ética importante é a privacidade das pessoas retratadas em deepfakes A tecnologia de deepfake levanta preocupações sobre a capacidade de criar conteúdo falso usando imagens e vídeos de indivíduos sem seu consentimento· Isso pode levar a violações sérias de privacidade e colocar as pessoas em situações constrangedoras, vexatórias ou comprometedoras sem seu conhecimento.

Além disso, em um contexto geral, os deepfakes podem ser usados para manipular a opinião pública e influenciar o comportamento das pessoas. Exemplo disso, é o uso em períodos eleitorais, onde a imagem de um candidato poderia ser usada para manipular o eleitor· Isso levanta questões sobre a manipulação da democracia e a integridade do processo eleitoral, especialmente quando deepfakes são usados para disseminar desinformação e propaganda.

Nesse aspecto, do processo eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) alterou a Resolução nº 23·610/2019, que trata de propaganda eleitoral, o Tribunal incluiu diversas novidades que envolvem a inteligência artificial, como a proibição das deepfakes e a obrigação de aviso sobre o uso de IA na propaganda eleitoral·

Em última análise, considerando a demanda crescente de conteúdo envolvendo IAs, sem uma regulamentação aprovada sobre o assunto, os criadores de deepfakes enfrentam uma série de questões éticas e morais ao decidir como usar essa tecnologia· Eles devem considerar a responsabilização civil e criminal decorrentes das violações e danos causados, nas vítimas individuais, também as implicações mais amplas para a sociedade como um todo.

2. CYBERBULLYING: CONCEITO LEGAL, JUSTIFICATIVA PARA CRIMINALIZAÇÃO

Nesse tipo de violência, crianças e adolescentes são os alvos mais comuns de ataques, intimidações, humilhações e difamações por parte de colegas ou conhecidos. O que antes da era digital acontecia apenas presencialmente, especialmente em escolas, agora também no mundo virtual, com muita frequência e com impacto mais devastador, considerando a fácil e rápida disseminação do conteúdo do cyberbullying.

Já havia uma conceituação na Lei de 13·185/2015, que instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying), definida no parágrafo único do art. 2◦

No entanto, com a crescente violência na rede mundial de computadores, com discursos de ódio, uso de imagens de adolescentes sendo usados indevidamente em sites de pedofilia, de exploração sexual e ameaças diversas, acelerou a tramitação de um projeto de lei, onde entre outras determinações, altera o Código Penal para acrescentar o art· 146-A.

A Lei n. 14.811, de 12 de janeiro de 2024, definiu a Intimidação sistemática (bullying) e o cyberbullying da seguinte forma:

Art. 146-A. Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais:

Pena - multa, se a conduta não constituir crime mais grave.

Intimidação sistemática virtual (cyberbullying) Parágrafo único. Se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos on-line ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real:

Pena - reclusão, de 2 (dois) anos a 4 (quatro) anos, e multa, se a conduta não constituir crime mais grave.

Exemplo disso o caso ocorrido no aplicativo Discord, onde segundo a força-tarefa do Ministério Público de São Paulo, foram identificadas pelo menos 50 crianças e adolescentes vítimas de abusos na plataforma· Há relatos de incitação de mutilações, estupros virtuais, tortura, ameaças e discursos de ódio impregnados de racismo, misoginia e apologia ao nazismo.

O promotor Danilo Pugliesi (Resende, 2023), que atuou na força tarefa, afirmou: São crimes praticados de uma forma que nunca foi vista neste ambiente virtual· Há muito sadismo e perversidade no material.

O caso do Discord, supracitado, foi noticiado com a prisão no Rio de Janeiro, do jovem identificado como Derek, que foi preso sob a acusação de manipular e chantagear adolescentes através da plataforma Discord.

Relatos indicam que jovens, principalmente meninas, foram coagidas a enviar fotos íntimas e vídeos comprometedores sob ameaça de divulgação pública· A investigação teve início após um dos pais, preocupado com a alteração do comportamento de sua filha, procurar a delegacia local. A partir

dessa denúncia inicial, outras vítimas foram identificadas, e o computador de Derek foi apreendido, revelando evidências contundentes destes e outros crimes.

O cyberbullying não se restringe apenas à difamação ou intimidação online; ele engloba práticas deliberadas de humilhação, coação e violação da privacidade· No caso de Derek, suas vítimas foram expostas a um grave risco emocional e psicológico. A disseminação não autorizada de imagens íntimas pode causar danos irreparáveis à autoestima, à saúde mental e ao bem-estar das vítimas, afetando profundamente suas vidas pessoais e sociais· Destacam-se:

1. Impacto Emocional: O cyberbullying pode ter graves consequências emocionais para as vítimas, causando ansiedade, depressão, baixa autoestima, estresse e até mesmo pensamentos suicidas. O constante assédio online pode fazer com que as vítimas se sintam isoladas, com medo e incapazes de lidar com a situação.

2. Impacto Social: Além do impacto emocional, o cyberbullying pode afetar negativamente as relações sociais das vítimas. Elas podem se sentir excluídas, rejeitadas e envergonhadas perante seus colegas de escola ou amigos online· Isso pode levar à deterioração das amizades, ao isolamento social e ao afastamento das atividades sociais.

3. Violação da Privacidade: O cyberbullying muitas vezes envolve a divulgação de informações pessoais, fotos ou vídeos sem o consentimento da vítima, violando sua privacidade e expondo-a a situações constrangedoras e humilhantes perante um público amplo.

4. Ofensa à Dignidade: As mensagens de ódio, insultos e difamações presentes no cyberbullying representam uma clara ofensa à dignidade da vítima. Elas são atacadas em sua integridade moral e submetidas a um ambiente hostil e degradante, que pode deixar marcas profundas em sua autoimagem e identidade.

A esse respeito, profissionais do UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), especialistas em cyberbullying e proteção infantil, afirmaram:

Quando você sofre  cyberbullying, pode começar a se sentir envergonhado(a), nervoso(a), ansioso(a) e inseguro(a) sobre o que as pessoas dizem ou pensam sobre você. Isso pode levar ao afastamento de amigos(as) e familiares, pensamentos negativos, sentimento de culpa por coisas que você fez ou não fez ou sensação de que está sendo julgado(a) negativamente. Sentir-se sozinho(a), sobrecarregado(a), com dores de cabeça frequentes, náuseas ou dores de estômago também é comum.

Você pode perder a motivação para fazer as coisas que normalmente gosta de fazer e se sentir isolado(a) das pessoas que ama e em quem confia. Isso pode perpetuar sentimentos e pensamentos negativos que podem afetar de forma adversa sua saúde mental e seu bem-estar. (UNICEF, 2024)

Em suma, o cyberbullying representa uma ameaça significativa ao bem-estar emocional e social de crianças e adolescentes, além de violar sua privacidade e dignidade. É fundamental que todos estejam atentos e engajados na prevenção e enfrentamento dessa forma de violência, garantindo um ambiente online seguro e saudável para todos.

A legislação adequada e eficaz é um passo fundamental na direção de garantir que nenhum jovem seja vítima dessas formas de violência, seja no mundo físico ou virtual.

3. ESTUDO DE CASO: CYBERBULLYING COM USO DE DEEPFAKE EM ESCOLA DO RIO DE JANEIRO

O uso de tecnologias avançadas, como a inteligência artificial (IA), tem trazido inúmeros benefícios à sociedade, mas também apresenta novos desafios e perigos, especialmente no campo da privacidade e segurança digital. Um caso recente ocorrido em uma escola particular do Rio de Janeiro ilustra como essas tecnologias podem ser usadas de forma maliciosa para cometer crimes de cyberbullying.

3.1. Contexto e Descrição do Caso

No final do ano passado, estudantes de uma escola particular no Rio de Janeiro foram expostos a uma forma grave de cyberbullying envolvendo o uso de deepfake, uma tecnologia de inteligência artificial capaz de criar imagens e vídeos falsos que parecem reais· Nesse incidente, fotos reais de aproximadamente 20 adolescentes foram adulteradas para criar montagens que as mostravam nuas. As imagens falsas foram então amplamente compartilhadas em grupos de WhatsApp, causando grande sofrimento e constrangimento às vítimas.

Os responsáveis por essas manipulações eram alunos da própria escola, que utilizaram aplicativos de inteligência artificial facilmente acessíveis para realizar as adulterações. As fotos originais foram retiradas das redes sociais das adolescentes, muitas vezes mostrando-as em trajes de banho ou roupas casuais. A facilidade com que essas imagens puderam ser alteradas e distribuídas evidencia um grave problema na segurança digital e na proteção da privacidade dos indivíduos.

3.2. Impacto nas Vítimas

O impacto emocional e psicológico sobre as vítimas foi significativo· As adolescentes, em maioria com 14 anos, enfrentaram humilhação e estresse emocional devido à ampla circulação das imagens falsificadas. Em entrevistas, mães relataram com indignação ao verem suas filhas expostas de maneira tão invasiva e danosa. Algumas meninas receberam as imagens durante as aulas, agravando ainda mais o trauma.

Uma das mães descreveu o sentimento de impotência ao tentar buscar ajuda na escola, onde a resposta inicial minimizou a gravidade do incidente. Essa falta de apoio institucional imediata destacou a necessidade de políticas e procedimentos mais eficazes para lidar com casos de cyberbullying e crimes digitais.

Um artigo que faz parte da coluna “Scientific American’s column The Science of Parenting ” explicou sobre o aumento significativo de jovens utilizando deepfakes para criar fotos de cunho sexual de seus colegas também adolescentes. Segundo SCIENTIFIC, 2024, os infratores podem pensar em um nude deepfake como uma brincadeira engraçada ou deixar de prever como as cópias podem circular fora de controle.

Dentre as discussões de casos estudadas no artigo, levanta questão da “justiça restaurativa” como solução de conflitos para esses jovens. Esse modelo de resolução de conflitos, visa não somente a punição do agressor, mas também a oportunidade de todas as partes interessadas se manifestarem sobre o ocorrido em um ambiente mais descontraído· A ideia é criar uma rede de conversa entre quem tiver vontade de faze-la, para responsabilizar, reconciliar e reintegrar o infrator socialmente. Não somente, dá voz a vítima expressar o sentimento, auxiliando na cura e reparação do dano emocional sofrido. No respectivo artigo mencionado ele comenta de as próprias escolas poderem promoverem tal ato.

3.3. Resposta Institucional e Legal

A escola envolvida, o Colégio Santo Agostinho, adotou medidas para apoiar as vítimas e suas famílias, incluindo a contratação de uma psicóloga para fornecer acompanhamento psicológico. No entanto, a resposta inicial de algumas autoridades escolares foi inadequada, subestimando a seriedade da situação.

A Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) do Rio de Janeiro iniciou uma investigação aprofundada, ouvindo as vítimas e testemunhas para entender a extensão do delito. A manipulação e a distribuição de imagens sem consentimento são crimes previstos no Código Penal brasileiro, e, além do processo criminal, os responsáveis podem enfrentar ações na esfera cível, incluindo indenizações por danos morais.

A prática de criar e distribuir deepfakes como forma de cyberbullying levanta questões complexas sobre a legislação existente e a necessidade de atualizações para acompanhar os avanços tecnológicos· Especialistas em direito digital, como a advogada Patrícia Beck em entrevista (G1, 2023a), argumentam que a produção de imagens não autorizadas constitui um crime contra a honra, destacando a urgência de regulamentações mais rigorosas para proteger os indivíduos.

A presidente do Instituto Istart de Ética Digital (G1, 2023b), enfatizou a importância de uma educação digital preventiva que comece nas salas de aula e seja fomentada pelo Estado. Ela alertou para o risco de criar uma geração que desconfia das instituições e busca fazer justiça por conta própria, ressaltando a necessidade de campanhas educativas e a responsabilidade dos provedores e plataformas digitais.

Este caso de cyberbullying com uso de deepfake exemplifica os perigos das novas tecnologias quando usadas de maneira nociva· A falta de regulamentação específica e a falta de um plano de ação, afeta a resposta institucional inicial, tornando-a inadequada. Como visto, evidente a necessidade urgente de medidas legais e educativas para proteger os jovens, educar e punir os responsáveis por esses atos· A sociedade precisa se adaptar rapidamente às mudanças tecnológicas para garantir a segurança e a dignidade de todos os seus membros, especialmente dos mais vulneráveis, como as crianças e adolescentes.

4. IMPLICAÇÕES LEGAIS E NECESSIDADE DE REGULAMENTAÇÃO

A prática de criar e distribuir deepfakes como forma de cyberbullying levanta questões complexas sobre a legislação existente e a necessidade de atualizações para acompanhar os avanços tecnológicos. Especialistas em direito digital, como a advogada Patrícia Beck em entrevista (G1, 2023a), argumentam que a produção de imagens não autorizadas constitui um crime contra a honra, destacando a urgência de regulamentações mais rigorosas para proteger os indivíduos.

A presidente do Instituto Istart de Ética Digital (G1, 2023b), enfatizou a importância de uma educação digital preventiva que comece nas salas de aula e seja fomentada pelo Estado. Ela alertou para o risco de criar uma geração que desconfia das instituições e busca fazer justiça por conta própria, ressaltando a necessidade de campanhas educativas e a responsabilidade dos provedores e plataformas digitais.

Este caso de cyberbullying com uso de deepfake exemplifica os perigos das novas tecnologias quando usadas de maneira nociva· A falta de regulamentação específica e a falta de um plano de ação, afeta a resposta institucional inicial,

tornando-a inadequada. Como visto, evidente a necessidade urgente de medidas legais e educativas para proteger os jovens, educar e punir os responsáveis por esses atos. A sociedade precisa se adaptar rapidamente às mudanças tecnológicas para garantir a segurança e a dignidade de todos os seus membros, especialmente dos mais vulneráveis, como as crianças e adolescentes.

4.1. Responsabilidade Civil e Criminal na Propagação de Deepfakes

O cyberbullying é uma forma insidiosa de abuso online que pode ter consequências devastadoras para as vítimas. Quando combinado com a tecnologia de deepfake o cyberbullying pode se tornar ainda mais prejudicial, criando narrativas falsas e difamatórias que podem ser extremamente difíceis de desfazer.

O caso estudado anteriormente, várias partes podem ser consideradas responsáveis pelos danos causados à vítima. Isso inclui não apenas o criador original do deepfake mas também qualquer pessoa que tenha contribuído para sua disseminação. Isso pode incluir indivíduos que compartilharam o deepfake em redes sociais, bem como plataformas de mídia social que não tomaram medidas adequadas para remover o conteúdo difamatório.

Do ponto de vista jurídico, as vítimas de cyberbullying com deepfakes podem ter direito a reparação por danos, incluindo compensação por danos emocionais, perda de renda e danos à reputação. Os criadores de deepfakes também podem ser responsabilizados por negligência, especialmente se não tomaram precauções adequadas para garantir que seu conteúdo não causasse danos às vítimas.

Os provedores de aplicações de internet, entendidos como aqueles que utilizam acesso à internet para prestar serviços, a exemplo do Instagram, Facebook, TikTok, WhatsApp, Google Chrome, Firefox, poderão ser responsabilizados na medida descrita no art. 21 da Lei n· 12·965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet, que aduz o seguinte:

Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.

Além da responsabilidade civil, a propagação de deepfakes difamatórios também pode ter implicações criminais. Isso inclui uma série de crimes do Código Penal Brasileiro, como cyberbullying (art·146-A, parágrafo único), difamação (art. 139), constrangimento ilegal (art. 146), ameaça (art. 147), perseguição (art. 147-A), violência psicológica contra a mulher (art. 147-B), divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena sexo ou de pornografia (art. 218C) e até mesmo extorsão (art. 158), dependendo das circunstâncias específicas do caso·

É importante notar que a responsabilidade criminal pelo cyberbullying com deepfakes não se limita apenas aos criadores do conteúdo. Qualquer pessoa que compartilhe ou promova o deepfake difamatório também pode ser considerada cúmplice nos crimes cometidos. Isso inclui indivíduos que compartilham o deepfake em redes sociais, bem como plataformas de mídia social que não tomam medidas adequadas para remover o conteúdo ilegal.

Portanto, tanto os criadores quanto os propagadores de deepfakes podem enfrentar consequências legais sérias, visando a proteção das vítimas e a mitigação desses atos nocivos no ambiente digital.

5. ESTRATÉGIAS DE PREVENÇÃO E COMBATE AO CYBERBULLYING COM DEEPFAKES

Para enfrentar o desafio crescente do cyberbullying com deepfakes é essencial adotar abordagens abrangentes que abordem tanto os aspectos técnicos quanto os sociais do problema.

Primeiramente, investir em tecnologias avançadas de detecção de deepfakes é imprescindível. Por meio de Algoritmos de Detecção, permitindo a detecção automatizada de deepfakes através de anomalias visuais ou de áudio. Isso pode incluir diferenças sutis na textura da pele, movimentos faciais irregulares ou distorções na iluminação, analisar características como padrões de ondas sonoras e frequências para detectar alterações ou sobreposições não naturais.

Essas ferramentas de detecção, podem identificar e remover rapidamente conteúdos falsos das redes sociais e outras plataformas online, mitigando assim seu impacto prejudicial.

Além disso, é fundamental educar o público sobre os perigos dos deepfakes e como reconhecê-los. Orientar as pessoas sobre métodos para verificar a autenticidade de vídeos e imagens online ajuda a fortalecer a capacidade crítica dos usuários e reduzir a disseminação involuntária de conteúdo falsificado. Isso inclui programas de conscientização nas escolas e campanhas públicas de informação.

As plataformas de mídia social desempenham um papel fundamental na prevenção do cyberbullying com deepfakes É imperativo que essas empresas implementem políticas claras e eficazes para identificar e remover conteúdos difamatórios.

Medidas rápidas e decisivas são essenciais para conter a propagação de deepfakes prejudiciais, como a proibição de conteúdos manipulados de forma enganosa e a implementação de sistemas automatizados para detectar e remover esses conteúdo e parcerias com especialistas em segurança cibernética, universidades e organizações de pesquisa para desenvolver tecnologias mais avançadas de detecção e mitigação de deepfakes.

Para as vítimas de cyberbullying, é fundamental proporcionar suporte e proteção adequados:

• Comunicação Aberta: Encorajar as vítimas a comunicarem o ocorrido a um adulto de confiança, como pais, professores, orientadores escolares ou profissionais de saúde mental, facilita a adoção de medidas de apoio e proteção.

• Bloqueio e Denúncia: Orientar as vítimas a bloquearem os agressores e denunciar o comportamento de cyberbullying às plataformas digitais responsáveis é essencial· Essas empresas têm políticas de combate ao bullying online e podem remover conteúdos prejudiciais rapidamente.

• De maneira autônoma, é disponibilizado as vítimas de tal crime um site denominado “Take it down ”, caso menor de 18 anos e outro site chamado “Stopncii” para maiores de 18 anos· Ambas as organizações têm a função de remover qualquer conteúdo envolvendo nudez total ou parcial da internet· Independe da nacionalidade e localidade é possível fazer essa solicitação.

• Apoio Psicológico: Oferecer acompanhamento psicológico especializado é primordial para ajudar as vítimas a lidarem com as consequências emocionais do cyberbullying· Profissionais qualificados podem fornecer suporte emocional, estratégias de enfrentamento e ferramentas para reconstruir a autoestima e o bem-estar psicológico das vítimas.

• Educação e Conscientização: Promover uma educação ampla e conscientização sobre os riscos e consequências do cyberbullying entre crianças, adolescentes, pais e educadores é fundamental. Fomentar uma cultura de respeito, empatia e responsabilidade nas interações online ajuda a prevenir o surgimento de comportamentos nocivos.

• Justiça Restaurativa: Instituída formalmente no Brasil pela Resolução 225, de 2016, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a justiça restaurativa ganhou naquele ano o nome de Política Nacional de Justiça Restaurativa no Poder Judiciário. Consiste em uma técnica de solução de conflito e violência

que se orienta pela criatividade e sensibilidade a partir da escuta dos ofensores e das vítimas· Segundo o Ministro Humberto Martins do Superior Tribunal de Justiça (STJ, 2020), em São Paulo tem sio utilizada em escolas públicas e privadas, auxiliando na prevenção e diminuição de conflitos. No Rio Grande do Sul, tem sido aplicado na área da infância juventude para auxiliar no cumprimento das medidas socioeducativas impostas aos adolescentes· A Resolução 225, de 2016, do CNJ, define a justiça restaurativa como:

Art. 1º. A Justiça Restaurativa constitui-se como um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato, são solucionados de modo estruturado na seguinte forma:

– é necessária a participação do ofensor, e, quando houver, da vítima, bem como, das suas famílias e dos demais envolvidos no fato danoso, com a presença dos representantes da comunidade direta ou indiretamente atingida pelo fato e de um ou mais facilitadores restaurativos;

II – as práticas restaurativas serão coordenadas por facilitadores restaurativos capacitados em técnicas autocompositivas e consensuais de solução de conflitos próprias da Justiça Restaurativa, podendo ser servidor do tribunal, agente público, voluntário ou indicado por entidades parceiras;

III – as práticas restaurativas terão como foco a satisfação das necessidades de todos os envolvidos, a responsabilização ativa daqueles que contribuíram direta ou indiretamente para a ocorrência do fato danoso e o empoderamento da comunidade, destacando a necessidade da reparação do dano e da recomposição do tecido social rompido pelo conflito e as suas implicações para o futuro.

Essas estratégias integradas não apenas visam proteger as vítimas de cyberbullying com deepfakes mas também promover um ambiente online mais seguro e responsável para todos os usuários· A colaboração entre governo, empresas de tecnologia, educadores e comunidades é essencial para enfrentar esse desafio complexo de maneira eficaz e sustentável.

5.1. Proteção de Crianças e Adolescentes no Contexto Digital

Embora ainda não haja uma regulamentação específica sobre inteligência artificial, diversos projetos de lei estão sendo discutidos na Câmara dos Deputados e no Senado, sobre uso de deepfake, recursos que alteram rostos e vozes de

pessoas para uso político, publicitário ou em pornografia; reprodução e manipulação de voz e imagem de pessoas falecidas; direitos autorais e plágio em obras criadas por IA; uso de reconhecimento facial e regulamento do uso de veículos autônomos terrestre estão entre os temas dos projetos.

Enquanto isso, para proteger integralmente crianças e adolescentes contra ameaças como o cyberbullying com deepfakes podemos contar com um arcabouço legal robusto que inclui a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Código Civil, o Marco Civil da Internet, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), além de tratados internacionais como a Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil.

A Constituição Federal garante a proteção à dignidade da pessoa humana e estabelece a responsabilidade do Estado, da família e da sociedade em assegurar os direitos fundamentais de crianças e adolescentes.

O ECA complementa essa proteção ao estabelecer direitos específicos e medidas protetivas aos menores de 18 anos. Além disso, observa-se o texto o art. 18 do Estatuto: “Art. 18· É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor·”

O Código Civil, por sua vez, regula questões como responsabilidade civil e direitos da personalidade, especialmente o de imagem, fundamentais para casos de violação de privacidade digital.

O Marco Civil da Internet e a LGPD são fundamentais para garantir a segurança digital e a proteção de dados pessoais online. Enquanto o Marco Civil estabelece princípios, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil, a LGPD oferece diretrizes específicas para o tratamento de dados pessoais, impondo regras rigorosas para coleta, armazenamento e compartilhamento de informações, com penalidades severas para violações· No que concerne aos direitos de crianças e adolescentes, o art. 14 da LGPD determina que o tratamento dos dados pessoais deverá ser realizado em seu melhor interesse.

A Lei 13.431/2017, segundo Bianchini, 2024, no intuito de auxiliar a compreensão das violências, traz um rol exemplificativo de cada violência. De acordo com o inciso II, a, do art. 4°, a conduta de discriminação, depreciação ou desrespeito pode ser praticada mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, agressão verbal e xingamento, ridicularização, indiferença, exploração ou intimidação sistemática (bullying).

Além das leis nacionais, a Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil em 1990, estabelece padrões internacionais para proteção infantil, exigindo que os Estados

partes adotem medidas para prevenir abusos contra crianças em qualquer forma de mídia, incluindo novas tecnologias como deepfakes A esse respeito, aduz o art. 19 da Convenção:

Artigo 19· Os Estados Partes devem adotar todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, ofensas ou abusos, negligência ou tratamento displicente, maus-tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a custódia dos pais, do tutor legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela.

(UNICEF, 1990)

Portanto, embora ainda não haja uma legislação específica sobre inteligência artificial, a combinação dessas normas oferece um arcabouço jurídico sólido para enfrentar os desafios emergentes no ambiente digital, protegendo eficazmente os direitos fundamentais de crianças e adolescentes contra abusos e manipulações, como o cyberbullying com uso de deepfakes A implementação efetiva dessas leis, aliada à conscientização pública e educação digital, é essencial para garantir um ambiente online seguro e ético para as futuras gerações.

6. CONCLUSÃO

Em um mundo cada vez mais digital, a criação e disseminação de deepfakes representam um desafio significativo para a ética e a responsabilidade. O cyberbullying com deepfakes pode ter consequências devastadoras para as vítimas, comprometendo sua saúde mental, reputação e segurança pessoal.

Neste artigo, examinamos as questões relacionadas ao cyberbullying com deepfakes destacando um estudo de caso específico para ilustrar. Discutimos a responsabilidade civil e criminal dos envolvidos na criação e disseminação de deepfakes bem como as medidas necessárias para prevenir e mitigar esse problema.

A legislação existente, embora trate de alguns aspectos do cyberbullying e da privacidade digital, precisa ser atualizada para acompanhar o ritmo acelerado das inovações tecnológicas. A regulamentação deve não apenas criminalizar explicitamente o uso malicioso de deepfakes para cyberbullying, mas também estabelecer diretrizes claras para responsabilizar não apenas os criadores, mas também os propagadores de conteúdo difamatório.

Além das medidas legais, é crucial investir em educação digital desde a infância, promovendo a conscientização sobre os perigos da manipulação de mídia e incentivando o uso ético das tecnologias digitais. Escolas e famílias devem trabalhar

em conjunto para criar um ambiente seguro e saudável online, onde os jovens sintam-se protegidos contra abusos e manipulações.

Finalmente, para mitigar os impactos devastadores do cyberbullying com deepfakes, é essencial uma colaboração contínua entre legisladores, educadores, pais e comunidades online. Somente com um esforço conjunto podemos garantir que o potencial transformador das tecnologias digitais seja utilizado para o bem-estar de todos, especialmente das crianças e adolescentes, protegendo sua dignidade, privacidade e saúde mental.

Esta análise do caso de cyberbullying com uso de deepfake em uma escola do Rio de Janeiro serve como um lembrete urgente da necessidade de ações rápidas e coordenadas para enfrentar os desafios emergentes na era digital. A proteção dos direitos e da segurança das futuras gerações deve ser uma prioridade inegociável em um mundo cada vez mais conectado e dependente de tecnologias digitais avançadas. Em última análise, enfrentar o cyberbullying com deepfakes exigirá uma abordagem multifacetada que envolva não apenas tecnologia e regulamentação, mas também educação pública e conscientização. Somente através de esforços coordenados e colaborativos podemos garantir um ambiente digital ético e seguro para todos.

REFERÊNCIAS

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BIANCHINI, A.et. al. Crimes Contra Crianças e Adolescentes.2.ed., ver., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Juspodivum, 2024.

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A SUCESSÃO CAUSA MORTIS DOS DIREITOS AUTORAIS NA

ATUALIDADE

Palavras-chave

Sucessão. Direitos Autorais. Direito Ao Conhecimento.

Iriana Maira Munhoz Salzedas

Procuradora Jurídica. Coordenadora do Curso de Direito da Faculdade Marechal Rondon. Professora nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito. Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Especialista em Processo Civil e Direito Civil pela Instituição Toledo de Ensino. Doutoranda na Universidade de Buenos Aires – UBA. Doutoranda da Universidade Nove de Julho – UNINOVE.

Resumo

O presente estudo tem como escopo ensejar uma reflexão sobre a sucessão dos direitos autorais em face do extenso prazo conferido aos familiares para exploração das obras. Esses apontamentos surgem com a colisão entre dois direitos fundamentais, o direito à sucessão dos herdeiros pelo prazo de setenta anos e o direito ao conhecimento. A pergunta que fazemos: Qual desses direitos devem preponderar na atual sociedade contemporânea? Neste contexto, apresentaremos como a legislação vigente vem disciplinando o tema e a necessidade de reformulação das leis sucessórias e autorais, em razão de não acompanharem as transformações sociais.

Foto: Fábio Cres

INTRODUÇÃO

Quando pensamos em sucessão de bens, em razão da morte, acreditamos ser transmissível somente bens materiais ou corpóreos aos herdeiros, todavia este pensamento é equivocado, uma vez que a herança também pode transmitir bens imateriais ou incorpóreos, ou seja bens que não são palpáveis, mas tão importantes e valiosos quanto os bens patrimoniais.

Neste contexto, se enquadra a sucessão causa mortis das obras intelectuais, isto é, os direitos autorais disciplinados na Lei nº 9.610/98 são objeto de transmissão, porém com caráter peculiar, pois o referido diploma prevê um lapso de tempo de 70 (setenta) anos para os herdeiros disporem desses bens.

Os direitos autorais possuem duas vertentes, conforme a Lei 9.610/99, uma vez que esses direitos são divididos em morais e patrimoniais, logo é objeto de transmissão os direitos patrimoniais e não os morais, pois os herdeiros não podem alterar o conteúdo das obras herdadas.

A celeuma sobre o tema está no lapso temporal que os herdeiros podem desfrutar da obra, após a morte do autor. Nosso objetivo é ensejar uma reflexão sobre a incompatibilidade do prazo que os herdeiros possuem em face ao gozo da obra e o direito ao conhecimento, pois o prazo de setenta anos não mais atende as necessidades de uma sociedade digital.

1. BREVE HISTÓRICO DO DIREITO SUCESSÓRIO

O nascimento e a morte são dois fenômenos naturais que possuem relevância no ordenamento jurídico, sendo o primeiro, a forma de aquisição da personalidade civil da pessoa, conforme o art. 2º do Código Civil; e a segunda extingue está personalidade jurídica, logo ambos geram direitos e obrigações legais.

Ao nascermos a única certeza que temos é que um dia vamos morrer, logo podemos classificar a morte como termo, pois é um evento futuro e certo. Porém, apesar de ser fato certo na vida do ser humano conceituar este fenômeno natural é uma tarefa árdua, pois seu conceito vai além da medicina ou de qualquer critério jurídico aplicável para denominá-la.

Por essa razão, optei pela reflexão de Chicó1 personagem do filme “O Auto da Compadecida”, quando seu amigo João Grilo morre, ele diz “Cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre”.

1 Site da Academia Brasileira de Letras. Link: https://www.academia. org.br/academicos/arianosuassuna/textos-escolhidos, acessado em 26/06/2023.

Portanto, quando o indivíduo cumpre sua sentença, abre-se automaticamente sua sucessão, pois é no momento da morte e não da abertura do inventário que os herdeiros do de cujus o sucedem em direitos e obrigações. A transmissão automática do patrimônio do de cujus aos herdeiros no momento da morte está fundamentada no princípio da saisine.

Este princípio teve origem no feudalismo, quando do falecimento do servo, o senhor feudal assumia o direito à herança e os herdeiros só conseguia receber os bens mediante o pagamento de pesados impostos. Para driblar a tributação surgiu na França o chamado princípio da saisine , uma ficção de que a transmissão do patrimônio aos herdeiros ocorre de forma automática (DIAS, 2013).

O direito sucessório teve origem na transmissão do culto doméstico em Roma. Como o direito de propriedade havia sido estabelecido para cumprimento de um culto hereditário, não era possível que se extinguisse depois da curta existência de um indivíduo. O homem morre, o culto continua; o lar não deve extinguir-se, nem o túmulo deve ser abandonado. Com a continuação da religião doméstica, o direito de propriedade também permanece (COULAGNES, 1961).

Com o tempo a família com formato de prole numerosa, perde espaço com o surgimento da propriedade individual no lugar do patrimônio familiar, logo o poder familiar cede para um poder essencialmente econômico e individual e, morto o proprietário dos bens, o domínio desse acervo será transferido aos sucessores, e nessa quadra da história o direito sucessório romano perde sua finalidade sacra e familiar (COULAGNES, 1961).

Neste contexto, o ordenamento jurídico prevê duas modalidades de sucessão causa mortis: sucessão legitima e sucessão testamentária, a primeira decorre da lei, que enuncia a ordem de vocação hereditária, presumindo a vontade do autor da herança, já a segunda tem origem em ato de última vontade do morto, por testamento, legado ou codicilo, mecanismos sucessórios para exercício da autonomia privada do autor da herança (TARTUCE, 2023).

Convém ressaltar, que a lei a ser aplicada no momento da abertura da sucessão é a legislação vigente no tempo da morte, por exemplo, se uma pessoa morreu sob a vigência do Código Civil de 1916 (perdurou até janeiro de 2002) e seu inventário é aberto no ano de 2023, a legislação a ser aplicada é o Código Civil 1916.

O direito à sucessão aberta e o direito à herança constituem bens imóveis por determinação legal, conforme consta do art. 80, inciso II, do CC/2002. Isso ocorre mesmo se a herança for composta apenas por bens móveis, caso de dinheiro e veículos. A imobilidade da herança é imposta por lei, por uma ficção da norma jurídica, o que gera uma série de consequências importantes (TARTUCE, 2023).

Como consequência da imobilidade da herança, os bens deixados pelo de cujus é tratado como um bem indivisível até que seja ultimada a partilha entre os herdeiros através do inventário, portanto os herdeiros serão condôminos em relação aos bens deixados pelo de cujus lembrando que a responsabilidade dos herdeiros se limita as forças da herança deixada.

Em regra, como já salientamos, quando se fala em sucessão causa mortis pensamos que somente é transmissível bens materiais, porém uma herança também pode transmitir bens imateriais, ou seja bens não palpáveis, se enquadrando nesta classificação os direitos autorias, os quais são transmitidos aos sucessores do titular da obra com a imposição de prazo.

Esse prazo é conferido pela Lei nº 9.610/98, dispondo que os herdeiros terão setenta anos para desfrutarem das obras herdadas, todavia, este tempo é incompatível com a dinâmica da sociedade contemporânea, conforme vamos analisar.

2. A sucessão dos direitos autorais no ordenamento jurídico brasileiro

A sucessão analisada neste trabalho é a causa mortis com previsão legal no art. 49 da Lei 9.610/98, a qual prescreve “os direitos de autor poderão ser total ou parcialmente transferidos a terceiros, por ele ou por seus sucessores, a título universal ou singular, pessoalmente ou por meio de representantes com poderes especiais”.

Portanto, apesar desta transmissão não ser corriqueira nos inventários, é relevante o número de casos concretos que acabam em litigio, principalmente porque nossas leis autorais necessitam de reformulação para atender os problemas contemporâneos sobre o tema.

Os direitos autorais podem ser adequadamente tratados como direitos fundamentais da pessoa humana, tendo em vista sua garantia em diversos dispositivos de ordem internacional e guarida expressa no art. 5º, inciso XXVII da Constituição Federal de 1988, além da legislação infraconstitucional específica:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;

As obras intelectuais são consideradas pela Lei 9.610/98, criações do espírito, expressadas através da liberdade de manifestação, logo os direitos autorais é uma importante forma de revelação da personalidade humana, por essa razão a proteção aos direitos autorais é indispensável, haja vista ser uma forma de estimular novas criações, que se tornam únicas no mundo.

O desrespeito às normas disciplinadoras dos direitos autorais resulta em desobediência constitucional, ressalvando que para o autor dispor de proteção não é necessário que sua criação esteja registrada em órgão competente, basta a apresentação da obra na sociedade.

A proteção dos direitos autorais ultrapassa o tempo de vida do criador, refletindo na sucessão dos seus herdeiros, pois com a morte do autor os herdeiros passam a ser titulares das obras pelo prazo de 70 anos, como prevê o art. 41 da Lei 9.610/98, sendo este prazo reduzido para 50 anos na Convenção de Berna.

O prazo da Convenção de Berna, ainda que menor também é considerado extenso, se pensarmos que as criações são produtos de interesse social, bem como produto de confluentes culturais advindas do próprio patrimônio cultural da humanidade, competindo ao Estado oferecer os mecanismos para a defesa dos interesses da coletividade sobre os bens culturais produzidos pela sociedade (BITAR, 2023).

Somente para fazermos um paralelo, o Brasil é herdeiro de muitas criações intelectuais, por exemplo, as obras de Jorge Amado, Ariano Suassuna, entre outras preciosidades que se encontram sob o domínio da família, sendo necessário aguardar setenta anos para essas obras passarem ao domínio público.

Este tempo na prática não é o ideal, pois como bem afirma Eduardo Bitar, a partir da concepção, exteriorização e inserção pública da obra seu panorama semiológico passa a ser outro, qual seja: sua semântica – aspecto do sentido da obra – é a semântica não da intenção de que adotou o autor, mas a semântica que passou a ter para a sociedade; sua sintática – plano das relações da obra com o que a circunda – é a sintática de um objeto entre objetos, de coisa entre coisas, e, sobretudo, de produto cultural entre produtos culturais; sua pragmática – plano da interação da obra com sujeitos – é a pragmática dos fruidores que com a obra interagirão, que da obra extrairão novas ideias para o desencadeamento de outras correntes de criações e isomorfismos culturais (BITAR, 2023).

Nesta esteira, não se trata apenas de garantir o direito coletivo de acesso à cultura, mas muito mais que isso, é impedir que essas obras desapareçam, como ocorreu com o emblemático caso do pintor, escultor e artista plástico Hélio Oiticica, que em 2009 teve quase 90% das suas obras

queimadas, em razão do incêndio ocorrido na casa do irmão do artista plástico, Cesar Oiticica, o qual mantinha o acervo do irmão, segundo este cerca de 90% das obras do irmão foram destruídas, um prejuízo estimado por ele em US$ 200 milhões2

O longo período garantido legalmente aos herdeiros é preocupante, não só pelo fato das obras estarem sujeitas a incidentes como no caso acima, mas também em relação aos conflitos familiares que implicam na maioria das vezes em prejuízo ao acesso das obras pela sociedade.

Essa celeuma que circunda os direitos autorais em relação ao extenso prazo desfrutados pelos herdeiros coloca em xeque a valoração dessa proteção, pois o que é mais importante a questão patrimonial da obra ou a projeção das obras para que se tornem imortais?

O próximo capítulo irá trabalhar com esse questionamento, buscando analisar através da legislação vigente uma saída coerente a esta celeuma que desafia o direito civil contemporâneo.

3. A TRANSMISSÃO CAUSA MORTIS DOS DIREITOS AUTORAIS NO BRASIL.

Os direitos autorais é a garantia que o criador possui sobre sua criação, logo toda manifestação externada em suporte material passa ser patrimônio intelectual de titularidade exclusiva do autor, a qual é transmitida aos herdeiros com a morte.

O prazo concedido aos herdeiros para desfrutarem dos direitos autorais é muito criticado por juristas, advogados, empresários do ramo, entre outros, pois este tempo se encontra na contramão da função social da propriedade intelectual que é possibilitar o amplo conhecimento à cultura nacional.

Neste sentido, os artigos 208, 215 e 220 da CF/88, garantem o direito ao conhecimento, vejamos:

Art. 208 – O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da

2 Notícia extraída do site do G1, datada de 17/10/2009, Disponível em: https://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL1344720-5606,00INCENDIO+DESTROI+ACERVO+DO+ARTISTA+PLASTICO+HELIO+OITICICA.html#:~:text=Segundo%20C%C3%A9sar%2C%2090%25%20 das%20obras,controle%20de%20umidade%20e%20temperatura. Acessado em 31/01/24.

cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações cultural.

Art. 220 da CF. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

[...] § 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

Todavia, ao mesmo tempo em que a Constituição Federal de 1988 elenca a proteção dos direitos autorais entre os direitos fundamentais (art. 5º, inciso IX), garantindo o direito de acesso à cultura e informação, a Lei 9.610/98 apresenta uma série de obstáculos ao exercício desses direitos, conferindo um poder demasiadamente amplo e longo aos sucessores do autor.

Este extenso prazo resulta na restrição ao acesso de obras intelectuais importantes, que acabam se concentrando nas mãos dos herdeiros do autor, os quais na maioria das vezes litigam entre si, por não acordarem sobre o destino das obras, infringindo direitos fundamentais expressos na CF/88.

Neste contexto, o Professor Guilherme Carboni (CARBBONI, 2006), afirma que:

A exacerbação da apropriação privada da informação pelo direito de autor, sem uma ampliação de seus limites e sem o direcionamento desse direito ao atendimento da sua função social, pode levar a uma redução das experiências culturais, tornando os recursos culturais artificialmente escassos.

Pois, bem! Estamos vivendo em uma sociedade hight-tech 3 , onde os avanços tecnológicos diminuíram nosso tempo e transformaram nossa forma de pensar, viver e trabalhar, por esse motivo a redução do tempo ou até mesmo a extinção desse prazo seja uma possibilidade para garantirmos a memória e o acesso as obras intelectuais.

A Convenção de Berna disciplina prazo menor em relação a titularidade dos herdeiros sobre as obras, no entanto o período de cinquenta anos, continua sendo excessivo e incompatível com o acesso ao conhecimento, logo não dispomos de legislação compatível com as garantias de acessibilidade e função social das obras intelectuais.

O Professor José Carlos Costa Netto (COSTA, 2019), afirma que a evolução do regime jurídico de proteção intelectual somente será completa e efetiva se, sensível à necessidade

3 Termo usado para descrever tecnologias inovadoras que estão na vanguarda do desenvolvimento tecnológico.

cada dia mais latente de ampliar o acesso público a bens culturais e ao consequente desenvolvimento qualitativo da civilização, assegurar, moral e patrimonial com equidade, o direito – com a resultante de sobrevivência com dignidade – da célula embrionária da cultura: o autor. Esse equilíbrio entre a vertente individualista do direito privado e a função social, cláusula pétrea estendida a toda forma de propriedade, inclusive a intelectual, não pode servir ao esfacelamento do direito de autor, sob pena de esvaziar a autossustentabilidade da criação intelectual, força motriz da evolução da humanidade.

A função deste longo prazo tem viés lucrativo, pois a partir da morte do autor seus sucessores começam a negociar as licenças das obras, elevando muitas vezes o custo da produção e da veiculação de obras biográficas.

Nesse diapasão, o curador do museu de futebol, Leonel Kaz, manifesta sua indignação sobre o excesso de poder que os familiares possuem perante as obras intelectuais, vejamos:

A história de um país se faz por camadas de memória. E memória é a vida presente, não é apenas a vida passada. Não adianta você deixar tudo deitado em berço esplêndido, dormindo. Tudo que ocorreu a partir de agora, já é passado e tudo isso vai ficar morto? Você não tem direito de publicar? Não tem direito de rever? Direito de reeditar, direito de colocar uma imagem num livro histórico sobre determinado período, determinada configuração? Eu acho que está tendo um abuso por parte desses herdeiros - muitos legítimos, outros nem tanto - em solicitar direitos em tudo e por tudo. É disso que se trata, ninguém é contra os direitos, eles existem, devem ser utilizados 4

Não é regra, mas temos alguns herdeiros que disponibilizam o conteúdo de seus antecessores via internet, como por exemplo, as obras de Vinicius de Moes, que teve parte de sua obra disponível na internet. A neta Júlia de Moraes, explica que o legado de um artista é sua obra, que deve ser conhecida para se perpetuar, ressalvando que o avô antes de morrer deixou clara a vontade que sua obra fosse acessível para outras gerações 5

Na verdade, a crítica não é sobre o direito de lucro dos herdeiros com as obras do autor, mas o tempo que possuem para administrá-la, sendo este uma barreira para que este patrimônio intelectual seja disseminado entre as próximas gerações.

O Prof. Antônio Carlos Morato em seu curso “Sociedade da Comunicação” ministrado on line, no ano de 2022, sustentou

4 Rádio Câmara, de Brasília. karla Alessandra. Disponível: https://www. camara.leg.br/radio/programas/422931-os-direitos-autorais-e-os-hrdeiros/ Acessado em 18/04/2024. 5 dem.

que a legislação brasileira pode reduzir o prazo de 70 anos para 50 anos, mas não menos que isso, uma vez que o Brasil é signatário da Convenção de Berna, logo este tratado é uma norma supralegal, ou seja, se localiza abaixo da CF/88, mas acima da Lei nº 9.610/98, portanto deve ser respeitado o prazo previsto da Convenção.

O caminho é longo, uma vez que estamos diante de uma colisão entre direitos fundamentais, de um lado o direito dos herdeiros em administrar e lucrar com o patrimônio intelectual herdado; e de outro os direitos ao conhecimento e a cultura, logo não precisamos ser expert para percebermos que estamos diante de uma colisão de direitos fundamentais, o jurista Robert Alexy (AMORIM, 2024), apresenta como solução do conflito, a teoria da cedência recíproca, vejamos:

As colisões de princípios devem ser solucionadas de maneira totalmente distinta. Quando dois princípios estão em colisão, um dos dois princípios tem que ceder ante o outro. Mas isso não significa declarar inválido o princípio desprezado nem que no princípio desprezado haja que ser introduzida uma cláusula de exceção. O que vai determinar qual o princípio que deve ceder serão as circunstâncias. Isso quer dizer que, nos casos concretos, os princípios têm diferentes peso.

A ponderação entre princípios se mostra como uma alternativa aos casos concretos em que o direito dos herdeiros sobre as obras deve se afastar para dar lugar ao conhecimento e a cultura, pois o interesse coletivo em regra deve prevalecer sobre o individual.

Na verdade, a teoria da cedência recíproca ao nosso ver se mostra como uma hipótese de solução ao embate entres esses direitos fundamentais, até o momento em que os legisladores reformulem as normas de direito sucessório e autorais com escopo de atender os novos anseios da atual sociedade, garantindo a aplicação de regras que atendam o direito a cultura, conhecimento e informação e que estes direitos se coadunam com os direitos dos herdeiros.

CONCLUSÃO

Em vista dos argumentos apresentados, os direitos autorais são bens imateriais que são transmitidos de forma automática no momento da morte do titular aos seus herdeiros, todavia não é comum a previsão desses bens incorpóreos nos inventários, por essa razão é pouco discutido as normas aplicáveis a transmissão dos direitos autorais.

Atualmente, o prazo previsto para que os herdeiros desfrutem dos direitos autorais herdados é de setenta anos, conforme prevê a Lei nº 9.610/98, sendo este tempo reduzido na Convenção de Berna para cinquenta anos, porém tal

redução não auxilia em nada as controvérsias entre o direito dos herdeiros em administrar e lucrar com as obras herdadas e o direito ao conhecimento.

O tempo concedido aos familiares vem sendo um obstáculo ao direito de conhecimento, cultura e informação previstos na CF/88, uma vez que os familiares de posse das obras na maioria das vezes ao negociarem as licenças elevam o custo da produção e da veiculação de obras biográficas.

A crítica não é sobre o direito de lucro dos herdeiros com as obras do autor, mas o tempo que possuem para administrá-la, o que resulta em barreira para a disseminação das obras entre as próximas gerações.

Neste cenário, o que deveria prevalecer o direito dos herdeiros em administrar as obras por este longo período conferido pela legislação vigente, mesmo que este direito infrinja a função social das obras intelectuais?

Concluímos que estamos longe de uma reformulação legislativa em face dos direitos sucessórios e autorais, por essa razão, apresentamos como uma hipótese de minimização dos prejuízos ocasionados nos casos concretos a teoria da cedência recíproca de autoria do autor Robert Alexy com o objetivo de atender os anseios de uma sociedade moderna.

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OS REFLEXOS DO USO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NOS CONTRATOS CONTEMPORÂNEOS

Palavras-chave

Inteligência Artificial. Direito Civil. Contratos.

Isabela Tazinaffo Gaona

Advogada. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Franca. Pós-Graduanda em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. E-mail: isabelagaona34@gmail.com

Resumo

A era digital e o surgimento da inteligência artificial (IA) têm transformado significativamente a maneira como a sociedade vive, trabalha e interage. Estas inovações tecnológicas trazem consigo tanto oportunidades quanto desafios. Nesse contexto, a inteligência artificial, trazida pela Era da Informação, tem se tornado cada vez mais acessível à maior parte da população, passando a auxiliar cada vez mais novos ramos e áreas do conhecimento, como os contratos cíveis e consumeristas. Assim, esse trabalho tem como objetivo analisar como a IA está sendo utilizada na elaboração, revisão e gestão de contratos, discutindo os benefícios, desafios e implicações legais dessa tecnologia. Em relação a seus objetivos, a pesquisa será exploratória, pretendendo apresentar informações sobre a inteligência artificial e seus reflexos na sociedade contemporânea. Além disso, quanto ao método de procedimento, o trabalho utilizará a pesquisa bibliográfica, com a análise de doutrinas, artigos científicos, jurisprudência, bem como os acervos de leis relacionados ao tema. Por fim, quanto ao método de abordagem, será empregado o dedutivo.

Foto: Fábio Cres

Desde meados do século XX, o a sociedade alcançou uma nova fase, ocasionada pelo avanço das novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC). Esse novo mundo é a Era da Informação, que gerou mudanças ímpares na economia, cultura e política, desenvolvendo uma tendência histórica, a sociedade em rede, em que as redes constituem a nova morfologia social.

Nesse contexto de evolução tecnológica, tem se destacado o uso da inteligência artificial, causando impactos sociais, econômicos, políticos e psicológicos.

A inteligência artificial (IA) tem transformado rapidamente a sociedade. Desde suas origens teóricas até as aplicações práticas atuais, a IA representa uma das áreas mais empolgantes e inovadoras da tecnologia moderna.

Nesse ínterim, a inteligência artificial tem revolucionado diversas áreas, e o campo dos contratos não é exceção. Assim, esse trabalho tem como objetivo examinar como a IA está sendo utilizada na elaboração, revisão e gestão de contratos, discutindo os benefícios, desafios e implicações legais dessa tecnologia.

No segundo capítulo será abordado brevemente o contexto da Era Digital e a evolução da tecnologia na sociedade atual.

No terceiro capítulo será apresentada a conceituação e contextualização história da Inteligência Artificial.

Por fim, será apresentado uma elucidação geral do uso da IA nos contratos, expondo os benefícios e desafios dessa implementação.

Em relação a seus objetivos, a pesquisa será exploratória, pretendendo apresentar informações sobre a inteligência artificial e seus reflexos na sociedade contemporânea.

Além disso, quanto ao método de procedimento, o trabalho utilizará a pesquisa bibliográfica, com a análise de doutrinas, artigos científicos, jurisprudência, bem como os acervos de leis relacionados ao tema. Por fim, quanto ao método de abordagem, será empregado o dedutivo.

2. A EVOLUÇÃO DA TECNOLOGIA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

A Era da Informação, assim identificada por Manuel Castells, constitui um fenômeno global complexo, multifacetado e interdisciplinar (CASTELLS, 2003).

Essa nova era é conhecida como Revolução Informacional, ou fase pós Terceira Revolução Industrial, que é caracterizada por consequências nos campos econômico, político e cultural. (SANTOS, 2020)

O agente de comunicações típico desta nova era é a Internet. A internet, para Campello, Cendón e Kremer, “é uma rede global de computadores ou, mais exatamente, uma rede que interconecta outras redes locais, regionais e internacionais”. (CAMPELLO; CÉDON; KREMER, 2000)

Na sociedade da informação, tudo que está sendo produzido está sendo publicado na internet, assim, é uma forma de publicar rapidamente informações técnicas científicas, com a intenção de democratizar a informação.

Nesse sentido, atualmente a internet é a principal fonte de informação global, pois ela transmite informações de todas as partes do mundo, notícias reais de diversos assuntos, durante vinte quatro horas por dia (EDUVIRGES; SANTOS, 2014), ou seja, a internet possui uma grande quantidade de informações e arquivos, na qual qualquer indivíduo pode ter acesso, onde quer que esteja.

As distâncias físicas são eliminadas no ambiente digital, já que, em poucos segundos, é possível disseminar pelo globo uma notícia, um vídeo ou ainda comercializar um produto. A rede mundial de computadores faz jus ao próprio nome. No ambiente digital, as pessoas vivem em rede, separadas apenas por um clique de distância. (REBOUÇAS; SANTOS, 2017, p. 544).

Nesse contexto evolução tecnológica, tem se destacado a Inteligência Artificial, uma tecnologia que se concentra na criação de sistemas capazes de realizar tarefas que normalmente requerem inteligência humana.

3. A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

O conceito de inteligência artificial foi criado na década de 1950 por John McCarthy, cientista da computação, que a definiu como sendo a projeção de uma rede computacional desenvolvida para executar um conjunto definido de ações. (MATIAS, 2023)

Assim, a inteligência artificial é um termo amplo que abrange tecnologias desenvolvidas para que as máquinas (ou algoritmos) possam, partindo de dados obtidos, construir raciocínios mais assertivos e rápidos, levando a predições que subsidiam a tomada de decisão. (MATIAS, 2023).

A inteligência artificial é um campo da ciência da computação dedicado à criação de sistemas capazes de realizar tarefas que, quando realizadas por seres humanos, exigem inteligência. Estas tarefas incluem aprendizagem, raciocínio, percepção, reconhecimento de fala, resolução de problemas e tomada de decisões.

A IA pode ser categorizada em duas vertentes principais: a IA fraca, que se refere a sistemas projetados para uma tarefa

específica, e a IA forte, que almeja a criação de sistemas com capacidades cognitivas semelhantes às humanas.

Nesse sentido, atualmente a IA é usada em uma variedade de aplicações, incluindo diagnósticos médicos, veículos autônomos, assistentes virtuais e análise de dados financeiros.

Ademais, a utilização de sistemas de inteligência artificial vem sendo utilizada também para a realização de pesquisas, classificação de objetos demandados, organização de informações, vinculação de casos a precedentes, busca de jurisprudência e, principalmente, na elaboração de contratos.

Portanto, a inteligência artificial, trazida pela Era da Informação, tem se tornado cada vez mais acessível à maior parte da população, passando a auxiliar cada vez mais novos ramos e áreas do conhecimento, como os contratos cíveis e consumeristas.

4. REFLEXOS DO USO DA INTELIGÊNCA ARTIFICIAL NOS CONTRATOS

4.1. Aspectos gerais dos contratos

Em linhas gerais, os contratos são um negócio jurídico por meio do qual os indivíduos regulam os efeitos patrimoniais que almejam, através da autonomia da vontade, observando os princípios da função social e da boa-fé objetiva. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2017)

A fim de definir o que é um contrato, usa-se das palavras de Diniz (2008, p. 61) para conceituar essa espécie de documento como “um acordo de vontade entre duas ou mais pessoas com a finalidade de adquirir, resguardar, modificar, transferir ou extinguir direitos”. Esse instituto, contudo, também sofreu reflexos com o advento da Era da Informação.

Nas grandes codificações do século XIX, o contrato era a própria expressão da autonomia privada, reconhecendo às partes a liberdade de estipularem o que lhes conviesse, servindo, portanto, como instrumento eficaz da expansão capitalista. O direito contratual forneceu “os meios simples e seguros de dar eficácia jurídica a todas as combinações de interesse”. (DANTAS, 1952)

Acentua-se o caráter da ordem pública como expressão da lógica intrínseca dos contratos, sendo esta uma das linhas mestras da ordem econômico-social constitucional. (MACHADO, 1991)

Com a evolução da sociedade, a noção clássica de contrato, individualista e voluntarista, cede lugar a um novo modelo deste instituto jurídico, voltado a obsequiar os valores e princípios constitucionais de dignidade e livre desenvolvimento da personalidade humana. O contrato deixa de ser apenas instrumento de realização da autonomia privada, para desempenhar uma função social. (GOMES, 1983)

No âmbito jurídico, o Código Civil/2002 (art. 104) enuncia os elementos essenciais do negócio jurídico e, consequentemente, do contrato: “A validade do negócio jurídico requer: Iagente capaz; II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III - forma prescrita ou não defesa em lei’’. (BRASIL, 2002)

No que diz respeito à liberdade contratual e autonomia privada nos negócios jurídicos, pode-se observar que a liberdade das partes para a regulação convencional das condições vinculadas ao contrato inclui a possibilidade de os contratantes disporem antecipadamente sobre a flexibilização contratual (TEPEDINO; DA GUIA SILVA, 2019).

Um exemplo é a utilização da Inteligência Artificial, que pode ser utilizada como ferramenta de precificação para dar flexibilidade aos contratos no sentido de reduzir os custos de transação contratuais. (GIANNAKOS; ENGELMANN, 2021).

Dessa forma, a inteligência artificial tem sido um motor de inovação em muitos setores, incluindo o jurídico. A aplicação da IA na elaboração e gestão de contratos oferece uma gama de oportunidades para melhorar a eficiência e a precisão dos processos contratuais.

Uma pesquisa realizada em 2018, com mais de 100 escritórios de advocacia da CBRE, em Londres, mostra que 48% dos escritórios analisados já utilizam inteligência artificial para o desenvolvimento de algumas tarefas. Entre as empresas que já a utilizam, 63% a emprega para a geração ou revisão de documentos legais, incluindo contratos. (CBRE, 2018)

Percebe-se, dessa forma, que o uso de inteligência artificial está presente cada vez mais no cotidiano da sociedade contemporânea e, em especial na elaboração e revisão de contratos.

4.2.

Benefícios Do Uso da IA

No âmbito contratual, a IA pode analisar o cumprimento das obrigações contratuais, ajudando a identificar se todas as partes estão cumprindo suas responsabilidades e se os objetivos do contrato estão sendo atingidos. Isso permite uma gestão mais proativa e informada dos contratos.

Além disso, a automação de processos contratuais reduz significativamente o tempo e esforço necessário para criar, revisar e gerenciar contratos. Isso libera recursos humanos para se concentrarem em tarefas mais estratégicas.

A IA também minimiza o risco de erros e omissões, garantindo que os contratos sejam elaborados e revisados com alta precisão e conformidade legal. Isso aumenta a confiança nas transações contratuais.

Ademais, no âmbito dos tribunais e cartórios, algumas das atividades que antes eram desempenhadas por servidores e

estagiários já são realizadas por inteligência artificial. (GIANNAKOS; ENGELMANN, 2021)

Um exemplo de um grande benefício da utilização da inteligência artificial é o contrato inteligente (Smart Contract). O smart contract é um protocolo de transação computadorizado que executa os termos de um contrato. Assim, o contrato pode ser executado automaticamente desde que a condição seja satisfeita para acionar o resultado. (GONÇALVES, 2017)

A função econômica e prática proporcionada por esta ferramenta é a redução dos custos de criação e execução. Assim, o smart contract pode ser usado como uma trilha auditável, cujo objetivo é comprovar se os termos acordados foram ou não cumpridos, devido à sua imutabilidade (LIRA, 2018).

Os smart contracts também podem melhorar a possibilidade de diferente interpretação da linguagem natural na elaboração contratual. Certas palavras têm múltiplos significados e interpretações, assim, os smart contracts fornecem uma possível solução para essa dificuldade (LUCIANO, 2018).

Portanto, o uso dessa tecnologia no âmbito contratual pode trazer inúmeras vantagens e consequências positivas para contratantes e terceiros à relação obrigacional.

4.3. Desafios do Uso da IA

Em que pese a grande quantidade de benefícios que o uso da inteligência artificial pode trazer aos contratos, também há controvérsias a respeito dos desafios e dificuldades dessa implementação.

Nesse sentido, há consenso de que a IA precisa ser treinada com dados de alta qualidade e continuamente aprimorada para manter a precisão de seus resultados.

Outrossim, em relação à privacidade, discute-se sobre a proteção de dados pessoais e como é necessária a regulamentação quanto ao uso da I.A. (MATIAS, 2023) No âmbito consumerista, a inteligência artificial utiliza-se das informações e do cruzamento destas para influenciar e induzir o consumidor. Assim, é dever do fornecedor, que utiliza a inteligência artificial e a obtenção e cruzamento de dados, agir de acordo com os padrões na legislação consumerista e de proteção de dados.

Por fim, um dos principais desafios da implantação da IA é a ausência de regulamentação cibernética, visto que no Brasil ainda não há lei específica que trate sobre o tema.

Essa falta de regulamentação, inclusive, pode causar uma insegurança jurídica e novos riscos, já que não há uma padronização sobre os limites da utilização dessa nova tecnologia, principalmente no âmbito jurídico.

De acordo com Miragem (2019, p. 15) é “... comum às atividades associadas à tecnologia da informação e sua multifacetada e crescente utilização para uma série de finalidades, a identificação de novos riscos”.

Ademais, o uso da IA nos contratos deve sempre observar os princípios gerais do direito civil e consumerista, como o da boa-fé, o da precaução e da prevenção, para que não haja responsabilização do fornecedor pela utilização indevida dessa tecnologia.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A era digital e os avanços tecnológicos têm transformado significativamente a maneira como a sociedade vive, trabalha e interage. A tecnologia é vista usualmente como uma ferramenta neutra útil ao desenvolvimento social, em especial ao meio jurídico.

Nesse ínterim, a inteligência artificial está moldando a sociedade de maneiras que eram inimagináveis há poucas décadas.

Na seara contratual, essa tecnologia tem o potencial de transformar significativamente a forma como os contratos são elaborados, revisados e gerenciados. Os benefícios em termos de eficiência, precisão e conformidade são claros, mas os desafios relacionados à privacidade, segurança e aceitação legal precisam ser cuidadosamente abordados.

Assim, com o desenvolvimento contínuo da tecnologia e a implementação de melhores práticas, a IA pode se tornar uma ferramenta indispensável no campo dos contratos.

No entanto, as transformações trazidas pela I.A. exigem que seja realizada uma análise apurada por parte do direito contratual, do direito consumerista e da responsabilidade civil. As suas consequências ainda estão sendo observadas e não podem ser previstas com precisão, principalmente diante da ausência de regulamentação jurídica sobre o tema.

REFERÊNCIAS

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CAMPELLO, Bernadete Santos; CEDÓN, Beatriz Valadares; KREMER, Jeannette Marguerite (orgs). A internet. Fontes de informação para pesquisadores e profissionais. Belo Horizonte: Ed. UFMG. 2000.

CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. Trad. Klauss Brandini Gehardt, Roneide Venancio Majer. São Paulo: Paz e Terra, 1999. v. 3: Fim de milênio.

CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

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DANTAS, F. C. de San Tiago. Evolução contemporânea do direito contratual. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 139, jan./fev. 1952, p. 5. O mesmo artigo foi integrado ao volume Problemas de Direito Positivo: estudos e pareceres. Rio de Janeiro: Forense, 1953, p. 14-33.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução ao Estudo do Direito São Paulo: Saraiva, 2008.

DIVINO, Sthéfano Bruno Santosa. Desafios e benefícios da inteligência artificial para o direito do consumidor. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 11, n. 1. p.654688, 2021.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de Direito Civil: Volume Único. São Paulo: Saraiva, 2017.

GIANNAKOS, Demétrio Beck da Silva; ENGELMANN, Wilson. A Inteligência Artificial nos Contratos: Uma Hipótese Possível? ULP Law Review-Revista de Direito da ULP, v. 15, n. 1, p. 49-49, 2021. Disponível em: https://revistas.ulusofona.pt/index.php/rfdulp/article/view/7940. Acesso em: 10 jun. 2024.

GOMES, Orlando . A função do contrato. In: Novos Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 101-109. GOMES, Orlando. Inovações na Teoria Geral do Contrato In: Novos Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 90-100.

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TEPEDINO. Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil. In: Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 1-22.

A TRANSFORMAÇÃO DIGITAL E A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: IMPACTOS NA PREVIDÊNCIA?

Palavras-chave

Transformação Digital. Inteligência Artificial. Direito Previdenciário.

Janaina Milene Coalha Parro

Advogada, Formada pela Faculdade Integradas de Jaú, Advogada Especialista em Direito Previdenciário, Especialista em Direito Civil e Processual Civil, Bacharel em Administração com habilitação em: Gestão de Negócios Internacionais, Especialista em Auditoria, Controladoria e Finanças, Professora Universitária na Faculdade Anhanguera Jaú/SP. Representante do Instituto de Direito Previdenciario na cidade de Jahu/SP – IAPE. Presidente da Comissão da Seguridade Social da OAB Jahu/SP. Resumo

O objetivo do presente trabalho é buscar entender como a transformação digital e a inteligência artificial (IA) estão sendo utilizadas na área do Direito e quais os benefícios que poderão trazer aos advogados. O objetivo específico é saber como a transformação digital poderá beneficiar o direito previdenciário como forma de celeridade nos processos administrativos dos segurados de forma eficaz.

INTRODUÇÃO

Com o avanço da tecnologia nos últimos anos, e a velocidade com que esse avanço é incorporado no dia a dia das pessoas é impossível sobreviver profissionalmente sem aderir às tecnologias. A utilização de dados tem sido o combustível para a transformação digital. Precisamos de informações em tempo real e com precisão para a tomada de decisões em casos semelhantes, para assim termos maior assertividade e eficiência.

A transformação digital veio para melhorar o desempenho e aumentar o alcance de garantir melhores resultados. A transformação digital e a Inteligência artificial no direito, vêm para agilizar os processos, pois a dor do judiciário hoje é a lentidão. Assim como a utilização da inteligência artificial no ambiente jurídico, a qual é capaz de desenvolver raciocínios e teses em fração de segundos.

Dessa forma pretende-se demonstrar que a Inteligência Artificial pode atuar como um sistema de suporte a Decisão Judicial, seja através da operação como catalizador de informações que circula pelo ambiente do sistema, ou mesmo, potencializando fluxos comunicacionais compreensíveis pelo sistema parcial do direito e enviando-os par ao sei interior, auxiliando-o assim na efetivação do próprio direito (TACCA, 2017).

Desse modo, a utilização da IA permite que uma máquina receba uma programação previamente determinada e codificada com comandos específicos e a partir daí o robô pode reagir e entender os dados e executar rapidamente a analise de decisões.

A EVOLUÇÃO DA TRANSFORMAÇÃO

DIGITAL E OS IMPACTOS NO DIREITO PREVIDENCIÁRIO.

A transformação digital fica cada dia mais evidente com a popularização da rede mundial de computadores e com o avanço da Inteligência Artificial no mundo corporativo, facilitando a vida e o trabalho dentro das organizações. Isso quer dizer que os negócios precisam se adaptar à Era digital, uma vez que estamos enfrentando extensas mudanças na forma com que a tecnologia é consumida. Para isso, as empresas precisam redefinir com urgência a estrutura organizacional, bem como as tecnologias, principalmente a Inteligência artificial.

Segundo Felipe Morais, a transformação digital é um processo no qual as empresas fazem o uso da tecnologia para melhorar o desempenho, aumentar o alcance e garantir resultados melhores. Isso implica em uma mudança estrutural nas organizações, uma mudança de cultura, uma mudança do famoso mindset que as empresas precisam adotar.

Pode-se dizer que a transformação digital chegou para ficar, o que podemos chamar de uma “nova revolução industrial”, pois se trata de um processo que tem o intuito de melhorar o desempenho e agilidade dos negócios. A transformação digital nada mais é que um processo a longo prazo, uma vez que ela tem um começo, mas dificilmente terá um fim, pois os clientes esperam cada vez mais uma experiência digital.

Ainda, segundo RABELO, apoud Felipe Morais, a transformação digital é:

Em sua essência, segundo o site Marketing de Conteúdo “a transformação digital é um processo o qual as empresas fazem uso da tecnologia para melhorar o desempenho”, aumentar o alcance e garantir resultados melhores. Trata-se de uma mudança radical na estrutura das organizações, a partir da qual a tecnologia passa a ter um papel estratégico central, e não apenas uma presença superficial. Isso leva tempo e consome recursos, mas não são apenas as grandes organizações que podem implantar programas de transformação digital – até porque isso não se resume a quem tem mais dinheiro.

Podemos dizer que o início da transformação digital no mundo do direito iniciou-se com a Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006, que positivou o Sistema de Processo Judicial Digital (Projudi), mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Os processos que até então eram físicos hoje são eletrônicos, trazendo assim celeridade nos processos e economia de espaço físico para arquivar documentos.

Mais de uma década após a Lei, os escritórios de advocacia não conseguem mais atuar sem aderir à tecnologia, e cada dia mais a evolução tecnológica está presente no dia a dia com a vinda da digitalização de processos e a utilização de técnicas de ciência de dados e da inteligência artificial, transformando assim a prestação de serviços jurídico mais célere.

É perceptível a necessidade da transformação digital no direito, com melhores estruturas para auxiliar no processo de decisão, diante de tantas alterações legislativas, pois aqueles que não acompanharem as alterações e a era digital vão estar defasados no tempo, podendo trazer prejuízos para seus clientes.

No momento em que vivemos precisamos de informações em tempo real o que acelera ainda mais a transformação digital em todas as áreas e setores, inclusive na área do direito.

Após a pandemia da COVID-19, acabou acelerando a transformação digital em todos os setores, pois o isolamento social impôs a reinvenção e a necessidade de desenvolver novas rotinas, de tal maneira que os negócios que ainda não estavam presentes no mundo online, precisaram correr

contra o tempo para implementar medidas para sobreviver no mercado, pois a transformação digital é diária.

Diante disso, vemos que a transformação digital afeta todas as áreas do direito, inclusive o Direito Previdenciário. Nessa era de total informatização, o INSS lançou, no ano de 2019, o projeto de Transformação Digital do INSS, tendo como parceiro Dataprev, que é responsável por toda a tecnologia necessária para melhor a prestação dos serviços públicos aos segurados da Previdência, com o objetivo de trazer maior celeridade aos pedidos de benefícios.

Com toda essa transformação, hoje o cidadão conta com mais de 90 serviços disponíveis a partir de 10 de julho de 2020, que podem ser solicitados de forma totalmente digital, através do site Meu INSS (internet e App – disponível para iOS e Android) e também pelo canal 135.

Segundo informações divulgadas pela Dataprev, o acesso ao Meu INSS, no período de um ano os pedidos de aposentadorias por tempo de contribuição chegou a cerca de 1 milhão de pedidos que foram realizados digitalmente e cerca de 796 mil requerimentos digitais de Beneficio Assistencial a Pessoa com Deficiência.

Por serem processados eletronicamente, caso os dados do segurado constarem corretamente no banco de dados do INSS, é possível a concessão automática dos benefícios, o que acelerou o processo que antes demorava meses para ser analisado.

Com a situação da pandemia do Covid-19 e as novas mudanças por conta da mesma nesse ano de 2020, antecipou ainda mais a transformação digital, com as inovações, a previdência tem papel essencial, uma vez que a concessão automática de benefícios também já é uma realidade, possibilitando maior eficiência na resposta ao Segurado em até 24 horas.

Também é possível fazer uma avaliação do risco social, ou seja, será analisada a vulnerabilidade econômica do segurado bem como de seus familiares, mediante todos os documentos que o Segurado apresentar ao INSS.

Diante do cenário que estamos vivendo, com a pandemia Covid-19, houve a necessidade do fechamento das agências do INSS, com isso tornou-se a padronização do sistema previdenciário, serviços que somente eram realizados presencialmente, como perícia médica, avaliação social, vista ou carga de processos, realização de prova de vida, cumprimentos de exigências dentre outros, hoje esses serviços são realizados através do sistema Meu INSS, como o caso da perícia médica.

Hoje o próprio Segurado através do Meu INSS consegue fazer a simulação de uma possível aposentadoria, bem como

simular a renda mensal inicial, o qual informará em frações de segundos se o segurado realmente tem direito ao benefício, evitando assim a aglomeração nas agências do INSS.

Com o avanço da tecnologia hoje o INSS tem mais de 90 serviços que o próprio segurado pode requerer sem sair da sua residência, tais quais: aposentadorias, pensões por morte, benefícios assistenciais, agendamento de ‘perícias médicas bem como a juntada de atestados médicos, atualização de dados cadastrais, solicitação de cópias de processos, dentre outros serviços.

O Decreto nº 10.332/2020 de 28 de abril de 2020 trouxe mudanças normativas para o oferecimento de serviços públicos digitais simples e intuitivos, voltado para estimular a qualidade do atendimento público, bem como transformar todas as etapas e os serviços públicos digitáveis. Portanto cada vez mais verificamos a evolução da transformação digital.

Pois bem, com o avanço da tecnologia novas ferramentas são utilizadas como forma de agilizar os serviços e a segurança, dentre elas o reconhecimento facial e a biometria. A tecnologia de reconhecimento facial está sendo cada vez mais utilizada nas indústrias de segurança, varejo, gastronomia e hospitalidade, tudo isso viabilizado pela tecnologia facial on-line.

Segundo Felipe Morais, a tecnologia on-line funciona da seguinte maneira:

“Basicamente, funciona com uma câmera atrelada a um software, que a partir de pontos e medidas do rosto, como o comprimento da linha da mandíbula, tamanho do crânio, distância entre os olhos, largura do nariz, entre outros, consegue identificar o individuo e saber que você é você”

E com toda essa transformação digital, o serviço de prova de vida, que era realizado somente presencial, a partir de agosto de 2020, teve início a distância, evitando a locomoção de aposentados e pensionistas até as agências, através do reconhecimento facial “selfie”. Uma das formas de garantir a eficácia do serviço será a comparação com imagens já cadastradas nos bancos de dados do governo, como no caso de segurados que possuem a versão digital da CNH.

Além disso, atualmente é possível realizar requerimento de bloqueio/desbloqueio para empréstimos consignados através do aplicativo meu INSS, através do reconhecimento facial.

A transformação digital no Direito Previdenciário é nítida, uma vez que precisamos nos adequar às novas ferramentas para assim prestar um serviço eficiente e célere aos nossos clientes.

A transformação digital do INSS resulta maior eficiência e celeridade na análise dos processos nos serviços prestados

aos segurados, pois com a decisão automática, um beneficio hoje pode ser concedido ou indeferido digitalmente, reduzindo assim os processos que caem em exigência e necessitam de uma análise por um servidor do INSS.

Todavia, para maior número de concessões é importante, antes de realizar o requerimento uma análise detalhada da vida contributiva do segurado, pois caso haja divergência de dados ou até mesmo vínculos em aberto no Cadastro Nacional de Informações Sociais –CNIS, é certo o indeferimento muitas vezes em questões de segundos após o requerimento. Portanto, é imprescindível uma análise detalhada para uma maior eficiência na prestação dos serviços.

O QUE É INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL?

A inteligência artificial (IA) é uma área da ciência da computação que busca, através de sistemas computacionais, executar tarefas que até então somente eram possíveis por seres humanos. O conceito de IA vem desde a década de 50. A IA por ser uma tecnologia, permite que sistemas e máquinas simulem o pensamento humano em fração de segundos, através de combinações tecnológicas que buscam permitir que a máquina entenda, aprenda e identifique a atividade humana, ou seja, podendo ser utilizadas para fins específicos.

A IA veio para proporcionar maior funcionalidade, interagindo com várias áreas do conhecimento permitindo assim o desenvolvimento de inúmeras soluções. Segundo Peixoto e Silva, a inteligência artificial é:

“A IA é uma subárea da ciência da computação e busca fazer simulações de processos específicos da inteligência humana por intermédio de recursos computacionais. Está estruturada sobre conhecimentos de estatística e probabilidade, lógica e linguística. Miles Brundage (2018) define IA como um corpo de pesquisa e engenharia com o objetivo de usar tecnologia digital para criar sistemas aptos a desempenhar atividades para as quais usa a inteligência humana”.

Por sua vez, a IA é composta por dois temas que são: Machine Learning e Deep Learning. A machine learning, permite o desenvolvimento de sistemas com habilidades e métodos que podem detectar padrões de dados de forma automática, através de algoritmos de identificação de padrões em dados fornecidos, que são programados para isso. Por exemplo, quando acessamos determinada página tal como página facebook, Instagram, Netflix entre outros sites que temos acesso, sempre terá uma indicação gerada a partir de técnicas de Machine Learning. Ainda, segundo Peixoto e Silva, Machine Learnig é:

Chama-se de machine learning a habilidade de sistemas de IA de adquirir conhecimento próprio ao extrair padrões de dados não processados. Essa tecnologia possibilitou que computadores pudessem lidar com problemas que exigem conhecimento do mundo real e tomar decisões que aparentam subjetividade. Goodfelow, Bnegio e Courville (2016) citam como exemplo um algoritmo de machine learning simples, denominado regressão lógica, que pode determinar casos médicos nos quais se recomenda um parto cesariana pela avaliação de fatores de risco. Outro exemplo de algoritmo de machine learning simples é chamdo de Naive Bayes, o qual é capaz de separar e-mails legítimos de e-mails de spam.

Já para Felipe Morais, o conceito de Machine Learnig é:

O aprendizado de máquina (do inglês, machine learning) é um método de análise de dados que automatiza a construção de modelos analíticos.

É um ramo da IA, baseado na ideia de que sistemas podem aprender com dados, identificar padrões e tomar decisões com o mínimo de intervenção humana.

Enquanto a IA pode ser definida, de modo amplo, como a ciência capaz de mimetizar as habilidades humanas, o machine learning é uma vertente especifica da IA que treina máquinas para aprender com dados.

Portanto, a machine learning, é de extrema importância para o sucesso da inteligência artificial.

A Deep Learning (aprendizado profundo) é capaz de transformar o vasto volume de dados em informação útil. Deep learning é sobre previsão, e permeia grande parte das atividades do século XXI.

Segundo, Claudio Teixeira Damilano, Deep learning é:

[...] Deep learning ou aprendizado Profundo é uma técnica de Machine Learning composta por uma rede neural artificial, uma versão matemática de como uma rede neural biológica funciona, composta de camadas que se conectam para realizar tarefas de classificação. Por exemplo, quando o aplicativo automaticamente separa as suas fotos por local e / ou identifica a pessoa que está na imagem.

Assim, ao analisar diferentes imagens de rosto de uma pessoa, o sistema de IA captura o padrão especifico para essa pessoa e, assim verifica o padrão em uma dada imagem.

Portanto, a Machine Learning e a Deep Learning, compõem tudo o que é Inteligência Artificial.

Com o passar do tempo, a inteligência artificial ganhou evidência no meio jurídico, até mesmo com as ferramentas básicas como word ou Excel que muito se utiliza no dia a dia dos escritórios, bem como a implantação do próprio processo eletrônico, como forma de ganhar tempo, o que aprimora ainda mais celeridade processual.

Há aproximadamente 35 anos, os processos eram redigidos em máquinas de escrever. Passado algum tempo, houve a primeira evolução quando o setor jurídico passou a operar através de softwares, aplicativos e os processos eletrônicos.

Pois bem. Apesar de estar em processo de transformação digital e com a chegada da Inteligência Artificial, a área do direito está evoluindo para um novo estágio, o Direito 4.0. Nele, a tecnologia vem conquistando espaço, não estando limitada tão somente a estruturação e padronização dos processos, uma vez que há um raciocínio logico que é desenvolvido pela máquina através dos algoritmos, construindo dessa forma uma base de dados inteligente.

Com a adoção da IA no setor jurídico, e a aplicação da Jurimetria, que nada mais é do que um banco de dados que permite análises eficientes em decisões jurídicas para identificar oportunidades dentro da necessidade do caso concreto, é possível analisar mais dados em um menor tempo, tornando assim mais célere.

Por exemplo: Em um caso em que o Juiz decidiu a favor do segurado em um pedido de aposentadoria por invalidez; em um novo processo semelhante a esse, o advogado previdenciarista pode usar argumentos do magistrado sentenciante para embasar seu pedido ou até mesmo sua defesa.

Hoje a IA no Poder Judiciário, já vem sendo implantada e trazendo benefícios como se pode verificar no Tribunal de Justiça do Paraná, (TJPR), que desenvolveu uma ferramenta que utiliza a IA para otimizar as buscas de informações através do sistema Bacenjud, Sniper, bem como sendo possível a utilização do ChatGPT, para revisões de documentos ou até mesmo para modelos jurídicos, trazendo mais celeridade aos processos e às rotinas administrativas do Poder Judiciário.

Segundo informações extraídas do próprio TJPR, (setembro/2019), até a metade de dezembro de 2019, através do projeto de inteligência artificial, foi possível realizar mais de 16 mil buscas de endereço no Bacenjud em 240 varas, gerando assim uma economia de tempo de 5 minutos em cada busca. Através da utilização da IA, em um dia, um servidor realizou 279 buscas.

Em 24 de janeiro de 2024, foi lançada a JurisprudênciaGPT, sendo uma evolução da NatJusGPT. Tais programas podem ser usados também por outros Tribunais brasileiros. A

JurispridênciaGPT, é alimentada por um magistrado ou servidor que pode fazer questionamentos de jurisprudência, com base nos acórdãos registrados. Hoje, já é possível realizar a busca de acórdãos do ano de 2023, os quais foram lavrados no TJPR.

A inteligência artificial também está sendo utilizada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), onde a 8ª Câmara Cível (TJMG), julgou com apenas um click, 280 processos, em menos de um segundo, por meio da ferramenta Radar, a qual tem por intuito reunir recursos e pedidos idênticos, a fim de proporcionar maior celeridade ao processo.

Hoje a IA é uma realidade, pois é útil à advocacia como fonte de pesquisa, já que os dispositivos da IA facilitarão as tarefas de pesquisas de leis, jurisprudência, casos semelhantes para um melhor embasamento jurídico. O robô entrega em fração de segundos ao advogado uma pesquisa refinada, que caberá o advogado decidir pela sua utilização, otimizando ao máximo o seu tempo, o que automaticamente se torna mais rentável ao profissional.

O Presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ministro João Otávio de Noronha, afirmou que com o uso da inteligência artificial foi possível reduzir o número de processos do tribunal, em especial pela triagem e seleção das matérias repetitivas, sem perder de vista, contudo a importância do trabalho humana.

Afirmou ainda que:

Vamos nos valer da inteligência artificial, de programas que racionalizam os processos, mas o computador não decide, não faz voto. Ele pesquisa numa base de dados e propõe decisões, que muitas vezes precisam ser corrigidas.

Ela vai propor informações sobre as teses existentes, mas a decisão será sempre humana.

Portanto a utilização da IA num caso concreto, vai trazer maior rapidez aos profissionais envolvidos, advogado, juiz, serventuários da justiça e maior benefício e satisfação ao cliente, que não suporta mais a morosidade do judiciário.

Segundo estimativa do McKinsey Global Institute, ¼ do trabalho de um advogado pode ser automatizado com o uso da IA e a adoção dessa tecnologia reduziria as jornadas de trabalho dos advogados em 13%.

Nesse sentido o Supremo Tribunal Federal, vem investindo no uso da IA com o objetivo de gerar maior eficiência, economia e racionalidade à atuação do Tribunal.

O Tribunal realizou convênio com a associação de pessoas com deficiência para a digitalização de mais de 90 milhões

de páginas, o que viabilizou uma melhor gestão arquivística e documental de todo o acervo do STF.

Toda essa transformação se deu com a modernização do sistema de julgamento virtual, a qual permite a votação online de todos os tipos de processos e incidentes processuais, bem como o acompanhamento em tempo real.

Segundo informações do site do STF, com a utilização da IA foi possível o Plenário Julgar 3.046 processos nas 41 sessões virtuais realizadas no período de setembro de 2018 a setembro de 2019. Nesse período, foram incluídos no plenário virtual 55 novos temas, dos quais 42 tiveram repercussão geral reconhecida e 13 negada. Dos 42 temas com repercussão geral reconhecida, em oito houve reafirmação de jurisprudência.

O STF tem 2.557 processos monitorados e 3.804 ocorrências relacionadas aos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) da agenda 2023 da Organização das Nações Unidas (ONU). A RAFA 2030, (Redes Artificiais Focadas na Agenda 2030), foi lançada em 2022 para facilitar a classificação de acórdãos ou petições iniciais em processos do STF.

Nesse sentido dia 03 de julho de 2020, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) iniciou a utilização e a implantação do programa de inteligência artificial (SIGMA) para auxiliar na elaboração de relatórios, decisões e acórdãos do Processo Judicial Eletrônico (PJe).

Destarte, está cada vez mais presente a utilização da inteligência artificial no mundo jurídico, uma vez que acelera a produtividade de magistrados e servidores, de forma a evitar decisões conflitantes.

Segundo Assessoria de Comunicação Social do TRF3: “ um dos mais avançados sistemas de inteligência artificial de todo o judiciário brasileiro, o SIGMA foi criado em colaboração por diversos órgãos da Justiça Federal da 3ª Região: a Vice-Presidência do TRF3, a Secretaria de Tecnologia da Informação (SETI), o Laboratório de Inteligência Artificial Aplicada da 3ª Região (LIAA-3R) e a Divisão de Sistemas de Processo Judicial Eletrônico (DSPE)”.

Com o passar do tempo foi criado o programa Justiça 4.0, o qual foi desenvolvido em parceria com o CNJ e o Programa Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), com apoio do Conselho da Justiça Federal (CJF), Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal Superior do Trabalho (TST) e Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT).

Dessa forma, automatizando as atividades é possível a otimização do trabalho dos magistrados, servidores, advogados, e consequentemente gerando maior produtividade, celeridade e transparência nos processos.

Segundo informações, da Assessoria de Comunicação Social do TRF3: “Estamos muito avançados no Justiça 4.0. Implantamos todas as definições básicas do programa, como o Balcão Virtual, o Juízo 100% Digital, a Plataforma Digital do Poder Judiciário (PDPJ-Br) e o Códex (plataforma nacional de base de dados processuais). Somos um dos primeiros tribunais a estar integralmente focados nisto”, ressalta David Panessa Baccelli”.

No ano de 2021, o TRF3, deu inicio ao Balcão Virtual, possibilitando maior eficiência no atendimento dos advogados e do público em geral, por videoconferência e também do programa Juízo 100% digital. Com essas implementações, trouxe maior celeridade e eficiência.

Portanto a utilização da IA ao mundo do direito já é uma realidade e, é de extrema importância, pois proporciona a rapidez que hoje é almejada pela nossa sociedade moderna, bem como eficiente prestação jurisdicional, já que evita as decisões conflitantes em casos semelhantes, beneficiando toda a sociedade.

Contudo muitas dúvidas podem surgir a respeito da utilização da IA nos casos de decisões automatizadas, se realmente essas decisões estão corretas?

Pois bem. Nesse caso teremos respaldo na Lei 13.709/2018 em seu artigo 20, que diz:

Art. 20. O titular dos dados tem direito a solicitar revisão de decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais que afetem seus interesses, incluídas as decisões destinadas a definir seu perfil pessoa, profissional, de consumo e de crédito ou os aspectos de sua personalidade.

Diante desse quadro, é inevitável a utilização da IA em benefício do mundo jurídico, já que a sociedade anseia por essa otimização de tempo.

CONCLUSÃO

A grande transformação digital que ocorreu nos últimos tempos, bem como o surgimento da chamada inteligência artificial, que já está sendo amplamente utilizada no mercado, tendem a revolucionar o mercado jurídico nos próximos anos.

Através do presente trabalho constatou-se que a transformação digital e a inteligência artificial aplicadas ao direito previdenciário têm impactos positivos, pois a celeridade em encontrar respostas, a agilidade na análise dos casos e a concessão imediata dos benefícios demonstram que a transformação digital é totalmente positiva para esse segmento jurídico, quiçá para todos, uma vez que vivemos numa sociedade em constantes transformações e sedenta por mudanças e rapidez no atendimento a seus anseios.

REFERÊNCIAS

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_. Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Especial 35 anos do TRF3 - Projetos inovadores conectam a Justiça Federal da 3ª Região ao futuro. Transformações tecnológicas impulsionaram iniciativas bem-sucedidas. Disponível em: https://web.trf3.jus.br/noticias/Noticiar/ExibirNoticia/430629-especial-35-anos-do-trf3-projetos-inovadores-conectam. Acesso 12 de julho de 2024.

A NÃO INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA EM ALIMENTOS OU PENSÃO ALIMENTÍCIA

Palavras-chave

Alimentos. Pensão alimentícia. Imposto de Renda.

Letícia Gibelle

Acadêmica do 9º período do curso de Bacharel em Direito pela Faculdade Nove de Julho de Bauru, pós-graduada em Direito Empresarial e Gestão Tributária pela Faculdade Focus, cursou Técnico em Serviços Jurídicos na ETEC Ernesto Monte Bauru, Tecnólogo em Gestão Pública pela Universidade Paulista e bacharel em Administração pela FACEP. (leticiagibelle@hotmail. com).

Resumo

O artigo científico explana o tema da não incidência do imposto de renda em alimentos e pensão alimentícia, que movimentou inúmeras opiniões jurídicas em torno da possibilidade de sua aplicação. De um lado, a constatação da incidência do imposto de renda na prestação de alimentos sendo prejudicial à subsistência de quem recebe o recurso de natureza alimentar, entendendo que tal aplicação comprometeria o mínimo existencial (alimentação, educação, saúde e outras), bem como dispõe da fragilidade quanto ao princípio da dignidade humana e a desigualdade de gênero. Por outro lado, o pensamento de incidir o imposto de renda com uma visualização benéfica, versa, sobre o princípio da igualdade tributária, quando focado na segurança do Estado e a tributação na renda como outra qualquer. Fato, onde um Estado Democrático de Direito que deve abranger justiça social e garantias constitucionais a dignidade do indivíduo, a tributação na renda se tornaria inconstitucional, quando violada os limites dos direitos fundamentais. Foram realizadas pesquisas e leituras dos materiais indicados ao final do artigo, análise da legislação, buscas por jurisprudências e doutrinas recentes, como a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI nº.5.422/DF, proposta pela Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) em desfavor da incidência do imposto renda, e que aspirava pelo direito das famílias, que se tornou mais apropriado constitucionalmente.

Foto: Fábio Cres

No ano de 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou por maioria dos votos a não incidência do imposto de renda sobre valores de natureza alimentar, objetivamente garantindo os direitos das mulheres, que ocasionalmente é quem se encontra em estado de vulnerabilidade na relação familiar.

A discussão sobre esse tema atinge a desigualdade de gênero, momento em que o cenário é de mulheres que após o divórcio ficam dependentes do recebimento de alimentos, e subsequente permanecendo responsável pela guarda dos filhos, na maioria dos casos.

Não obstante, é apropriado dizer que defronte aos direitos fundamentais, esbarraremos em um dos principais princípios presentes no ordenamento jurídico, cujo é denominado como Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, previsto na Constituição Federal no artigo 1º, III.

Nesse impasse, a decisão da ADI nº. 5422/DF, evidencia que as mulheres ficam sujeitas a arcar com os cuidados de maneira integral aos filhos, logo tem menos vantagens em relação a posição do ex-cônjuge, e ainda, quando recebe valores de natureza alimentar não é possível considerar como acréscimo patrimonial.

De fato, refere-se a um direito fundamental, onde certifica o sustento das necessidades básicas de quem lhe é destinado os alimentos, detém da manutenção de igualdade no cenário que já estava inserido, a fim de que se tenha as mesmas oportunidades e seja justo, e não de enriquecimento.

Sendo de conhecimento, que a Receita Federal (RFB) após decisão do STF acatou a declaração de pensão alimentícia como valores não-tributáveis no imposto de renda, o que propõem a valorização ao direito da mulher.

Há de se falar em bitributação quando se tem alimentante e alimentado contribuindo com o imposto de renda, de uma mesmo fator alimentos ou pensão alimentícia.

Portanto, o resultado do afastamento da incidência garante melhorias e importância do direito do alimentando, fora que ao contrário, traria dificuldades no cumprimento da obrigação e daria a possibilidade de discussão sobre valores alimentícios a serem pagos.

2. A IMPORTÂNCIA DA FAMÍLIA PARA O ESTADO

A família figura na estruturação de pessoas que buscam pelo reconhecimento e afetividade em um lar digno e de mais respeito, insere a pessoa em uma cultura, religião, cria sentimentos, valores sociais fundamentais e princípios.

De acordo com a Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (2000, p. 17-18), a concepção em relação a família:

“a família é uma entidade histórica, ancestral como a história, interligada com os rumos e desvios da história, ela mesma, mutável na exata medida em que mudam as estruturas e a arquitetura da própria história através dos tempos, a história da família se confunde com a própria humanidade”.

Como bem pontua, a família passa por diversas evoluções e revoluções, com particularidades não só pessoais, mas financeiras e de política.

Além disso, sendo base da sociedade a família contribui para evolução dos indivíduos, os laços afetivos que elevam os princípios e valores desenvolvidos em um ambiente familiar e contributiva socialmente, abrigam condições de sobrevivência e principalmente convivência, à medida que conceitua Rolf Madaleno (2023, p.41) esclarece:

“A convivência humana está estruturada a partir de cada uma das diversas células familiares que compõem a comunidade social e política do Estado, que assim se encarrega de amparar e aprimorar a família, como forma de fortalecer a sua própria instituição política.”

Em razão, a convivência familiar não obriga que os indivíduos tenham relação consanguínea de parentesco, seu conceito é mais amplo do que imaginamos, pode ser formada por quaisquer pessoas em favor da afetividade, cuidado e convivência.

Além disso, Rolf Madaleno esclarece em sua obra a originalidade da família tradicional patriarcal, bem como os novos modelos de família que se formam nos tempos atuais, como família homoafetivas, monoparentais, adotivos, amigos entre outras, que são aspectos que surgiram durante o desenvolvimento social, com aumento na igualdade de gênero, posicionamento cultural e estilo econômico- participativo de todos os que integram a família.

Entretanto, mais afundo é inevitável a reflexão jurídica da evolução sobre o que é família, de um ângulo em que há obrigações e deveres entre os membros integrantes, mediante tais responsabilidades observamos que o Estado tem paralela responsabilidade constitucional.

Nessa toada, o robusto pensamento da grande jurista Maria Berenice Dias (2022, p.45) quanto as ligações entre a família e o Estado como intervencionista, elevando uma contextualização sobre o tema:

“A intervenção do Estado nas relações de direito privado permite revigoramento das instituições de Direito Civil e, diante do texto constitucional, forçoso ao intérprete redesenhar o tecido do Direito Civil à luz da

Constituição. [...] Essa é uma característica do chamado estado social, que intervém em setores da vida privada como forma de proteger o cidadão, postura impensável em um estado liberal que prestigia, antes e acima de tudo, a liberdade. [...] O legislador constituinte alargou o conceito de família ao emprestar juridicidade ao relacionamento fora do casamento. Afastou da ideia de família o pressuposto do casamento, identificando como família também a união estável entre homem e um a mulher. A família à margem do casamento passou a merecer tutela constitucional porque apresenta condições de sentimento, estabilidade e responsabilidade necessárias ao desempenho das funções reconhecidamente familiares.”

Igualmente, a proteção familiar é um papel pertinente ao Estado, pois propõem que se assegurem recursos e serviços necessários dos quais promovem o bem-estar familiar, por consequência ocorrem as políticas públicas, programas sociais, especialmente àqueles elementos que estão conectados diretamente aos direitos fundamentais.

Nesse ínterim, dispomos de estudos voltados aos princípios do direito de família, dando destaque ao da Dignidade Humana, Solidariedade e Reciprocidade, além da Proteção Integral a Crianças, Adolescentes, Jovens e Idosos.

Ao passo que a Dignidade Humana como o próprio nome diz, dignidade, relaciona com os direitos humanos e a valorização do indivíduo, tem previsão legal no artigo 1º, III da Constituição Federal.

Mas a frente, a doutrina da Maria Berenice Dias (2022, p.57) compõe o cenário:

“Trata-se de princípio que não representa tão só um limite à atuação estatal. Constitui também um norte para a sua ação positiva. O Estado não tem apenas o dever de abster-se de praticar atos que atentem contra a dignidade humana. Também deve promover essa dignidade através de condutas ativas, garantindo o mínimo existencial para cada ser humano em seu território.”

Ou seja, o Estado tem como dever garantir que os direitos dos indivíduos sejam iguais dentro das suas necessidades básicas, abrangendo condições de crescimento e desenvolvimento pessoal, para tanto, corrobora o pensamento de Rolf Madaleno (2023):

“A dignidade humana é princípio fundamental na Constituição Federal de 1988, conforme artigo 1º, inciso III. Quando cuida do Direito de Família, a Carta Federal consigna no artigo 226, § 7º, que o planejamento familiar está assentado no princípio da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável. Já no artigo 227, prescreve ser dever da família, da

sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, pois que são as garantias e os fundamentos mínimos de uma vida tutelada sob o signo da dignidade da pessoa, merecendo especial proteção até pelo fato de o menor estar formando a sua personalidade durante o estágio de seu crescimento e desenvolvimento físico e mental.”

A fundamentação doutrinária desfruta que o princípio da dignidade tem encadeamento com o Estado Democrático de Direito, dada a circunstância do solidarismo social e constitucional, o chamamento reflexivo nas palavras de Pablo Stolze Gagliano (2023, p.32):

“Princípio solar em nosso ordenamento, a sua definição é missão das mais árduas, muito embora arrisquemo-nos a dizer que a noção jurídica de dignidade traduz um valor fundamental de respeito à existência humana, segundo as suas possibilidades e expectativas, patrimoniais e afetivas, indispensáveis à sua realização pessoal e à busca da felicidade. ”

Para tanto, o princípio que aplica a condição digna do indivíduo, a qual celebra uma sociedade mais igualitária, justa e feliz.

Nas palavras de Flávio Tartuce:

“Assim sendo, aplicando-se a tese da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, tais direitos existem e devem ser respeitados nas relações privadas particulares, no sentido de que os alimentos estão muito mais fundamentados na solidariedade familiar do que na própria relação de parentesco, casamento ou união estável.”

Do mesmo jeito que, o Estado Democrático de Direito é instrumento de direito ao indivíduo, seus poderes atuam de forma limitada, já que há direitos fundamentais assegurados as pessoas, bem como promove efetivamente leis de proteção familiar.

À vista disso, é entendido que a família faz parte fundamental do Estado, nela há o desenvolvimento de valores e seus pontos elementares, mas além, interfere na economia, uma vez que é geradora de consumismo e trabalho, sendo certo o surgimento da responsabilidade obrigacional dos pais, filhos, idosos e outras pessoas que se reconhecem no âmbito familiar.

A obrigação alimentar é algo natural e histórico, tem previsão legal no nosso ordenamento jurídico, sendo a prestação de alimentos a outra pessoa uma forma de solidariedade, caso contrário, fere o direito à dignidade humana e da solidariedade supracitada e bem esclarecida no título anterior.

Elucida Flávio Tartuce (2024):

“aplicando-se a tese da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, tais direitos existem e devem ser respeitados nas relações privadas particulares, no sentido de que os alimentos estão muito mais fundamentados na solidariedade familiar do que na própria relação de parentesco, casamento ou união estável.”

Além disso, a obrigação ao cumprimento poderá ser adquirida através de ação judicial, quando ausente o consenso entre as partes ou por acordo extrajudicial sem necessidade de medidas judicialização, a fim de que sejam estabelecidos a proteção familiar.

A clareza do artigo 277 da Constituição Federal de 1988 indica o dever da família e do Estado, que ambos têm o dever de subsidiar condições básicas e de mínimo existencial pleiteado.

Em sentido que, Arnaldo Rizzardo (2018, p. 666) fundamenta sobre a obrigação alimentar:

“Funda-se, outrossim, a obrigação alimentícia sobre um interesse de natureza superior, que é a preservação da vida humana e a necessidade de dar às pessoas certa garantia no tocante aos meios de subsistência. Neste sentido, emerge evidente participação do Estado na realização de tal finalidade, que oferece uma estrutura própria para garanti-la. Assim, os instrumentos legais que disciplinam este direito, e os meios específicos reservados para a sua consecução, revestem de um caráter publicístico a obrigação de alimentar.”

Não obstante, é notório para a doutrina e de extrema relevância sobre a capacidade econômica de quem fornece alimentos, que por um lado evidencia o alimentante e seu poder de contribuir o suficiente dentro de seus recursos próprios, algo expresso pela lei e aplicada pelo juiz na fixação de alimentos e da necessidade de quem recebe (que não deixa de ser contribuinte), é o chamado binômio da necessidade-possibilidade.

Sobre o binômio da necessidade-possibilidade e a incidência do IR Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona (2024) aduzem:

Quando, cotidianamente, utiliza-se a expressão “alimentos”, é extremamente comum se fazer uma correspondência com a noção de “alimentação”, no sentido dos nutrientes fornecidos pela comida.

Todavia, a acepção jurídica do termo é muito mais ampla.

De fato, juridicamente, os alimentos significam o conjunto das prestações necessárias para a vida digna do indivíduo.

O fundamento da “prestação alimentar” encontra assento nos princípios da dignidade da pessoa humana, vetor básico do ordenamento jurídico como um todo, e, especialmente, no da solidariedade familiar.

Assim, o critério de fixação de alimentos pode ser determinado tanto em valores fixos, quanto variáveis, bem como em prestação in natura, de acordo com o apurado no caso concreto.

Ademais, exigir do cidadão comum o conhecimento necessário para fazer, anualmente, a atualização da prestação devida pelo IGP-M, é, em nosso sentir, exigência descabida que culminaria em coroar indesejável insegurança jurídica.

(grifo nosso)

Em outros termos, a solidariedade familiar prestada é em favor de manter as condições dentro e fora do âmbito familiar, não devendo ser violada a dignidade ou qualquer pretensão de deixar mercê de um cenário privado de vantagem moral e material, que antes da dissolução do ambiente familiar que usufruía.

Além disso, está previsto no artigo 1.694 do Código Civil as disposições legais que acarretam os alimentos, atendendo o mínimo imprescindível para sobrevivência, cito o exemplo, dos pais divorciados que devem manter a mesma qualidade de vida e conforto que os filhos tinham antes da dissolução matrimonial.

Sendo assim, a pensão alimentícia ou alimentos são prestações contínuas e de natureza econômica, direcionadas aos filhos, ex-cônjuges, irmãos, avós e netos, um dever de reciprocidade e limitados, pois os pais tem a obrigação de prestar alimentos aos filhos até os 18 anos, em contrapartida, igualmente os filhos tem o dever de prover alimentos aos pais, quando impossibilitados.

4. FUNDAMENTAÇÃO LEGAL DA ISENÇÃO DO IMPOSTO DE RENDA EM ALIMENTOS OU PENSÃO ALIMENTÍCIA

O imposto de renda é um tributo federal que incide sobre a renda e provendo de pessoas físicas e pessoas jurídicas de qualquer natureza, com competência da União e tem previsão no artigo 43 do Código Tributário Nacional em seu inciso II elucida:

Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:

II - de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.

Em síntese, a tributação realizada pelo Estado é instrumento utilizado para custear os serviços públicos, como saúde, educação, segurança, infraestrutura e a previdência social, dessa forma uma maneira do Estado assegurar a proteção familiar, através de isenções e benefícios fiscais estabelecido no Código Tributário Nacional (CTN), restando a responsabilidade do contribuinte ao pagamento do tributo, dentro da sua declaração econômica.

Nas considerações do autor Conrado Paulino da Rosa (ROSA, 2015) sobre a inconstitucionalidade da tributação em pensão alimentícia, fortalece que a obrigação dos alimentos é um direito substancial à pessoa beneficiária, a qual merece destaque:

“A incidência tributária sobre os valores recebidos, sendo que a pessoa que paga a pensão já recolheu tributos quando recebeu, na origem, a quantia necessária para o atendimento da obrigação, permite, invariavelmente, o desatendimento da própria finalidade do instituto da pensão alimentícia.”

Quanto a reflexão sobre a importância da pensão alimentícia, essa está vinculada a relação de auxílio do outro, para os doutrinadores é denominada “manutenção”.

Expressamente no Código Civil em seu artigo 1.694 estabelece os alimentos, dando a possibilidade de interpretar dois princípios principais o da dignidade da pessoa humana e o da solidariedade.

A pensão alimentícia decorre de uma necessidade de sobrevivência, tendo em vista, que no Código Civil de 1916 havia a impossibilidade de reconhecimento de filhos tidos fora do casamento, o modelo patriarcal demonstra a violação do princípio da dignidade da pessoa humana, e com o tempo foi se reformulando para assegurar o direito do indivíduo e da família.

Com adoção do Código Civil de 2002, admitiu a proteção familiar como princípio fundamental da dignidade da pessoa

humana (direito personalíssimo) anteriormente esquecida, para trazer à tona a aplicabilidade da obrigação alimentar, garantidora do mínimo existencial.

Na contemporaneidade, o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, afastou a incidência do imposto de renda, em atenção à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5422/DF, a qual foi ajuizada pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) questionando a tributação especificamente no direito de família, com o argumento da bitributação, tão discutido se ocorre ou não sua duplicidade.

Por razão, faz jus o entendimento do STF que, o imposto de renda se trata de um tributo que incide sobre o acréscimo patrimonial, a qual está em desencontro com a questão da pensão alimentícia ou alimentos, que é o pagamento realizado como in natura ou pecúnia para necessidade e sobrevivência familiar, que excluir a tributação por não ser renda, sequer renda extra.

Conforme o voto do ministro Luís Roberto Barroso, deixa claro a questão da justiça tributária, quando expõe que a tributação ocorre em desvantagem da mãe/genitora, a qual possui a guarda do filho, consequentemente resta o encargo do ônus tributário dos valores recebidos da pensão alimentícia.

Em que tece comentários, significativo dizer que a pensão alimentícia é impenhorável, por se tratar de verba alimentar, motivo pelo qual o artigo 833, IV, do Código de Processo Civil estabelece, em razão de ser considerado direito fundamental.

Embora este artigo científico deslumbra sobre a tributação, tem potencial de abrir menção sobre o entendimento da impenhorabilidade da pensão alimentícia, que igualmente, oferece visibilidade aos direitos fundamentais, à vista disso, Marcus Vinicius Furtado Coêlho (2019), alude em seu comentário em relação a decisão é intocável:

“A decisão do STJ, portanto, buscou equilibrar os direitos fundamentais em conflito no caso. Assegurou a garantia do mínimo existencial e da dignidade do devedor, sem desassistir a efetividade do processo e a satisfação do crédito pleiteado. A interpretação do dispositivo em questão deu-se de maneira teleológica, observando-se a finalidade da norma, qual seja a garantia de um padrão de vida médio ao credor, para si e para sua família, capaz de lhes garantir dignidade. Não afetando referido limite, concluiu o Tribunal que a penhora pode recair sobre percentual de seus vencimentos ou outras verbas de natureza alimentar, a fim de assegurar tutela jurisdicional que confira efetividade, na medida do possível e do proporcional, aos direitos do credor.”

Isto que, partindo dessas considerações, pode-se dizer que a pensão alimentícia ou alimentos, são particulares e oriundos ao direito fundamental, bem como relembramos no caso

das contribuições extraordinárias para os planos de saúde, não merecem incidência do Imposto de Renda, a exemplo.

Nas palavras de Ricardo Alexandre (2023, p.694), o Imposto de Renda (IR) é denominado como finalidade fiscal e demonstra que os menos favorecidos economicamente são os que mais precisam dos serviços públicos, vejamos:

“O denominado Imposto de Renda é tributo com finalidade marcantemente fiscal, constituindo-se no maior arrecadador entre os impostos federais.

[...]

Nos termos constitucionais, o “imposto de renda” não incide apenas sobre a renda, mas também sobre os proventos de qualquer natureza” (CF, art.153, III).

Pouco a pouco, o autor compreende que o imposto tem efeito de redistribuição, sendo os que menos contribuem são os que mais utilizam os serviços públicos.”

Insta salientar, que a decisão do Supremo sobre o afastamento da incidência de imposto de renda na pensão alimentícia e nos alimentos, atribuísse a causa de justiça social, mas além evitasse o prejuízo aos contribuintes, que estariam realizando a bitributação, mas principalmente a discriminação de gênero, desfavorecendo a mulher que passou por marcos históricos como exemplo do Estatuto da Mulher Casada, já demonstrava a vulnerabilidade econômica que esteve exposta desde muito tempo.

Além disso, válido sinalizar que a tributação na pensão alimentícia ou alimentos decai o poder compra e subsistência de quem recebe, por um lado a pensão alimentícia ou alimentos uma vez tributado por quem paga, não deveria ser tributado novamente.

Ainda que, o Projeto de Lei (PL) nº. 2011/2022 aprovada pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) inseriu na Lei nº. 7.713 de 1988 a decisão da ADI nº. 5422/DF, transmite a ideia da tributação e os prejuízos aos indivíduos abordados aqui. Essa não incidência do Imposto de Renda favorece para o contribuinte a restituição dos valores pagos a título de alimentos nos últimos 5 (cinco) anos, mas segundo a Receita Federal Brasileira, na apresentação de embargos de declaração alegou que a retificação provocaria a perda de R$6,5 bilhões.

No entanto, o entendimento é em relação a não incidência do imposto com a finalidade de não causar bis in idem (dupla tributação do mesmo objeto) e não entrada de novos valores de rendas e proventos.

Em síntese, na decisão do STF, é sobre o argumento de que o alimentante ao contribuir uma vez com o imposto de renda, não haveria motivo para a cobrança de quem recebe a pensão alimentícia a princípio, sobre o mesmo fator, o que demonstra fragilidade ao destinatário dos alimento s.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para a formação do Estado é indispensável a existência de pessoas, por razão que a família é pilar para evolução social, mas além é protegida constitucionalmente em função do desenvolvimento do ser.

É coerente dizer, que há décadas atrás o tradicionalismo familiar era predominante, as políticas públicas e a atenção jurisprudencial e doutrinária para a formação de novos modelos de construção familiar, fizeram e fazem com que o Estado tenha dispositivo legal regulamentador a fim de proteger o direito familiar, em especial os direitos fundamentais das pessoas.

A lei peca quando não permite a ampla defesa dos direitos, a necessidade do Estado em realizar a cobrança e arrecadação do imposto sobre a pensão alimentícia e alimentos entra em conflito constitucional.

Mesmo porque, estaria tributando a favor de financiar os serviços públicos, recolhendo do mínimo existencial de outra pessoa, que poderia estar ativamente serviço particular, como escola, hospital e entre outras, não abarrotando o serviço público que já é precário.

Além do mais, a não tributação é uma maneira de assegurar o respeito aos direitos fundamentais e os princípios familiares, não menos importante, benesses quem recebe a pensão, visto que buscou pela fixação de alimentos, por estar vulnerável financeiramente.

Contudo, importante dizer que na vulnerabilidade da mulher no Brasil está estampado em dados significativos de violência doméstica, ou seja, é mais uma demonstração de que políticas públicas envolvendo o financeiro são formas de trazer segurança familiar.

A critério de conhecimento, o Projeto de Lei 955/23 visa isentar o imposto de renda as mulheres vítimas de violência doméstica, que significa um fôlego que o Estado daria devido a vulnerabilidade.

Destarte, conclui-se que apesar de muito debatido a recente decisão ADI 5422/DF isentando o imposto de renda, esta deve respeitar o sistema tributário e sem descumprir a constituição, o Estado Democrático de Direito e os princípios que são base no direito de família, tampouco ignorar que quem recebe a pensão alimentícia ou alimentos, pode estar fragilizado socialmente, financeiramente e psicologicamente.

REFERÊNCIAS

ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário. 17.ed. São Paulo: Juspodivm, 2023. p. 694.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 5422/DF Após o voto do Ministro Dias Toffoli (Relator), que conhecia, em parte, da ação direta e, quanto à parte conhecida, julgava procedente o pedido formulado, de modo a dar ao art. 3º, § 1º, da Lei nº 7.713/88, ao arts. 4º e 46 do Anexo do Decreto nº 9.580/18 e aos arts. 3º, caput e § 1º; e 4º do Decreto-lei nº 1.301/73 interpretação conforme à Constituição Federal para se afastar a incidência do imposto de renda sobre valores decorrentes do direito de família percebidos pelos alimentados a título de alimentos ou de pensões alimentícias, pediu vista dos autos o Ministro Roberto Barroso. Falou, pelos interessados, o Dr. Arthur Cristóvão Prado, Advogado da União. Plenário, Sessão Virtual de 12.3.2021 a 19.3.2021. Requerente: Instituto Brasileiro de Direito de Família IBDFAM. Interessados: Presidente da República e Congresso Nacional. Relator: Min. Dias Toffoli, Julgamento: 06 de junho de 2022. Publicado: 23/08/2022. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=%22ADI%205422%22&base=acordaos&sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true . Acesso em: 21 de set. 2023.

BRASÍLIA, DF: Presidente da República, [1996]. C ódigo Tributário Nacional . Disponível em: https://www.planalto.gov. br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm Acesso em: 30 de out. 2023.

BRASÍLIA, DF: Presidente da República, [1996]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicao.htm Acesso em: 30 de out. 2023

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Foto: Fábio Cres

CONSIDERAÇÕES SOBRE IMPARCIALIDADE E SUBJETIVIDADE NA RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL Nº 43.007/DF

Palavras-chave

Imparcialidade. Subjetividade. Reclamação Constitucional.

Gabriel Leme Rocha

Advogado. Especialista em Direito Civil e Processo Civil e Mestrando em garantia de acesso à justiça e concretização de direitos pelo Centro Universitário de Bauru, mantido pela Instituição Toledo de Ensino.

Monique Mazon Queiroz

Escrevente técnico judiciário. Especialista em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e Mestranda em direitos fundamentais e inclusão social pelo Centro Universitário de Bauru, mantido pela Instituição Toledo de Ensino.

Resumo

O presente estudo tem como escopo analisar o princípio da imparcialidade do juiz no ordenamento jurídico brasileiro e em especial no âmbito da reclamação constitucional nº 43.007/DF, utilizada como caso paradigma para verificar a inobservância do referido princípio na prática forense. Ainda, o trabalho tece comentários sobre as subjetividades inerentes a todos os indivíduos, e que também atinge os julgadores por consequência, e como tais convicções individuais, ao mesmo tempo, devem respeitar limites legais para o julgamento de lides concretas. Dessa maneira, o objetivo final do artigo é utilizar um caso prático de relevância nacional para levantar questionamentos sobre a linha tênue entre a imparcialidade do julgador e suas subjetividades humanas adquiridas pela vida em sociedade.

1. INTRODUÇÃO

Este estudo traz considerações sobre o princípio da imparcialidade, o qual não está diretamente previsto na Constituição Federal, mas entranhado em outros princípios, como o do juiz natural, da proibição de tribunais de exceção e da inafastabilidade da justiça, analisando, portanto, o tratamento dado a este princípio no ordenamento jurídico brasileiro.

Em um segundo momento, o presente trabalho apresenta a reclamação trabalhista nº 43.007/DF como caso paradigma para discutir a inobservância da imparcialidade em uma lide concreta.

Ainda, faz-se uma análise sobre como as subjetividades pessoais são inerentes à vida em coletividade, afinal, o ser humano é fruto de suas experiências colecionadas ao longo da vida, e de certo modo, sempre irão impermear o senso de justiça e o convencimento do julgador, porém, as convicções individuais não podem ser maiores que a lei, que o devido processo legal e que os próprios princípios constitucionais.

Ao final, o estudo, abstraindo-se de quaisquer críticas políticas e demais valorações subjetivas sobre o teor da demanda em análise, traça reflexões sobre a falta de imparcialidade não apenas do juiz, mas também da acusação, visto que o magistrado atuou em conjunto com o membro do Ministério Público para culminar na condenação do reclamante, que já foi Presidente da República no Brasil.

Portanto, o caso reflete perfeitamente como concepções políticas influenciam os indivíduos, moldando suas condutas, e os julgadores, como participantes da coletividade, também estão sujeitos a juízos de valor. Contudo, a discussão está no fato de que, independentemente das subjetividades particulares dos julgadores, as quais sempre existirão, estas não devem se sobrepor aos limites legais e constitucionais do ordenamento jurídico brasileiro, desvirtuando institutos processuais, ofendendo o devido processo legal e corrompendo o próprio Estado Democrático de Direito.

2. ASPECTOS GERAIS DA RECLAMAÇÃO Nº 43.007/DF

A controvérsia em questão resulta da irresignação do reclamante Luiz Inácio Lula da Silva no cerceamento de sua defesa quanto ao acesso dos documentos referentes ao acordo de leniência nº 5020175-34.2017.4.04.7000, firmado na ação penal 5063130-17.2016.4.04.7000, entre a empresa Odebrecht e o Ministério Público Federal de Curitiba, homologado pelo Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba. Foi alegado, ainda, que tal cerceamento caracteriza afronta à súmula vinculante nº 14 e ao decidido na RCL 33.543/PR-AgRAgR-ED-AgR, afigurando-se como obstrução no exercício do contraditório e da ampla defesa.

De início, a reclamação constitucional nº 43.0007/DF estava sob relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, contudo, em decorrência de sua aposentadoria, foi sucedido pelo Ministro Edson Fachin. Não obstante, considerando a prevenção e transferência para a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal do Ministro Dias Toffoli, entendeu-se pela sua prevenção, de modo que, para um exercício regular de jurisdição, foi realocada para sua relatoria a referida reclamação constitucional.

A esse respeito, é importante destacar que o Ministro Ricardo Lewandowski já havia proferido decisões anteriores nos autos da reclamação constitucional, determinando que os documentos referentes ao respectivo acordo de leniência fossem compartilhados com a defesa, sendo que tais decisões foram inobservadas em sua integralidade.

O conteúdo decisório restou para oficiar ao juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba que apresentasse os documentos em sua integralidade relacionados ao acordo de leniência, bem como, oficiar autoridades públicas para apuração de eventuais responsabilidades na seara funcional, administrativa, criminal e cível de seus agentes públicos no âmbito da celebração da referida leniência de que trata os autos, já que, para o Ministro Relator, trouxe consequências gravíssimas para o Estado Democrático de Direito.

3. PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE DO JUIZ COMO DIREITO FUNDAMENTAL DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Compreende-se como imparcialidade o juiz que, ao proferir determinada decisão e julgar a lide, se afasta de suas convicções particulares e subjetivas, na medida do possível, utilizando-se unicamente das informações constantes nos autos processuais e não fazendo diferenciações entre as partes.

A imparcialidade é primordial à segurança jurídica e ao exercício da função jurisdicional, assim, os jurisdicionados que acionam o poder judiciário devem ter tratamento equânime e serem tutelados de eventuais desavenças ou quaisquer prejuízos advindos de qualquer passionalidade do julgador.

Em que pese o instituto não estar explícito na Constituição Federal, está indiretamente previsto em outros princípios constitucionais.

A Constituição não trata explicitamente desse tema, mas, de forma indireta, traça seu perfil ao dispor sobre as vedações impostas aos juízes (parágrafo único do art. 95), como a de “receber auxílio ou contribuição”, sinalizando inequivocamente que o juiz precisa ser imparcial. Da mesma forma, no novo CPC (arts. 144 a 148), assim como ocorria no CPC de 1973 (arts. 134 a 136), há diretrizes sinalizando quais as hipóteses em que o juiz pode perder a imparcialidade (Bonício, 2016, p.283).

Conforme explica Carlos de Mattos Barroso, a imparcialidade é a prerrogativa de um julgamento proferido por um juiz equidistante às partes, e é assegurada por vários princípios dispostos na Carta Magna, como a garantia do juiz natural e a vedação expressa aos tribunais de exceção (art. 5º, XXXVII, da Constituição Federal). Confira-se:

O juiz natural é aquele investido regularmente na jurisdição (investidura) e com competência constitucional para julgamento do conflito de interesses a ele submetido. Exemplo prático da aplicação da garantia da investidura é a declaração de inconstitucionalidade da aplicação a menor de medida socioeducativa pelo Ministério Público por ser essa atribuição exclusiva da autoridade judiciária e gerar, por consequência, violação ao princípio do juiz natural.Já para que não haja violação à vedação aos tribunais de exceção, mister se faz que o órgão jurisdicional tenha sido criado previamente aos fatos que geraram a lide submetida ao seu crivo e com competência prevista de modo expresso na Constituição Federal. Típico exemplo de tribunal de exceção em nosso ordenamento seria o de Nuremberg, criado após o fim da Segunda Grande Guerra, para julgar os crimes de genocídio acontecidos anteriormente à sua instituição. O próprio Código de Processo Civil, em seus arts. 144 e 145, prevê hipóteses de natureza objetiva e subjetiva de parcialidade do juiz (vide Capítulo XXII, item 70.2) (2020, p.26).

Ademais, a imparcialidade também é fundamental para a concretização do princípio previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, já que apenas um juiz imparcial permite a concretização da inafastabilidade da justiça.

A imparcialidade é tratada também pela Declaração Universal dos Direitos do Homem em seu artigo X, que assim se enuncia: “Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele ”.

Nos cenários de tratados e convenções em que o Brasil é signatário, o artigo 8º, do Pacto de São José da Costa Rica, preceitua que todo indivíduo tem o direito de ser ouvido por um “juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente pela lei”

Oportuno ressaltar que, com a emenda constitucional nº 45/2004, os tratados e convenções que versem sobre direitos humanos adquirem força de status de emenda constitucional, conforme texto legal previsto no art. 5º, §3º. Nesse sentido, Aury Lopes Júnior entende que além da existência de um juiz, para que se perfaça a garantia da

jurisdição, é necessário que se exista um juiz imparcial. Em suas palavras: “a garantia da jurisdição significa muito mais do que apenas ‘ter um juiz’, exige ter um juiz imparcial, natural e comprometido com a máxima eficácia da própria Constituição” (2018, p. 58).

No mesmo sentido:

Desse modo, pode-se dizer que a imparcialidade é um valor decorrente das noções de igual dade, justiça e verdade. como os jurisdicionados são iguais em sua condição pessoal, precisam que suas alegações e provas sejam examinadas por um juiz que não menospreze um em benefício do outro, pois somente assim o que é verdadeiramente devido a cada um (o direito, objeto da justiça, consoante a definição clássica) poderá ser efetivamente amparado, e o conflito instalado, enfim, encontrar boa solução (Lacerda, 2016, p. 25).

Logo, a imparcialidade reside no princípio basilar de segurança jurídica aos jurisdicionados, uma vez que traz consigo a certeza de que as decisões que serão prolatadas no processo restarão pautadas sobre as verdades processuais constatadas nos autos e não preferências pessoais do julgador.

Não obstante, importante destacar que a imparcialidade deve estar presente não apenas na conduta do julgador, mas também no comportamento de todos os auxiliares da justiça.

Ainda, a imparcialidade gera mais controversas nos processos penais de natureza acusatória ou julgamentos que envolvem questões políticas, seja pelas pessoas litigantes ou pelo objeto de discussão, como será visto posteriormente na análise do caso trazido à baila.

No âmbito penal, tem-se que a imparcialidade do magistrado julgador deve ser com relação à defesa e com relação a acusação. Explica-se:

A imparcialidade, em primeiro lugar, decorre do sistema legal do processo, que adotou o chamado sistema acusatório, no qual são distintos o órgão acusador e o órgão julgador. Nesse sentido a imparcialidade decorre da equidistância do juiz em face das partes. Em segundo lugar, a imparcialidade deve verificar-se em concreto, porque o juiz não pode ter vinculação pessoal com a causa, seus participantes ou com outro magistrado que a julgou ou está julgando (Greco Filho, 2015, p.717).

A controvérsia acerca da imparcialidade motivou, inclusive, a criação do “Juiz das Garantias”.

A Lei n. 13.964/2019, de 24 de dezembro de 2019, popularmente conhecida como “Pacote Anticrime”, criou a figura do “Juiz das Garantias”, a quem caberá atuar na fase investigatória, deixando a outro magistrado a instrução e julgamento do processo. O objetivo foi preservar a isenção e imparcialidade do juiz encarregado do julgamento, evitando que houvesse comprometimento psicológico com a tese acusatória ou tendência de confirmar as medidas cautelares e restritivas eventualmente determinadas na fase da persecução penal extrajudicial (Capez, 2023, p.68).

Em um primeiro momento, aparenta ser uma premissa básica, porém, nos julgamentos concretos, verifica-se que a imparcialidade, muitas vezes, não é observada. Desse modo, fica claro a relevância do tema, em especial quando cumulado à análise de casos práticos, a fim de demonstrar que o assunto deve ser constantemente debatido e difundido pelos operadores do Direito, para fins preventivos e fiscalizatórios.

O presente estudo não visa traçar considerações críticas sob o inteiro teor da reclamação constitucional em análise, tampouco adentrar em discussões políticas, mas apenas, e tão somente, analisar o princípio da imparcialidade do juiz e como este restou afastado no caso prático.

É neste contexto, portanto, que se insere a reclamação constitucional nº 43.007/DF.

4. A SUBJETIVIDADE INERENTE AO INDIVÍDUO-JULGADOR

Outra reflexão importante ao se falar de imparcialidade é não a confundir com neutralidade, a primeira pressupõe que, ainda que o julgador possua suas crenças individuas e mentalidade específica, este é capaz de apreciar a controvérsia sob outros aspectos e pontos de vista, além dos próprios que dispõe a título de crenças individuais.

Ainda, na mesma toada:

A imparcialidade é uma construção técnica artificial do direito processual, para criar um terceiro estruturalmente afastado das partes, remontando à estrutura dialética de actum trium personarum (de Búlgaro de Sassoferrato). Obviamente que não se confunde com a “neutralidade”, inexistente nas relações sociais, na medida em que o juiz é um juiz-no-mundo. Esse afastamento estrutural exige que a esfera de atuação do juiz não se confunda com a esfera de atuação das partes, constituindo uma vedação a que o juiz tenha iniciativa acusatória e também probatória (Lopes Júnior, 2023, p.174).

Isto porque o juiz não é capaz de se desarmar de todas as suas convicções particulares no momento do julgamento, afinal, “essa imparcialidade é uma garantia inerente à jurisdição, mas não se confunde com neutralidade, porque todo juiz está sujeito a ter suas próprias opiniões e preferências, como toda pessoa que vive em sociedade” (Bonício, 2016, p. 283).

Dessa maneira, todo e qualquer indivíduo possui subjetividades próprias, fruto de suas experiências e concepções formadas ao longo da vida, contudo, tal fato não pode impedir que a decisão seja contrária aos princípios e normas presentes no ordenamento jurídico brasileiro. Em outras palavras, o limite da passionalidade do julgador são as diretrizes legais.

O juiz que vai aos princípios gerais e constitucionais ou considera as grandes premissas éticas da sociedade ao julgar, cumpre apenas um tradicional mandamento da própria ordem jurídica (os fins sociais da lei, art. 5º LICC) e comporta-se como autêntico canal de comunicação entre os valores da sociedade em que vive e os casos concretos que julga (Dinamarco, 2013, p. 64).

Veja-se, ainda, na mesma toada, o trecho abaixo transcrito:

O que realmente faz o juiz ser juiz e um tribunal um tribunal, não é a sua falta de criatividade (e assim a sua passividade no plano substancial), mas sim (a sua passividade no plano processual, vale dizer) a) a conexão da sua atividade decisória com os cases and controversies e, por isso, com as partes de tais casos concretos, e b) a atitude de imparcialidade do juiz, que não deve ser chamado para decidir in re sua, deve assegurar o direito das partes a serem ouvidas (fair hearing), [...] e deve ter, de sua vez, grau suficiente de independência em relação às pressões externas e especialmente àquelas provenientes dos ‘poderes políticos (Cappelletti, 1999, p. 74).

Pode-se dizer, então, que a imparcialidade está no fato de que o julgador deve ter consciência de que, em que pese sua subjetividade, esta não pode atrapalhar seu julgamento, sobrepondo-se às prerrogativas de um devido processo legal. O magistrado sempre terá motivações de foro íntimo, contudo, está adstrito a julgar aplicando as normas, princípios e procedimentos legalmente previstos.

5. IMPARCIALIDADE, SUBJETIVIDADE E O CASO PARADIGMÁTICO

No caso em tela, a decisão perpassa diversas vezes pelo princípio da imparcialidade. Em sua conclusão evidencia-se que a imparcialidade do juiz influenciou negativamente a condenação do reclamante, seja na condução do processo, quanto na obtenção das provas, conforme excertos abaixo:

14 DE DEZEMBRO DE 2016

17:48:52 Deltan Denúncia do Lula sendo protocolada em breve Denúncia do Cabral será protocolada amanhã

23:40:00 Moro um bom dia afinal

19 DE OUTUBRO DE 2015

11:41:24 Moro Marcado então? Decretei nova prisão de três do odebrecht, tentando não pisar em ovos. Receio alguma reação (sic) negativa do stf. Convém talvez vcs avisarem pgr.

13:13:44 Deltan Marcado. Shou (sic)

15:47:32 Moro Para informar, soltei dai o Cesar Rocha.

17:39:49 Deltan Ok. Ficou ótima a decisão

7 DE DEZEMBRO DE 2015 17:42:56

Moro Entao. Seguinte. Fonte me informou que a pessoa do contato estaria incomodado por ter sido a ela solicitada a lavratura de minutas de escrituras para transferências de propriedade de um dos filhos do ex Presidente. Aparentemente a pessoa estaria disposta a prestar a informação. Estou então repassando. A fonte é seria.

17:44:00 Deltan Obrigado!! Faremos contato [...]

10 DE DEZEMBRO DE 2015

19:16:16 Moro Como eata (sic) situação do acordo do pessoal da AG?

19:19:48 Deltan Até onde sei, aguarda assinatura pelo PGR

19:20:08 Se precisar que confirme com absoluta segurança, vou atrás, mas até alguns dias era isso

19:30:44 Moro Não tem necessidade. Achei que acordo envolvia soltura antes do recesso

19:33:26 Deltan checarei isso

19:34:08 Moro Nao que eu esteja preocupado.

19:34:20 Por mim podem ficar mais tempo

20:36:32 Deltan Rsrsrsrs [...]

17 DE DEZEMBRO DE 2015

11:33:20 Moro Preciso manifestação mpf no pedido de revigacao (sic) da preventiva do bmlai até amanhã meio dia

11:37:00 Deltan Ok, será feito. Seguem algumas decisões boas para mencionar quando precisar prender alguém... pena que parece que quem emitiu a decisão anda meio estranho.

De tais transcrições pode-se aferir que o Juiz do caso trabalhou efetivamente no sentido de buscar as condenações do reclamante e de seus consectários, articulando com a acusação ativamente.

Logo, o princípio da imparcialidade do juízo foi negligenciado, uma vez que as teses de acusação eram construídas em conjunto com o juízo de forma que impossibilitasse o indeferimento de tais pedidos.

Nesse sentido, o Relator dispôs:

Esse vasto apanhado indica que a parcialidade do juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba extrapolou todos os limites, e com certeza contamina diversos outros procedimentos; porquanto os constantes ajustes e combinações realizados entre o magistrado e o Parquet e apontados acima representam verdadeiro conluio a inviabilizar o exercício do contraditório e da ampla defesa (p. 132).

Inclusive, assim decidiu o Supremo Tribunal Federal, em sede do HC nº 164.493/ PR:

DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. PARCIALIDADE JUDICIAL E SISTEMA ACUSATÓRIO. CONHECIMENTO. POSSIBILIDADE DE EXAME DA SUSPEIÇÃO DE MAGISTRADO EM SEDE DE HABEAS CORPUS. QUESTÃO DE ORDEM. DECISÃO SUPERVENIENTE DO MIN. EDSON FACHIN, NOS AUTOS DO HABEAS CORPUS 193.726-DF, QUE RECONHECEU A INCOMPETÊNCIA DA 13ª VARA FEDERAL DE CURITIBA. AUSÊNCIA DE PREJUDICIALIDADE. IMPARCIALIDADE DO JULGADOR COMO PEDRA DE TOQUE DO DIREITO PROCESSUAL PENAL. ANTECEDENTES DA BIOGRAFIA DE UM JUIZ ACUSADOR. DESNECESSIDADE DE UTILIZAÇÃO DOS DIÁLOGOS OBTIDOS NA OPERAÇÃO SPOOFING. ELEMENTOS PROBATÓRIOS POTENCIALMENTE ILÍCITOS. EXISTÊNCIA DE 7 (SETE) FATOS QUE DENOTAM A PERDA DA IMPARCIALIDADE DO MAGISTRADO DESDE A ÉPOCA DA IMPETRAÇÃO. VIOLAÇÃO DO DEVER DE IMPARCIALIDADE DO MAGISTRADO. ART. 101 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. ORDEM EM HABEAS CORPUS

CONCEDIDA PARA ANULAR TODOS OS ATOS DECISÓRIOS PRATICADOS NO ÂMBITO DA AÇÃO PENAL 5046512-94.2016.4.04.7000/PR (TRIPLEX DO GUARUJÁ), INCLUINDO OS ATOS PRATICADOS NA FASE PRÉPROCESSUAL.

[...] 3. Imparcialidade como pedra de toque do processo penal. A imparcialidade judicial é consagrada como uma das bases da garantia do devido processo legal. Imparcial é aquele que não é parte, que não adere aos interesses de qualquer dos envolvidos no processo. Há íntima relação entre a imparcialidade e o contraditório. A imparcialidade é essencial para que a tese defensiva seja considerada, pois em uma situação de aderência anterior do julgador à acusação, não há qualquer possibilidade de defesa efetiva; é prevista em diversas fontes do direito internacional como garantia elementar da proteção aos direitos humanos (Princípios de Conduta Judicial de Bangalore, Convenção Americana de Direitos Humanos, Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e Convenção Europeia de Direitos Humanos), além de ser tal garantia vastamente consagrada na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Caso Duque Vs. Colombia, 2016) e do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (Castillo Algar v. Espanha, 1998, e Morel v. França, 2000).

Assim, no presente caso, a clara ocorrência da parcialidade do magistrado é ainda mais crítica por também estar caracterizada a participação do membro do Ministério Público, como se o órgão julgador e o órgão acusatório não fossem duas frentes independentes e autônomas entre si, em busca da verdade real, escopo do processo penal, pelo contrário, formavam uma união com o intuito condenatório por razões pessoais e políticas. Nesse tom:

Se, no sistema acusatório, a imparcialidade é essencial à função de julgar incumbência diversa e distinta das atividades de acusar e de defender, avulta essa importância quando uma judicialização da política implica a reunião dos poderes de legislar e de executar as leis no poder julgador. Ainda mais quando as próprias atividades legislativa e executiva estão caóticas. Pior, ainda, quando o Ministério Público, órgão de soberania do Estado, aparentemente despido da garantia do promotor natural, distancia-se dos valores, dos princípios e do ideal de justiça construídos pela população que deveria presentar em juízo e nos demais órgãos públicos (Penteado, 2002, p. 90).

A imparcialidade no processo penal ofende, finalmente, o princípio maior e fundamental do Estado Democrático de Direito, à dignidade humana. Nas palavras de Luis Gustavo de Carvalho, “em conclusão, o que seria inconstitucional, diante da Constituição de 1988, seria a adoção de um sistema processual em que o polo passivo da relação processual voltasse a ser um mero espectador da instrução processual e do próprio julgamento” (2014, p. 128).

A resolução constitucional nº 43.007/DF demonstrou como auxiliares da justiça podem deturpar o correto andamento processual e a lisura na produção de provas em prol de interesses políticos. Tal conclusão gera insegurança jurídica, demonstrando como os princípios constitucionais podem ser desfigurados dentro do próprio controle jurisdicional, órgão feito exatamente para a proteção de direitos, quando aplicado por operadores do Direito que não se depreendem suas concepções e pelo contrário, utilizam a máquina estatal para perfazer essas opiniões, moldando a finalidade do processo judicial para concretizar objetivos pessoais.

O ordenamento jurídico brasileiro enquanto Estado Democrático de Direito deve coibir tais condutas para evitar que seus pilares sejam lapidados em busca de satisfações pessoais dos julgadores, e a investigação de condutas suspeitas, conforme descrito na reclamação trabalhista nº 43.007/ DF, é essencial para manter a integridade do sistema jurídico e deve ser amplamente replicada para casos semelhantes, não apenas no que se referem a casos de grande repercussão nacional, mas à prática forense cotidiana. Diante de exposto, fica claro, portanto, a relevância atual do presente trabalho.

6. CONCLUSÃO

Depreende-se, portanto, que o juiz assume papel de destaque à medida que se utiliza da subjetividade casuística e aplica a tutela jurisdicional adequada ao caso concreto objetivando assim a pacificação das condutas sociais e garantindo, consequentemente, a eliminação dos atos que perturbam a ordem jurídica.

Ao passo que se tem tamanha importância, o juiz deve compreender que sua missão é a de resolver os conflitos que lhes sobrevém sem que suas convicções ultrapassem as regras estabelecidas pelo devido processo legal. Remanescendo, assim, a prevalência da segurança jurídica, bem como a proteção ao Estado Democrático de Direito.

Na reclamação sob análise, vislumbra-se a quebra de tais conceitos, vez que as concepções e princípios pré-concebidos pelo magistrado e demais auxiliares da justiça incidiram de forma que os princípios da imparcialidade e do devido processo legal foram inobservados sob a premissa de busca pela justiça social ou ainda de que em defesa da verdade dos

fatos há um permissivo para a prática de condutas que ignoram tais parâmetros.

Para que haja um ordenamento íntegro, justo e equânime, as regras processuais devem ser respeitadas para que coexistam em mesmo ritmo e compasso: acusação, contraditório, ampla defesa e a aplicação do bom direito.

Somente quando há o respeito ao devido processo legal e os princípios que permeiam o processo há a concretização da paridade de armas processuais às partes, bem como o desenvolvimento de um processo justo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BONÍCIO, M. Princípios do Processo no novo Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016. E-book.

CAPEZ, F. Curso de processo penal. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2023. E-book.

CAPPELLETTI, M. Juízes legisladores? Trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 74.

CARVALHO, L. G. G. C. D. Processo Penal e Constituição. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. E-book.

DINAMARCO, C. R. Instituições de Direito Processual Civil. 7.ed. v.1. São Paulo: Malheiros, 2013.

GRECO FILHO, V. Manual de Processo Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. E-book.

JR, A. L. Direito Processual Penal São Paulo: Saraiva, 2018.

______. Fundamentos do Processo Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2023. E-book.

LACERDA, B. M. A imparcialidade do juiz. Revista de Doutrina e Jurisprudência 52. Brasília. 108 (1). p. 23-36/ jul/dez. 2016

MATTOS BARROSO, C. E. F. D. Processo Civil. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2020. E-book.

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos). São José, Costa Rica, 22 de novembro de 1969. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/pa/pacto-san-jose-costa-rica.pdf. Acesso em: 5 jul. 2024.

PENTEADO, J. C. Imparcialidade do Julgador. Delicate, vol. 7, n. 13, jul./dez. 202 2.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Reclamação Constitucional nº 43.007/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 30 mar. 2021. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 5 abr. 2021. Disponível em: https://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/. Acesso em: 6 jul. 2024.

EVOLUÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO DECORRER DE 200 ANOS DE CONSTITUÇÃO

Palavras-chave

Direitos. Fundamentais. Constituições. Brasileiras.

Juliana Losnake Pereira

Advogada. Graduada em Direito e Mestre em Sistemas Constitucionais de garantias de direitos pelo Centro Universitário de Bauru, mantido pela Instituição Toledo de Ensino. E-mail: julianalosnake@outlook.com.

Monique Mazon Queiroz

Escrevente técnico judiciário. Graduada em Direito e Mestranda em Direitos Fundamentais e Inclusão Social pelo Centro Universitário de Bauru, mantido pela Instituição Toledo de Ensino. Especialista em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). E-mail: moniquemazonq@gmail.com.

Resumo

O presente estudo tem como escopo analisar a evolução do tratamento concedido aos direitos fundamentais no decorrer de 200 anos de constituições brasileiras. Dessa maneira, o trabalha se inicia com um breve histórico sobre o surgimento dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico pátrio e como foram tratados em cada uma das constituições brasileiras até o advento da Constituição Federal de 1988, que mais prestigiou a proteção de direitos fundamentais e garantias individuais. Por fim, verifica-se também, de uma maneira crítica, a ausência de força normativa de tais normas sem uma efetiva interferência estatal, já que a maioria das normas constitucionais de proteção a direitos fundamentais são programáticas e como tais necessitam de outras normas complementares e atuação do Poder Público para serem concretizadas.

Foto: Fábio Cres

1. INTRODUÇÃO

Em mais de quinhentos anos de história o Brasil fora palco de grandes eventos, do descobrimento à escravidão, das revoluções ao regime militar, da monarquia ao presidencialismo. A mudança de cenário fora quase constante, embora nem sempre de maneira positiva socialmente, tal inconstância nos permite analisar o escorço histórico, que não segue uma linha tênue e ordenada, independente da seara observada, mas que dá embasamento para que se compreenda o atual momento do ordenamento pátrio.

Uma constituição determina, além de um conjunto de normas que ocupam uma hierarquia topográfica e assevera balizadores de conformidade para todo o restante do ordenamento pátrio, também determina direitos e garantias fundamentais aos componentes de uma nação, dessa forma, a transcendência que uma Carta Magna carrega consigo é notória.

O Brasil possui sete constituições, sendo a Constituição vigente a sétima adotada nos quinhentos anos de história brasileira. Das referidas constituições, quatro delas foram promulgadas por assembleias constituintes, sendo elas a Constituição de 1981, a Constituição 1934, a Constituição 1946 e a Constituição de 1988, duas delas foram outorgadas, uma por D. Pedro I em 1824 e outra por Getúlio Vargas em 1937, e uma aprovada pelo Congresso por exigência militar em 1967.

Cada constituição carregou consigo ideias e ideais próprios da era em que fora concebida corroborando com padrões da época. Dessa forma, é importante observar o aspecto histórico, uma vez que, tal fator fora determinante para que algumas constituições fossem mais restritivas que outras no que tange aos direitos e garantias fundamentais.

O escopo da presente pesquisa é analisar a evolução de tais direitos ao decorrer de duzentos anos da primeira Constituição Brasileira até a Constituição vigente. Além disso, visa-se identificar se a Constituição Federal promulgada no ano de 1988 possui força normativa suficiente para fazer cumprir, com efetividade, o asseverado em seu texto. Para tanto, será adotado o método indutivo como pesquisa.

Por fim, objetiva-se encontrar meios para que se faça cumprir o asseverado pelo texto constitucional vigente, para que a sociedade possa se encontrar respaldada de maneira real e não utópica, tendo direitos e garantias efetivos e não apenas uma lei morta, que existe apenas em um texto normativo, mas que não tem força para se fazer concretizado.

2. BREVE HISTÓRICO SOBRE O

SURGIMENTO DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS NO CONTEXTO NACIONAL/CONSTITUIÇÕES PÁTRIAS

Em 25 de março do ano de 1824 fora outorgada, por D. Pedro I, a primeira constituição brasileira, dois anos após a Proclamação da República. Cumpre ressaltar que referida constituição tivera fortes influências em movimentos históricos do século XVIII, sendo tais movimentos a Revolução Francesa e a Norte-Americana, referidos fatores propuseram ideologias liberais, todavia a grande preocupação era a assegurar um Estado-Nação, dessa forma, a implementação de uma democracia liberal fora deixada de lado, inclusive se considerar a soma de poderes que eram concentrados nas mãos do Imperador, o autoritarismo era asseverado.

Nesse sentido corrobora Cleber Francisco Alves:

Com efeito, as elites brasileiras do início do século XIX, mesmo aqueles que tiveram oportunidade de se aprofundar no estudo dos mais destacados pensadores políticos daquela época, refutavam o modelo liberal rousseauniano francês, assim como os ideais republicanos da América do Norte, pois consideravam que o regime monárquico era realmente fundamental para assegurar o futuro da nação recém-emancipada de Portugal. Preferiam filiar-se ao modelo liberal inglês, inspirando-se também na experiência continental pós-napoleônica, quando as propostas teóricas de Benjamin Constant alcançaram significativo destaque na tentativa da sociedade francesa de superar os fracassos e mazelas na esfera político-institucional que tanto afligiam seu povo, nos anos iniciais que se seguiram à Revolução Francesa (2008, p.68).

Cumpre ressaltar que a Constituição de 1824, sob influência da teoria de Benjamin Constant, o qual defendia a ideia da regulação dos três poderes por um poder neutro, conhecido como quarto poder, estabeleceu em seu texto normativo o denominado poder moderador, o qual era exercido pelo Imperador, se destinava a velar pela independência, equilíbrio e harmonia dos outros poderes, conforme determinou o art. 98 de referida Carta Magna. A pessoa do Imperador era inviolável e sagrada, não estando sujeito a responsabilidade alguma, segundo o art. 99 da Constituição de 1824. Resta evidenciado que a instituição de um quarto poder, que funcionava como órgão fiscal dos outros poderes, e de certa forma centralizava o poder nas mãos de um único individuo, deturpa a ideia de equilíbrio entre poderes.

Assim corrobora Barroso ao dizer:

Por esse motivo, há de se considerar uma certa reserva da Carta Monárquica de 1824 em impulsionar ideais, fossem eles revolucionários ou progressistas, no âmbito dos princípios de direitos e garantias fundamentais. O que se percebe é um misto entre os traços liberais e o autoritarismo atribuído ao Imperador. “O mando pessoal, semi-absoluto, ora guardava mera relação formal com a estrutura normativa da Constituição, ora simplesmente a ignorava (2002, p. 9).

No que tange aos direitos e garantias civis e políticas, embora a Constituição de 1924 tenha sido a precursora em trazer uma disposição específica sobre o tema, fez isso apenas no título 8º de seu texto normativo, asseverando mais acentuadamente no art. 179, o rol sobre referidos direitos, tal artigo era o último da Constituição, referida posição topográfica já demonstrara claramente a falta de enfoque.

Entretanto, cumpre salientar que a Constituição de 1824 trouxera consigo disposições acerca da legalidade, a irretroatividade da lei, a igualdade, a liberdade de pensamento, a inviolabilidade de domicílio, a propriedade, o sigilo de correspondência, a proibição dos açoites, da tortura, além de direitos sociais como o direito ao socorro público, o direito à instrução primária gratuita a todos os cidadãos.

Dessa forma, ao analisar-se a Constituição de 1824, sua notoriedade se mostra evidente, uma vez que fora a precursora em trazer em sua disposição direitos civis e políticos, embora elitizada. Todavia, é de suma importância salientar a contradição entre o texto normativo e a realidade da sociedade brasileira na época, uma vez que o sistema escravocrata só fora abolido em 1988, assim, mesmo com uma constituição que supostamente garantia direitos sociais, referidos direitos não atendiam a todos.

A Constituição de 1891 foi promulgada em 24 de fevereiro do referido ano, tal Constituição fora a primeira republicana. Ela fora elaborada e promulgada pelo Congresso constituinte, tendo como referência o projeto elaborado pela comissão nomeada pelo chefe do governo provisório, Marechal Deodoro da Fonseca.

Essa Constituição trazia em sua segunda seção, art.º 72, um rol de direitos de primeira geração, não trouxe grandes inovações quando comparada com a Constituição anterior. A referido rol foram acrescentados direitos como: igualdade republicana, estendeu-se direitos aos estrangeiros; liberdade de culto; casamento civil e gratuito; cemitérios seculares; ensino leigo nos estabelecimentos públicos; Estado laico; direitos de reunião e associação; ampla defesa; perda da propriedade em decorrência de desapropriação por necessidade e utilidade pública, mediante indenização prévia; abolição de pena

com caráter forçado, conhecida como pena de galés, fim do banimento judicial; abolição da pena de morte, reservadas as disposições da legislação militar em tempo de guerra; habeas corpus; propriedade intelectual e de marcas e instituição do júri.

Cumpre ressaltar que, mais uma vez, frente a uma política autoritária, a efetividade da letra constitucional no que tange a consagração e efetivação de direitos e garantias fundamentais. Nesse sentido corrobora os anais do Congresso Nacional do ano de 1892:

É sempre assim na história política do nosso País. Escrevem-se nas páginas do direito preceitos tão adiantados, tão liberais, que as nações que precederam o Brasil na civilização ainda não puderam adotar; mas, desgraçadamente, quando chega a vez da aplicação vem o sofisma, o espírito partidário, a conveniência do momento, o desejo de não desagradar ao amigo, a ambição do poder e a lei subsiste como morta, imprestável, na prática, ao regime verdadeiro (Federal, 1892, online).

Resta claro asseverar que a força normativa constitucional atrela-se a cultura política da época em que regeu. Em 1881, o Brasil era dominado por uma oligarquia onde o Estado era regido por elites dominantes e classes tradicionais da época, agrário e altamente tributário a política conservadora regente, determinava e imperava acerca da efetividade constitucional. Tal oligarquia fora rompida com a revolução de 1930, uma vez que apresentou uma transformação estatal e introduziu a ideia do populismo Estatal, ou seja, descentralizando as grandes elites brasileiras e acentuando práticas políticas populares.

A Constituição de 1934 promulgada em dezesseis de julho do referido ano, ressaltava a ideia de implementação de um Estado populista, fora considerada avançada, à frente do tempo, fora a primeira vez na história brasileira em que fora implementado direitos de segunda geração, tal inovação fora inspirada na Constituição alemã de Weimar, introduziu matérias referentes à educação, à cultura, a ordem econômica e social, legislou acerca de direitos trabalhista e previdenciários, trazia em seu âmago a conotação social tão esperada.

Referida Constituição trouxe a garantia do direito adquirido, a coisa julgada, a personalidade jurídica pelas associações religiosas, explicitou o princípio da igualdade, permitiu a assistência religiosa facultativa nos estabelecimentos oficiais; introduziu a obrigatoriedade de comunicação imediata de qualquer prisão; instituiu o mandado de segurança; vedou a pena de caráter perpétuo; proibiu a prisão por dívidas, multas ou custas; impediu a extradição de estrangeiros por crime político ou de opinião, e, em qualquer caso, a de brasileiros; criou a assistência judiciária para os necessitados;

determinou às autoridades a expedição de certidões requeridas para defesa de direitos individuais ou para esclarecimento dos cidadãos a respeito dos negócios públicos; isentou de imposto o escritor, o jornalista e o professor; e atribuiu a todo cidadão legitimidade para pleitear a declaração de nulidade ou anulação de atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados e dos Municípios.

Embora avançada e precursora em inovar no constitucionalismo brasileiro, a Carta Magna de 1932 fora breve e quase não teve aplicação, acerca de tal fator Godoy assevera:

A causa da Constituição de 1934 foi a mesma razão de seu aniquilamento. Sua gênese teve como motivo as mesmas circunstâncias que qualificaram seu ocaso. Quem possibilitou a articulação de forças que produziu seu texto foi o mesmo condutor das forças políticas que engendraram seu abandono. A Constituição de 1934 é um dos mais emblemáticos exemplos da manipulação de compromissos, exercício político recorrente na trajetória de líderes dotados de carisma, a exemplo de Getúlio Vargas, a usarmos uma tipologia tipicamente weberiana. No plano dogmático, substancializou-se por inovações que eram úteis, mas que se revelavam também como inevitáveis (2017, p. 211).

N o ano de 1935 houvera a chama “intentona comunista”, tratava-se de uma tentativa de golpe de estado pelo movimento comunista. O presidente da época, Getúlio Vargas, aproveitando-se de tal fator conseguira respaldo para a aprovação de uma Emenda Constitucional em dezoito de dezembro do mesmo ano, tal emenda permitiu-lhe declarar estado de sítio e de guerra. Dois anos depois, em 1937, acontecera o golpe de Estado.

Em 10 de novembro do ano de 1937 a Constituição institucionalizou um Estado autoritário, o denominado Estado novo, referida Carta Magna ampliou os poderes presidenciais; restringiu a autonomia do Poder judiciário e as prerrogativas do Congresso Nacional, dos Estados Membros, a Câmara e o Senado foram dissolvidos, medidas ditatoriais como restrição da liberdade de imprensa e restauração da pena de morte foram implementadas.

Alguns autores negam a existência jurídica de tal Constituição, asseverando que possui apenas um cunho histórico, uma vez que se tratava de uma fraude política, inspirada na Constituição Polonesa, a Constituição do ano de 1937, possuía cunho fascista. Não há que se falar em direitos e garantias fundamentais, inovações e preocupações sociais do texto constitucional, o que via-se era uma tentativa incessante em se punir os adversários do regime.

Em 18 de setembro de 1946, fora promulgada uma nova Constituição cuja principal característica era a retomada da democracia brasileira, acerca de tal característica, Viana ressalta que:

Uma democracia só é realmente digna deste nome quando repousa, não só na atividade dos seus cidadãos, agindo como tais, isto é, como indivíduos; mas na atividade dos seus cidadãos agindo como membro desta ou daquela corporação, como parcelas de um agrupamento, unidos pela consciência de um interesse comum, de classe (1930, p. 119-120)

A Constituição de 1946 trouxera consigo exatamente a união do interesse em comum, tanto que guardava semelhanças com a Constituição de 1946. O cenário, não só brasileiro, como mundial, era um cenário pós-guerra, havia um movimento assíduo em se implementar um movimento de redemocratização, e também assegurar meios de garantias e direitos fundamentais.

Tal constituição voltava trazendo o banimento da pena de morte, excepcionalmente em caso de guerra declarada, banimento de prisão perpétua, estabeleceu salário-mínimo, proibiu a diferença de salário para um mesmo trabalho por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil, estabeleceu o repouso, semanal remunerado; proibição de trabalho noturno a menores de 18 anos, dentre muitos outros direitos.

Em 1964 houvera mais um golpe de Estado, a República Brasileira fora atingida pelo regime militar, a nação passará por um limbo constitucional, isso é, durante determinado o período, direitos e garantias fundamentais, o próprio regime constitucional sofrera interferências. A Constituição de 1967 trazia consigo aparência de legalidade, uma vez que oferecia arcabouço para legitimar o regime ditatorial, dessa forma, de maneira formal existia uma ordem constitucional vigente em referido período brasileiro, entretanto, a supremacia constitucional fora retirada. Os denominados atos institucionais, ou “AI” ocuparam a centralidade legislativa. Tanto que, nos termos do AI 5, tais atos não precisavam buscar embasamento no texto na Constituição quando visassem o interesse e a paz social.

Nesse Sentido Marcos Arruda e Cesar Caldeira asseveram que:

(...) o número de normas legais editadas sob os governos militares excede qualquer outro período da nossa história. Para alterar a Constituição, criam-se os atos institucionais e os atos complementares, que visam dar maior operacionalidade aos primeiros. Além dessas inovações, as emendas constitucionais são numerosas – vinte e quatro emendas até o fim do governo do General Figueiredo. E são, finalmente, editados mais de dois mil decretos-leis. Entre outras consequências, essa intensa produção de leis faz da Constituição vigente um texto pouco sistemático, uma verdadeira colcha de retalhos (1983, p. 44).

Cumpre ressaltar que, mais uma vez, o controle decisório estava monopolizado nas mãos de uma elite, dessa vez militar, centralizado não em um bem comum, social e popular, mas na concepção de restrição de direitos e garantias fundamentais para se manter a ordem pública e o respeito a pátria, dessa forma, sem limites contensores determinados, o poder de mando atingira um novo padrão, a arbitrariedade fora institucionalizada e, além disso, a tortura, passara a ser utilizada como meio de se coibir práticas que colocassem em risco o regime, tal fato fora o caminho para vedar organizações contrárias à ditadura. Ignorando direitos humanos, a implementação de atos repressivos com crueldade, fora o corolário dos anos de Chumbo. Fora somente em 1978, com a implementação da Emenda Constitucional nº 11/78 que os atos institucionais sofreram uma contensão e aqueles contrários à Carta Magna foram revogados.

Em outubro do ano de 1969, ainda sob a égide do governo militar, o Brasil teve uma nova Constituição. A emenda Constitucional nº 1 introduziu uma nova Constituição, e embora exista divergência doutrinária pois alguns autores a consideram apenas uma emenda e outros a incorporam como a Constituição de 1969, o cerne da questão é que, ao ser outorgada acabara por centralizar, ampliar e institucionalizar o autoritarismo, uma vez que, ao incorporar o definido pelos atos institucionais consagrou o tolhimento da restrição de direitos e garantias.

Entre 1978 e 1985, o regime militar começara a ruir. Em 1984, com o movimento de “Diretas já”, o Brasil passara por um período de tentativa de instauração da democracia. Nesse sentido, em 5 de outubro do ano de 1988 fora promulgada uma nova Constituição. Referida Constituição trazia em seu cerne a centralização de direitos e garantias fundamentais, consagrando-os, juntamente com direitos fundamentais.

A Carta Magna do ano de 1988, traz consigo a intitulação de “Constituição Cidadã”, talvez, por intentar em seu âmago a notória proteção a dignidade da pessoa humana, a cidadania, a defesa do Estado, das instituições democráticas, do povo, entregando um extenso rol protetivo no que concerne a direitos fundamentais. Partindo do princípio de que a Constituição brasileira vigente é um produto da história, resultado de todos os eventos vivenciados, sua modelagem fora idealizada para que oferecesse recursos para amparar e garantir que a sociedade brasileira tivesse direitos e garantias assegurados.

3. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ÂMBITO DA CONSTITUÇÃO FEDERAL DE 1988

A Constituição Federal de 1988, por sua vez, é o texto constitucional que mais prestigiou os direitos fundamentais em toda a história brasileira, não apenas por trazer uma gama extensa de tais direitos em um rol meramente exemplificativo, mas também por elevar o direito fundamental basilar, qual seja, a dignidade humana, ao status de princípio da República Federativa do Brasil, deixando-o expressamente descrito no art. 1º, junto aos demais fundamentais do Estado Democrático de Direito, como a cidadania e a soberania.

O art. 1º da Constituição Federal é um princípio que tem hoje a essência do que é a Constituição da República. De forma ampla, ele consegue resumir a finalidade do texto de 1988, que foi privilegiar o indivíduo contra as arbitrariedades do Estado – isso para garantir o Estado Democrático de Direito e formar cidadãos para a garantia do Estado Democrático de Direito. A Constituição Federal de 1988 estabeleceu os direitos civis (civis, sociais, políticos) que resumem a obrigação do Estado em proporcionar uma vida digna e participativa a todos os seus habitantes. Entretanto, se tais direitos são inerentes à pessoa humana, não há como dizer que a Constituição Federal de 1988 “constitui” determinadas garantias pessoais em direitos. Ela apenas “reconheceu” os esforços da sociedade e, com caráter “declaratório”, abarcou tais direitos em nosso ordenamento jurídico, transformando-os em Direitos Fundamentais (Sarmento, 2014, p.235).

A Carta Magna de 1988 surge de uma efetiva participação popular, em que a coletividade se distanciava de um regime ditatorial e ansiava por uma constituição que prestigiasse direitos fundamentais e garantias individuais, assim, tal contexto histórico fomentou os parâmetros utilizados pelo Poder Constituinte no momento da elaboração das novas normas constitucionais.

Por tal razão de ser, inclusive, que a Carta Magna de 1988 é comumente apelidada como ‘Constituição Cidadã’, tendo em vista a prioridade dada por ela aos direitos fundamentais e por tratar a concretização e proteção destes como escopos a serem atingidos.

Nesse sentido: “A Constituição de 1988 inova ao dispor sobre os direitos fundamentais antes de tratar da organização do próprio Estado, bem como ao incorporar junto à proteção dos direitos individuais e sociais a tutela dos direitos difusos e coletivos” (Pinho, 2020, p. 186).

Assim, a Constituição Federal de 1988 não apenas passa a aclamar os direitos fundamentais e garantias individuais, mas passa a adotar a transformação social como objetivo, conforme observa-se, inclusive, do art. 3º, em que constam os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

No que diz com o seu conteúdo, cuida-se de documento acentuadamente compromissário, plural e comprometido com a transformação da realidade, assumindo, portanto, um caráter fortemente dirigente, pelo menos quando se toma como critério o conjunto de normas impositivas de objetivos e tarefas em matéria econômica, social, cultural e ambiental contidos no texto constitucional, para o que bastaria ilustrar com o exemplo dos assim chamados objetivos fundamentais elencados no art. 3.º (Sarlet, 2022, p .384).

Ainda, a Constituição de 1988 inova ao incluir os direitos e garantias individuais, cuja distinção entre os termos é apresentada pelo professor José Afonso da Silva (2014, p. 415): “os direitos são bens e vantagens conferidos pela norma, enquanto as garantias são meios destinados a fazer valer esses direitos, são instrumentos pelos quais se asseguram o exercício e gozo daqueles bens e vantagens” como cláusula pétrea, ou seja, núcleo duro e imutável da Constituição Federal, conforme art. 60, §4º, inciso IV.

Dessa forma, a Carta Magna concede tamanha proteção aos direitos individuais que impede quaisquer emendas constitucionais que visem aboli-los, de modo que estão equiparados à forma federativa do Estado, ao voto e à separação de poderes como institutos invioláveis da Constituição e limites ao legislador ordinário e ao Poder Constituinte Derivado. Confira-se:

A ordem constitucional brasileira não contemplou qualquer disciplina direta e expressa sobre a proteção do núcleo essencial de direitos fundamentais. É inequívoco, porém, que o texto constitucional veda expressamente qualquer proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais (CF, art. 60, § 4º, IV). Tal cláusula reforça a ideia de um limite do limite também para o legislador ordinário. Embora o texto constitucional brasileiro não tenha consagrado expressamente a ideia de um núcleo essencial, afigura-se inequívoco que tal princípio decorre do próprio modelo garantístico utilizado pelo constituinte. A não admissão de um limite ao afazer legislativo tornaria inócua qualquer proteção fundamental (Mendes, 2013, p. 93).

Os direitos e garantias fundamentais foram dispostos no Título II da Constituição Federal, o qual se dividiu em cinco capítulos: direitos e deveres individuais e coletivos, direitos sociais, nacionalidade, direitos políticos e partidos políticos.

Os direitos e deveres individuais se referem à pessoa humana em si, ou seja, o indivíduo enquanto detentor de direitos inerentes e indispensáveis. Tais direitos e deveres encontram-se discriminados no art. 5º, caput e incisos. Para José Afonso da Silva: “concebemo-los como direitos fundamentais do homem-indivíduo, que são aqueles que reconhecem autonomia aos particulares, garantindo a iniciativa e independência aos indivíduos diante dos demais membros da sociedade política e do próprio Estado” (2014, p.193).

Com relação ao âmbito coletivo, tem-se que alguns direitos podem ser assegurados a uma coletividade enquanto grupo e outros que, ainda que possam ser usufruídos pelos indivíduos isoladamente, podem ser protegidos de uma única vez, considerando a parcela da sociedade detentora dos respectivos direitos. Contudo, a Constituição Federal de 1988 não se aprofunda na proteção dos interesses co letivos e difusos.

A rubrica do Capítulo do Título II anuncia uma especial categoria dos direitos fundamentais: os coletivos, mas nada mais diz a seu respeito. Onde estão, nos incisos do art. 5º, esses direitos coletivos? Houve propostas, na Constituinte, de abrir-se um capítulo próprio para os direitos coletivos. Nele seriam incluídos direitos tais como o de acesso à terra urbana e rural, para nela trabalhar e morar, o de acesso de todos ao trabalho, o direito a transporte coletivo, à energia, ao saneamento básico, o direito ao meio ambiente sadio, o direito à melhoria da qualidade de vida, o direito à preservação da paisagem e da identidade histórica e cultural da coletividade, o direito às informações do Poder Público a requerimento de sindicatos e associações em geral (que o Senador José Paulo Bisol chamou de visibilidade e corregedoria social dos poderes), os direitos de reunião, de associação e de sindicalização, o direito de manifestação coletiva, incluindo-se aí o direito de greve, o direito de controle do mercado de bens e serviços essenciais à população e os direitos de petição e de participação direta. Muitos desses ditos direitos coletivos sobrevivem ao longo do texto constitucional, caracterizados, na maior parte, como direitos sociais, como a liberdade de associação profissional e sindical (arts. 8º e 37, VI), o direito de greve (arts. 9º e 37, VII), o direito de participação de trabalhadores e empregadores nos colegiados de órgãos públicos (art. 10), a representação de empregados junto aos empregadores (art. 11), o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225); ou caracterizados como instituto de democracia direta nos arts. 14, I, 11 e tIl, 27, § 42, 29, XIII, e 61, § 2º; ou, ainda, como instituto de fiscalização financeira, no art. 31, § 32 Apenas as liberdades de reunião e de associação (art. 5º, XVI a XX), o direito de entidades associativas de representar seus filiados (art. 52, XXI) e os direitos de receber informações de interesse coletivo (art. 5º, XXXIII) e de petição (art. 5º, XXXIV, a) restaram subordinados à rubrica dos direitos coletivos. Alguns deles não são propriamente direitos coletivos, mas direitos individuais de expressão coletiva (Silva, 2014, p. 197).

Ademais, o Capítulo I também faz referência a deveres. A esse respeito, tem-se tal imposição, primordialmente, ao Poder Público:

Os deveres a que se referem alguns incisos não são propriamente deveres, designam antes ressalvas de direitos, consoante se infere, por exemplo, do inc. VIII, que ao asseverar “(...) ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política” ressalva, porém, que não é

dado invocar tais crença e convicção “para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”. Então, o que se estabelece no citado dispositivo é um postulado democrático conspícuo, de natureza liberal. A ressalva que se faz valer é em favor do próprio regime democrático, que também assenta na igualdade: crença religiosa ou convicção filosófica não podem superpor-se ao princípio da isonomia. Deste modo, à enunciação “Direitos e Deveres” não corresponde no corpo do texto senão à declaração de Direitos, sejam individuais, sejam coletivos. De deveres, como assinalado, não se trata. Na realidade, deveres não figuram na Constituição a não ser no respeitante: 1.º) ao alistamento eleitoral e o voto, que são obrigatórios para os maiores de dezoito anos (art. 14, § 1.º, I e 2.º, da CF/1988 (LGL\1988\3)) ao serviço militar, que é igualmente reputado obrigatório (art. 143, da CF/1988 (LGL\1988\3)). Isso, é evidente, no que diz com o indivíduo propriamente dito, a quem se imputam sanções correspondentes pelo não cumprimento dos deveres concretamente referidos nos preceitos indicados. Deveres outros se deparam no texto constitucional e que têm como sujeitos a família, a sociedade e o Estado, globalmente considerados do que é exemplo o comando ínsito no art. 227, da CF/1988 (LGL\1988\3): “É dever da família, da sociedade, do Estado assegurar à criança e ao adolescente (...)” (COSTA, 1999).

Os direitos sociais, por sua vez, previstos no Capítulo II, se referem a direitos mínimos essenciais à vida em sociedade, ou seja, se referem ao meio social, necessitando de prestações positivas do Poder Estatal para que possam ser usufruídos. Estão listados no art. 6º, de forma exemplificativa, e também esparsos no texto constitucional. Nesse sentido:

É preciso assegurar um nível mínimo de vida, compatível com a dignidade humana (parece haver, atualmente, um consenso em torno da vinculação entre estes dois “valores”, que são expressos na Constituição de 1988, falando-se comumente em vida digna). Isso inclui o direito à alimentação adequada, à moradia (art. 6º), ao vestuário, à saúde (art. 196), à educação (art. 205), à cultura (art. 215) e ao lazer (art. 217) (Mendes, 2023, p. 969).

No mesmo tom:

Direitos sociais são direitos fundamentais do homem, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria de condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado democrático, pelo art. 1. °, IV, da Constituição Federal (Moraes, 2017, p. 154).

Ainda, o Capítulo III trata dos direitos referentes a nacionalidade, traçando, em suma, a diferenciação entre brasileiros natos e naturalizados, os quais possuem diferentes direitos e deveres. Veja-se:

Os elementos clássicos de um Estado são seu território, sua soberania e seu povo. Para a formação deste último, é necessário que se estabeleça um vínculo político e pessoal entre o Estado e o indivíduo. É a nacionalidade que efetiva tal conexão e faz com que uma pessoa integre dada comunidade política. Portanto, é natural e necessário que o Estado distinga o nacional do estrangeiro para diversos fins (Mendes, 2023).

Os Direitos Políticos estão disciplinados no Capítulo IV: “Os direitos políticos formam a base do regime democrático. A expressão ampla refere -se ao direito de participação no processo político como um todo, ao direito ao sufrágio universal e ao voto periódico, livre, direto, secreto e igual, à autonomia de organização do sistema partidário, à igualdade de oportunidade dos partidos” (Mendes, 2023).

Além disso, a Constituição Federal vigente também tutelou os partidos políticos, disciplinando seus direitos e deveres no Capítulo V. Acerca da importância do tema, explica Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2012):

O reconhecimento da importância dos partidos políticos para o sistema está no fato de que a Constituição vigente se preocupa em estabelecer um estatuto dos partidos políticos. Nisto ela segue tendência patente na moderna doutrina constitucional. Para esta os partidos parecem indispensáveis para o funcionamento da democracia, mas fontes de perigos gravíssimos para a sua subsistência.

Por fim, não obstante a enorme proteção dada aos direitos fundamentais pela Carta Magna de 1988, importante destacar que a maioria das normas constitucionais, e em especial as que se referem a direitos fundamentais, são meramente programáticas, ou seja, não possuem eficácia imediata, necessitando de outras normas e de intervenção do Poder Público para que sejam regulamentadas e, posteriormente, concretizadas.

Desse modo, são necessárias normas infraconstitucionais e políticas públicas que possibilitem a aplicabilidade dos direitos fundamentais aos indivíduos, já que, apenas assim, eles podem ser realmente efetivados e não apenas assegurados constitucionalmente.

O Brasil fora palco de grandes eventos que determinaram a vida em sociedade, que restringiram ou incorporaram direitos, que retiraram a eficácia constitucional ou a asseveraram. Acreditar que a legislação que regeu uma ditadura é a mesma que fora aplicada a partir do ano de mil novecentos e oitenta e oito trata-se de um devaneio. Embora idealmente uma Constituição deva assegurar os direitos e garantias de um povo e estabelecer uma contensão garantidora de efetividade de referidos direitos, é necessário que se observe em que momento, por quem e para quem uma Constituição fora realizada, ao final dessa análise a importância em identificar-se o momento histórico que regeu a época de referida realização se mostrará de suma importância, tais marcos, além de moldarem uma vida em sociedade, coadunam com a forma em que os ideais legislativos são implementados e embasados.

Num país altamente elitizado, com representantes governamentais que buscam o asseguramento de mando de tais elites, por óbvio o interesse, ao produzir uma Constituição, em garantir tal manutenção, da mesma forma, um país que possui representação popular, a ideia de criação de uma Constituição é justamente garantir que os direitos dessas minorias sejam efetivados. O Brasil tivera, como uma linha tênue, essas duas formas de ideais ao se implementar uma Constituição, e isso de maneira evidente repercutiu em todos os detentores de direitos.

A Constituição de 1988 marcara o fim do autoritarismo que imperava no solo brasileiro, a transição política enfrentada à época, que trazia tanta insegurança ao povo brasileiro, pós Constituição de 88 amenizou-se uma vez que possibilitou mecanismos de defesa e de segurança para resguardar direitos. Além disso, assegurou direitos humanos e fundamentais de maneira efetiva. Acerca da diferenciação entre direitos humanos e fundamentais Ingo Wolfgang Sarlet salienta que:

Em que pese sejam ambos os termos (“direitos humanos” e “direitos fundamentais”) comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos” guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional) (2006, p.36).

Cumpre ressaltar que, a Constituição de 1988 trouxe consigo um arcabouço de Direitos e garantias fundamentais, entretanto, a problemática que trouxe consigo foi a dificuldade de implementação, uma vez que, embora seu texto ampliava direitos como à saúde, educação e moradia, não trouxe meios de efetividade de tais direitos.

A força normativa só é categórica quando existe a garantia de direitos não apenas para parcela da população, mas sim, para todos. O texto Constitucional quando comparado a realidade brasileira não balizam-se, tendo em vista a discrepância, a desigualdade social, a corrupção, a ineficiência administrativa.

Nesse sentido corrobora José Afonso da Silva:

Uma constituição será eficaz se as normas nela estabelecidas forem aplicadas e respeitadas em sua integridade. A simples existência de normas constitucionais não é suficiente; é imprescindível que haja mecanismos eficazes para sua implementação e observância (2014, p.65).

Dessa forma, podemos afirmar que uma Constituição só terá eficácia caso suas normas sejam aplicadas com efetividade, atinja a sociedade e seja reconhecida pelos órgãos e poderes nacionais. A mera existência formal de uma norma Constitucional não é suficiente para que os direitos sejam consagrados com efetividade e a institucionalização dos direitos e garantias só poderá ser implementada quando a sociedade como um todo puder brandar sua efetividade, e não contempla-los apenas como garantias utópicas.

5. CONCLUSÃO

No decorrer da análise da evolução dos direitos fundamentais em duzentos anos de constituições brasileiras, objeto do presente trabalho, observa-se que o tratamento conferido a tais direitos em cada constituição nacional decorreu do próprio contexto histórico-social-cultural do país naquela determinada época, refletindo no texto constitucional os anseios que a própria sociedade até então queria ver legislado.

Verifica-se, assim, que os direitos fundamentais ingressaram no ordenamento jurídico pátrio por uma necessidade própria da sociedade e também por influências externas, já que o resto do mundo, em um cenário pós-segunda guerra mundial, priorizou a efetivação de direitos humanos, e os estados, os direitos fundamentais em seu âmbito interno.

Desse modo, a própria caminhada social em prol de um governo mais democrático após o período ditatorial, levou ao advento da Constituição Federal de 1988, a Carta Magna Cidadã, cujo teor prestigiou a inclusão e proteção de direitos fundamentais e garantias individuais.

Não obstante, em que pese tal proteção, a Constituição Federal de 1988 é extremamente programática no que tange aos direitos fundamentais, ou seja, necessita de outras normas infraconstitucionais e também da atuação do Estado, através de políticas públicas, para regulamentação posterior, de modo que, sem a união de tais frentes para garantir essa necessária força normativa, os direitos fundamentais que com tanto pesar foram previstos constitucionalmente, sejam letras mortas e ineficazes na prática.

Portanto, a relevância do presente estudo está em demonstrar a evolução dos direitos fundamentais nas constituições brasileiras e seu caminho crescente, já que em cada texto constitucional esses direitos contaram com maiores proteções, reflexos da própria evolução social, ao mesmo tempo em que, o artigo, analisando o cenário atual, também discorre sobre a necessidade de mecanismos para que as proteções que foram conseguidas em 200 anos sejam efetivadas. Ou seja, 200 anos de história trouxeram ao texto constitucional uma gama de direitos fundamentais e aumentaram à proteção a eles pouco a pouco, e agora, é essencial olhar para o futuro e instigar a evolução que virá adiante, para efetivar e concretizar o que já foi postulado.

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A IMPORTÂNCIA DO MOVIMENTO FEMINISTA NA LUTA PELOS DIREITOS DAS MULHERES

Palavras-chave

Movimentos Feministas. Sociologia. Feminismo. Mulher.

Natasha Tozzi

Graduanda em Direito na Faculdade de Jaú. E-mail: natytozzi61@gmail.com

Guilherme Bittencourt Martins

Mestre em Direito Constitucional, advogado e professor universitário. E-mail: Prof.guilhermebm@gmail.com

Resumo

O presente artigo aborda os movimentos feministas desde suas origens, tanto internacionais quanto nacionais, bem como, destacando as conquistas obtidas através da luta e resistência das mulheres. Foi utilizando livros e sites que relatam a história e as vitórias do movimento feminino. Desse modo, o texto enfoca a reivindicação de direitos pelas mulheres, incluindo a igualdade de gênero, e uma maior representação feminina na política. Os movimentos sociais, definidos como ações coletivas em busca de causas sociais, evoluíram ao longo dos anos, sendo dinâmicos e nem sempre acompanhados pelas teorias existentes. Desde o nascimento da sociologia, as lutas coletivas têm sido objeto de estudo, com a noção de ação coletiva representando a internalização das normas e convenções sociais. O artigo também discute a luta pela igualdade de gênero, destacando que na sociedade atual não há espaço para desigualdade, apesar de influências anti-igualitárias ainda persistirem, especialmente entre os homens. A visão de que as mulheres devem se limitar à vida doméstica e que aquelas que escolhem não constituir família são desrespeitadas, é uma barreira para a plena igualdade. O caminho para a igualdade ainda está em construção, e a superação da violência e repressão enfrentadas pelas mulheres é crucial para o progresso.

INTRODUÇÃO

O presente artigo visa dissertar sobre os movimentos feministas desde sua origem tanto internacional e nacional, dando ênfase as conquistas merecidas através de luta e resistência da mulher.

Foram utilizados livros e sites que relatam sobre a história e as vitórias conquistastadas pela classe feminina. O movimento feminista reivindica direitos para as mulheres, como a igualdade de gênero e assim, com maior representação feminina na política.

Os movimentos sociais são ações feitas na sociedade por grupos que lutam por alguma causa social. Geralmente, eles são gritos de pessoas que não foram ouvidas no processo da democracia, e com isso, vêm mudando com o tempo, sendo bastante dinâmica e nem sempre, as teorias vêm seguindo a dinamização.

As lutas coletivas são objeto para os estudos em diversas áreas distintas, que surgiu com o nascimento da própria sociologia e a ação coletiva que significava a completa interiorização das normas e convenções sociais.

Desse modo, o presente trabalho tem como a explicação tanto da sociologia, como exemplo, os primeiros movimentos sociais e feministas.

A luta pela igualdade é pauta na humanidade. Reivindicar o direito da mulher já foi de ignávia da sociedade. Na sociedade atual em que vivemos, não há mais espaço para a desigualdade de gênero, assim, em meio a ambientes construídos em virtude de uma sociedade livre, justa e solidária.

Não é espanto que a classe masculina ainda exerce influências anti-igualitárias e que às vezes, violam os direitos humanos.

Partindo de um pressuposto de que as mulheres são vistas somente a permanecer em uma vida doméstica e caso optem de não querer constituir família, são indignas de respeito. É evidente que a afirmação do caminho para a igualdade ainda não foi alcançada. Considerando que todas as formas de violência e repressão enfrentada dia após dia pelas mulheres, não podem ser superadas.

1. OS PRIMEIROS MOVIMENTOS SOCIAIS

Os movimentos sociais são ações organizadas por grupos da sociedade para promover, resistir ou provocar mudanças sociais, para focar em questões como os direitos humanos, a justiça social ou reformas políticas.

A existência de movimentos sociais justifica-se por conta de diferenças entre os indivíduos e a exclusão de políticas e práticas voltadas para as necessidades reais e específicas de cada grupo.

Eles podem ser definidos como grupos de pessoas com interesse, demanda ou reivindicações comuns e que se unem com a intenção de conseguir mudanças sociais, políticas, constitucionais ou econômicas.

Especificamente, no Brasil, há dois movimentos sociais que se destacam, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto.

Normalmente, os movimentos sociais surgem da iniciativa dos grupos que compartilham os mesmos valores e possuem os mesmos incômodos, com similaridades e a necessidade de lutar por mudanças.

Alguns historiadores e sociólogos consideram que durante a Revolução de 1789, tenha sido o mais antigo movimento social da história, onde se juntaram para derrubar a monarquia absolutista e garantir que o clero e a nobreza pegassem impostos.

2. MOVIMENTOS FEMINISTAS

O s movimentos feministas no Brasil nos séculos XIX e XX surgiram por iniciativa, normalmente por mulheres de classes médias e abonada, colocando pautas de lutas sociais por igualdade em relação aos homens.

Os primeiros movimentos sociais, tinham como objetivo resolver os problemas das classes sociais, política, e econômica. Alguns sociólogos como Marx, distinguia os movimentos como uma revolução, procurando um novo poder burocrático com maior coesão social.

Outros intelectuais como Gabriel de Tarde, viam como um perigo iminente, sendo que os movimentos em massa, tendem a seguir direções irracionais que poderiam provocar a ordem vigente.

Um dos movimentos sociais mais antigos feitos em massa foi a Queda da Bastilha, marcando a Revolução Francesa, em 1789, responsável pela queda da monarquia absolutista francesa. Outro grande movimento que teve iniciativa até os dias atuais foi o movimento sufragista, primeira onde feminista, onde foi organizado por mulheres que exigiam seu direito ao voto e a participação na política.

A participação feminina é dividida em três momentos: direito ao voto em 1932, o movimento feminista feito para direitos amplos, ocorrido em 1970 e em 1988 a Constituição.

2.1. A Origem

O feminismo surgiu durante as revoluções no século XVIII. No Brasil, ele assentou na luta por igualdade entre homens e mulheres.

Sua origem surgiu no período das revoluções liberaias inspirados nos ideais iluministas, como a Revolução Francesa e a

Revolução Americana. Os movimentos baseavam-se na luta, por buscar mais os direitos políticos e sociais.

Dessa época, uma das maiores representantes feministas, foi a escritora Olímpia de Gouges, em 1791, que escreveu um documento que ficou conhecido como “Declaração dos Direitos da Cidadã e da Mulher”. Nessa declaração, a escritora francesa argumentava sobre a igualdade dos direitos sociais, políticos e jurídicos entre homens e mulheres. Sua crítica era contra a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, que implementa os direitos dos homens, mas, excluía as mulheres.

No século XIX, o movimento feminista questionava as divergências existentes na sociedade surgida nos ideais liberais e das revoluções industriais, onde colocaram o fim das desigualdades do núcleo familiar e nos locais de trabalho.

Na entrada do século XIX para o século XX, os sindicatos apoiavam os trabalhadores da exploração patronal, com origem nas ideias marxistas, onde induziu toda uma tradição no conceito de movimento social, bem como, as ideologias dos movimentos sociais e partidos político. Na década de 1960, com as repercussões da Segunda Guerra Mundial, e em sequência o começo da Guerra Fria, acabaram surgindo novos coletivos, ações e movimentos.

Até o século XIX, a mulher era tida como “sexo frágil”, sendo vista como inferior ao homem, as quais não possuíam os mesmos privilégios que eles, como ler, escrever, guerrear, estudar, etc. Desse modo, as meninas eram educadas para ajudar as figuras maternas nos trabalhos domésticos, casar e ter filhos. Nesse sentido, não podiam trabalhar fora, e muito menos acesso aos assuntos relacionados com a política ou economia.

Com isso, os movimentos feministas espalhados pelo mundo foram tomando corpo e assim, cada vez mais lutando e conquistando diversos direitos pelas mulheres, tais como o direito à educação, o voto, contrato, propriedade, divórcio, igualdade salarial, aborto, etc.

Na cultura ocidental, o movimento feminista passou a reivindicar maior visibilidade a partir do século XX, dando oportunidade para figuras femininas poderem atuar em diversos campos como cultura, artes, economia, política, etc.

Atualmente, muitas mulheres preferem não constituir família, não tendo maridos ou filhos, pelo fato do abuso do século XIX.

As mulheres também fizeram movimentos sociais, para lutar por seus direitos, e assim, buscando a liberdade sexual e o tratamento igualitário entre os gêneros, de modo que organizaram em redor dos problemas específicos, ligado com a chegada da pílula anticoncepcional, onde a vida sexual das mulheres começaram a se modificar, formando indivíduos conscientes que de modo poderiam valorizar a sexualidade

como o direito de prazer, sem ter o risco de gravidez não desejada. Com isso, as escolaridades das mulheres fortaleceram, bem como, o mercado de trabalho desenvolveu. Simone de Beauvoir foi uma representante dos movimentos feministas, onde escreveu diversos livros sobre o papel da mulher na sociedade. Ela escreveu a famosa frase:

“ Ninguém nasce mulher: torna-se mulher” e “nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino”. (Beauvoir Simone De. 1949)

Ela alega que o sexo é um fator biológico, de modo que difere do gênero que constitui a sociedade, criticando a hierarquia entre homens e mulheres assim como a opressão moral e religiosa.

Em 1985, criou-se a Conferência de Nairóbi, que foi a terceira conferência mundial sobre as mulheres convocada pela Organização das Nações Unidas, sendo que a primeira foi realizada no México, em 1975, e a segunda em Copenhague em 1980. Participaram 157 países, sendo oficialmente designadas pela ONU. No final, os países concordaram em adotar políticas em favor da igualdade de gênero, saúde, educação e mercado de trabalho.

O III Encontro Feminista Latino-Americano aconteceu em Bertioga, em 1981, para discutir o feminismo e o direito das mulheres. Um grupo de mulheres negras do Rio de Janeiro não havia feito a inscrição no evento e reivindicava a participação, declarando-se que não tinham recursos para a efetivação do registro, marcando assim, o início de reivindicações das mulheres negras pela diversidade do feminismo.

O senador Nelson Carneiro regulamenta a paternidade de crianças nascidas fora do casamento. Conforme a Lei 8.560/1992, os filhos nascidos fora do casamento devem ser irrevogalmente reconhecidos. A partir de 2009, a lei passa a determinar que seja considerado pai o homem que recusar a fazer o teste de DNA em casos de reconhecimento de paternidade.

“Art. 1° O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito:

– no registro de nascimento;

II – por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório;

III – por testamento, ainda que incidentalmente manifestado;

IV – por manifestação expressa e direta perante o juiz, ainda que o reconhecimento não haja sido o objeto único e principal do ato que o contém.” (Lei 8.560/1992)

A II Conferência Mundial de Direitos Humanos, conhecida como Conferência de Viena, realizada pela ONU, reúne 171 chefes de Estado para tratar de resoluções para o desenvolvimento humano, onde definiu metas para os países avançarem na proteção dos direitos humanos.

Houve uma evolução nos direitos trabalhistas, criada uma Lei de iniciativa da deputada Benedita da Silva, que proíbe a exigência de atestadas de gravidez e esterilização, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho.

“Art. 2º Constituem crime as seguintes práticas discriminatórias:

I – a exigência de teste, exame, perícia, laudo, atestado, declaração ou qualquer outro procedimento relativo à esterilização ou a estado de gravidez;

II – a adoção de quaisquer medidas, de iniciativa do empregador, que configurem;

a) indução ou instigamento à esterilização genética;

b) promoção do controle de natalidade, assim não considerado o oferecimento de serviços e de aconselhamento ou planejamento familiar, realizados através de instituições públicas ou privadas, submetidas às normas do Sistema Único de Saúde (SUS).” (Lei 9.029/1995)

A Lei 9.278/1996, da deputada Beth Azize, regulamenta a união estável, prevista na Constituição Federal de 1988. Antigamente, o Código Civil de 1916 considerava família legítima apenas na formada pelo casamento civil. Não havendo proteção legal aos direitos do cônjuge e filhos fora do matrimônio. A Constituição de 1988 amplia a definição da família, onde passou a incluir a união estável ou famílias monoparentais.

“Art. 1º É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família.” (Lei 9.278/1996)

Assim, vimos um grande passo para os movimentos feministas, onde começou a regulamentar a união estável constituída na Constituição. Sendo que, para ser considerável, a união estável necessita da vontade das partes de constituir família, convivência duradoura, pública e contínua, independentemente do gênero.

Desse modo, foram diversas as conquistas do movimento feminista, como o voto, a união estável, a igualdade prevista na Constituição, diversos Congressos nacionais e internacionais, luta contra a violência e outras conquistas.

2.2. Tragetória do Feminismo no Brasil

No governo de José Sarney, em 1985 a 1989, houve o feminismo negro, onde foi parâmetro da opressão de raça e gênero sofrida por mulheres negras. As publicações abordavam que a mulher negra encontrava-se em uma posição inferior aos homens e às mulheres brancas no mercado de trabalho e ainda com uma remuneração menor, sendo diferentes as formas de tratamento na saúde e educação.

No governo de Collor, em 1990, o estupro foi classificado como crime hediondo, tornando-se inafiançável, com pena de 6 a 10 anos em regime fechado. Em 1992, aconteceu o primeiro encontro de mulheres negras da América Latina e do Caribe, onde marcou internacionalmente a luta e a resistência da mulher negra em relação à opressão de gênero e etnia.

Na chefia de Itamar Franco, foi reconhecida a paternidade fora do casamento, e houve várias conferências, como a de Viena, em 1993, e a de Ciaro, um ano depois, bem como, declarações estabelecidas como a da liberdade de mulheres negras e de violência contra as mulheres.

Em 1995, no governo de Fernando Henrique Cardoso, houve o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, volta à ativa, as práticas discriminatórias da gravidez são proibidas no mercado de trabalho, a realização da Conferência da Pequim, cotas para mulheres em eleições e o Fórum de Mulheres do Mercosul. Um ano após, em 1996, foi implantada a Lei do Planejamento Familiar, a Lei da União Estável e o Programa Nacional de Prevenção e Combate à Violência contra a Mulher. No ano de 1997, foi criado o programa Viva Mulher, realizadas estratégias de igualdade e o fim da exigência de uso de vestido ou saia no Senado e no STF.

No mesmo governo, foi eleita a primeira mulher ministra do Supremo Tribunal Federal, em 2001. A lei tipifica e penaliza o assédio sexual. No ano de 2002, é aprovado o Novo Código Civil, com a criação da Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher e medida cautelar para violência doméstica.

Em 2003, no governo do Lula, foi criada a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, o Bolsa Família, notificação compulsória nos serviços de saúde, assim como a atenção integral à saúde da mulher. Em 2004, foi feita a Primeira Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres. Em 2005, realizado o plano de políticas para as mulheres, as gestantes começaram a ser acompanhadas no parto e foi feito um projeto de descriminalização do aborto. Em 2006, foi estabelecida a Lei Maria da Penha e, em 2007, criado o Estatuto do Nascituro, ou seja, proteção antes mesmo de nascer.

Somente em 2011, foi eleita a primeira presidente no Brasil, Dilma. Em 2012, foi legalizado o aborto de anencéfalos. Em 2013, constituiu-se a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, visando ampliar e integrar a rede de serviços

públicos para mulheres em situação de violência. Foi criado também, no mesmo ano, o PEC das Domésticas, o atendimento obrigatório de mulheres em situação de violência sexual pelo SUS, e dois anos depois, foi criada a Lei do Feminicídio.

Em 2018, no governo do Temer, foi implantada a Lei Marielle Franco, a Lei de Importunação Sexual e a Campanha “Você tem voz”.

Assim, é de suma importância conhecer e reconhecer os movimentos feministas, tanto nacionais quanto internacionais, para assim poder ser construída uma nova sociedade sem preconceitos, racismos e desigualdade, sabendo que ninguém é melhor que ninguém, independentemente de sexo, raça, gênero e etnia.

3. CONQUISTAS FEMINISTAS NO BRASIL

Em 1827, a partir da Lei Geral, meninas ocuparam o direito de frequentar e estudar em turmas de colegial, e somente em 1879 conquistaram o direito de estudar em faculdades e universidades. Atualmente, as mulheres brasileiras são a maioria quando refere ao acesso à formação superior.

A obra “Direitos das Mulheres e Injustiças dos Homens” é publicada em 1832, a autora Nísia Floresta instiga as tradições e costumes da sociedade. Ela foi a primeira mulher brasileira a denunciar em uma publicação o mito da superioridade do homem e defender as mulheres como pessoais inteligentes e merecedoras de respeito igualitário.

O partido Republicano Feminino foi o primeiro partido voltado para os desejos femininos, em 1910, como ferramenta de defesa do direito ao voto e emancipação das mulheres na sociedade. Entre as décadas de 1930 e 1960, as movimentações feministas foram desenvolvidas no cenário político nacional. O voto foi adquerido em 1932, e em 1934, foi reconhecido pelo Governo de Getúlio Vargas.

No ano de 1937, os ideais corporativistas do Estado Novo impossibilitava a expressão de movimentos de luta e de constestação de homens e mulheres. Em 1950, a redemocratização permitiu contemporização da existência que suscita o trabalho feminino à autorização marital.

Em 1960, aconteceu a revolução dos costumes, abrindo caminho para o feminismo tornar-se um movimento de força maior e de mais combatividade. Mesmo com o contexto da ditadura, as mulheres passaram a organizar os questionamentos com mais profundidade na sociedade.

No ano de 1962 foi aprovado o Estatuto da Mulher Casada, onde garantia que a mulher não precisaria mais pedir autorização ao marido para poder trabalhar, receber herança e no caso de separação, poderia solicitar a guarda dos filhos.

Na década de 1970, os movimentos feministas no Brasil associaram-se nos movimentos de luta e resistência contra a Ditadura Militar. Ademais, houve uma grande aproximação com os movimentos sociais dos negros e homossexuais, bem como, o aumento dos movimentos por diferentes locais, inclusive, ganhando espaço na TV e propondo debates em questões relacionadas à sexualidade feminina, combate da violência contra a mulher, etc.

A mulher não tinha liberdade de escolha e era vista como objeto que pertencia ao pai ou o marido, sem voz ativa. Somente em 1974, foi aprovada a “Lei de Igualdade de Oportunidade de Crédito”, onde mulheres passaram a obter cartão de crédito sem autorização de pai e marido.

Em dezembro de 1977, as mulheres era legalmente presa aos casamentos. A partir da Lei n° 6.515/77, o divórcio tornou-se uma opção legal no Brasil, no entanto, mulheres divorciadas eram vistas com maus olhos perante a sociedade, fazendo assim, muitas mulheres optarem por sofrerem com abusos e a infelicidade por não serem julgadas.

No ano de 1979, mulheres garantem o direito à prática do futebol. No decreto da Era Vargas, mulheres não podiam praticar esportes, pois era incompatível com as condições de sua natureza. Somente em 1983, houve a regulamentação do futebol feminino, mas, mesmo atualmente, há reflexos negativos como o pouco incentivo ao futebol feminino e a falta de patrocinadores.

A Delegacia da Atendimento Especializado à Mulher surgiu em São Paulo, em 1985, são especializações da Polícia Civil para atender essencialmente ações de proteção e investigação dos crimes de violência doméstica e sexual contra as mulheres.

Em 1988, a Constituição Federal Brasileira passa a reconhecer as mulheres com iguais aos homens, somente após as pressões em pautas feministas, com movimentos feministas e populares, ganharam as avenidas na luta pela democracia.

Apenas no ano de 2002, o Código Civil brasileiro extinguiu o artigo que permitia que um homem solicitasse a anulação do seu casamento, caso descobrisse que a esposa não era mais virgem antes do matrimônio. Até esse tempo, a não virgindade era julgada como uma justificativa admissével para os divórcios.

A Lei Maria da Penha, sancionada em 2006, foi vítima de duas tentativas de homicídio e lutou quase vinte anos para que finalmente conseguisse colocar seu ex-marido detido. Criada assim, a Lei Maria da Penha, n°11.340/2006, criada para combater a violência contra a mulher.

Em 2015 é aprovada a Lei do Feminicídio, onde a Constituição reconheceu que a partir da Lei n°13.104/2015, o feminicídio como um crime de homicídio qualificado.

Infelizmente, mulheres vivem situações de assédio e violência no dia a dia, seja no ônibus, aplicativos de carros particulares, ou na rua. A grande ocorrência dessa prática é que precisou incluir em suas ações a defesa da lei que caracteriza o assédio como crime, Lei n° 13.718/2018 – Lei da Importunação Sexual Feminina.

A Lei n° 14.443/22, dispensa a autorização do cônjuge com o procedimento de laqueadura de trompas para mulheres, entrando em vigor no dia 05/03/2023.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É evidente que a mulher carece um olhar sensitivo do estado, concedendo as desigualdades sociais arraigadas a ela, em seguida de todo um período histórico de descriminações e retrocessos.

As políticas públicas para a classe feminina no Brasil, são resultados de um período emancipatório feminino. Acerca dessa lógica, a mulher passa a descobrir seu papel na sociedade, sendo pauta de grande importância para os direitos humanos.

A violência de gênero consiste em repressão, fazendo que perca sua identidade e liberdade. É notório que através da Constituição Federal, homens e mulheres passaram a adquirir a igualdade de direitos, encontra-se o pleno exercício da cidadania por todos e a dignidade da pessoa humana. Assim, o sistema adotado no país que é Democracia de Direitos começa a atender a coletividade, não existindo desigualdades. Desse modo, as políticas voltadas para a classe feminina é norteada pela Constituição, apresentando objetivos da República, com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Desse modo, dando importância para todas as conquistas feministas, por exemplo, a igualdade entre todos, a licença-maternidade, aposentadoria para trabalhadoras rurais, direito ao voto, leis a favor da mulher, infelizmente não são satisfatório, mesmo que as mulheres seja a maioria da população, elas não são reconhecidos.

5. REFERÊNCIAS

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VISÃO HISTÓRICA E CONTEMPORÂNEA DA ADMINISTRAÇÃO DIRETA E INDIRETA JUNTO AO DIREITO COMPARADO

Palavras-chave

Administração Pública. Governança. Compliance. Descentralização. Direito Comparado.

Nilo Kazan de Oliveira

Doutor e Pós Doutorando pela Universidade Estadual Paulista - UNESP. Professor. Procurador Jurídico do Município de Bauru/SP. E-mail: nilokazan2@gmail.com

Taís Nader Marta

Doutoranda em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito – Sistema Constitucional de Garantia de Direitos – pela ITE (Instituição Toledo de Ensino) de Bauru/SP. Advogada. Professora. E-mail: tais@nadermarta.com.br. Resumo

O artigo examina a evolução histórica e as características da administração pública direta e indireta, com um enfoque na comparação entre o Brasil e outras nações. A administração direta refere-se à atuação direta do Estado nas suas funções, enquanto a administração indireta envolve a delegação dessas funções para outras entidades, como autarquias e empresas públicas. O texto explora como essas estruturas se desenvolveram desde a Revolução Francesa, influenciando tanto países europeus quanto latino-americanos. Com a globalização e o surgimento de novos modelos de gestão, a administração pública passou por reformas significativas, destacando-se a transição do modelo burocrático para o gerencial, que incorpora conceitos de governança e compliance. Essas mudanças visam aprimorar a eficiência, a transparência e a responsabilidade na gestão pública. O artigo também discute as normativas internacionais e regionais que promovem a integridade e o combate à corrupção, destacando a importância de uma gestão pública que garanta os direitos fundamentais dos cidadãos.

1. INTRODUÇÃO

A administração pública, ao longo dos séculos, tem passado por profundas transformações que refletem as mudanças políticas, sociais e econômicas de cada era. Desde os primórdios da centralização estatal, quando o próprio Estado assumia diretamente suas funções, até os modelos mais complexos de delegação de poderes para entidades autônomas, como autarquias e empresas públicas, a gestão pública foi se adaptando às necessidades e desafios de cada período.

Inicialmente expomos ao leitor a conceituação básica de administração direta e indireta. A administração direta é aquela em que o próprio Estado exerce suas funções diretamente, lembrando que o Estado abrange os Entes Federados, União, Estados, Distrito Federal e Municípios, conforme Art. 1º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Já a administração indireta reveste-se do Estado transferindo, outorgando ou delegando suas funções para outras pessoas jurídicas a ele ligadas (Alessi, 1971).

No direito brasileiro temos na administração indireta a existência de autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista, bem como algumas ramificações dessas entidades, a exemplo das agências reguladoras, que são autarquias em regime especial. Todas essas disposições são aquelas abarcadas pela própria Constituição Federal, conforme art. 37, XIX.

Partindo das explanações acima, diante da extensão territorial e logística para a gestão de todo o país, visando sempre a eficiência e eficácia das funções em prol da coletividade, é necessária a descentralização de suas atividades, de modo a conseguir alcançar os anseios da coletividade, ou seja, do interesse público primário (Alexy,1993, p. 86).

Feitas as explanações iniciais, passa-se a abordagem histórica, contemporânea e comparativa, por amostragem, entre a administração direta e indireta do Brasil e outros países, ressaltando que a abordagem comparativa revestir-se-á em realidades diversas de acordo com as peculiaridades de cada país.

Nessa esteira, nos reportamos a Cretella Júnior (1992), que fez uma abordagem inicial do Direito Administrativo Comparado, trazendo uma visão sistemática, aprofundando os entendimentos universais às peculiaridades regionais. Também se acrescenta que o método utilizado visa uma constante evolução na busca de um modelo ideal.

Este artigo explora essa evolução, com ênfase na distinção entre administração direta e indireta, e compara as abordagens adotadas no Brasil e em outras nações. Ao analisar o impacto da globalização e as reformas administrativas que resultaram na introdução de princípios de governança e

compliance, busca-se entender como essas mudanças influenciam a eficiência, transparência e responsabilidade na gestão pública contemporânea. Além disso, o artigo discute como as normativas internacionais e regionais têm moldado a administração pública, promovendo a integridade e o combate à corrupção, com o objetivo de garantir que os direitos fundamentais dos cidadãos sejam respeitados e protegidos.

2. BREVE HISTÓRICO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIRETA E INDIRETA NOS PAÍSES EUROPEUS E LATINOS

Nos países europeus, assim como no Brasil, a literatura que trata do tema é escassa, sendo que o grande marco para a organização do Direito Administrativo, e consequentemente da administração direta e indireta encorpou-se com a Revolução Fracesa (David, 1954).

Assim, no Estado Liberal surgiram denota-se o surgimento do Direito Administrativo, por intermédio da criação do Conseil d´État, advindo da França, e que nortearam a gestão do Estado naquela época. Nesse momento o Direito Administrativo restringia-se a preservar os poderes de império do Estado, discricionariedade, autoexecutoriedade, autotutela, imperatividade, supremacia do interesse público e poder de polícia (Moreira Neto, 2001).

Todos esses aspectos ligam-se diretamente com o momento político da época e a sistemática de governo. Quando se passou para Estado de Bem estar Social - welfare-state, houve o surgimento da burocracia moderna, racional, universalista e eficiente, garantindo a necessidade de um Estado visando a coletividade.

Nesse momento, diante da essencialidade de alguns serviços como aqueles indelegáveis do Poder Público, como exemplo a segurança pública, assistência, entre outros, houve a necessidade do Estado se organizar de maneira a implementar a gestão do Estado em prol da coletividade. Houve a necessidade de dimensionamento da máquina pública, a fim de conseguir implementar a gestão à sociedade, mantendo-se alguns serviços essenciais em poder do Estado. Surgiu então a necessidade de ramificar a própria administração pública, a fim de conseguir gerir o poder, criando-se administração indireta como forma de descentralizar a gestão administrativa.

Também, a necessidade de ramificação interna das entidades pública, através da desconcentração, em que não há a criação de outras pessoas jurídicas, mas tão somente órgãos.

Esse contexto foi então trazido para alguns textos constitucionais, a exemplo da Constituição Alemã, que em seu Art. 85 dá competência ao Poder Federal para regulamentar,

inclusive delimitando sobre a estrutura da administração direta e indireta (Meirelles, 2001).

Na sistemática brasileira, cabe ao Poder Legislativo, mediante projeto de lei de iniciativa do Poder Executivo, a criação de entidades da administração indireta, mais precisamente no art. 37, XIX, conforme já evidenciado na introdução do presente trabalho.

Por outro lado, no sistema alemão, a organização interna da administração incumbe tão somente ao Poder Executivo, sem a necessidade de manejo de autorização legal junto ao Poder Legislativo.

De certa fora, parece um sistema acertado, mas diante de um pensamento crítico, estaríamos na contramão do sistema de freios e contrapesos - checks and balances, que regem os sistemas democráticos, ao teor daquele aplicável no Brasil. A independência do Poder Executivo para criar livremente entidades da administração indireta entraria em cheque com a equidade entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.

Outros países, assim como Holanda, França e Itália, também adotam a autonomia do Poder Executivo na criação de entidades da administração indireta, enquanto Espanha, Portugal e Chile delimitam que o ato deve ser complexo, ou seja, com atuação do Poder Executivo e Legislativo para o aperfeiçoamento e criação de entidades da administração indireta.

3. DA EVOLUÇÃO PARA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA MODERNA

Conforme abordado, da Revolução Francesa até os dias atuais, muitas foram as mudanças na forma de gerir a coisa pública, o que se pautou sempre com um viés europeu, a disseminação da administração direta e indireta para os países europeus, latinos e norte-americanos.

A partir da década de 1980, a modelagem de administração pública começou, ainda que timidamente, a alcançar novos formatos, deixando de lado a administração pública clássica, para dar lugar à a nova administração pública, com ampla influência da middle range theory ou “teoria do médio alcance”, desenvolvida por Robert King Merton, que visa integrar a teoria e pesquisa empírica.

Com isso, a nova administração pública visa encontrar respostas para a problemas principiológicos como a eficiência, eficácia, efetividade, dentro de uma sistemática globalizada, extraindo-se decisões que melhoram a dinâmica da administração pública direta e indireta em todo o mundo.

A globalização viabilizou um intercâmbio intenso de informações entre países, a fim de gerar uma modelagem peculiar

para a evolução da gestão pública. Passou a existir, a partir desse marco algumas reformas dos sistemas administrativos, cada qual atendendo às suas peculiaridades e políticas públicas específicas.

Nesse ínterim, no Brasil, alguns pontos do direito comparado foram implementados, como por exemplo o conceito de governança e os princípios da participação, accountability - responsabilidade e o controle social.

De 1930 até os anos 2000, houve uma transposição de técnicas de gestão do setor privado para o público, especialmente visando uma reforma dos gastos públicos, visando ainda maior efetividade da gestão estatal, foi então que surgiu a ideia do modelo gerencial de gestão pública, deixando de lado o modelo burocrático.

Deflagrou-se então uma revisão nos processos, apoiado na flexibilidade, resultados, contribuinte e controle social. Tudo isso, atrelado a uma sistemática revolucionária trazida pela Constituição Federal de 1988, que arrolou transformações em todos os direitos fundamentais, como saúde e educação.

Aqui, é importante ressaltar que o texto constitucional atual é extremamente completo e louvável, mas cria entraves ao Gestor em conseguir implementar todos os direitos fundamentais em prol da população, gerando interferência entre Poderes, como no caso da judicialização das políticas públicas, e a discussão entre teses como a do mínimo existencial, reserva do possível, entre outras.

Todos esses fatores tornam a administração muito mais complexa e burocrática. Atrelado a isso tudo, ainda temos a questão da corrupção multinível, que afeta todos os Poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário, e que dificultam a implementação do modelo de gerencial de governança.

4. COMPLIANCE - O MODELO GERENCIAL DE GOVERNANÇA APTO A GERIR A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIRETA E INDIRETA

O modelo gerencial de governança na administração pública direta e indireta emerge como uma resposta às crescentes demandas por eficiência, transparência e responsabilidade na gestão pública. Diferentemente do modelo burocrático tradicional, caracterizado por procedimentos rígidos e foco na conformidade, o modelo gerencial busca otimizar os recursos públicos e maximizar os resultados entregues à sociedade, alinhando-se com práticas comuns no setor privado.

Como abordado, o direito comparado, com a pós globalização implementada trouxe a possibilidade de compartilhar a essência dos sistemas de gestão pública ao redor do mundo, e com isso, trazendo à realidade questões para

aprimoramento da gestão pública, de maneira eficiente, menos burocrática, e que garanta ao cidadão ao menos o básico dos direitos esculpidos na Constituição Federal.

Por um lado, a máquina pública precisa se organizar, aqui encontram-se os interesses públicos secundários, mas por outro lado, o povo precisa ter uma segurança estatal naqueles preceitos fundamentais mínimos, de rigor, segurança, saúde, educação, lazer, entre outros.

A implementação desse modelo na administração pública brasileira é marcada por uma série de reformas iniciadas na década de 1990, que visavam modernizar a gestão estatal. Inspirado pela globalização e pelas reformas neoliberais que varreram o mundo, o Brasil começou a adotar princípios de governança corporativa adaptados à realidade do setor público. Esses princípios incluem a responsabilidade fiscal, a prestação de contas, a transparência, e a incorporação de mecanismos de controle e avaliação de desempenho.

Um aspecto central do modelo gerencial é a ênfase na gestão por resultados. Essa abordagem envolve a definição de metas claras para as diversas áreas da administração pública e a avaliação contínua do desempenho em relação a essas metas. O foco é transferido da simples execução de tarefas para a geração de valor público, onde o sucesso é medido pelo impacto concreto das ações governamentais na vida dos cidadãos.

A governança, no contexto do modelo gerencial, é entendida como o conjunto de mecanismos e práticas que asseguram que a administração pública atue de maneira eficaz e ética, em consonância com os interesses da sociedade. Entre esses mecanismos estão as auditorias internas, o cumprimento rigoroso das leis de responsabilidade fiscal, e a criação de canais de transparência e participação cidadã, como as ouvidorias públicas e os portais de transparência. Esses instrumentos permitem que a sociedade monitore e avalie a atuação dos gestores públicos, fortalecendo o controle social.

Pois bem, o modelo de governança, trazido do direito comparado e da iniciativa privada proporciona uma melhor adequação da administração pública, seja direta ou indireta, garantindo higidez e processo de gestão.

Agora, fala-se em criação de um processo empírico, já experimentado, viabilizando a consecução da finalidade da gestão. Trata-se de um alinhamento da atuação dos órgãos e entidades públicas para alcance de resultados e metas.

De acordo com a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Económico1 a governança corporativa é definida como o conjunto de relações entre a administração de uma empresa, seu conselho de administração, seus acionistas e

1 Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD, 1999)

partes interessadas. Ela procura criar um conjunto eficiente de mecanismos a fim de assegurar que o comportamento do executivo seja alinhado com os interesses dos acionistas.

Quando transmutamos o conceito para a Administração Pública, o contribuinte anseia pela recepção de serviços de excelência, proporcionado por servidores comprometidos com os padrões de qualidade e produtividade. Os contribuintes são responsáveis pelo capital do Governo para que ele possa produzir bens e serviços de interesse coletivo.

Nessa esteira, a governança se perfaz no conjunto de mecanismos para avaliar, monitorar e direcionar a atuação do gestor, visando a prestação de serviços públicos de qualidade e de interesse social. Sua base encontra-se em máximas éticas.

Existem alguns princípios e pilares básicos da governança, que visam um direcionamento universal para uma boa gestão. Os princípios são: responsabilidade, integridade, transparência, capacidade de resposta, prestação de contas e confiabilidade.

O princípio da responsabilidade preza para que os agentes de governança zelem pela sustentabilidade das organizações, órgãos e entidades, visando a continuidade, incorporando considerações à ordem social na definição de negócios e operações.

A integridade transmite o alinhamento e adesão de valores, princípios e normas éticas comuns, para sustentar e priorizar o interesse público sobre o interesse privado.

A transparência, visa o dever de informação e clareza sobre o gasto do dinheiro público, dando-se publicidade. Está também atrelado à lei do acesso à informação (Lei Federal n. 12.527 de 18 de novembro de 2011), lei de responsabilidade fiscal (Lei Complementar n. 101 de 04 de maio de 2000), entre outras normativas correlatas.

A capacidade de resposta atrela-se a eficiência e eficácia de prestação de informação aos cidadãos, também evidenciada pelas ouvidorias públicas.

A prestação de contas, reveste-se no dever do gestor em assumir as consequências de suas ações e omissões. A confiabilidade seria a segurança das instituições, a capacidade de minimizar incertezas na seara económica, social e políticas.

Fazendo uma leitura da principiologia da governança, vimos que na legislação brasileira, assim como no direito comparado, existem normativas esparsas sobre o assunto, a teor do que já explanamos. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei n. 4.657 de 04 de setembro de 1942), com as inovações trazidas pela Lei n. 13.655 de 2018, criou mecanismos de segurança para o particular em face do

estado, no sentido de garantir maior segurança jurídica para as decisões da administração direta e indireta.

Na administração indireta foi implementada a Lei 13.303/2016, Estatuto das Estatais, que inovou na legislação brasileira, gerando obrigatoriedade de empresas públicas e sociedades de economia mista em se estruturarem para gestão de risco e controles internos. Em suma gerou a obrigatoriedade do controle interno, análise de gestão de risco, cumprimento de obrigações e auditoria.

Atrelado a isso, em seu art. 9º determina a criação de normativa interna de integridade, a dispor necessariamente sobre princípios, valores e missão da empresa estatal, além de orientações sobre a prevenção de conflito de interesses e vedação de atos de corrupção e fraude; Instâncias internas responsáveis pela atualização e aplicação do código de conduta e integridade; Canal de denúncias que possibilite o recebimento de denúncias internas e externas relativas ao descumprimento do código e das demais normas internas de ética e obrigacionais; Mecanismos de proteção que impeçam qualquer espécie de retaliação a pessoa que utilize o canal de denúncias; Sanções aplicáveis em caso de violação às regras do Código; Previsão de treinamento periódico, no mínimo anual, sobre o Código, a empregados e administradores, e sobre a política de gestão de riscos, a administradores.

Referida Lei estabelece ainda a criação de uma estrutura administrativa adequada para a gestão e controle de risco. Nota-se uma grande evolução na administração direta e indireta, tanto em relação a legislação aplicável, como também na incorporação de normativas estrangeiras, e que se aplicam de maneira universal nos países.

Posteriormente, em 2019 foi editada a Lei º 13.848, de 25 de junho de 2019, nova lei das agências reguladoras, que determinou a administração indireta a adoção de práticas de gestão de riscos e de controle interno, e também a elaboração e divulgação de programa de integridade, com o objetivo de promover a adoção de medidas e ações institucionais destinadas à prevenção, mapeamento, e punição de fraudes e atos de corrupção.

5. COMPLIANCE NO DIREITO COMPARADO

Outro ponto crucial na implementação do modelo gerencial de governança é a cultura de compliance. Inspirada em práticas internacionais, especialmente no setor privado, o compliance na administração pública visa assegurar que todas as atividades governamentais estejam em conformidade com as leis e regulamentos aplicáveis, além de promover uma cultura organizacional baseada em ética e transparência.

Conforme abordado, nas duas últimas década intensificou-se a discussão sobre o compliance e governança, trazendo-se os preceitos da iniciativa privada para a administração pública direta e indireta. Em inúmeros países houve um movimento sobre a globalização e, consequentemente anticorrupção.

Nesse ínterim, o movimento internacional foi intenso por inúmeras instituições a fim de garantir uma gestão de governança, calcada nos princípios e pilares básicos para uma boa gestão pública. Foram manejadas inúmeras convenções para organização de um marco, ao teor da a Convenção sobre o Combate da Corrupçãode Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais (Convenção OCDE), de 1997; e a Convenção das Nações Unidas contra Corrupção (Convenção da ONU), de 2005. Em aspectos regionais, foram instituídas a Convenção Interamericana contra a Corrupção (Convenção da Organização dos Estados Americanos – OEA), de 1996; a Convenção Penal sobrea Corrupção, de 1998, e a Convenção Civil sobre a Corrupção, de 1999, do Conselho da Europa; aConvenção relativa à Proteção dos Interesses Financeiros das Comunidades Europeias, de 1995,aeConvenção relativa à Proteção dos Interesses Financeiros das Comunidades Europeias, de 1995, e a Convenção relativa à Luta contra a Corrupção em que Estejam Implicados Funcionários das Comunidades Europeias ou dos Estados-Membros da União Europeia, de 1997; e a Convenção da União Africana sobre a Prevenção e o Combate à Corrupção de 2003. 2

Basicamente as convenções podem ser regionais ou internacionais, mas todas elas trazem compromissos entre os Estados a fim de alcançar a finalidade precípua de combate a corrupção, estabelecendo normas de conduta, com a cooperação mútua entre países.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como podemos observar, há mais de 200 anos, desde a Revolução Francesa, o ato de gerir a coisa pública vem sendo discutido e aprimorado, visando uma gestão eficiente, transparente e que vise o máximo de benefícios ao interesse do povo - interesse público primário.

Com a globalização, implementada a partir da década de 1980, tivemos um avanço significativo na gestão pública direta e indireta, havendo um intercâmbio intenso de situações que melhoram a gestão, a teor da diminuição da corrupção, processos internos de controle de gestão e resultados, riscos e governança. Tudo isso reveste-se no atual modelo de

2 VAZ,Thiago;MASTRODI,Josué.OcompliancenaAdministração Pública: a realidade brasileira submetida a normasde integridade. Revista do Direito Público Londrina, v. 16, n. 2, p. 64-89, ago. 2021. DOI: 10.5433/24157-108104-1.2021v16n2p. 64. ISSN: 1980-511X

governança e compliance, instituto originário do setor privado, mas que vem sendo implementado na administração direta e indireta.

As iniciativas de compliance e governança, apesar de avançadas, precisam ser continuamente fortalecidas e ampliadas para criar um ambiente onde a integridade e a ética sejam normas inabaláveis. A criação de mecanismos de controle, auditoria e transparência é essencial para garantir que os princípios do modelo gerencial sejam realmente aplicados na prática.

Os desafios são diversos, levando-se em conta a própria sistemática da Constituição Federal de 1988, que é extremamente paternalista e garantista, prometendo muito mais do que o Estado pode cumprir. Atrelado a isso, a corrupção e o sistema essencialmente burocrático, com alguns viéses, viabiliza a má-gestão pública e a necessidade de adequação para a presente e futuras gerações.

É preciso buscar alternativas para que o Estado cumpra sua função constitucional e legal de maneira transparente e com parâmetros bem definidos de gestão responsável, dando a cada cidadão o que lhe é de direito, integrando práticas modernas de gestão com os princípios fundamentais do direito público, na busca por uma administração pública mais eficaz e responsável com uma mudança cultural que valorize a ética, a transparência e a eficiência como pilares fundamentais da gestão pública.

A transição para um modelo gerencial de governança na administração pública brasileira representa um avanço significativo, mas também um desafio contínuo. O sucesso desse modelo dependerá de uma combinação de reformas estruturais, fortalecimento das instituições, combate eficaz à corrupção e, principalmente, uma mudança de mentalidade entre os gestores públicos. Somente com esses esforços combinados será possível alcançar uma administração pública que não apenas seja eficiente e responsável, mas também justa e comprometida com o bem-estar de todos os cidadãos.

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MODULAÇÃO DE EFEITOS E PROCESSOS ADMINISTRATIVOS EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

Palavras-chave

Jurisdição Administrativa. Modulação de efeitos. Processo Administrativo Tributário.

Ramon Leandro Freitas Arnoni

Mestre em Direito Tributário pelo IBET- Instituto Brasileiro de Estudos Tributários. Especialista em Direito Tributário pelo IBETInstituto Brasileiro de Estudos Tributários. Especialista em Gestão Pública - Universidade Federal de São Carlos. Especialista em Direito Público, Direito da Seguridade Social, Direito Empresarial, Direito do Consumidor, Ciências Criminais, Prevenção e Combate à Corrupção. Auditor Fiscal da Receita Estadual de São Paulo. Juiz titular do Tribunal de Impostos e Taxas/SP. E-mail: ramonarnoni@bol.com

Resumo

A modulação dos efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal é técnica de decisão adotada pelo Supremo Tribunal Federal, notadamente nas demandas que envolvem créditos tributários, devido ao potencial econômico a favor ou contra os interesses das Fazendas Públicas. Ocorre que a modulação dos efeitos no tempo das decisões nestas matérias tributárias, por vezes abrangem exclusivamente jurisdicionados que se socorreram do Poder Judiciário em momento anterior aos julgamentos do Supremo e, em outras oportunidades tantos aqueles jurisdicionados como os que por alguma razão técnico-jurídica optaram por demandar a Fazenda na esfera administrativa. O presente estudo visa a demonstrar que que essa diversidade de tratamento nas modulações de efeitos em causas tributárias gera prejuízos aos jurisdicionados além de inevitável e corrida ao Poder Judiciário na busca da garantia dos direitos dos contribuintes. Ao final, busca-se demonstrar que estes prejuízos podem ser evitados com instrumento processual presente no Código de Processo Civil, os Embargos de Declaração.

INTRODUÇÃO

O tema da modulação dos efeitos em ações sobre matéria tributária é atual e tem suscitado debates na doutrina e na jurisprudência, notadamente pelos efeitos financeiros esperados pelos contribuintes que ao conquistarem decisões favoráveis veem seus direitos à repetição de indébito tolhido pelas modulações.

O STF, sensível a estas situações, por vezes, inclui nos efeitos da modulação dada à decisão em controle de constitucionalidade os contribuintes que buscaram o Poder Judiciário antes da decisão final. Outras vezes, o mesmo STF inclui não só as ações judiciais, mas também os processos administrativos em trâmite.

Os processos e recursos administrativos assim como as medidas cautelares em ações judiciais são equiparados para fins de suspensão da exigibilidade do crédito tributário e causam o mesmo efeito de interrupção do ciclo de positivação do direito tributário, motivo pelo qual devem ser tratados de forma equânime pelo STF em modulações de efeitos.

O presente trabalho demonstrará que a diversidade de tratamento dada aos processos administrativos é causa de problemas jurídicos e políticos que podem e devem ser sanados pelo instrumento dos Embargos de Declaração.

1. JURISDIÇÃO JUDICIAL E JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA

A p rimeira premissa que o presente estudo demanda é a necessária comparação entre as competências do Poder Judiciário, que inegavelmente exerce a jurisdição, com as competências do Poder Executivo, que atipicamente exerce funções de julgamento, dentre os quais, aqueles que interessam neste caso, o julgamento de processos administrativos tributários por órgãos próprios da Administração.

De plano, cumpre definirmos o que se entende por jurisdição.

Paulo César Conrado, a cujo entendimento aderimos, define com a clareza que lhe é peculiar a jurisdição como o “dever estatal, predominantemente cometido ao Poder Judiciário, que objetiva a composição de conflitos de interesses”. (CONRADO, 2007, p.35)

A jurisdição, pode ser entendida também como uma atividade típica, como função de apreciar lesões ou ameaças de lesões a direitos, atribuída ao Poder Judiciário e definida a partir de dois critérios definidores e suficientes, os quais, nas lições de Rodrigo Dalla Pria seriam “o elemento objetivo, que se prende à noção de atividade de produção normativa vocacionada à composição de conflitos; e o subjetivo, representado pela figura do único ente competente para tal função – o Estado”. (DALLA PRIA 2022, p. 158)

A admissão do exercício tipicamente jurisdicional, pelo Poder Judiciário, e atípico, hipoteticamente pelo Poder Executivo, carrega importantes distinções, dentre as quais apontamos a seguir.

A primeira delas diz respeito aos servidores públicos atribuídos de competência para julgar as lides, ditos juízes, no caso do Poder Judiciário, submetidos a regras específicas de ingresso na carreira bem como garantias de inamovibilidade, estabilidade vitaliciedade, esta última ausente para os juízes de jurisdição administrativa, o que, no nosso sentir, confere maior grau de autonomia aqueles em detrimento destes. É neste sentido a lição de Alberto Xavier. (XAVIER, 2005, p. 48)

Na função de julgamento administrativa, os servidores submetem-se às regras de ingresso e legislação própria dos demais servidores do ente federativo, aplicando-se aquela até aos servidores honoris causa (juízes contribuintes), convocados pelos tribunais que admitem julgamento paritário por juízes indicados pelos contribuintes e por servidores públicos da administração fazendária ou de suas procuradorias.

Outro aspecto que diferencia a função de julgamento administrativa da judicial é quanto ao órgão judicante (aspecto subjetivo da jurisdição), Poder Judiciário neste e Administração Pública naquele.

Sob o aspecto material, há outra importante distinção, pois a própria Constituição estabelece reservas de jurisdição atribuindo exclusivamente ao Poder Judiciário a decisão sobre determinadas conflituosidades, a exemplo da declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo que os retire do ordenamento.

Contudo, em nosso sentir, talvez o principal aspecto que diferencia as funções de julgamento administrativa e judicial é a aptidão de compor definitiva e absolutamente o conflito, presente nas decisões finais judiciais e ausentes nas decisões administrativas, desfavoráveis aos interesses da Administração. (CONRADO, 2007, p. 100)

Pois bem, diante das diferenças apontadas, resta responder à seguinte pergunta: a atividade de julgamento exercida pelos órgãos administrativos vinculados à Administração tributária é exercício de jurisdição?

Observamos que há no processo administrativo tributário os elementos necessários e suficientes para que se identifique o exercício da jurisdição, já expostos acima: o elemento subjetivo, ao passo que a função julgadora dos tribunais administrativos é exercida pelo Estado-Administração; o elemento objetivo, pois soluciona conflitos de interesses aplicando o direito ao caso concreto.

Reforçam nosso entendimento o Código Tributário Nacional, que expressamente refere no artigo 100, inciso II, que trata como normas complementares das leis, dos tratados e das

convenções internacionais e dos decretos, as decisões dos órgãos singulares ou coletivos de “jurisdição administrativa”.

Por conseguinte, estabelecemos a primeira premissa deste trabalho concluindo que os julgamentos em processos administrativos tributários são exercício, ainda que atípico, de jurisdição, a exemplo do que ocorre, tipicamente, como os processos judiciais.

1.1 .Processo administrativo tributário e ciclo de positivação do Direito Tributário

Estabelecida a condição de igualdade, sob a óptica da jurisdição, entre o processo administrativo tributário e o processo judicial tributário, é necessário estabelecer o efeito que o exercício da jurisdição administrativa e judicial tem no processo de positivação, definindo este processo.

O processo de positivação, nas lições de Paulo de Barros Carvalho, é o avanço em direção aos comportamentos humanos, partindo de normas gerais e abstratas, de elevada hierarquia, passando por normas gerais e concretas, individuais e abstratas até que se construam as normas individuais e concretas, reguladoras das condutas interpessoais. (CARVALHO, 2008, p. 174)

É o que ocorre em todas as áreas do direito, inclusive no Direito Tributário, objeto deste estudo, cujo início do processo é o exercício da competência tributária.

A partir deste exercício, as relações tributárias (obrigações tributárias) iniciam seu processo de formação partindo de uma norma geral e abstrata, a regra matriz de incidência tributária.

É na regra-matriz de incidência (tributária), norma geral e abstrata, que se enxerga a relação jurídica não-formalizada, notadamente em seu consequente, que possui notas conotativas indicativas do fato relacional a ser juridicizado.

Ato contínuo, o agente eleito pelo sistema para promover o processo de subsunção, aplicando a regra-matriz de incidência ao fato (ato de aplicação do direito), confere se dessa aplicação ocorre afinado enquadramento entre a norma geral e abstrata (regra-matriz) e fato jurídico declinado em linguagem competente, fazendo incidir a norma cuja consequência é a implicação da qual decorre o surgimento da relação jurídica tributária, que poderá ser formalizada em auto de lançamento (norma individual e concreta de competência da autoridade fiscal) ou em outra linguagem competente habilitada pelo sistema para constituição do crédito tributário pelo próprio sujeito passivo.

A partir destes enunciados do lançamento ou de outro suporte físico habilitado, poderemos enxergar o crédito tributário, consistente no direito subjetivo do sujeito ativo exigir o pagamento da quantia devida e a obrigação tributária ao qual o crédito está vinculado.

Em suma, concretiza-se o antecedente e individualiza-se o consequente, construindo uma norma individual e concreta a partir de uma norma geral e abstrata.

A norma individual e concreta (lançamento ou autolançamento) não finaliza o processo de positivação do direito tributário, o que ocorre, ordinariamente, com o pagamento da prestação pelo devedor tributário.

Neste ínterim, o processo judicial pode ter lugar, cronologicamente, antes mesmo da constituição da relação jurídica tributária por meio das ações preventivas ou após esta constituição com ações repressivas.

O processo judicial é um hiato no processo de positivação ordinário (CONRADO, 2003, p. 53), sem deixar de fazer parte deste, ao passo que configura importante elemento de verificação da regularidade deste processo em três momentos específicos: após o exercício da competência constitucional, após a constituição da obrigação tributária pelo lançamento ou autolançamento e a após a notificação do lançamento ou entrega do autolançamento.

Assim também ocorre com o processo administrativo tributário que, ao contrário dos processos judiciais, tem momento específico no processo de positivação, qual seja, após a notificação do lançamento ou entrega do autolançamento. (CONRADO, 2007, p. 101)

Quem melhor explica estes momentos, graficamente, é Paulo César Conrado que, esquematicamente, de forma simplificada, assim coloca:

1) competência constitucional ► impossibilidade de formação da processualidade.

2) exercício da competência constitucional ► possiblidade de processo judicial.

3) constituição da obrigação tributária ► possibilidade de processo judicial.

4) notificação do lançamento ou entrega do autolançamento ► possibilidade de processo judicial ou processo administrativo.

5) pagamento ► impossibilidade de processo judicial ou administrativo.

6) falta de pagamento (omissão) ► possibilidade de ação judicial por parte da Administração.

Observamos que o momento do exercício da impugnação administrativa, com consequente formação do processo administrativo é único, no momento 4 acima colocado, ao passo que o exercício do direito de impugnação judicial pode ser exercitado nos momentos 2, 3 e 4, resguardado o momento 6 para as ações de cobrança por parte da Fazenda.

2. MODULAÇÃO DE EFEITOS DAS DECISÕES DO STF EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

A modulação dos efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal em ações tributárias ganhou novamente a atenção da comunidade jurídica em razão do julgamento do RE nº 574.706, Tema 69 em Repercussão Geral, que tratou da Inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS.

Trata-se de uma excepcionalidade, na medida em que se reconhece, historicamente, desde o julgamento pela Suprema Corte americana de Marbury x Madson, que a norma inconstitucional é nula e como tal não deve produzir efeitos, pois nunca deveria ter existido (efeitos ex tunc da decisão de inconstitucionalidade), pois o teor da declaração de inconstitucionalidade tem caráter declaratório, limitando-se a reconhecer uma situação preexistente. (BARROS, 2012, p. 27)

Porém, algumas decisões tomadas pelos Tribunais da Áustria e da Alemanha, repercutidas pelo STF (RE 79343, Relator Ministro Leitão de Abre, Segunda Turma, julgado em 31/05/1977, DJ 02/09/1977; ADI 1.102, Relator Ministro Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, julgado em 05/10/1995, DJ 17/11/1995), vinham adotando a teoria da anulabilidade da norma constitucional, sob o fundamento de que a nulidade deve ser relativizada, pois as normas, ao adquirirem vigência no ordenamento, gozariam de presunção de validade, tornando a norma inconstitucional anulável, podendo manter seus efeitos até o momento da declaração da inconstitucionalidade ou outro momento a ser declarado pelo tribunal constitucional. (CONRADO, 2019, p. 103)

No Brasil, a lei nº 9.868/99, que dispôs sobre o processo e julgamento de ADI e ADC perante o Supremo Tribunal Federal, trouxe importante novidade, no art. 27, que será estudado em seguida, possibilitando expressamente a modulação dos efeitos das decisões em sede de controle concentrado de constitucionalidade.

2.1. Art. 27 da Lei nº 9.868/99

A Lei nº 9.868/99 em seu artigo 27 trouxe de forma expressa a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade para que só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado, conforme se observa:

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Cumpre pontuar que a hipótese trazida pelo art. 27 é de modulação temporal e exclusivamente em ações diretas de inconstitucionalidade.

Há, contudo, outras três hipóteses de modulação de efeitos das decisões do STF: a declaração de inconstitucionalidade em controle incidental; a declaração de constitucionalidade em abstrato; e a mudança da jurisprudência consolidada.

A despeito do artigo 27 da Lei nº 9.868/99 tratar apenas da questão temporal e de ações diretas de inconstitucionalidade, o STF tem optado por modular efeitos de decisões em declarações incidentais de inconstitucionalidade e em mudanças de orientação jurisprudencial, e não só sob o critério temporal.

Essas modulações, ora citam, por analogia o art. 27 da Lei nº 9.868/99 ora se arvoram de princípios impregnados de valores como a segurança jurídica, isonomia e eficiência. (BARROSO, 2012, p. 76)

É expressamente nos casos em que o Supremo Tribunal Federal opta por critérios não temporais que reside o objeto deste trabalho, notadamente quando em decisões de inconstitucionalidade a suprema corte, ao conferir eficácia ex nunc, ora resguarda dos efeitos das modulações apenas contribuintes que buscaram o Poder Judiciário em momento anterior à decisão do Supremo, ora resguardam também os contribuintes que antes de buscarem o Poder Judiciário ingressaram com impugnações exclusivamente na esfera administrativa, conforme se demonstrará abaixo.

2.2. Modulação de efeitos em matéria tributária e os julgamentos do STF (ADI 5.469 e RE 574.706)

Os julgamentos da ADI 5.469 e do RE 851.108 são exemplos em que o Supremo Tribunal Federal optou por modular os efeitos da decisão de inconstitucionalidade.

No julgamento da ADI 5.469 discutiu-se a Emenda Constitucional nº 87/2015 que instituiu a cobrança do ICMS em operações interestaduais entre não contribuinte (ICMS – DIFAL).

O Supremo Tribunal Federal julgou procedente a ADI por considerar a matéria tratada no Convênio ICMS nº 93/201, como matéria reservada exclusivamente à Lei Complementar e ao final julgou inconstitucionais as Cláusulas primeira, segunda, terceira, sexta e nona do Convênio ICMS nº 93/2015.

A Corte modulou os efeitos da decisão, sob o critério temporal em dois momentos: a partir da concessão da medida cautelar, quanto à cláusula nona e a partir do exercício financeiro seguinte (2022), quanto às cláusulas primeira, segunda, terceira e sexta, ressalvando da modulação dos efeitos as ações judiciais em curso, senão vejamos:

“11. Modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade das cláusulas primeira, segunda, terceira, sexta e nona do convênio questionado, para que a decisão produza efeitos, quanto à cláusula nona, desde a data da concessão da medida cautelar nos autos da ADI nº 5.464/DF e, quanto às cláusulas primeira, segunda, terceira e sexta, a partir do exercício financeiro seguinte à conclusão deste presente julgamento (2022), aplicando-se a mesma solução em relação às respectivas leis dos estados e do Distrito Federal, para as quais a decisão deverá produzir efeitos a partir do exercício financeiro seguinte à conclusão deste julgamento (2022), exceto no que diz respeito às normas legais que versarem sobre a cláusula nona do Convênio ICMS nº 93/15, cujos efeitos deverão retroagir à data da concessão da medida cautelar nos autos da ADI nº 5.464/DF. Ficam ressalvadas da modulação as ações judiciais em curso.” (grifamos)

O mesmo ocorreu na Ação Direta nº 4.628, de relatoria do ministro Luiz Fux, que ao julgar a inconstitucionalidade do Protocolo ICMS nº 21/2011, modulou os efeitos a partir do deferimento da concessão da medida liminar, ressalvando as ações já ajuizadas:

5. O ICMS incidente na aquisição decorrente de operação interestadual e por meio não presencial (internet, telemarketing, showroom) por consumidor final não contribuinte do tributo não pode ter regime jurídico fixado por Estados-membros não favorecidos, sob pena de contrariar o arquétipo constitucional delineado pelos arts. 155, § 2º, inciso VII, b, e 150, IV e V, da CRFB/88. (...)

10. Os Estados membros, diante de um cenário que lhes seja desfavorável, não detém competência constitucional para instituir novas regras de cobrança de ICMS, em confronto com a repartição constitucional estabelecida.(...)

12. A Constituição, diversamente do que fora estabelecido no Protocolo ICMS nº 21/2011, dispõe categoricamente que a aplicação da alíquota interestadual só tem lugar quando o consumidor final localizado em outro Estado for contribuinte do imposto, a teor do art. 155, § 2º, inciso VII, alínea g, da CRFB/88. É dizer: outorga-se ao Estado de origem, via de regra, a cobrança da exação nas operações interestaduais, excetuando os casos em que as operações envolverem combustíveis e lubrificantes que ficarão a cargo do Estado de destino.

13. Os imperativos constitucionais relativos ao ICMS se impõem como instrumentos de preservação da higidez do pacto federativo, et pour cause, o fato de

tratar-se de imposto estadual não confere aos Estados membros a prerrogativa de instituir, sponte sua, novas regras para a cobrança do imposto, desconsiderando o altiplano constitucional.

14. O Pacto Federativo e a Separação de Poderes, erigidos como limites materiais pelo constituinte originário, restam ultrajados pelo Protocolo nº 21/2011, tanto sob o ângulo formal quanto material, ao criar um cenário de guerra fiscal difícil de ser equacionado, impondo ao Plenário desta Suprema Corte o dever de expungi-lo do ordenamento jurídico pátrio.

15. Ação direta de inconstitucionalidade julgada PROCEDENTE. Modulação dos efeitos a partir do deferimento da concessão da medida liminar, ressalvadas as ações já ajuizadas.

Outra não foi a solução encontrada pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar o RE 851.108, Tema nº 825, em Repercussão Geral, que decidiu sobre necessidade de edição, pelos Estados e Distrito Federal, de lei complementar, nos termos do art. 146, III, “a” da Constituição Federal, julgando inconstitucionais as leis estaduais até então editadas sem amparo da Lei Complementar:

9. Modulam-se os efeitos da decisão, atribuindo a eles eficácia ex nunc, a contar da publicação do acórdão em questão, ressalvando as ações judiciais pendentes de conclusão até o mesmo momento, nas quais se discuta (1) a qual estado o contribuinte deve efetuar o pagamento do ITCMD, considerando a ocorrência de bitributação; e (2) a validade da cobrança desse imposto, não tendo sido pago anteriormente. (grifamos)

Nesta decisão, o STF foi além, definindo os objetos das ações judiciais que ficariam abrangidas pela modulação temporal dos efeitos da decisão

A postura do STF, contudo, não foi a mesma em relação ao Tema 69 em Repercussão Geral, Julgado no RE 574.706, que tratou da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS.

Neste, após oposição de embargos declaratórios pela União, solicitando expressamente a modulação dos efeitos da decisão, o STF julgou por acolher em parte os embargos de declaração para modular os efeitos do julgado cuja produção haverá de se dar desde 15.3.2017 – data em que julgado o RE n. 574.706 e fixando a tese com repercussão geral “O ICMS não compõe a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da Cofins” –, ressalvando, neste caso, as ações judiciais protocolizadas e os processos administrativos pendentes até a data da sessão na qual proferido o julgamento, conforme voto da relatora, ministra Cármen Lúcia:

27. Pelo exposto, acolho, em parte, os presentes embargos de declaração, para modular os efeitos do julgado cuja produção haverá de se dar desde 15.3.2017 – data em que julgado este recurso extraordinário n. 574.706 e fixada a tese com repercussão geral “O ICMS não compõe a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da COFINS” -, ressalvadas as ações judiciais e administrativas protocoladas até a data da sessão em que proferido o julgamento de mérito. (grifos originais)

Chamamos atenção para o fato de o STF, neste caso, incluir na modulação dos efeitos as ações judiciais e administrativas protocolizadas até a data da sessão de julgamento.

Diante dessa divergência de posicionamento do STF ao modular efeitos em ações tributárias, cabem alguns questionamentos:

Há razão para esse entendimento diverso quanto a inclusão nas modulações, ora apenas de ações judiciais em trâmite, ora de ações judiciais e processos administrativos? Essa divergência de entendimento causa prejuízo aos jurisdicionados contribuintes? Há vício nessas decisões? Quais vícios?

Há algum instrumento processual apto a corrigir este vício?

CONCLUSÃO

É sabido que tanto os processos administrativos como as medidas cautelares (tutelas de urgência) são equiparados pelo Código Tributário Nacional como causas suspensivas da exigibilidade do crédito tributário.

A leitura das decisões do Supremo Tribunal Federal não permite identificar o motivo pelo qual a Corte tem essa divergência de entendimento, motivo pelo qual, igualmente, também não identificamos qualquer razão para a distinção de situações igualmente suspensivas da exigibilidade do crédito tributário, já respondendo negativamente à primeira questão formulada.

Essa divergência não é imune de consequências, pois, aqueles contribuintes que tiverem optado por discutirem suas demandas exclusivamente na esfera administrativa, observando a postura do STF, certamente procurarão resguardar-se de eventuais modulações, levando suas causas precocemente ao Poder Judiciário, mesmo estando com a exigibilidade dos créditos tributários suspensa, nos termos do art. 151, inciso III do CTN, gerando efeito nefasto de milhares de judicializações, eventualmente desnecessárias caso os processos administrativos tivessem sua eficácia suspensiva do crédito tributário igualmente prestigiada pelo STF.

É a conclusão a que chegou a jornalista Bárbara Mengardo, em artigo no qual exemplifica o caso do RE 1.063.187, em que a PGFN, nos embargos de declaração, informou que

tramitam no Brasil 10 mil processos sobre o tema e que total, 1.800 foram ajuizados após a inclusão em pauta do RE além de que dentro deste universo, 1.300 casos foram propostos no período em que o caso estava em análise no plenário virtual, entre 17 e 24 de setembro de 2021. (MENGARDO, 2021)

Veja-se, prevalecendo o entendimento de ressalva da modulação dos efeitos exclusivamente aos contribuintes que se valeram de ações judiciais propostas em momento anterior aos julgamento, duas importantes consequências negativas serão observadas: a primeira, a já citada corrida ao Poder Judiciário, que ocasionará aumento de demanda ao Poder já sobrecarregado e com custos maiores aos contribuintes; a segunda, e iníqua situação de contribuintes com suspensão da exigibilidade do crédito garantida pela discussão administrativa sendo prejudicados por decisões do SFF com modulação de efeitos, enquanto contribuintes que apenas ingressam com ações judiciais, que não tem a suspensão da exigibilidade automaticamente concedida, sendo favorecidos pelas mesmas decisões do STF com modulação de efeitos.

É evidente o desprestígio da jurisdição administrativa, mais rápida, mais econômica e tecnicamente qualificada em detrimento da judicial, mais lenta e custosa aos contribuintes e ao Estado.

Resta responder se a iniquidade gerada pela diferença de tratamento nas modulações de efeito gera algum vício naquelas decisões.

O artigo 26 da Lei nº 9.868/99 determina a irrecorribilidade das decisões em sede de controle concreto de inconstitucionalidade, mas ressalva a possiblidade de embargos declaratórios.

O dispositivo do art. 1.022 do Código de Processo Civil de 2015 é claro ao permitir os embargos declaratórios de qualquer decisão judicial, abrangendo, portanto, aquelas proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, de natureza tributário, que modulam seus efeitos.

Todavia, como sabido, para cabimento dos embargos declaratórios, é preciso a demonstração de uma das hipóteses de cabimento dos incisos a III do art. 1.022 do CPC/15: obscuridade, contradição, omissão de ponto ou questão sobre o qual devia se pronunciar o juiz de ofício ou a requerimento e erro material.

A obscuridade, conforme ensina Marcelo Augusto da Silveira, é a falta de clareza da decisão, que se apresenta como de difícil entendimento, enigmática, com fundamentação desconexa, raciocínio confuso, ou conclusão hermética. (SILVEIRA, 2020, p. 670)

A contradição, segundo o mesmo autor, ocorre quando há proposições inconciliáveis entre si, o que prejudica, inclusive o interesse recursal.

Não nos parece que a situação do STF deixar de incluir na modulação de efeitos os processos administrativos em curso seja causa de obscuridade ou contradição.

Já a omissão ocorre quando o julgador não analisa questões que estão submetidas pelas partes ao seu exame no processo ou, nos termos do art. 1.022, inciso II, in fine, cognoscíveis de ofício.

É o que entendemos ser a hipótese de cabimento dos embargos de declaração, ao passo que ao deixar de prever na modulação os processos administrativos em trâmite, estaria o STF se omitindo em abranger situação de suspensão de exigibilidade do crédito tributário, com o mesmo efeito de interrupção do ciclo de positivação do crédito tributário, com as consequências jurídicas de políticas já mencionadas, o que nos leva a crer que deveria, inclusive, conhecer de ofício desta questão.

Por todo o exposto, concluímos que há vício de omissão quando o STF deixa de incluir na modulação dos efeitos de suas decisões em matéria tributária os processos administrativos, incluindo apenas os processos judiciais em trâmite, gerando evidente iniquidade, e tal omissão pode ser objeto de embargos de declaração com previsão no art. 1.022, inciso II do Código de Processo Civil.

Com tal postura, prestigia-se o processo administrativo, reconhecidamente um processo tecnicamente qualificado, célere e menos dispendioso ao Estado e aos contribuintes.

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XAVIER, Alberto. Princípios do Processo Administrativo e Judicial Rio de Janeiro: Forense, 2005.

Palavras-chave

DANO TEMPORAL A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS FORNECEDORES DE PRODUTOS E SERVIÇOS PELA PERDA DO TEMPO ÚTIL DO CONSUMIDOR

Responsabilidade. Dano. Tempo. Perda do Tempo Útil. Desvio Produtivo.

Samuel Marxan Basani

Bacharel em Direito. Auxiliar Jurídico.

Thiago Munaro Garcia

Doutor em Direito. Advogado. Professor.

Resumo

Esse trabalho tem por objetivo dissertar sobre o dano temporal nas relações de consumo, aplicado a teoria do desvio produtivo do consumidor. Será dissertado sobre o dano temporal como espécie autônoma de tutela jurídica e a possibilidade da responsabilização dos fornecedores de produtos ou serviços pelo tempo perdido do consumidor. Será ressaltado que não basta uma boa prestação de serviço por parte do fornecedor, ou mesmo a venda de um produto qualidade. Ficará claro que o dever do fornecedor vai além da venda de um produto ou a prestação de um serviço, devendo este garantir um suporte pós-contratual de qualidade e em tempo hábil, otimizando o tempo do consumidor para resolução dos chamados “problemas de consumo”, sendo passível de responsabilização o fornecedor que se omitir ou postergar esse atendimento. Por fim, uma vez tratado do dano temporal, analisaremos sua aplicabilidade com base jurisprudência brasileira, em quais casos poderá haver a responsabilidade civil do fornecedor pela perda do tempo do consumidor, concluindo que tal espécie de dano é totalmente aplicável no direito pátrio, ganhando cada vez mais força nas relações de consumo, que tem expandido consideravelmente

Foto: Fábio Cres

e das formas mais inovadoras possíveis, sendo esse tipo de dano merecedor de tutela autônoma.

1. INTRODUÇÃO

O tempo na atualidade tem se tornado cada vez mais escasso na sociedade. Muito se houve que vinte quatro horas não são mais suficientes para concluir todas as tarefas do dia, deixando, muitas das vezes, de se fazer algo planejado ou selecionando por nível de importância cada compromisso.

O desenvolvimento econômico e o aumento da tecnologia resultaram em pessoas cada vez mais ocupadas, buscando qualificação profissional, emprego, se habilitando em redes sociais, tendo, ainda, que conciliar sua vida pessoal dedicando-se à família, aos cuidados pessoais, mentais e ao lazer.

Essas e outras muitas atividades se voltam a dispender de um atributo essencial, o tempo. Enquanto para muitos o tempo é dinheiro, esse trabalho objetiva demonstrar que tempo é direito. Sendo direito, deve ser resguardado e tutelado para que não haja abusos por parte de terceiros que venham a intervir de forma negativa na vida cotidiana.

Por meio da revisão de literatura e análise de decisões judiciais, será dissertado sobre o tempo como parte dos direitos da personalidade, a sua autonomia frente aos demais danos.

Será demonstrado que a tutela do tempo não pode mais ser pautada na máxima do “mero aborrecimento”. Por isso, os fornecedores de produtos e serviços devem prestar um atendimento de qualidade em todas as fases contratuais, e, principalmente, em tempo hábil, deixando de se omitir em sua missão implícita de solucionar os chamados “problemas de consumo”.

Será enfatizado o tempo como um suporte implícito da vida, com um valor inestimável, irrecuperável, intransferível, que não pode ser acumulado nem recuperado ao longo da vida. Portanto, atividades essenciais não podem sofrer intervenções indesejadas, podendo resultar em prejuízo inevitável quando deslocado no tempo.

Em suma, esse trabalho demonstrará a missão do fornecedor em liberar o tempo e as competências do consumidor, dando-lhe, através do oferecimento de produtos e serviços de qualidade, condições de se dedicar àquelas atividades que conduzam à sua satisfação pessoal.

No presente trabalho, defende-se a autonomia do dano temporal em relação ao moral em razão da sua especificidade e valor jurídico que o tempo detém, ou seja, do valor do tempo em si mesmo considerado e não em virtude das consequências jurídicas econômicas ou morais decorrentes de sua violação.

Uma vez descumprindo essa missão e a lei, ficará evidenciado ser totalmente possível e devida a responsabilidade civil do fornecedor pela perda do tempo gerada, com a

reparação integral pelos danos causados, tanto para compensar o consumidor prejudicado, quanto para prevenir a reincidência dessa conduta lesiva.

2. O TEMPO COMO ESPÉCIE AUTÔNOMA DE TUTELA JURÍDICA

Definir “tempo” não é uma tarefa fácil, não se trata, apenas, em contar horas, minutos e segundos. Alguns minutos podem ser “infinitos”, enquanto algumas horas podem transcorrer em um “piscar de olhos”. A relatividade do tempo está na maneira como cada um o utiliza. Sendo assim, uma possível conceituação de tempo transpassa pela compreensão de cada um, pela expectativa criada por cada pessoa em seu próprio tempo.

O transcorrer de uma hora, um dia ou um mês não representa somente uma unidade de tempo, mas na própria vida o passar desse tempo. A vida segue junto com o tempo, coexistindo entre si, portanto, uma vez não vivida, não se pode retomar aquilo que se passou.

O conceito de tempo vem sendo estudado até hoje por diversos estudiosos da física, metafísica e matemática, assim como área das humanas e do direito, com o intuito de buscar um conceito e compreender o conceito de tempo, atributo tão precioso em nossa sociedade atualmente.

Na contemporaneidade, convivemos em mundo voltado à globalização. Os avanços tecnológicos atingem a todos, indistintamente. Na atualidade em que vivemos, o tempo aparece como um grande influente em tudo o que fazemos. A tecnologia, nas palavras de Gustavo Borges e Joana Just Vogel (2021, p. 83) “pode ser considerada a mola propulsora do tempo social dinâmico que compartilhamos contemporaneamente na complexa sociedade pós-moderna”.

Gustavo Borges e Maurilio Casas Maia afirmam que:

Em tempo algum o tempo foi considerado bem tão precioso. A velocidade das relações sociais, as distâncias físicas, a constante necessidade de aprimoramento profissional, tornou o tempo ainda mais valioso. Especialmente o tempo sob o qual o homem pode arbitrar como dispender livremente, sem qualquer cobrança externa. Esse tempo é raro e escasso, é necessário administrar cada momento no dia, da semana ou do mês, para que possa ao final desfrutar algum tempo livre, seja para lazer, trabalho ou convívio social. (Borges, Maia, 2019, p. 64)

No âmbito jurídico, é possível encontrar o tempo em diversos aspectos capazes de gerar impactos nas relações jurídicas, notadamente na aquisição, modificação ou extinção de direitos subjetivos. O tempo transpassa em todo o direito, como por exemplo, nos institutos jurídicos da prescrição,

decadência, da usucapião, no aspecto dos negócios jurídicos contratuais, no caso da condição ou termo, sendo, portanto, fundamental para este.

Na atualidade, o tempo, como bem jurídico relevante, é mais que dinheiro, significado, também, qualidade de vida, liberdade e dignidade:

A tendência de especificação dos danos extrapatrimoniais (dano estético, dano pela perda de uma chance, biológico etc.) e a crescente valoração jurídica do tempo na sociedade pós-moderna aumenta o interesse social na tutela autônoma do tempo humano (Borges, Vogel, 2021, pg.94)

É primordial a valorização do tempo, considerado pela doutrina umas das tendências do futuro. Os atos e fatos diversos da nossa vida cotidiana tornou o tempo algo valorado e precioso, e, quando desperdiçado, ocasiona danos e fissuras, pois, muitas das vezes, não se pode recompensá-lo, tornando-o perdido.

Razão disso, é o cenário da pós-modernidade em que vivemos. As mudanças políticas, sociais e econômicas no que se refere à sociedade de consumo e da informação, fizeram, o tempo dispendido por cada indivíduo, ocupar um papel de destaque no ordenamento jurídico. O tempo passou a ser valorizado de tal forma que chegou a um patamar de bem jurídico a ser tutelado, de modo que, uma vez violado, compõe o rol de danos ressarcíveis, com ênfase ao direito consumerista.

Para Bruno de Almeida Lewer Amorim:

A mudança de perspectiva, adveio da ideia de que o tempo deixou de ser considerado simplesmente um instrumento medidor da passagem de horas e dos dias, e tornou-se, mais do que tudo, um legítimo valor da pessoa humana, merecendo, portanto, a tutela jurisdicional. Isso, porque, sem a proteção ao tempo, a reverberação de grande parte dos direitos da pessoa humana é apenas teórica. A disponibilidade de tempo é tão importante quanto o direito em si que se pretende exercitar. Sem tempo não se estuda o que se quer estudar. Sem tempo não se descansa o quanto se quer descansar. (Borges, Vogel, 2021, p. 105 apud, Amorim, 2018, p. 69).

Perder tempo é sinônimo de frustação, significa deturpar o planejado, deixar de fazer algo. Sem dúvidas, a maior frustação experimentada pelo indivíduo é ter tolhido o seu direito de dispor de seu tempo por interferência de terceiro, algo ou alguém que contribua de forma negativa na quebra de um planejamento, da rotina. Fato é que o tempo não volta, pelo contrário, leva consigo um pouco da vida.

A Carta Magna assegurou diversos direitos: o direito à vida, a saúde, a educação, ao lazer e ao trabalho, todos com base no super princípio da dignidade humana. Assim como esses direitos, o desperdício do tempo produtivo traduz efetiva lesão ao direito fundamental social.

O Poder Legislativo Federal brasileiro tem tratado sobre o tema do dano em razão da perda do tempo. O Projeto de Lei nº 7.356/2014, de autoria deputado federal pelo Amazonas, Carlos Souza, tinha como objeto à inclusão de um artigo no Código de Defesa do Consumidor (CDC), a fim de que a perda do tempo fosse obrigatoriamente levada em conta quando da fixação da compensação por danos morais. Todavia, o projeto foi arquivado.

Ainda no Legislativo Federal, houve também o Projeto de Lei nº 5.521/16, de autoria de Rômulo Gouveia, o qual tinha como escopo inserir um parágrafo único no art. 6º do Código de Defesa do Consumidor, com a seguinte redação “a fixação do valor devido a título de danos morais levará em consideração, também, o tempo despendido pelo consumidor na defesa de seu direito e na busca de solução para controvérsia”.

Este projeto está apensado ao PL 582/2023, de autoria de Kim Kataguiri (União-SP), objetivando a alteração do Código de Defesa do Consumidor para “reconhecer o tempo como um direito existencial do consumidor e dispor sobre o dever de reparação integral do dano a ele provocado por ações ou omissões culposa do fornecedor”. Ambos os Projetos de Lei estão sujeitos à apreciação no Plenário.

A Assembleia Legislativa do Mato Grosso, através do deputado Guilherme Maluf, pretendeu categorizar o dano moral, em proposta realizada em 24 de maio de 2016 (Projeto de Lei nº 247/2016), arquivado desde 06/02/2019.

Em São Paulo, a Assembleia Legislativa (ALE-SP), possui também o projeto de Lei nº 304/2016, de autoria de Edmir Chedid, pretendendo conferir tratamento autônomo à lesão por dano temporal, o qual está em tramitação.

Por fim, tratando ainda do dano temporal no Legislativo, temos a Lei Federal nº 13.460/2017, que regula os direitos dos usuários da Administração Pública, dispondo, em seu art. 7º, §3º, inciso II que “além das informações descrita no §2º, a Carta de Serviços do Usuário deverá detalhar os compromissos e padrões de qualidade do atendimento relativo, no mínimo, aos seguintes aspectos: (...) II- previsão de espera do atendimento”, demonstrando uma preocupação com a tutela do tempo de quem utiliza do serviço público.

No âmbito do Poder Judiciário, os Tribunais também têm observado a repercussão da perda indevida do tempo no cotidiano do cidadão, com ênfase no Direito do Consumidor. Todavia, na maioria dos julgados, reconhece-se como

elemento do dano moral, não tratando o dano tempo enquanto categoria autônoma.

Para melhor compreender, cita-se algumas jurisprudências que confirmam tal tratamento:

APELAÇÃO CÍVEL. OBRIGAÇÃO DE FAZER. REABILITAÇÃO DA CARTEIRA DE HABILITAÇÃO. IMPEDIMENTO SISTÊMICO RELATADO PELO DETRAN DE OUTRA UNIDADE DA FEDERAÇÃO. INFORMAÇÕES E ORIENTAÇÕES MAL PRESTADAS PELO DETRAN LOCAL, PERDA DE TEMPO ÚLTIL E ABORRECIMENTOS. DANO MORAL CONFIGURADO. CONDENAÇÃO DE AUTARQUIA AO PAGAMENTO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS AO CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISAS DA DEFENSORIA PÚBLICA. NÃO CABIMENTO. As informações e orientações equivocadas prestadas ao administrado que pretende reabilitar sua Carteira Nacional de Habilitação, que causam a perda do tempo útil, frustações, aborrecimentos e despesas ensejam a compensação e ressarcimento pelos danos morais e materiais causados (grifo meu). Violação do princípio que norteia a conduta da Administração Pública. Orientação do STJ que, no julgamento de recurso repetitivo, decidiu pelo não cabimento da condenação de honorários entre entidades integrantes da mesma estrutura político-administrativa maior. Recurso ao qual dá parcial provimento. (TJ-RJ - APL: 00214313820108190066 RJ 002143138.2010.8.19.0066, Rel. des. Rogerio de Oliveira Souza, j. 16/04/2013, 9ª Câmara Cível, p. 29/8/2013).

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DO CONSUMIDOR. CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO TELEFÔNICO. OFERTA DE SERVIÇO DE INTERNET. COBRANÇA Á MAIOR. ABUSIVIDADE CARACTERIZADA. DANO MORAL CONFIGURADO. PARCIAL REFORMA DA SENTENÇA. Se na petição inicial o demandante requerer o cumprimento da oferta veiculada pela concessionária para que a mesma forneça determinada quantidade de serviço a certo preço, não pode a parte, em sede de recurso pretender a reforma da sentença para modificar os limites que estabeleceu na exordial, sob pena de violação do princípio da congruência. Evidente abuso perpetrado pelo fornecedor do serviço que enseja a restituição dos valores pagos e a compensação pelos danos morais sofridos. Descumprimento dos serviços que gera perda do tempo útil, frustrações e chateações que poderiam ser evitadas com boa vontade e a devida informações sobre a quantidade de dados que disponibilizava ao usuário e o preço correspondente (grifo meu). Parcial provimento ao recurso.

(TJ-RJ. APL n. 0023805-56.2012.8.19.0066, Rel. Des. Rogerio de Oliveira Souza, j. 16/04/2013, 9ª Câmara Cível, p. 6/5/2013).

Portanto, apesar de o dano temporal ainda estar atrelado como espécie de dano moral, é evidente que o tema do dano em razão da perda de tempo é uma pauta presente e atual em nossos Tribunais.

No juízo de primeiro grau, destaca-se a sentença proferida da Comarca de Jales-SP, do magistrado Fernando Antônio de Lima. Em pesquisa, constatou-se que se trata da primeira sentença a dar tratamento autônomo a lesão temporal, dispondo:

O tempo tem que ver com liberdade, convivência familiar, afeto, disponibilidade para o trabalho, para o lazer, estudos. Constitui elemento indispensável à formação da psique humana. [...] Além de escasso, o tempo ostenta estas outras características: a) intangibilidade: não é passível de ser tocado; b) ininterrompibilidade: não pode ser parado; c) irreversibilidade: não pode ser revertido; d) irrecuperabilidade. Assim, diferentemente dos bens materiais, o tempo não pode ser acumulado nem recuperado durante uma vida humana. Em razão dessas características (escassez, inacumulabilidade, irrecuperabilidade), o tempo se revela um bem primordial, tão ou quão valioso quanto a saúde física e mental [...] o direito de reparação pelo tempo perdido se insere na proteção alargada da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, inciso III), da liberdade (de dispor de seu tempo livremente) (CF, art. 5º caput), do direito fundamental à convivências familiar, do direito social ao lazer, à saúde, ao trabalho (CF, art. 7º, caput). [...]. Já, quando em jogo o desperdício do tempo produtivo, o consumidor é violado na sua essência imutável, de carregar consigo a possibilidade de sentir e viver as mudanças da vida, as mudanças da vida que só o desfrute do tempo poderá propiciar-lhe. É por isso que, ao contrário do que se passa na reparação dos danos morais, a reparação pelo desperdício de tempo produtivo envolverá, sempre, a conjugação de vários direitos indevidamente violados: liberdade, trabalho, lazer, às vezes saúde, convivência familiar, estudos. Assim, enquanto na reparação dos danos moras a violação de vários direitos da personalidade é contingente, pode ou não ocorrer, na reparação pelo tempo desperdiçado, ao contrário, é imanente, pois sempre envolverá o menoscabo a vários direitos da personalidade. (SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. Consulta Processual. Sentença nº 000580443.2014.8.26.0297. Autor: Ivair Antonio Vazon. Réu: Banco Santander S.A. Juiz prolator decisão: Fernando Antonio de Lima. SP, 28 de agosto de 2014).

Na Bahia, a I Jornada dos Juízes do Sistema de Juizados Especiais (2015), aprovou o enunciado nº 9, com a seguinte redação:

9. A excessiva e comprovada espera por atendimento em fila de banco, em manifesto abuso de direito, causadora de dano material ou moral, poderá ensejar a responsabilidade civil do estabelecimento bancário, sem prejuízo de eventual imposição administrativa correspondente. (disponível em: https://www.tjba. jus.br/portal/i-jornada-dos-juizes-do-sistema-de-juizados-especiais-divulga-enunciados-aprovados/. Acesso em 15/04/2024).

Na seara trabalhista, percebe-se que gradualmente o tempo vem sendo resguardado. A limitação de jornada trazida pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) não pode ser entendida apenas como garantidora de descanso e lazer. A subtração reincidente do tempo do empregado, por mais ínfimo que seja, além do contratado, sem remuneração, representa violação aos direitos fundamentais.

Mesmo que o empregado não esteja desenvolvendo qualquer atividade relacionado ao labor, se estiver impedindo de dispor livremente do seu tempo em decorrência relacionadas ao emprego, possivelmente experimentará dano temporal, fazendo jus à indenização.

Ainda, com relação aos fundamentos jurídicos da tutela do tempo, há diversas justificativas reforçadoras para reparação do dano temporal, tais como: a lesão, perda indevida do tempo, o tempo como suporte fático etc. É importante compreender que não há uma norma expressa e específica prevendo a reparação dos danos decorrentes da usurpação temporal.

Entretanto, em que pese a lesão ao tempo não seja tratada em apartado ao dano moral, é inequívoco que esta carrega consigo autonomia, devendo ser tratada como uma tutela autônoma, um bem jurídico próprio, sem, necessariamente, estar adstrito ao dano moral.

O dano temporal objetiva ressarcir o tempo perdido, pelo fato de ser escasso, sedo justo que ele seja protegido juridicamente.

É fato e inequívoca a necessidade do reconhecimento da categoria autônoma do dano temporal por ser um ato lesivo atingindo, diretamente, ao tempo de vida do indivíduo, garantindo que este não fique dependente de uma interpretação genérica ou analógica de seu tempo que é infungível, irrecuperável, significando vida, sendo imprevisível quando esta terminará.

Diversos são os argumentos utilizados para defender a autonomia do dano temporal.

O primeiro deles é a diferença entre o dano moral em sentido amplo e o dano moral em sentido estrito, diferenciação crucial para a compreensão da sua autonomia em relação ao dano temporal.

O dano moral em sentido amplo é aquele que atinge um dos direitos da personalidade humana, podendo ser de liberdade, a privacidade, a imagem, o nome, dentre outros. Enquanto no dano moral em sentido estrito, causa uma lesão à integridade psicofísica da pessoa, estando geralmente ligado a sentimentos negativos.

Nessa linha de raciocínio, é possível chegar no primeiro argumento que comprova a autonomia do dano temporal em relação ao dano moral. Isso porque, conforme explicado, o dano moral stricto sensu atinge a integridade psicofísica, diferentemente do dano temporal que diz respeito, única e exclusivamente, à usurpação do tempo do indivíduo, em si mesmo considerado.

Uma vez reconhecido, no ordenamento jurídico nacional, o dano estético como uma categoria autônoma de dano, assim como a sua cumulabilidade com outras espécies de danos conforme súmula 387 do Superior do Tribunal de Justiça, pode-se concluir que a conceituação adotada no ordenamento jurídico brasileiro está associada a dor psicológica, ou seja, ao seu sentido estrito.

Essa conceituação de dano moral trazida pelo STJ – ligada à dor psicológica – possibilita a abertura de outras formas de dano suportadas pelo ser humano. Nesse raciocínio, chega-se à conclusão de que o dano temporal é autônomo, distinto dos danos morais de cunho psicológico, e uma vez não se enquadrando dentro desta categoria, pode ser a ela acrescido para fins de reparação de dano extrapatrimonial. Borges e Maia confirmam tal possibilidade de cumulação:

Na mesma esteira interpretativa, o dano temporal poderá ser cumulado com outras categorias de dano extrapatrimonial decorrentes do mesmo evento lesivo, quando as consequências atingirem múltiplos bens jurídicos (ex: tempo, moral-psique, patrimônio, chance etc.). Ou seja, se um mesmo evento lesivo causar dano temporal, patrimonial e/ou moral-psicológico, nada impede a cumulação de pleitos compensatórios em nome do princípio da reparação integral dos danos suportados pela dignidade de integridade humana. (BORGES, MAIA, 2019, p. 77).

Outro consistente argumento utilizado para defender a autonomia do dano temporal em relação ao dano moral, ainda atrelado à ideia já explanada de dano moral em sentido amplo e em sentido estrito, refere-se à desnecessidade de demonstrar a dor, o amargor, a ofensa direta à honra. Enquanto o dano moral está intrinsecamente vinculado à ideia de

sofrimento e dor, no dano temporal as referidas consequência não serão necessariamente desencadeadas e vinculadas.

Outro importante argumento apto a defender a autonomia do dano temporal diz respeito à desnecessidade (por vezes impossibilidade) de provar o dano decorrente da usurpação indevida do tempo, ou seja, a dispensabilidade de se fazer prova da atividade que teria sido realizada no período não produtivo, bem como a prova do dano.

Entende-se que, uma vez ocorrido o dano temporal, não é necessário comprovar quais atividades vinculadas aos direitos da personalidade deixaram de ser realizadas para sua configuração. Isso se dá pelo fato de ser irrelevante à caracterização do dano temporal, a natureza jurídica do dano efetivamente causada ao indivíduo. Este – o dano – pode ser patrimonial, como por exemplo, no caso em que o indivíduo deixou de trabalhar, como também pode ser moral, quando não pôde aproveitar parte de seu tempo para um lazer. Em ambos os casos, o dano é presumido.

De fato, o dano temporal tutela o tempo em seu sentido literal. Essa proteção resguarda os lapsos de tempo indevidamente subtraídos da vítima, que deixou de praticar qualquer atividade decorrente de seu poder de autodeterminação, detentora de seu próprio tempo, sendo irrelevante a forma como este é utilizado. O tempo dedicado ao trabalho é tão importante quanto o utilizado para à família, ao lazer, ao descanso. Não há motivos para valoração diferente do tempo destes.

Pelo já exposto, constata-se que existem inúmeras diferenças entre o dano moral e o dano temporal, de modo que não há como colocá-los na mesma categoria, sob pena de dar ao tempo um valor inferior ao que de fato ele possui.

Diante de todas as considerações sobre a autonomia do dano temporal, conclui-se, primeiramente, que o tempo, atualmente, constitui recurso produtivo basilar do indivíduo, o principal atributo garantidor da dignidade humana, e que, por si só e em si mesmo, detém inquestionável e imensurável valor jurídico.

Segundamente, verifica-se que o conceito de dano moral adotado atualmente pelo ordenamento jurídico brasileiro está intrinsicamente ligado a dor psicológica e a sentimentos negativos, sendo, portanto, utilizado o conceito do dano moral em strictu sensu Partindo dessa consolidação do conceito, possibilitou a caracterização do dano estético como uma categoria autônoma de dano, assim como a possibilidade de sua cumulação com outros danos, por forçada Súmula 387 do STJ.

Em terceiro lugar, é fato a existência, no ordenamento jurídico pátrio, de outras categorias de danos, dissociada dos danos morais e materiais, uma vez que o dano moral ofende a

honra, as questões psicológicas do indivíduo e o dano material guarda vínculo patrimonial. Sendo assim, essa terceira categoria, portanto, abarca outras espécies de danos já reconhecidos pelo ordenamento jurídico, tais como o dano estético, o dano pela perda uma chance, e a mais nova espécie de dano, o dano temporal.

No mais, o dano temporal diferencia-se da categoria de dano moral, uma vez que enquanto este atinge a honra e está relacionar à ideia de dor, sofrimento e angústia, aquele objetiva ressarcir tão somente a usurpação do tempo do indivíduo, em si mesmo considerado, de modo que não há como enquadrá-lo em uma mesma categoria.

Ainda, o princípio da reparação integral dos danos defende a reparação devida à vítima, devendo ser a mais abrangente possível, ressarcindo todos os danos eventualmente causados. Sendo assim, é mais do que possível verificar danos de cunho moral e temporal, ambos haverão de ser indenizados.

Reforçando a autonomia do dano temporal, é imprescindível ressaltar que esta não carrega a necessidade de caracterização da dor, do amargor, da ofensa à honra ou qualquer consequência econômica, além da desnecessidade (leia-se também inviabilidade), de provar o dano decorrido da violação indevida do tempo, ou seja, a prova de que aquela atividade teria sido realizada no período improdutivo.

Por derradeiro, diante de todos os argumentos apresentados, não resta dúvidas de que o dano temporal é merecedor de enquadramento autônomo em relação aos demais danos, até porque, uma vez equiparado ao dano moral, corre-se o risco de valorar o tempo de modo inferior ao de que de fato, por si só, possui, pois este é o suporte indissociável para o exercício e à manifestação dos direitos personalíssimos do ser humano.

3. A RESPONSABILIDADE CIVIL PELO TEMPO PERDIDO DO CONSUMIDOR

Como já visto, em uma sociedade onde as relações são cada vez mais rápidas e impessoais, o valor “tempo” assume uma notável relevância. Retomando, muitas das vezes, o consumidor é obrigado a dispender de seu tempo disponível para solucionar problemas de consumo cuja obrigação é do fornecedor.

A questão em si não é distribuir todo ônus ao fornecedor –apesar de sua missão implícita em solucionar os problemas de consumo –. Algumas vezes, o dispêndio do tempo é desejado ou tolerado pelo consumidor, não havendo maiores problemas quanto a isso. O problema surge, todavia, quando esse deslocamento de tempo ocorre por falhas na prestação de serviços, defeitos reiterados em produtos ou da mera desídia do fornecedor em resolver um problema.

Nesses casos, o desvio de tempo do consumidor ocorre injustificadamente, sem a sua anuência ou tolerância. Sendo assim, o elemento marcante das situações de desperdício indevido do tempo do consumidor é a ausência do elemento volitivo. O consumidor poderia desempenhar outras atividades cotidianas e importantes da vida, porém é forçado a utilizar o seu tempo para resolver problemas causados pelos fornecedores, muitas das vezes, de ordem reiterada e por mera vontade em não os solucionar, devendo, então, ser responsabilizado pelo evento danoso gerado.

Portanto, o fornecedor de produtos e serviços que subtrai o tempo produtivo do consumidor ao protelar a solução dos problemas causados pela má-prestação de serviços, e consequentemente, pelo mau atendimento, deve sofrer sanções de modo a reparar integralmente o dano causado ao destinatário final de seu fornecimento.

O menosprezo ao tempo do consumidor não pode ser considerado apenas um “aborrecimento tolerável”. O pedido de reparação pelo tempo indevidamente perdido não constitui uma “litigância temerária”, mais sim o resultado de uma conduta abusiva e planejada de desobediência aos padrões de qualidade impostos pela legislação, como manobra para obtenção de lucros e resultados as custas da fragilidade do consumidor.

Atitudes como falhas contínuas do sistema, a falta de fiscalização e as enormes dificuldades impostas ao consumidor para a efetividade do seu direito tornam, os “pequenos danos”, grandes ganhos para os fornecedores, não podendo o Poder Judiciário compactuar com tais condutas ilícitas.

Se o consumidor foi menosprezado, desrespeitado, se teve a sua expectativa de bom atendimento frustrada e o fornecedor poderia ter evitado o dano implementando mecanismos para garantir a segurança e a agilidade no atendimento, mas optou por incorreu no desrespeito às normas legais, é imputável a sua responsabilidade pelo prejuízo resultante do tempo indevidamente perdido.

Por outro lado, se o fornecedor demonstrar a incidência de uma das excludentes de responsabilidade previstas no art. 12, par. 3º, e 14, par. 3º, do CDC, ficará isento de responsabilidade. O caso em que tenha havido um atraso não previsto no cumprimento da solicitação do consumidor, não por falta de diligência ou de atenção do fornecedor à pontual demanda, ou se não havia outra conduta possível para o fornecedor no caso concreto, ficando comprovada à inexistência de mecanismos para aprimorar o atendimento naquela circunstância, não restará caracterizada a falha do fornecedor.

Cita-se, como exemplo, episódios de desastres naturais ou outras catástrofes, deslizamentos, enchentes, situações em que o atraso da prestação é inevitável, havendo exclusão de

responsabilidade por inexigibilidade de conduta diversa do fornecedor.

Nesse compasso, pouco a pouco a jurisprudência tem se formado em prol da garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho – tal como dispõe o art. 4º, II, d, do CDC –. Essa formação jurisprudencial a respeito do tema não é apenas para quantificar “o tempo do consumidor”, mas na programação, no planejamento, no controle exercido pelos fornecedores que permite não cumprir com os seus deveres de boa-fé de prevenir, cooperar e reparar os danos causados aos consumidores. É necessário superar a cultura do menosprezo e da desconsideração do tempo do outro, estabelecer o respeito pelos interesses dos consumidores vulneráveis nos mercados por meio da evolução das práticas comerciais.

Feitas tais considerações, diante de todo o contexto exposto a respeito da tutela do tempo e a teoria do desvio produtivo do consumidor, faz-se importante analisar em quais casos a jurisprudência brasileira tem aplicado tal espécie de dano. Apesar da evidência da necessidade de proteger a tutela ao tempo, o tema é relativamente novo, palco de muitos debates entre os juristas.

Mesmo assim, a jurisprudência tem reconhecido a responsabilidade civil pela perda do tempo do consumidor em alguns casos, os quais serão expostos para reforçar a relevância do tema, enquanto não existe, ainda, lei específica para consolidar o que já é reconhecido pela doutrina e pelos tribunais brasileiros.

3.1. Análise de sua aplicabilidade com base na jurisprudência brasileira

São inúmeras as situações do cotidiano que podem nos remeter a sensação de perda do tempo: o tempo em que ficamos “engarrafados” no trânsito, o tempo no atendimento para cancelamento de um cartão de crédito, a espera em filas de banco ou consultórios médicos, odontológicos etc. Essas e outras diversas situações, desde que não haja abusos, há de ser toleradas, uma vez que se pautam em situações rotineiras, vivenciadas no cotidiano.

Todavia, a realidade é outra. O que se vê são imbróglios vivenciados pelos consumidores geradores de situações desagradáveis, ultrapassando o limite de tolerância daquilo que seria rotineiro. Diante disso, os tribunais pátrios passaram a pautar, através de muitos julgados, situações que podem gerar efetivamente a “perda de tempo”.

A indenização pela perda do tempo livre trata de situações intoleráveis, em que há desídias e desrespeito aos consumidores, que muitas das vezes se veem obrigados a sair de sua rotina e dispender o tempo livre para resolver problemas

causados por atos ilícitos ou condutas abusivas dos fornecedores.

Por isso, faz-se necessário destacar alguns casos em que a jurisprudência reconheceu a responsabilidade civil dos fornecedores, com a efetiva indenização, configurando a perda do tempo do consumidor.

Inicialmente, destacam-se os seguintes casos, in verbs

APELAÇÃO CÍVEL. VÍCIO DO PRODUTO. RESISTÊNCIA INDEVIDA DA PARTE RÉ. OFENSA AOS DEVERES DE COLABORAÇÃO INERENTES À BOA FÉ OBJETIVA. DANO MORAL. DESVIO PRODUTIVO DO CONSUMIDOR. CONFIGURAÇÃO. RECUR -

SO PROVIDO. 1. A existência de vício do produto não gera, por si só, a ocorrência do dano moral. Todavia, se o fornecedor, tempestivamente, procurado pelo comprador, se nega a resolver o problema, impondo derradeira “via-crúcis” ao consumidor para ter restituído o montante que pagou, mormente quando se trata de bem de caráter essencial, como uma geladeira, fica configurado o dano moral em decorrência do desvio produtivo do consumidor, associado à indevida privação de bem de relevância essencial no cotidiano da requerente. 2. Resta caracterizado o desvio produtivo do consumidor, quando o consumidor, em decorrência do descumprimento dos deveres anexos de lealdade e cooperação impostos ao fornecedor, precisa desperdiçar o seu tempo e esforço de forma irrazoável, desviando-se de suas atribuições cotidianas para superar o ilícito praticado e ter assegurado o seu direito (grifo meu). 3. Recurso provido.

(TJMG - 00003032920188130395, Relator: DES. OTÁVIO PORTES, Data de Julgamento: 19/08/2019, Data de Publicação: 26/08/2019)

APELAÇÃO CÍVEL. ILEGITIMIDADE PASSIVA. PRELIMINAR REJEITADA. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. CELEBRAÇÃO DE CONTRATO DE FINANCIAMENTO. VEÍCULO JAMAIS ENTREGUE AO AUTOR. AUTOMÓVEL COM ANTERIOR ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM FAVOR DE OUTRA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. OFENSA AOS DEVERES DE BOA-FÉ E DE INFORMAÇÃO. FALHA NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. COMPROVAÇÃO. DANOS MORAIS. PERDA DO TEMPO ÚTIL DO CONSUMIDOR. INDENIZAÇÃO DEVIDA. QUANTUM. RAZOABILIDADE. JUROS E CORREÇÃO MONETÁRIA.

RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. TERMO INICIAL. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO NÃO PROVIDO.

[...]

- Embora consagrada a orientação de que o inadimplemento contratual não revela ocorrência de dano moral, a falha no serviço que provoca a perda considerável do tempo útil do consumidor enseja reparação por dano extrapatrimonial. (grifo meu)

(TJMG - 00294672620168130034, Relator: DES. JOSÉ MARCOS VIEIRA, Data de Julgamento: 29/04/2020, Data de Publicação: 29/05/2020)

“PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS - DIVERSAS RECLAMAÇÕES REALIZADAS PELA CONSUMIDORA - DANO MORAL CONFIGURADO - TEORIA DO DESVIO PRODUTIVO DO CONSUMIDOR - TRANSTORNO QUE ULTRAPASSA O MERO ABORRECIMENTO - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Os danos morais estão caracterizados na hipótese em que o consumidor se vê obrigado a empreender inúmeras diligências visando solucionar problema a que não deu causa, ocorrendo a perda de seu tempo útil (Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor)”. (grifo meu)

(TJSP - Apelação Cível / Serviços Profissionais1002222-52.2021.8.26.0562, Relator: DES. RENATO SARTORELLI, Data de Julgamento: 22/06/2021, Data de Publicação: 22/06/2021)

DIREITO DO CONSUMIDOR. FORNECIMENTO DE ÁGUA. DEMORA EXAGERADA NA RETIRADA DE HIDRÔMETRO. COBRANÇAS INDEVIDAS. TEORIA DO DESVIO PRODUTIVO DO CONSUMIDOR. DANO MORAL CONFIGURADO. APELAÇÃO CÍVEL. I –A teoria do desvio produtivo do consumidor visa à indenização pelos danos morais experimentados em decorrência do excessivo tempo na resolução de vício na prestação de serviço ou fornecimento de produto, visto que isso acarreta a aplicação do tempo do consumidor em desvio de sua vida produtiva. (grifo meu) II – A excessiva demora na retirada de hidrômetro com a consequente suspensão do fornecimento de água e a emissão de faturas após a solicitação de desligamento feita pelo consumidor acarreta-lhe danos morais, cujo valor da indenização deve ser arbitrado em atenção aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade. III – Apelação conhecida e provida.

(TJAM - Apelação Cível / Fornecimento de Água0660905-96.2021.8.04.0001, Relator: DES. NÉLIA

CAMINHA JORGE, Data de Julgamento: 16/12/2022, Data de Publicação: 16/12/2022)

No STJ, a Ministra Nacy Andrighi, em decisão proferida no REsp nº 1.737.412/SE, condenou como “intolerável e injusta” a perda do tempo útil do consumidor, decorrente do “desrespeito voluntário das garantias legais, com o nítido intuito de otimizar o lucro em prejuízo da qualidade do serviço.”

De acordo com a ministra, a violação aos deveres de qualidade do atendimento presencial, exigindo do consumidor tempo muito superior aos limites fixados pela legislação municipal pertinente “infringe valores essenciais da sociedade e possui, ao contrário do afirmado pelo acórdão recorrido, os atributos da gravidade e intolerabilidade, não configurando mera infringência à lei ou ao contrato”.

Incumbe destacar também o Decreto nº 11.034/2022 , que regulamenta a Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), estabelecendo diretrizes e normas do SAC (Serviços de Atendimento ao Consumidor) para as empresas, com a finalidade de que estas observem direitos básicos do consumidor a obtenção de informações adequadas e claras sobre os serviços contratados e de manter-se protegido contra práticas abusivas, com intuito de evitar o desperdício de tempo em que os consumidores tinham em infindáveis ligações para resolução de seus problemas ou consulta de algum serviço, que acabavam, muitas das vezes, ajuizando demandas no Judiciário com o intuito de terem seus diretos atendidos.

O respectivo decreto, em seu artigo 8º, determina que “o SAC obedecerá aos princípios da dignidade, boa-fé, transparência, eficiência, eficácia, celeridade e cordialidade”. Havendo descumprimento das determinações poderá acarretar as sanções previstas no Código de Defesa do Consumidor, assim como de outras advindas dos regulamentos dos órgãos reguladores.

No que concerne às robochamadas, ainda não há legislação que regulamente às práticas abusivas das empresas de telemarketing No entanto, existem alguns meios que visam combater tais práticas ativas, como a inclusão de números de consumidores em listas dos Procons dos Estados vedando às empresas que realizem ligações oferecendo produtos e serviços sob pena de multa. Essa prática é adotada em alguns Estados como São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul entre outros. Entretanto, essas medidas se limitam às empresas. Tais normas objetivam impedir ligações e mensagens telefônicas (SMS), assim como mensagens em redes sociais, restringindo ligações ou mensagens privadas ao consumidor em horários inapropriados ou sem sua autorização.

Além disso, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), incluiu o prefixo 0303 em ligações desse tipo feitas em

celulares, passando a ser um código obrigatório para o telemarketing ativo, ou seja, quando empresas ligam ou usam gravações para oferecer produtos e serviços, condição que excluem os bancos, instituições financeiras e filantrópicas. O objetivo dessa medida é ajudar o consumidor a identificar a origem de uma ligação, e assim, decidir por atendê-la ou não.

A Anatel aprovou também, no ano de 2014, a Resolução n. 632, que instituiu o Regulamento Geral de Direitos do Consumidor de Serviços de Telecomunicações – RGC, e trata em seu Título II, capítulo I, sobre os Direitos do consumidor que:

Art. 3º O Consumidor dos serviços abrangidos por este Regulamento tem direito, sem prejuízo do disposto na legislação aplicável e nos regulamentos específicos de cada serviço:

XVIII- ao não recebimento de mensagem de cunho publicitário em sua estação móvel, salvo consentimento prévio, livre e expresso;

Existe, ainda, o Programa Brasileiro de Autorregulamentação (PROBARE), uma iniciativa das três entidades representantes do mercado de relacionamento do país: ABEMD – Associação Brasileira de Marketing de Dados; ABRAREC – Associação Brasileira das Relações Empresa-Cliente; ABT – Associação Brasileira de Telesserviços, que mapeiam a necessidade de definições de parâmetros de autorregulamentação nesse segmento, com a missão de consolidar e melhorar o atendimento aos consumidores e aos clientes contratantes, abarcando os serviços de call center, contact center, help desk SAC e telemarketing Em seu Código de Ética constatada importantes dispositivos que tratam sobre o respeito à privacidade do consumidor, limitando a forma incisiva e demasiada das cobranças realizadas a estes, conforme artigo 7º do respectivo código.

No Código de Defesa do Consumidor também se consolidou normas que sancionam órgãos reguladores diante do abuso reiterado, em seus arts. 6º, IV, art. 42 e art. 71, in verbis:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor: [...] IV – a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços; Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto ao ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça. Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição de indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.

Art. 71. Utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com o seu trabalho, descanso ou lazer.

Pena: detenção de três meses a um ano e multa. (grifo meu)

No que tange às chamadas a jurisprudência leva em consideração vários fatores, tais como: horário, a quantidade e o teor das ligações, inclusive como o consumidor se sente em relação à tais práticas empresariais:

Direito processual civil e do consumidor. Apelação. Pedido desprovido de fundamento. Inovação recursal. Recurso conhecido em parte. Responsabilidade civil. Empresa de telefonia. Cobrança de fatura em atraso. Ligações excessivas que não respeitam horário de repouso, descanso e lazer do consumidor. Dano moral caracterizado.

[..]

(TJDF, Acórdão n. 1150906, 20160110769153APC, Relator: JAMES EDUARDO OLIVEIRA 4ª TURMA CÍVEL. Data de Julgamento: 23/01/2019, Publicado no DJE: 19/02/2019)

Apelação. Ligações excessivas de cobrança de débito inexistente realizadas durante o dia, tarde e noite, chegando a 19 ligações em um único dia. Ausência de contestação, apesar da requerida ter sido devidamente citada. Revelia. Aplicação do efeito de presunção de veracidade dos fatos alegados. Conduta abusiva configuradora de dano moral. Manutenção do valor arbitrado de R$ 7.000,00 com majoração de honorários advocatícios. Determinação de ofícios ao MP e Procon. Recurso não provido, com determinação.

(TJSP; Apelação Cível 1001230-75.2017.8.26.0257; Relator (a): Roberto Mac Cracken; Órgão Julgador: 22ª Câmara de Direito Privado; Foro de Ipuã – Vara Única; Data do Julgamento: 04/10/2018; Data de Registro: 04/10/2018)

Ação de obrigação de fazer c/c indenização por danos morais e pedido de tutela antecipada. Compra de linha telefônica. Instalação de número que anteriormente pertenceu a uma agência bancária. Negativa da Ré em realizar a alteração do número sem cobrança de tarifa. Ligações excessivas que causam perturbação ao sossego e transtornos de ordem moral. Dano moral caracterizado. Fixação de honorários advocatícios que deve se dar sobre o valor

da condenação. Sentença parcialmente reformada. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (TJSP; Apelação Cível 1123165-39.2015.8.26.0100; Relator (a): L. G Costa Wagner; Órgão Julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 34ª Vara Cível; Data do Julgamento: 11/04/2018; Data de Registro: 13/04/2018).

Direito do consumidor. Envio de mensagens e ligações telefônicas. Cobrança de dívida de terceiro. Pretensão condenatória em obrigação de não fazer, cumulada com compensatório de danos morais. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. APELAÇÃO CÍVEL INTERPOSTA PELA AUTORA. 1) No caso concreto, a Autoria alega ter recebido, por longo período, incessantes ligações telefônicas e mensagens de texto por parte da Ré, referentes a cobrança de dívida atribuídas a terceiro desconhecido. [...] 3) Este Tribunal de Justiça tem se posicionado no sentido de que o simples envio de mensagens de textos ou ligações direcionadas a terceira pessoa não tem o condão de configurar fano moral. 3.1) Nada obstante isso, há de ser considera à ocorrência de dano moral indenizável, caso as cobranças sejam realizadas de forma vexatória ou intimidatória, ou, ainda, em uma frequência extrema que pudesse causar violação ao sossego por parte de quem as recebe. [..]. 5) Dano moral devidamente configurado. Verba compensatória arbitrada em R$ 10.000,00 (dez mil reais), em atenção aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, bem como às particularidades do caso concreto, sem olvidar a natureza punitivo-pedagógica da condenação [...]

(TJ-RJ – APL: 00346087020158190203. Relator: Des(a). Werson Franco Pereira Rêgo, Data de Julgamento: 23/01/2019, Vigésima Quinta Câmara Cível)

Partindo da análise das normas e jurisprudência, conclui-se ser plenamente possível aplicar a teoria da perda do tempo livre, com pleito de indenização por danos morais, em decorrência de prática abusiva das empresas que se utiliza das robochamadas para realização de telemarketing.

Em continuidade, a aplicação da responsabilidade pela perda do tempo não se restringe as relações privadas. Os tribunais já reconheceram a responsabilidade civil do Estado pelo dano temporal causado ao administrado, o que faz importante destacar para fixar o alcance e a necessidade da proteção do tempo.

Antes de citar os respectivos julgados, relembra-se que a responsabilidade civil do Estado por ato ilícito possui expressa previsão constitucional, conforme art. 37, §6º, da CF, segundo a qual “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadora de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a

terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”

Não somente o referido dispositivo legal supracitado, como também, no caput do art. 37, destaca os princípios aos quais a administração pública deve seguir no desempenho de suas atividades, sendo um deles, o princípio da eficiência. Nesse sentido, o administrador público deve se preocupar com o atendimento de qualidade das demandas da coletividade.

Feita as considerações, o Poder Judiciário já teve a oportunidade de reconhecer a responsabilidade civil do Estado pela perda do tempo do administrado, conforme as seguintes ementas:

APELAÇÃO CÍVEL. ADMNISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. [...] 2) DANO MORAL POR PERDA DO TEMPO ÚTIL. NECESSIDADE DE UTILIZAÇÃO DO TRANSPORTE PÚBLICO E DE COMPARECIMENTO A TRINTA HORAS DE DESNECESSÁRIO CURSO DE RECICLAGEM (grifo meu). [...]4) RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (TJAM, Apelação Cível 0222481-02.2011.8.04.0001, Primeira Câmara Cível Rel. Des. Paulo Cesar Caminha e Lima, DJ 05/12/2014)

APELAÇÃO CÍVEL. OBRIGAÇÃO DE FAZER. REABILITAÇÃO DE CARTEIRA DE HABILITAÇÃO. IMPEDIMENTO SISTÊMICO RELATADO PELO DETRAN DE OUTRA UNIDADE DE FEDERAÇÃO. INFORMAÇÕES E ORIENTAÇÃO MAL PRESTADAS PELO DETRAN LOCAL. PERDA DO TEMPO ÚTIL E ABORRECIMENTOS. DANO MORAL CONFIGURADO (grifo meu). CONDENAÇÃO DE AUTARQUIA AO PAGAMENTO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS

AO CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISAS DA DEFENSORIA PÚBLICA. NÃO CABIMENTO. As informações e orientações equivocadas prestadas ao administrado que pretende reabilitar sua Carteira Nacional de Habilitação, que causam a perda do tempo útil, frustrações, aborrecimentos e despesas ensejam a compensação e ressarcimento pelos danos morais causados (grifo meu). [...]. Recurso ao qual se dá parcial provimento. (TJRJ, Apelação Cível 00214313829108190066. Nona Câmara Cível, Rel. Des. Rogério de Oliveira Souza, DJ 19/08/2013).

[...] CONSEQUÊNCIAS DE PROCESSO CRIMINAL COM TODOS OS CONSECTÁRIOS DO FATO DANOSO, COMO CONTRATAÇÃO DO ADVOGADO ALÉM DA PERDA DO TEMPO ÚTIL – FATO QUE ULTRAPASSA, EM MUITO, O NEFASTO E SUBJETIVO CONCEITO DE MERO ABORRECIMENTO (grifo meu). [...] (TJRJ, Apelação Cível

0013873-05.2015.8.19.0045, Vigésima Segunda Câmara Cível, Rel. Des. Marcelo Lima Buhatem, Julgado em 27/02/2018).

Em síntese, observa-se ser totalmente possível a aplicação da responsabilidade pelo tempo perdido não só nas relações entre consumidor e fornecedor, como também nas relações entre a Administração Pública e seus administrados que, pelo princípio da eficiência, deve, assim como os fornecedores de produtos e serviços, prestar um atendimento de qualidade, com urbanidade e em tempo hábil.

Superado o tema no âmbito do direito público, não se pode deixar de citar sobre a aplicabilidade do dano moral e do desvio produtivo do consumidor na área da saúde.

Não é novidade que o direito a saúde é uma garantia constitucional, sendo um direito fundamental de toda pessoa. Os arts. 6º, 23, II; 24, XII; 196, 198 e 199 da Carta Magna confirmam tal afirmação.

Mesmo existindo o Sistema Único de Saúde (SUS) à disposição para atendimento ao cidadão de forma gratuita, muitas pessoas buscam o sistema privado de saúde, fornecidos por empresas que operam planos ou seguros de saúde pois, embora essencial, o Estado ainda se apresenta ineficiente na entrega da saúde pública aos cidadãos, apresentando muitas falhas supridas pela saúde complementar, apesar de também não serem cem porcento eficientes na prestação dos seus serviços, apresentando diversas restrições, com negativas de variadas coberturas. Por isso, observa-se um crescente número de demandas nos tribunais pátrios que gerando diversos transtornos ao consumidor.

Sendo, predominantemente, o contrato de adesão que regula essa relação entre os consumidores e as instituições privadas de planos e seguros de saúde, o Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 47, parágrafos 3º e 4º, consigna que os contratos de adesão que forem escritos, serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, que permitam sua fácil compreensão pelo consumidor. Com base no art. 46 e 54, §4, do CDC, é possível decretar a ineficácia ou nulidade da cláusula desse tipo de contrato, em razão dos vícios de forma, verificáveis na pactuação do contrato, que indicam, presumidamente, não ter sido o consumidor suficientemente informado sobre sua presença no instrumento.

A Lei nº 9.961/00, com o intuito de regular e fiscalizar o sistema de saúde complementar, criou a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), vinculado ao Ministério da Justiça, cabendo-lhe também a finalidade punitiva, com aplicação de sanções aos desvios constatados. A ANS expede resoluções, portarias, instruções normativas, entre outras estruturas que deveriam objetivar o bom funcionamento do

mercado, acompanhando a saúde financeira das empresas que atuam no setor.

Entretanto, foram muitos os momentos em que incumbência de poder ultrapassaram os limites que não deveriam serem ultrapassados, em especial, acerca das previsões do CDC, o que culminou em debates judicializados buscando reformar ou anular certos atos administrativos. De qualquer forma, o papel da ANS é importante frente a sempre combalida saúde pública, que não alcança a todos, ou quando o faz, não atinge a qualidade esperada.

Diante de tais problemas concernentes aos contratos de assistência privada à saúde, a jurisprudência tem entendido ser totalmente viável a indenização por danos morais nesses casos. Em que pese nem todos os julgados citar diretamente o desvio produtivo do consumidor, é possível verificá-lo, por exemplo, nas ações praticadas pelas operadoras de saúde que ensejam a perda do tempo, postergando o atendimento à saúde do paciente, colocando-o em situação de risco, cominando na necessidade da recorribilidade ao Judiciário para garantia de seu direito. Veja-se:

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. PLANO DE SAÚDE. PROCEDIMENTO CIRÚRGICO. NEGATIVA DE COBERTUA. DESCONSTITUIÇÃO DA SENTENÇA. ART. 1.013, §3º, I, DO CPC. ENFRENTAMENTO DO MÉRITO. DANOS MORAIS. OCORRÊNCIA.

[...]

[...] IV. Embora a negativa de cobertura pelo plano de saúde possa caracterizar os danos morais, a questão deve ser examinada caso a caso. Nessa linha, são cabíveis no caso concreto, uma vez que a hipótese dos autos reflete o dano moral in re ipsa ou dano moral puro, tendo em vista que o aborrecimento, o transtorno e o incômodo causados pela requerida são presumidos, atingindo a autora em momento de induvidoso abalo psicológico, em razão da doença, o que confere direito à reparação sem a necessidade de produção de provas sobre a sua ocorrência (grifo meu). Aqui, inclusive, cabe mencionar que, conforme se depreende da ação ajuizada anteriormente, restou reconhecido na sentença que a conduta da operadora de plano de saúde impossibilitou a realização da cirurgia, tendo em vista a tentativa de fornecer material diverso do indicado pelo médico-assistente. Aliás, na demanda mencionada, foi deferida liminar para realização de procedimento cirúrgico. [...] APELAÇÃO PROVIDA. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. ~

(Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível nº 70070918180, Quinta Câmara Cível, Relator Des. Jorge André Pereira Gailhard, julgado em 26/04/2017).

Apelação – Plano de saúde – Paciente diagnosticada em 2010 com neoplastia maligna do quadrante superior externo da mama, e em 2014 com metástase hepática – Indicado ao caso tratamento de quimioterapia – Negativa de cobertura para os medicamentos, por não constarem na bula indicação para tratamento da doença indicada – Abusividade reconhecida – Contrato submetido às regras do Código de Defesa do Consumidor – Abusividade reconhecida – Contrato submetido às regras do Código de Defesa do Consumidor – Impossibilidade de exclusão de procedimentos, exames e medicamentos nacionais ou importados, necessários a critério médico – Aplicação das Súmulas nº 95 e 102, deste Egrégio Tribunal de Justiça – danos morais configurados – Recurso da autora provido, e não provido o recurso da parte ré.

(Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível nº 1000736-44.2016.8.26.0453, 1ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Augusto Rezende, julgado em 05.05.2017).

CONSUMIDOR. CONTRATO. PLANO DE SAÚDE. ATENDIMENTO HOME CARE. TRATAMENTO URGENTE. RECUSA INDEVIDA DE COBERTURA. DANOS MORAIS. QUANTUM INDENIZATÓRIO. MANUTENÇÃO. 1. Em caso de urgência, é obrigatória a cobertura do atendimento, independente de prazo de carência estabelecido. 2. A recusa da seguradora de plano de saúde em autorizar tratamento urgente gera danos morais indenizáveis. 3. O valor fixado a título de danos morais está apto para coibir a reiteração de prática de ato ilícito pela operadora de plano de saúde para compensar o sofrimento suportado pela autora em decorrência da recursa em autorizar o procedimento requerido pelo médico que a assiste (grifo meu). Recurso improvido.

(Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial nº 967.348/DF, 4ª Turma, Decisão Monocrática, Ministro Marco Buzzi, julgado em 06.04.2017.)

Apelação Cível. Relação de consumo. Ação indenizatória. A parte autora alega falha na prestação dos serviços em virtude do não processamento ou falta de repasse do pagamento da fatura do plano de saúde, emitida pelo Banco Bradesco, realizado em 04/03/2016, no valor de R$ 862,24, através do

terminal de caixa da agência nº 6008 do Banco Itaú, ora réu. Que contatou em 12/03/2016 a administradora do plano sendo informado que o título estava em aberto. Que compareceu na agência onde realizou o pagamento não obtendo êxito na solução do problema administrativamente, sendo orientado a procurar o banco credor (Banco Bradesco). Que após comparecer ao banco credor e não resolver a situação, solicitou a emissão da segunda via do boleto. Que conseguiu regularizar o crédito, após efetuar uma ligação telefônica ao banco credor. Sentença de procedência. Irresignação do réu. Responsabilidade objetiva O art. 14, §3º, do Código de Defesa do Consumidor, estabelece que é ônus do fornecedor provar que o serviço não é defeituoso, ou que a culpa pelo dano é exclusiva do consumidor ou de terceiro. Configuração de falha na prestação dos serviços. Infere-se evidente a frustração da legítima expectativa do consumidor, que ultrapassa o mero aborrecimento cotidiano, além de ter perdido o seu tempo livre em razão da conduta abusiva praticada pelo Réu, da qual resulta o dever de indenizar, com base na responsabilidade objetiva atrelada à teoria do risco do empreendimento. Perda do tempo livre do autor. Desvio produtivo do consumidor apto a configurar danos morais (grifo meu). Danos morais configurados. Quantum indenizatório fixado na sentença que observa os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Manutenção. Aplicação da Súmula 343 do TJRJ. NEGA-SE PROVIMENTO AO RECURSO. (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apelação Cível nº 000465515.2016.8.19.0207. Vigésima Quarta Câmara Cível. Relatora Desa. Ana Célia Montemor Soares; julgado em 26 de abril de 2017).

AÇÃO ORDINÁRIA – DANOS MORAIS E MATERIAIS – DIAGNÓSTICO TARDIO – MORTE DE PACIENTE – CABIMENTO. I – Genitores que pretendem ser ressarcidos por danos morais e materiais decorrente de falha estatal no diagnóstico de enfermidade gravíssima, que acabou acarretando a morte do paciente. II – Não é possível afirmar com absoluto juízo de certeza que o breve atendimento seria capaz de impedir o avanço da doença. A demora no atendimento, contudo, ensejou a impossibilidade da intervenção. Subtraindo, ilicitamente, a chance de obtenção de uma vantagem ou minoração do prejuízo. Caracterização da ‘perde d’une chance”, verificada nos casos em que o ato ilícito tira da vítima a oportunidade obter uma situação futura melhor, ou de, pelo menos vivenciar situação menos gravosa (grifo meu). III – Verba indenizatória que deve ser mantida (150 salários-mínimos) já que não se refere à

indenização pelo evento morte, sendo devida em razão da demora no correto tratamento. Pensão mensal devida, dada a presunção de que a jovem viria a ajudar no sustento do lar. Remessa necessária desprovida. Recurso dos autores parcialmente provido. (Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível nº 7144985000, 7ª Câmara de Direito Público, Relator Des. Nogueira Diefenthaler, julgado em 09.02.2009).

[...] Responsabilidade civil da administração de que trata o artigo 37, §6º, da CRFB, pois, como visto, houve desídia dos agentes municipais no que toca o pronto atendimento do autor. Presença do necessário nexo causal entre a conduta dos agentes municipais e os danos experimentados pelo paciente. Quantum moral fixado com prudência e razoabilidade (grifo meu). Manutenção do r. decisium hostilizado. Decisão proferida pelo relator que se mantém. Agravo conhecido e desprovido. (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apelação Cível nº 0225568-12.2012.8.19.0001).

Sendo assim, o tempo aguardado para autorização de consulta, exame, dentro outros atendimentos, se demorado, pode restar configurado a hipótese do desvio produtivo do consumidor com o consequente dispêndio desnecessário do tempo. Além disso, o entendimento doutrinário é no sentido de que, em casos de agravamento de patologia, perda da possibilidade e de cura, causando sofrimento intenso pelo prolongamento de certa doença, também se aplicaria a respectiva teoria.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho objetivou discorrer sobre a responsabilidade civil do fornecedor pela perda do tempo útil do consumidor.

Foi explorado sobre o dano temporal como espécie autônoma de tutela jurídica, considerando a sua importância na sociedade, sendo um elemento essencial da vida.

Foram apresentados alguns casos de sua aplicabilidade com base na jurisprudência brasileira, conjugado com normas cogentes que já remetem aos deveres dos fornecedores em suas relações com os consumidores, citando, inclusive, julgados em que foi reconhecida a responsabilidade do Estado diante da perda do tempo do administrado, reforçando a suma importância do tema.

Diante de toda contextualização acerca da dissertação, conclui-se que são inúmeras as situações que podem ensejar a indenização pela atitude ilícita do fornecedor ao gerar o esforço demasiado do consumidor para solucionar diversas questões atreladas a um produto ou serviço.

O fornecedor não pode se desvencilhar de sua missão implícita de resolver os problemas de consumo, garantindo a melhor forma para resolução destes, em tempo hábil acessível e de qualidade. Ainda, deve se preocupar com o atendimento em todas as fases contratuais, garantindo um suporte em casos defeitos ou vícios do serviço ou produto, dando subsídio ao consumidor.

O tempo não é mais o passar de dias, horas e minutos. É um atributo da vida, um elemento basilar do ser humano, garantidor de sua dignidade, detentor, em si mesmo, de inquestionável valor jurídico, valorizado e tutelado pelo direito, ultrapassando as linhas do “mero aborrecimento”, atingindo a sua autonomia de proteção, sem, necessariamente, se vincular a outros danos como apenas uma consequência moral.

Portanto, havendo abstenção do tempo por uma conduta negativa do fornecedor em cumprir com a sua missão implícita em garantir os direitos básicos do consumidor, gerando o desvio em atividades essenciais da vida, ou, até mesmo, no seu tempo de lazer, familiar ou de autocuidado, deverá haver a reparação integral do dano causado por esse imbróglio, sendo indiscutível a responsabilidade civil pela perda do tempo útil do consumidor.

REFERÊNCIAS

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BORGES, Gustavo, MAIA, Maurilio Casas. D ano temporal: o tempo como valor jurídico.2. ed. rev. e ampl. – São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019.

BORGES, Gustavo, VOGEL, JUST, Joana; apresentação Marcos Dessaune; prefácio Nelson Rosenvald; posfácio Maurílio Casas Maia; coordenador da coleção Maurílio Casas Maia. O dano temporal e a sua autonomia na responsabilidade civil . vol. 3, 1. Ed, São Paulo: D’Plácido, 2021.

Decreto nº 11.034/2022 . Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/decreto/d11034. htm. Acesso em 26/04/2024.

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TJDF, Acórdão n. 1150906, 20160110769153APC, Relator: JAMES EDUARDO OLIVEIRA 4ª TURMA CÍVEL. Data

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TJMG - 00003032920188130395 Relator: DES. OTÁVIO PORTES, Data de Julgamento: 19/08/2019, Data de Publicação: 26/08/2019. Disponível em: <https://www.bjuris.com.br/ plataforma> Acesso em: 23/04/2024.

TJMG - 00294672620168130034 Relator: DES. JOSÉ MARCOS VIEIRA, Data de Julgamento: 29/04/2020, Data de Publicação: 29/05/2020). Disponível em: <https://www. bjuris.com.br/plataforma> Acesso em: 23/04/2024.

TJ-RJ – APL: 00214313820108190066 RJ 002143138.2010.8.19.0066 Rel. des. Rogerio de Oliveira Souza, j. 16/04/2013, 9ª Câmara Cível, p. 29/8/2013. Disponível em: <https://www.bjuris.com.br/plataforma> Acesso em: 15/04/2024.

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TJ-RJ. APL n. 0023805-56.2012.8.19.0066 Rel. Des. Rogerio de Oliveira Souza, j. 16/04/2013, 9ª Câmara Cível, p. 6/5/2013. Disponível em: <https://www.bjuris.com.br/plataforma> Acesso em: 15/04/2024.

TJSP - Apelação Cível / Serviços Profissionais1002222-52.2021.8.26.0562 Relator: DES. RENATO SARTORELLI, Data de Julgamento: 22/06/2021 Data de Publicação: 22/06/2021. Disponível em: <https://www.bjuris. com.br/plataforma> Acesso em: 23/04/2024.

TJSP; Apelação Cível 1001230-75.2017.8.26.0257; Relator (a): Roberto Mac Cracken; Órgão Julgador: 22ª Câmara de Direito Privado; Foro de Ipuã – Vara Única; Data do Julgamento: 04/10/2018; Data de Registro: 04/10/2018. Disponível em: <https://www.bjuris.com.br/plataforma> Acesso em: 01/05/2024.

TJSP; Apelação Cível 1123165-39.2015.8.26.0100 ; Relator (a): L. G Costa Wagner; Órgão Julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 34ª Vara Cível; Data do

Julgamento: 11/04/2018; Data de Registro: 13/04/2018. Disponível em: <https://www.bjuris.com.br/plataforma> Acesso em: 01/05/2024.

Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível nº 7144985000 7ª Câmara de Direito Público, Relator Des. Nogueira Diefenthaler, julgado em 09.02.2009. Disponível em: <https://www.bjuris.com.br/plataforma> Acesso em: 06/05/2024.

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível nº 1000736-44.2016.8.26.0453, 1ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Augusto Rezende, julgado em 05.05.2017. Disponível em: <https://www.bjuris.com.br/plataforma> Acesso em: 05/05/2024.

Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apelação Cível nº 000465515.2016.8.19.0207. Vigésima Quarta Câmara Cível. Relatora Desa. Ana Célia Montemor Soares; julgado em 26 de abril de 2017. Disponível em: <https://www.bjuris.com. br/plataforma> Acesso em: 05/05/2024.

Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apelação Cível nº 0225568-12.2012.8.19.0001 Disponível em: <www.tjrj.jus. br>. Acesso em 06/05/2024

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível nº 70070918180, Quinta Câmara Cível, Relator Des. Jorge André Pereira Gailhard, julgado em 26/04/2017. Disponível em: <https://www.bjuris.com.br/plataforma> Acesso em: 05/05/2024.

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Professor Dr. Thiago Munaro Garcia pela excelente orientação e a indicação para apresentação deste artigo.

A IMPORTÂNCIA DA INTERSETORIALIDADE NA CAPACITAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DA REDE DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS INFANTOJUVENIS: INTEGRANDO ESFORÇOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM FUTURO MAIS JUSTO E SEGURO

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho analisa a atuação e capacitação dos profissionais da rede de proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes no Brasil e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído pela Lei Federal 8.069 em 13 de julho de 1990. O ECA foi um marco significativo na proteção dos direitos das crianças e adolescentes no Brasil, o estatuto representou uma mudança radical na abordagem legal e social em relação a essa faixa etária, substituindo o antigo Código de Menores, que vigorava desde a ditadura militar.

Tivemos com o ECA, a criação do Conselho Tutelar, um órgão autônomo e permanente, reforçou a estrutura de proteção infantojuvenil, garantindo que violações de direitos fossem monitoradas e tratadas adequadamente. O estatuto também estabeleceu que a criança e o adolescente são sujeitos de direitos, em desenvolvimento, e que suas opiniões devem ser consideradas em decisões que os afetam.

O Código de Menores foi descrito pelas autoras Eunice Teresinha Fávero, Francisca Rodrigues Oliveira Pini e Maria Liduína de Oliveira e Silva como:

Palavras-chave

Conselho Tutelar. Estatuto da Criança e do Adolescente. Princípio da Dignidade Humana.

Simone Miranda Rascachi

Acadêmica de Direito da Faculdade Nove de Julho de Bauru, e-mail: simonemirandarascachi@gmail.com

Resumo

O presente trabalho de conclusão de curso analisa a atuação e capacitação dos profissionais da rede de proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes no Brasil. O estudo aborda a importância de garantir proteção, assistência e apoio adequados a essa população vulnerável, destacando a necessidade de um sistema robusto e bem estruturado para assegurar o futuro da nação. Além disso, tem como objetivo analisar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), legislação brasileira fundamental que estabelece os direitos e garantias das crianças e adolescentes, promovendo sua proteção integral. O estudo examina a evolução histórica do ECA, desde sua promulgação em 13 de julho de 1990, até suas principais atualizações, ressaltando o trabalho dos profissionais perante a sociedade. O ECA é o manual de instruções dos profissionais que tem como a prioridade absoluta assegurar aos menores, o direito à vida, à saúde, à educação, à convivência familiar e comunitária, e à proteção contra qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Os conselheiros tutelares são cruciais na identificação, prevenção e intervenção em casos de violência, negligência e exploração infantil. Além disso, o estudo explora os desafios enfrentados por esses profissionais, como a escassez de recursos, a falta de formação contínua e especializada, e a sobrecarga de trabalho. Por fim, o trabalho reforça a ideia de que a proteção integral das crianças e adolescentes não é apenas uma responsabilidade legal, mas um imperativo moral para garantir um futuro mais justo e promissor para a sociedade brasileira.

O trabalho foi elaborado partindo do primeiro tópico, sendo ele a origem do ECA, a criação do órgão protetor Conselho Tutelar, trazendo consigo o segundo tópico sobre à violência doméstica contra os menores e à implementação efetiva das medidas protetivas previstas pelo estatuto e a violação da dignidade da pessoa humana e o terceiro tópico, como os profissionais devem trabalhar parar garantir e assegurar os direitos destes pequenos cidadãos.

Os métodos utilizados neste trabalho foram de pesquisas bibliográficas e jurídicas, ordenamento jurídico brasileiro, casos emblemáticos, como o do menino Bernardo e do menino Henry Borel que obtiveram grande repercussão nacional e precisou da atuação do conselho tutelar junto com o poder judiciário.

O intuito deste trabalho é realizar um estudo sobre um tema de grande relevância nacional e chamar a atenção dos leitores para a importância de os conselheiros tutelares terem os mecanismos adequados para defender essas crianças e adolescentes. Quero mostrar que é essencial proteger nossos jovens, pois o futuro da sociedade vindoura depende e muito do que nossas crianças aprendem hoje.

2. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: ORIGEM, CONSTRUÇÃO E CONCEITOS BASILARES

O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Federal 8.069, de 13 de julho de 1990, é fruto da Constituição Federal, chamada pelo Deputado Ulisses Guimarães de “Constituição Cidadã”. Com a promulgação da nova Constituição Federal Brasileira e após um conturbado da ditadura militar (19641985) foi necessário a criação de uma nova lei específica para os menores que, derrubasse o antigo Código de Menores, Lei 6.697, de 10 de outubro de 1979 criada no período ditatorial.

O Código de Menores tinha como pedra angular a verificação de uma situação de fato adjetivada de “irregular”, posto que representativa de um desvio da normalidade social pressuposta pelo legislador. Constatada essa situação, era imprescindível a aplicação de uma medida capaz de trazer crianças e adolescentes de volta ao estado desejado, de modo que providências como advertência, entrega aos pais, colocação em família substituta, liberdade assistida, inclusão em casa de semiliberdade e internação eram consideradas como instrumentos eficazes ou antídotos a situações reveladoras de “patologia social”, como o abandono, a carência, maus-tratos, desvios de conduta e até mesmo a prática de infrações penais, nas expressões constantes daquela lei (FÁVERO; PINI; SILVA, 2020).

Após a revogação desta antiga lei e a substituição pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) por meio da Lei nº 8.069, foi concretizado o “o paradigma da doutrina da proteção integral que expressa notável avanço democrático, ao regulamentar as conquistas relativas aos direitos das crianças e adolescentes, sendo elo entre a Constituição” (SALVAR, 2024).

Antes da criação do ECA, todas as crianças e adolescentes, sem distinção de classe social, compartilhavam a condição de serem considerados não pessoas, de serem vistos como incapazes e de dependerem da tutela do mundo adulto.

Por falta de uma legislação específica, as crianças e adolescentes sofriam diversas agressões físicas e tratamento degradante, entre outros tipos de castigos que vão contra o princípio da dignidade da pessoa humana previsto no artigo 1º, inciso III da Constituição. A partir da criação do ECA ficou reconhecido que legalidade no exercício regular de direito em casos nos quais pais ou responsáveis aplicassem castigos físicos em suas crianças e adolescentes como forma de disciplina fosse vedada (ZAPATER, 2023).

A definição de criança e adolescente varia de acordo com a legislação e as convenções adotadas por diferentes países. No contexto brasileiro, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que é a principal legislação que trata dos direitos dessa população, fornece as seguintes definições:

Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade.

Os conceitos basilares do ECA são: proteção integral, prioridade absoluta e participação. O autor Guilherme de Souza Nucci dispõe sobre o princípio da proteção integral como: A proteção integral é princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, CF) levado ao extremo quando confrontado com idêntico cenário em relação aos adultos (NUCCI, 2020).

Além disso, o princípio da proteção integral determina que todas as crianças e adolescentes merecem uma atenção especial por parte da família, da comunidade e do Estado. Isso implica que todos têm a responsabilidade de assegurar o pleno desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social desses jovens. Esse conceito abarca desde garantir direitos fundamentais como vida, saúde, alimentação,educação, cultura e lazer até promover o direito a um ambiente familiar e comunitário saudável.

O princípio prioridade absoluta estabelece que as políticas e instituições públicas devem dar prioridade às crianças e adolescentes em todas as suas atividades. Isso implica que, em qualquer decisão tomada, seja no âmbito legislativo, administrativo ou judicial, é fundamental considerar sempre o interesse superior desses indivíduos jovens. Além disso, Nucci dispõe como:

(...) Princípio autônomo, encontrando respaldo no art. 227, caput, da Constituição Federal, significando que, à frente dos adultos, estão crianças e adolescentes. Todos temos direito à vida, à integridade física, à saúde, à segurança etc., mas os infantes e jovens precisam ser tratados em primeiríssimo lugar(..) (NUCCI, 2020).

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O princípio da participação garante que as crianças e adolescentes tenham o direito de se envolver ativamente nas decisões que têm impacto em suas vidas. Eles devem ser consultados e suas perspectivas levadas em conta, levando em consideração sua idade e nível de maturidade. Essa participação pode acontecer em diversos contextos, desde o ambiente familiar e escolar até na comunidade, e até mesmo em processos judiciais que afetem seus direitos.

3. CONSELHO TUTELAR E SUA IMPORTÂNCIA PARA AS CRIANÇAS E OS ADOLESCENTES

O Conselho Tutelar foi criado em 1990 junto com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) sendo um órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. Decorre do que estabelece a primeira parte do artigo 132 do ECA, que determina que em cada Município haverá, no mínimo, um Conselho Tutelar.

Como representantes da sociedade na proteção dos direitos infantojuvenis, os conselheiros tutelares têm a função de fiscalizar todos os envolvidos, começando pela família, passando pela comunidade e alcançando o Estado, para garantir que, em suas respectivas áreas, cumpram a missão de cuidar das crianças e adolescentes do município. Portanto, é impossível separar a figura do conselheiro do cidadão comum, pois qualquer ação que afete sua honra e reputação inevitavelmente terá repercussões negativas no campo administrativo, afetando, por consequência, o prestígio do próprio colegiado (MACIEL, 2023).

Suas principais atribuições previstas no artigo 136 do ECA são: garantir a proteção e a promoção dos direitos das crianças e adolescentes, conforme preconiza o ECA, receber denúncias de qualquer pessoa, por meio de telefone, e-mail, pessoalmente ou outros meios, sobre violações de direitos de crianças e adolescentes, avaliar as denúncias recebidas, realizar atendimentos e, quando necessário, acompanhar casos que envolvam ameaça ou violação dos direitos infantojuvenis. Aplicar medidas protetivas, como a orientação e apoio às famílias, a requisição de serviços públicos necessários, entre outras ações que visem à proteção dos direitos.

O órgão também é responsável por intervir judicialmente em situações graves a fim de garantir a segurança e o bem-estar da criança ou do adolescente. Os membros do Conselho Tutelar podem participar de audiências judiciais relacionadas a casos de crianças e adolescentes, além de integrar fóruns e instâncias de discussão sobre políticas públicas para essa faixa etária. Trabalhar em colaboração com outros órgãos e entidades, como escolas, unidades de saúde, assistência social, Ministério Público, entre outros, para garantir uma abordagem integrada na proteção dos direitos infantojuvenis (CONSELHO, 2024).

No preambulo da declaração e os seus diversos artigos define o direito a uma proteção especial da criança “a criança tem necessidade de uma proteção especial e de cuidados especiais, notadamente de uma proteção jurídica, antes e depois de seu nascimento”. Porém a convenção apresenta outros tipos de direitos que são exercidos pelos próprios beneficiários.

Como por exemplo os seguintes artigos:

Art. 12 §1. Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e maturidade da criança.

Art. 13 § 1. A criança terá direito à liberdade de expressão. Esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e divulgar informações e ideias de todo tipo, independentemente de fronteiras, de forma oral, escrita ou impressa, por meio das artes ou por qualquer outro meio escolhido pela criança.

§2. O exercício de tal direito poderá estar sujeito a determinadas restrições, que serão unicamente as previstas pela lei e consideradas necessárias:

para o respeito dos direitos ou da reputação dos demais, ou

para a proteção da segurança nacional ou da ordem pública, ou para proteger a saúde e a moral públicas.

Art. 15. §1 Os Estados Partes reconhecem os direitos da criança à liberdade de associação e à liberdade de realizar reuniões pacíficas.

2. Não serão impostas restrições ao exercício desses direitos, a não ser as estabelecidas em conformidade com a lei e que sejam necessárias numa sociedade democrática, no interesse da segurança nacional ou pública, da ordem pública, da proteção à saúde e à moral públicas ou da proteção aos direitos e liberdades dos demais.

A conciliação entre a proteção especial e a responsabilização tem se mostrado desafiadora.

Isso ocorre, em grande parte, devido à diferença entre dois conceitos frequentemente percebidos erroneamente como opostos e inconciliáveis: a criança e ao adolescente, considerados como sujeitos de direitos e, ao mesmo tempo, como indivíduos em processo de desenvolvimento (FÁVERO; PINI; SILVA, 2020).

Esse desafio é ainda mais evidente quando se trata de crianças e adolescentes em situações críticas, ou seja, em desvantagem social, como aqueles que enfrentam discriminação e negligência em função de fatores como gênero, orientação sexual, condições de saúde, raça, etnia, local de origem, entre outros, em contextos de vulnerabilidade social, riscos pessoais e sociais, como exploração sexual, maus-tratos intrafamiliares, tortura, custódias ilegais, abandono, trabalho infantil, entre outros. Além disso, há situações em que esses jovens podem estar em conflito com a lei penal, sendo considerados menores infratores, ou adolescente em conflito com a lei e o sistema socioeducativo, são através dessas situações que o conselho tutelar deve atuar (FÁVERO; PINI; SILVA, 2020).

3.1. Limitações da atuação do conselho tutelar e os desafios enfrentados pelos profissionais

O Colegiado precisa se atentar quando necessário for adotar duas específicas medidas de proteção no desempenho de algumas responsabilidades: a inclusão em programas de acolhimento familiar e a colocação em família substituta. Essas ações são descritas nos incisos VIII e IX do artigo 101 do ECA e são de competência exclusiva da autoridade judiciária.

Assim o artigo 101 dispões:

Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas:

VIII - inclusão em programa de acolhimento familiar;

IX - colocação em família substituta

O Conselho Tutelar não tem a capacidade de impor a medida de acolhimento institucional contra a vontade dos pais ou responsáveis. Em tais situações, é responsabilidade do Conselho Tutelar buscar a colaboração de outros órgãos do Sistema de Justiça, como Ministério Público, Defensoria Pública, Poder Judiciário ou Delegacias de Polícia, para tomar as medidas apropriadas. Em resumo, a norma é que a medida de acolhimento institucional só seja determinada pelo Conselho Tutelar quando não há qualquer suporte familiar e a única ação capaz de proteger a criança ou adolescente seja encaminhá-los a uma entidade de acolhimento.

Antes de decidir encaminhar a informação ao Ministério Público, o Conselho Tutelar deve avaliar a seguinte questão: existem alternativas atualmente disponíveis para proteger a criança ou adolescente, além do acolhimento ou da colocação em uma família substituta? Se a resposta for positiva, significa que a atuação do Conselho Tutelar ainda não está completa, tornando o encaminhamento precipitado.

O conselho tutelar também pode agir de forma corretiva em favor dos pais e responsáveis. A segunda responsabilidade indicada pelo legislador estatutário, conforme o artigo 136, inciso II, consiste em oferecer atendimento e aconselhamento aos pais ou responsável, podendo, se necessário, adotar as medidas previstas no artigo 129, alíneas a VII, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Senão dispõe o artigo 136 e 129 do ECA:

Art. 136. São atribuições do Conselho Tutelar: II - atender e aconselhar os pais ou responsável, aplicando as medidas previstas no art. 129, a VII;

Art. 129. São medidas aplicáveis aos pais ou responsável:

- encaminhamento a serviços e programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio e promoção da família;

II - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos;

III - encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico;

IV - encaminhamento a cursos ou programas de orientação;

V - obrigação de matricular o filho ou pupilo e acompanhar sua freqüência e aproveitamento escolar;

VI - obrigação de encaminhar a criança ou adolescente a tratamento especializado;

VII - advertência;

Portanto, é crucial que o Conselho Tutelar permaneça sempre vigilante para evitar tomar medidas que, de maneira direta ou indireta, resultem na perda ou transferência da guarda, ou que violem os direitos e deveres inerentes ao poder familiar. Isso inclui, por exemplo, a entrega da criança ou adolescente a terceiros, sob o risco de incorrer em evidente arbitrariedade.

No período em que atuei como conselheira tutelar, identifiquei vários pontos que exigem uma atenção mais cuidadosa dos profissionais da área, a fim de enfrentar os desafios diários. Não apenas identifiquei questões que precisam de melhorias, mas também áreas que devem ser aprimoradas para alcançar os objetivos reais. É essencial oferecer um atendimento de qualidade às crianças e adolescentes, abordando todos os aspectos com seriedade, comprometimento e segurança. A seguir, mencionarei alguns desses pontos.

A necessidade de uma formação contínua: É imprescindível que os conselheiros em exercício recebam capacitações frequentes para aprimorar suas habilidades e saibam oferecer um atendimento mais eficaz e humanizado à população. Além disso, é crucial que mantenham a cordialidade entre os colegas de trabalho e valorizem o diálogo como meio de principal ferramenta para a resolução de problemas. Devemos deixar de lado interesses pessoais e atuar de forma técnica e imparcial, focando exclusivamente na segurança e nos direitos das crianças e dos adolescentes. Isso inclui assegurar que todas as ações e decisões sejam baseadas em princípios éticos, justiça e igualdade, garantindo que cada criança e adolescente tenham acesso a proteção, apoio e oportunidades necessárias para seu desenvolvimento integral. A imparcialidade e a objetividade são essenciais para construir um ambiente de confiança e respeito, onde os direitos de todos sejam sempre priorizados e protegidos.

Trabalho da rede de proteção: A colaboração entre os diversos membros da rede é de suma importância para promover uma compreensão mais abrangente das atribuições e do papel desempenhado pelo conselheiro tutelar. Trabalhar em conjunto possibilita não apenas a divulgação eficaz dessas responsabilidades nas redes escolares, mas também alcançar a população em geral. Além disso, essa cooperação facilita o enfrentamento das dificuldades que frequentemente surgem na atuação do conselheiro, especialmente em contextos familiares complexos. A união de esforços entre os diversos colaboradores da rede, incluindo instituições educacionais, organizações sociais, órgãos governamentais e comunidade em geral, fortalece a capacidade de promover os direitos das crianças e adolescentes. Ao mesmo tempo, permite uma abordagem mais ampla e efetiva na identificação e enfrentamento de desafios específicos que podem surgir em ambientes familiares vulneráveis. Além disso, a participação ativa do Ministério Público e da Vara da Infância e Juventude é essencial para garantir uma atuação coordenada e eficaz na proteção e promoção dos direitos infantojuvenis.

Suporte psicológico e social: A importância e a necessidade do suporte desses profissionais muito bem capacitados, em tempo integral dentro do Conselho Tutelar, são cruciais para o desenvolvimento do trabalho.

Segurança Patrimonial: A presença diária de um profissional de segurança dentro do Conselho Tutelar é extremamente necessária para garantir a segurança e o bem-estar de todas as pessoas envolvidas.

Infraestrutura: É sempre importante considerar melhorias diárias na infraestrutura. Contendo telefonistas, a segurança em tempo integral conforme mencionado acima, os conselheiros devem estar disponíveis 24 horas por dia para atender à população, assim como policiais prontos-socorros. Os conselheiros foram eleitos para servir a comunidade quando necessitam. Cada conselheiro deve ter uma sala reservada, pois muitas vezes uma pessoa está fazendo uma denúncia e há outra sentada na mesa ao lado escutando, em situações como esta é fundamental que o conselheiro observe a situação e convide a pessoa para uma sala privada, se necessário.

Além disso, um ambiente adequado e equipado deve ser disponibilizado para que os conselheiros possam fazer suas refeições, já que muitas vezes não conseguem cumprir o horário de almoço normal devido estar em atendimentos presenciais ou estarem em delegacias, hospitais. Também é essencial ter uma sala de arquivos bem-organizada, facilitando a localização de documentos quando necessário. A limpeza e a higiene do local precisam ser diárias, e não apenas uma vez por semana ou a cada quinze dias, como ocorre em muitos lugares.

Recursos tecnológicos: É fundamental garantir a manutenção e a conservação de todos os recursos tecnológicos já existentes, incluindo computadores, impressoras e aparelhos telefônicos. Esses equipamentos são essenciais para o registro e acompanhamento de cada caso.

Excesso de demanda: É crucial estabelecer um horário fixo de conselheiros de plantão para atendimento e garantir sua presença imediata durante as ocorrências, não deveria ser necessário para a polícia ou os hospitais ligarem incessantemente em busca do conselheiro de plantão para resolver questões por telefone. Muitas vezes, a simples presença do conselheiro no local já é suficiente para resolver grande parte dos problemas. Além disso, é fundamental que o horário de atendimento semanal e aos finais de semana sejam contínuos, sem interrupções para o horário de almoço, uma vez que muitas pessoas aproveitam esses momentos para resolver suas questões. Atualmente, o número de conselheiros é limitado em comparação com a grande demanda existente. Portanto, é essencial garantir uma cobertura adequada para atender às necessidades da comunidade. Outro ponto crucial é disponibilizar à população o número de contato telefônico do plantão do Conselho Tutelar, isso facilitaria o acesso direto aos serviços de proteção e assistência, promovendo uma resposta mais ágil e eficaz às situações emergenciais envolvendo crianças e adolescentes. Por fim, é fundamental abordar esses pontos com seriedade e comprometimento, visando oferecer um serviço de qualidade e efetivamente fazer a diferença na vida das crianças, adolescentes e suas respectivas famílias que necessitam de atendimentos.

4. TIPOS DE VIOLÊNCIA CONTRA OS MENORES: VIOLAÇÃO DOS

DIREITOS HUMANOS E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

A dignidade da pessoa humana “trata-se de um dever social, de todos, conjunto de pessoas naturais e jurídicas, de direito privado e público, estabelecido como alicerce de uma “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”(PAULA, 2024).

O artigo 5º e o artigo 13º do ECA prevê que a criança é tutelada do Estado e não deve sofrer nenhum tipo de violência. Conforme dispõe:

Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em disposições gerais estabelece várias categorias sobre tipos de violências, dentre elas: a violência física, psicológica e sexual. A violência física, como a primeira forma destacada, implica em agressões ao corpo da criança ou adolescente, caracterizando violações à sua integridade física.

A violência física é perceptível externamente, enquanto a violência psicológica é mais insidiosa, especialmente quando ocorre em um ambiente isolado apenas com o agressor a criança ou adolescente. Sob esse tratamento depreciativo, esses indivíduos tendem a se retrair, evitar interações com outras crianças e adolescentes, e podem desenvolver dificuldades em aceitar a si mesmos (CABRERA, 2024).

Conforme Borges e Dell’Aglio (2008), no contexto de abuso sexual, os sintomas compartilham semelhanças com os previamente mencionados, incluindo comportamento sexual inadequado, propensão a comportamentos suicidas e tentativas de fugir de casa. Entre as condições psicopatológicas mais frequentemente associadas ao abuso sexual estão os transtornos de humor, transtornos de ansiedade, transtornos dissociativos, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, transtornos alimentares e transtorno de abuso de substâncias (RIBEIRO, 2024).

A violência doméstica ocorre no âmbito privado, dentro da residência da vítima, e os agressores podem ser não necessariamente familiares, mas também outras pessoas que compartilham o mesmo espaço domiciliar destacando-se que a violência doméstica é um fenômeno social que afeta indivíduos de diversas categorias socioeconômicas, sendo que crianças em situação de pobreza têm menos recursos para escapar de alguns impactos.

As famílias de baixa renda tendem a ser mais vulneráveis devido a complexos de fatores sociais, resultando em uma associação de vulnerabilidade emocional, social e até mesmo da saúde, que se manifesta por meio de psicopatologias, comportamentos antissociais e doenças psicossomática (RIBEIRO, 2024).

A violência contra o menor, infringe os direitos humanos e o princípio da dignidade da pessoa humana. A dignidade da pessoa humana, tem valor fundamental e foi convertido a princípio jurídico de estatura constitucional. Ela refere-se ao valor intrínseco e inalienável de cada ser humano, independentemente de sua origem, status social, raça, religião, ou qualquer outra característica. Esse princípio reconhece que cada indivíduo merece respeito, autonomia e consideração moral.

O artigo 18 da lei 13.010/2014, lei conhecida como “lei do menino Bernardo” que foi assassinado pelo pai e sua madrasta, prevê as violações do princípio da dignidade da pessoa humana. Conforme dispõe:

Art. 18-A. A criança e ao adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los.

Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se:

castigo físico: ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente que resulte em:

a) sofrimento físico; ou

b) lesão;

tratamento cruel ou degradante: conduta ou forma cruel de tratamento em relação à criança ou ao adolescente que:

humilhe; ou

ameace gravemente; ou ridicularize.

Esta legislação é comumente conhecida como Lei do Menino Bernardo, uma vez que foi nomeada em homenagem a ele. A tragédia que culminou na morte de Bernardo levou o legislador a enfatizar, por meio dessa lei, a importância do cuidado, carinho e amor entre pais e filhos, valores que, infelizmente, não estavam presentes na vida do jovem falecido. Essa situação reflete não apenas a história de Bernardo, mas também a de outros indivíduos no Brasil que enfrentam circunstâncias semelhantes.

Dessa maneira, observamos uma progressão no sistema legal em relação aos direitos das crianças e dos adolescentes, reconhecendo-os como sujeitos detentores de direitos e responsabilidades. Isso demanda uma atenção particular por parte do Estado, garantindo que os cuidadores e educadores não recorram a métodos violentos ou qualquer forma de tratamento que possa comprometer a dignidade humana dos menores (DIREITO, 2024).

4.1. Caso Henry Borel – lei nº 14.344, de 24 de maio de 2022

Podemos mencionar o caso envolvendo a morte do menino Henry Borel, de 4 anos, foi amplamente divulgado nas mídias brasileira. O caso ocorreu em março de 2021, no Rio de Janeiro, e envolveu a mãe do menino, Monique Medeiros, e o padrasto, o vereador Dr. Jairinho.

Inicialmente, o casal alegou que a criança havia caído da cama, mas as investigações apontaram sinais de agressão e maus-tratos. Exames médicos revelaram lesões graves no corpo de Henry, indicando um quadro de violência doméstica. O laudo pericial apontou a causa da morte como uma hemorragia causada por ação violenta (CASO, 2024).

Quando se tratar de violência doméstica ou familiar, a Lei Henry Borel estabelece uma obrigação social em seu artigo 23:

Qualquer pessoa que tenha conhecimento ou presencie uma ação ou omissão em locais públicos ou privados que configure violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes deve comunicar o fato imediatamente ao serviço de recebimento e monitoramento de denúncias, ao Disque 100 da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, ao Conselho Tutelar ou à autoridade policial. Estes órgãos, por sua vez, tomarão as medidas necessárias.

E o noticiante ou denunciante deve revelar a autoridade policial, o Conselho Tutelar, o Ministério Público ou o juiz, conforme descrito no parágrafo 2º do artigo 24.

É fundamental destacar que, antes da promulgação da Lei Henry Borel, as penas para os crimes previstos no artigo 136 do Código Penal eram limitadas. Embora as legislações anteriores tenham introduzido mecanismos de proteção à infância, esses mecanismos não eram suficientes para assegurar a segurança das crianças e adolescentes. Como resultado, os casos de violência continuavam frequentes e a impunidade permanecia alta.

A Lei Henry Borel introduziu várias inovações nos mecanismos de proteção às crianças e adolescentes. Entre essas mudanças, está a classificação do homicídio de menores de 14 anos como crime hediondo e inafiançável, considerando também a qualificadora relacionada à idade da vítima, conforme estipulado pelo Código Penal. Além disso, a lei prevê o aumento da pena caso o crime seja cometido pelos próprios genitores da vítima.

Uma das inovações da lei foi a aplicação de medidas de proteção urgentes para crianças e adolescentes. Essas medidas podem ser solicitadas pelo Delegado de Polícia, pelo Ministério Público, pelo Conselho Tutelar ou por qualquer pessoa que esteja agindo em defesa das vítimas, conforme estabelecido nos artigos 15 e 16 da Lei n. 14.344/2022:

Art. 14. Verificada a ocorrência de ação ou omissão que implique a ameaça ou a prática de violência doméstica e familiar, com a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da criança e do

adolescente, ou de seus familiares, o agressor será imediatamente afastado do lar, do domicílio ou do local de convivência com a vítima:

- pela autoridade judicial;

-pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca;

pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia.

§ 1º O Conselho Tutelar poderá representar às autoridades referidas nos incisos I, II e III do caput deste artigo para requerer o afastamento do agressor do lar, do domicílio ou do local de convivência com a vítima.

A mais recente atribuição conferida ao Conselho Tutelar decorre da Lei n. 14.344, de 24 de maio de 2022, que institui mecanismos para prevenir e enfrentar a violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes. Em casos como o de Henry Borel, O Conselho Tutelar tem a autonomia para decidir, diante de cada caso concreto, a melhor forma de proteger uma criança ou adolescente, sendo ele próprio responsável por assegurar a implementação de suas decisões.

Nesse sentido, o parágrafo 1º do artigo 14 da lei estabelece que o Conselho Tutelar pode representar às autoridades mencionadas nos incisos I, II e III do caput desse artigo, buscando o afastamento do agressor do lar, domicílio ou local de convivência com a família. Da mesma forma, o artigo 16 determina que medidas protetivas de urgência podem ser concedidas pelo juiz, a pedido do Ministério Público, da autoridade policial, do Conselho Tutelar ou de qualquer pessoa que atue em favor da criança e do adolescente.

5. CONCLUSÃO

Ao longo deste estudo, evidenciamos que o Conselho Tutelar desempenha um papel fundamental na proteção dos direitos das crianças e adolescentes, pois sua atuação em casos de violência doméstica contra crianças, desempenha um papel fundamental na garantia da efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana. A dignidade é um valor fundamental, consagrado na Constituição Brasileira, que deve ser assegurado a todas as pessoas, independentemente de sua idade.

O Conselho Tutelar atua como um guardião desses direitos, intervindo de maneira imediata e eficaz para proteger crianças que são vítimas de violência dentro e fora de seus lares. A sua presença e intervenção são essenciais para interromper o ciclo de violência, oferecendo suporte emocional, jurídico e social tanto à vítima quanto à família.

Portanto, é essencial fortalecer o papel do Conselho Tutelar, garantindo recursos adequados e capacitação contínua para que possam cumprir a missão de forma eficiente. Somente assim será possível assegurar que todas as crianças e adolescentes possam viver em um ambiente seguro, digno e respeitoso, conforme estabelecido pelos princípios constitucionais e pelos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.

Portanto, é fundamental que os gestores públicos e os responsáveis pela formulação de políticas reconheçam a importância estratégica da intersetorialidade na capacitação destes profissionais, investindo em programas de formação contínua e em iniciativas que incentivem a colaboração e o trabalho em rede. Somente assim poderemos avançar na construção de um futuro em que os direitos infantojuvenis sejam plenamente respeitados e protegidos, proporcionando a essas novas gerações oportunidades para alcançarem seu pleno potencial.

REFERÊNCIAS

CABRERA. Adriana Marques Mourão. Violência Psicológica em crianças e adolescentes e suas consequências. Disponível em: https://bdm.unb.br/ bitstream/10483/31894/1/2022_AdrianaMarquesMouraoCabrera_t cc.pdf. Acesso em 08 mai 2024.

Caso Henry Borel: MP pede que Monique Medeiros seja mantida na prisão. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/caso-henry-borel-mp-pede- que-monique-medeiros-seja-mantida-na- prisao/#:~:text=O%20menino%20Henry%20Borel%2C%20de,hemorragia%20interna

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Direito à Dignidade das Criança e dos Adolescentes no Brasil Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/ direito-a-dignidade-das-crianca-e-dos- adolescentes-nobrasil/864055529#:~:text=A%20crian%C3%A7a%20e%20 o%20adolescente%20t%C 3%AAm%20o%20direito,encarregada%20de%20cuidar%20deles%2C%20trat%C3% A1los%2C%20educ%C3%A1-los%20ou%20proteg%C3%AA-los. Acesso em: 09 mai 2024

FÁVERO, Eunice Teresinha.; PINI, Francisca Rodrigues Oliveira.; SILVA, Maria Liduína de Oliveira E. ECA e a proteção integral de crianças e adolescentes. São Paulo. Cortez, 2020. E-book. ISBN 9786555550054. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/ books/9786555550054/. Acesso em: 18 mai. 2024.

MACIEL, Katia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de direito da criança e do adolescente : aspectos teóricos e práticos. São Paulo. SRV Editora LTDA, 2023. E- book. ISBN 9786553624351. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553624351/. Acesso em: 25 mai. 2024.

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RIBEIRO. Mariana Santana. apud Borges e Dell’Aglio. Os impactos da violência doméstica no desenvolvimento da criança e do adolescente. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUBD =9 - 9 ENRD#:~:textConclui- se%20que%20a%20maior%20parte%20da%20 agress%C3%B5es%20acontecem,so cial%20com%20 altera%C3%A7%C3%B5es%20de%20diferentes%20formas%20e% 20intensidades. Acesso em: 08 mai 2024.

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ZAPATER, Maíra Cardoso. Direito da criança e do adolescente. São Paulo SRV Editora LTDA, 2023. E-book. ISBN 9786553624603. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553624603/. Acesso em: 12 mai. 2024.

A POSSÍVEL INCONSTITUCIONALIDADE E INAPLICABILIDADE

DA TUTELA PENAL NO CRIME DE BIGAMIA

Palavras-chave

Bigamia. Crime. Constitucionalidade. Tutela. Monogamia.

Tulio Emer Damasceno

Bacharel em Direito – ITE Bauru/SP – 2014.

Pós Graduado em Direito Penal Lato Sensu – Damásio Educacional – 2019.

Advogado – OAB/SP nº 359.094.

E-mail: tulioemer@adv.oabsp.org.br.

Resumo

O presente trabalho científico visa examinar a constitucionalidade do delito de bigamia, tendo em vista que nossa Constituição Federal consagra o princípio constitucional da laicidade. Mesmo com o advento da referida Constituição Federal, muitas leis surgiram pregando o casamento monogâmico no Brasil, dentre elas o Código Civil de 2002 e as leis que estabeleceram feriados nacionais religiosos que são celebrados pela igreja cristã, religião atrelada à maioria da população nacional. Para isso trouxemos neste trabalho os principais princípios constitucionais que seriam relacionados ao tema, um estudo sobre o bem jurídico tutelado tanto do crime de bigamia quanto do que deve ser objeto de tutela penal, além dos princípios do casamento do direito de família, as leis que consideram feriados nacionais celebrações da igreja cristã e as semelhanças do delito de bigamia com o antigo crime de adultério que apesar de guardar vários aspectos que minimamente lembram o crime de bigamia, foi revogado em 2005, enquanto que o outro permanece como crime após 19 (dezenove) anos para ao final apresentar nossas conclusões sobre o tema.

Foto: Fábio Cres

1. INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 está vigente há quase 04 (quatro) décadas e desde logo consagrou o princípio laicidade pelo qual o estado não tem o poder de impor qualquer religião aos brasileiros assim como priorizar qualquer crença religiosa. É certo que a menção ao estado nacional como laico não se originou da referida Constituição de 1988, mas pela antiga Constituição Federal de 1824, embora a mesma definisse que a religião do Império seria obrigatoriamente a apostólica romana, o que faz muitos entenderem que a lei maior nacional fora naquele momento influenciada pela igreja católica que predominaria a frente das demais e que presa pelas relações afetivas monogâmicas, daí nasce o princípio da monogamia. Com a Constituição Federal daquela época foram surgindo as demais leis, dentre elas o Código Penal de 1830 aonde surgiram os crimes de bigamia e adultério, sendo que o primeiro é mantido até hoje no nosso Código Penal de 1940 mais precisamente no artigo 235, enquanto que o segundo foi revogado em 2005 e ainda está atrelado ao princípio da fidelidade monogâmica do Código Civil. Paralelo ao princípio monogâmico nascido da crença cristã encontramos feriados religiosos da mesma religião amparados por lei federal. Com todo esse cenário cresce dentro de muitos a dúvida sobre a aplicação da laicidade do Estado prevista na Constituição Federal.

É certo que a sociedade vem passando por um processo evolutivo no que tange aos valores éticos e sociais, mas mesmo assim, somado ao fato de que há várias religiões que pregam a aceitação das relações afetivas poligâmicas, tal tipo de relação permanece tipificada como crime no ordenamento legislativo pátrio, mesmo há quase 2 (duas) décadas da revogação do antigo crime de adultério.

Assim, passamos a discutir a eventual inconstitucionalidade do crime de bigamia, bem como sua possibilidade e necessidade de tutela na esfera penal, buscando entender e aferir quais são as legislações que devem prevalecer a fim de acompanhar o desenvolvimento ético, valorativo e social da sociedade.

2. O CRIME DE BIGAMIA

O crime de bigamia está tipificado no artigo 235 do Código Penal (1940) que prevê punição privativa de liberdade para aquele que contrair dois ou mais casamentos ao mesmo tempo, vejamos:

Art. 235 - Contrair alguém, sendo casado, novo casamento:

Pena - reclusão, de dois a seis anos.

§ 1º - Aquele que, não sendo casado, contrai casamento com pessoa casada, conhecendo essa circunstância, é

punido com reclusão ou detenção, de um a três anos.

§ 2º - Anulado por qualquer motivo o primeiro casamento, ou o outro por motivo que não a bigamia, considera-se inexistente o crime.

(Código Penal de 1940).

Vale destacar que nosso Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu em 2020 que a figura do crime de bigamia não se resume apenas ao casamento, como também no caso de união estável, conforme vejamos pelo trecho da notícia prevista no Portal do próprio STF a seguir:

Segundo o ministro Alexandre de Moraes, o fato de haver uma declaração judicial definitiva de união estável impede o reconhecimento, pelo Estado, de outra união concomitante e paralela. Ele observou que o STF, ao reconhecer a validade jurídico-constitucional do casamento civil ou da união estável por pessoas do mesmo sexo, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, não chancelou a possibilidade da bigamia, mas sim conferiu a plena igualdade às relações, independentemente da orientação sexual. O ministro ressaltou que o Código Civil (artigo 1.723) impede a concretização de união estável com pessoa já casada, sob pena de se configurar a bigamia (casamentos simultâneos), tipificada como crime no artigo 235 do Código Penal. Assinalou, ainda, que o artigo 226, parágrafo 3º, da Constituição Federal se esteia no princípio de exclusividade ou de monogamia como requisito para o reconhecimento jurídico desse tipo de relação afetiva. Acompanham o relator os ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Nunes Marques e Luiz Fux. (STF, 2003).

2.1. O Bem Jurídico Tutelado do Crime de Bigamia no Contexto Histórico

Apesar da atual redação do crime ter sido publicada pelo nosso Código Penal em 1940 o crime de bigamia já existia desde a publicação do Código Penal de 1830 que trazia o delito de “polygamia” no art. 249, punindo quem contraísse matrimônio duas ou mais vezes, sem ter dissolvido o primeiro. Vale lembrar quando o referido texto fora publicado estava em vigor a Constituição Federal de 1824 cujo artigo 5º previa que “a religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo”. Em outras palavras, notava-se aí uma limitação de atuação das demais religiões que não fossem católicas, de modo que os Imperadores deveriam ser necessariamente católicos.

A partir daí surge o bem jurídico tutelado do crime de “polygamia” daquela época que seria nada mais que a proteção de uma das regras da religião cristã qual seja o casamento monogâmico.

Tanto é, que passados vários anos, o conceito do bem jurídico tutelado vem sofrendo incansáveis modificações, mas sempre sendo lembrado o casamento monogâmico da igreja cristã que acabou sendo reconhecidas as religiões católica e evangélica como as “dominantes” da América Latina.

O professor Guilherme de Souza Nucci (2020) entende dessa forma, sendo acompanhado pelo também professor Damásio de Jesus o qual aduz que no crime de bigamia, “a lei penal tutela a ordem jurídica matrimonial, assentada no princípio do casamento monogâmico” (JESUS, 2015, p. 229); já para Rogério Grecco o bem juridicamente protegido na bigamia seria “a instituição do matrimônio, relativa ao casamento monogâmico”, embora também não se deixe de proteger “a família” (GRECCO, 2018, p. 902).

Já Cezar Roberto Bitencourt (2012) indica como bem jurídico tutelado do crime de bigamia o interesse estatal na organização jurídica do matrimônio, também aferindo como destaque o “princípio monogâmico” que seria “adotado, como regra, nos países ocidentais”.

Por fim o professor Jamil Chaim Alves (2020) define o bem jurídico tutelado do crime de bigamia como sendo “a ordem jurídica matrimonial, calcada no casamento monogâmico”.

O crime de “polygamia” também foi lembrado no Código Penal de 1889 no artigo 283 que punia com pena restritiva de liberdade de 1 a 6 anos aquele que “contrair casamento, mais de uma vez, sem estar o anterior dissolvido por sentença de nulidade, ou por morte do outro cônjuge” até chegarmos a atual redação já destacada no nosso atual Código Penal de 1940.

2.2. O Bem Jurídico Tutelado Como Limite ao Direito Punitivo

D estacar-se-á antes de mais nada que no ordenamento jurídico penal está presente o chamado “Princípio da Exclusiva Proteção de Bens Jurídicos” pelo qual o direito penal não é instrumento adequado quando se tratar de tutelar a moral, alguma religião ou ideologia ou funções administrativas governamentais, mas apenas o que chamamos de “os bens jurídicos mais relevantes”.

A professora Érica Babini Lapa do Amaral Machado, em sua em sua obra aonde mostra seus estudos unicamente focados na teoria dos bens jurídicos tutelados penais, indica a finalidade de distinção entre direito e moral, vejamos:

A origem atrela a função do Direito Penal à proteção de interesses subjetivos, entendidos esses como valores importantes para o homem, reconhecidos independentemente de um ato jurídico. Com essa perspectiva, o autor do Código Penal da Baviera, visava aperfeiçoar a distinção entre direito e moral, concebendo que a esfera do Direito impõe-se naquela, quando se conhece os direitos para serem protegidos. Na verdade, a sua pretensão foi muito mais limitar o raio de atuação do  ius puniendi ao colocar os interesses humanos em primeiro plano, e não interesses religiosos ou estatais. (MACHADO, 2016)

A mesma professora afere que o papel do bem jurídico tutelado deve ser analisado sobre a perspectiva infra sistemática com funções exegética e dogmática e posteriormente do ponto de vista extra sistemático em que se mostra a legislação em nível político e ideológico, “demonstrando as condições necessárias ou suficientes da produção normativa” (Machado, 2016).

Nos ensina ainda a professora Machado que, quando for analisado o bem jurídico tutelado de determinado crime, deve ser lembrada qual é a finalidade e quem de fato seria aquele que a lei busca proteger, vejamos:

“o ônus da proteção de uma sociedade de riscos e perigo é o rompimento dos ideários iluministas, cujo escopo era a limitação do  ius puniendi, o que, por consequência lógica, alude à própria expansão do Direito. Por outro lado, mas complementar, os novos tipos penais tendem ao perecimento, porque ao tratar de conflitos particulares com a administração pública, os conceitos de generalidade e abstração são desprezados e consequentemente a situação contingente, depois de solucionada, torna-se letra morta.Esse cenário, porém, representa significativos riscos ao Estado Democrático de Direito, de modo que, a curto prazo, a única alternativa possível, é a realização do controle funcional da teoria dos bens jurídicos, em cujo centro deve estar a questão: segurança jurídica para que e para quem?”. (MACHADO, 2016)

Fato é de quem sem dúvida alguma não é concebível a criação ou manutenção de condutas tipificadas como crimes e contravenções penais sem que haja a possibilidade de identificar um bem jurídico cuja tutela necessite da intervenção penal.

2.3. Aplicação do Princípio da Insignificância

O princípio da insignificância está atrelado a discussão da criminalização do delito de bigamia muito em razão da teoria de que o Direito Penal não deve se ocupar de bagatelas, ou seja, de crimes que violem de forma irrisória o bem jurídico tutelado, como nos ensina o professor Guilherme de Souza Nucci, vejamos:

Com relação à insignificância (crime de bagatela), sustenta-se que o direito penal, diante de seu caráter subsidiário, funcionando como ultima ratio, no sistema punitivo, não se deve ocupar de bagatelas. Há várias decisões de tribunais pátrios, absolvendo réus por considerar que ínfimos prejuízos a bens jurídicos não devem ser objeto de tutela penal, como ocorre nos casos de “importação de mercadoria proibida” (contrabando), tendo por objeto material coisas de insignificante valor, trazidas por sacoleiros do Paraguai. Outro exemplo é o furto de coisas insignificantes, tal como o de uma azeitona, exposta à venda em uma mercearia. Ressalte-se que, no campo dos tóxicos, há polêmica, quanto à adoção da tese da insignificância: ora a jurisprudência a aceita; ora, rejeita-a. (NUCCI, 2020, p. 298-299).

Já o professor Damásio de Jesus mostra compartilhar tal entendimento, aduzindo que o Direito Penal deve atuar apenas nos casos de lesão jurídica expressiva, “in verbis”:

Ligado aos chamados “crimes de bagatela” (ou “delitos de lesão mínima”), recomenda que o Direito Penal, pela adequação típica, somente intervenha nos casos de lesão jurídica de certa gravidade, reconhecendo a atipicidade do fato nas hipóteses de perturbações jurídicas mais leves (pequeníssima relevância material). Esse princípio tem sido adotado pela nossa jurisprudência nos casos de furto de objeto material insignificante, lesão insignificante ao Fisco, maus-tratos de importância mínima, descaminho e dano de pequena monta, lesão corporal de extrema singeleza etc. Destaque-se que o Supremo Tribunal Federal consolidou jurisprudência no sentido de condicionar a aplicação do princípio da insignificância à verificação de quatro vetores: a) a ausência de periculosidade social; b) a reduzida reprovabilidade do comportamento; c) a mínima ofensividade da conduta; e d) a ínfima ou inexpressiva lesão jurídica. (JESUS, 2020, p. 56).

No caso que estamos examinando, notamos ser claramente possível a aplicação do princípio da insignificância/bagatela ao crime de Bigamia, contanto estivermos diante de uma situação tal que todos os nubentes concordem com a relação poliafetiva.

3.

DAS UNIÕES POLIGÂMICAS

3.1. Dos Seus Princípios Dentro do Direito de Família

3.1.1. Do Princípio da Monogamia

O princípio da Monogamia consiste na proibição de uniões afetivas simultâneas imposta pelo Estado. Em tese tal princípio contrapõe o princípio da liberdade representando verdadeiro paradigma-dogmático ao definir a família tradicional monoafetiva como o regime familiar a ser seguido de forma obrigatória.

Conforme ensinam os professores Zanon e Alves, a monogamia é o predomínio do homem sobre a necessidade de garantia da prole legítima para a transmissão do seu patrimônio. Em suma, a necessidade da imposição da monogamia, sobretudo a feminina, impõe-se para legitimar a prole de herdeiros, isto é, trata-se de um princípio baseado em estigmas e preconceitos, que não condiz com a evolução da sociedade e não permite que certos indivíduos expressem seu desejo por relações poliafetivas (ZANON; ALVES, 2023, p. 75)

Em outras palavras, a questão da herança virou essencial no desenvolvimento do contexto familiar da sociedade, de modo que a monogamia foi aplicada tanto pelo poder do homem sobre a mulher que há tempos é reconhecido assim como pela questão de evitar uma “partilha infinita e não simplificada” da herança.

Os mesmos professores Zanon e Alves defendem ainda que “não há como a monogamia ser fruto dos ideais do amor romântico ou da paixão, já que ela surge sob a forma de escravização de um sexo pelo outro e para a garantia da sucessão de patrimônio” (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p. 54).

Destarte, se nota que a monogamia conquanto seja a espécie de relação familiar padrão da sociedade não pode ser admitida como regra ou obrigatória, porém foi fruto do surgimento de inúmeras normas nas esferas cível e criminal.

3.1.2. Do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

Como sendo um dos princípios fundamentais do Estado Democrático Nacional, tal princípio impõe dever de observância estatal que deverá atuar tanto de forma negativa (limitação às ingerências provocadas pela atuação indevida do Estado) como de forma positiva (representa o dever do Estado de fornecer o mínimo existencial para seus indivíduos).

Nos ensinamentos da professora Maria Berenice Dias reafirmando as palavras do também professor Guilherme Calmon

Nogueira da Gama a dignidade da pessoa humana encontra relevante espaço no Direito de Família, conforme vemos:

A dignidade da pessoa humana encontra na família o solo apropriado para florescer. A ordem constitucional dá-lhe especial proteção independentemente de sua origem. A multiplicação das entidades familiares preserva e desenvolve as qualidades mais relevantes entre os familiares – o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida comum -, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social de cada partícipe com base em ideais pluralistas, solidaristas, democráticos e humanistas. (GAMA, apud, DIAS, 2021, p. 66).

Nesta seara se vê a necessidade de que as famílias sejam elas monogâmicas ou não, devam ser respeitadas em razão do princípio da dignidade da pessoa humana, dignidade esta que é subjetiva para cada indivíduo, sendo que o que é indigno para um pode ser digno para outro, aplicando-se tal vertente no Direito de Família, consequentemente na união de casais muito em razão também aos vínculos afetivos, solidários, de confiança e respeito.

3.1.3 .Do Princípio da Liberdade

D estaca-se o princípio da liberdade em razão da ideia do estado ter autonomia para obrigar a imposição de certa relação de afeto familiar.

Nessa questão a professora Maria Berenice Dias destaca que o princípio da liberdade possui maior relevância, vejamos:

A  Constituição ao instaurar o regime democrático, revelou enorme preocupação em banir discriminações de qualquer ordem, deferindo à igualdade e à liberdade especial atenção no âmbito familiar. Todos têm a liberdade de escolher o seu par ou pares, seja do sexo que for, bem como o tipo de entidade que quiser para constituir sua família. (DIAS, 2021, p. 66-67).

Lembramos que o princípio da liberdade está previsto no preâmbulo do artigo 5º da Constituição Federal, até por isso prevalece sob as Leis Ordinárias, sobretudo as normas do Código Civil e Código Penal que hoje claramente impõe o regime familiar monogâmico, o que torna perfeitamente possíveis as relações poliafetivas.

3.1.4. Da Vedação do Retrocesso Social Em Desavença Com A Constituição Federal

A Constituição Federal, em meio a sua previsão de proteção especial à família, estabelece ditames essenciais, dentre eles: igualdade entre homens e mulheres, tratamento igualitário entre os filhos e reconhecimento de diferentes tipos de entidades familiares merecedoras de proteção.

A mesma Constituição Federal afere ser o Estado Nacional um Estado Laico, isso porque à luz do inciso VIII do art. 5º da Constituição Federal, ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa.

Oportuno destacar que muito se discutiu na jurisprudência se o preâmbulo da Constituição Federal feriria o Estado Laico ao conter a expressão “sob a proteção de Deus”, haja vista que há religiões que não acreditam em Deus, porém o nosso Supremo Tribunal Federal em 2003, ao julgar a ADI 2.076, firmou entendimento de que tal expressão não fere o Estado Laico Nacional vez que não possui força normativa, vez que “não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual” (STF, 2003), dando fim para as incertezas geradas nos Tribunais de Justiça.

O Estado Laico Nacional é lembrado pela mesma Constituição Federal no seu artigo 19, principalmente em seu inciso III aonde deixa clara a vedação aos Estados de criarem distinções entre brasileiros ou preferências entre si, vejamos; Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; II - recusar fé aos documentos públicos; III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si. (Constituição Federal de 1988).

Por mais que tal dispositivo esteja no capítulo I da Organização Político-Administrativa do Estado, podemos observar que o artigo 19 trata exclusivamente do assunto “religião” muito em razão dos teores dos incisos I e II, o que deixa claro pela dogmática legislativa que o inciso III refere-se exclusivamente quanto as preferências religiosas dos brasileiros.

Porém devido a peculiar situação voltada ao Direito de Família se vê que na qualidade de direito subjetivo de seus integrantes os direitos aludidos em menção supra, obstam

retrocessos sociais trazidos pela legislação ordinária, posto serem de índole constitucional, sua desobediência feriria o próprio texto constitucional conforme indicamos.

Citando a obra de Lenio Luiz Streck a doutrinadora Maria Berenice Dias (2021) informa que é flagrante o entendimento segundo o qual nenhum texto oriundo do constituinte originário poderá sofrer limitação (retrocesso) que lhe promova menor alcance jurídico social do que originariamente se tinha planejado, proporcionando retrocesso ao estado pré-constituinte.

Neste contexto, as normas infraconstitucionais criadas desrespeitando as previsões constitucionais, tanto as que citamos quanto tantas outras, seriam em tese inconstitucionais, assim como tantas decisões do Judiciário que transgredissem o tratamento isonômico.

3.1.5. Dos Princípios da afetividade e da felicidade

A professora Maria Berenice Dias (2021) define a felicidade como o princípio base e fundamental do Direito de Família que preza pelas relações afetivas sob as relações de cunho patrimonial e/ou biológico.

Nesta seara se vê que o afeto não se limita ao vínculo subjetivo entre os membros da família, possuindo caráter externo, ou seja, o princípio da afetividade engloba também o reconhecimento que a comunidade atribui à família.

No mesmo contexto a referida professora Maria Berenice Dias, ao citar as palavras do também professor Mauricio Cavallazzi Póvoas, aduz o dever do Estado em adotar posicionamento positivo frente ao Direito de Família para salvaguardar a felicidade de seus integrantes, nas palavras da autora:

O Estado tem obrigações para com os seus cidadãos. Precisa atuar de modo a ajudar as pessoas a realizarem seus projetos de realização, de preferências ou desejos legítimos. Não basta a ausência de interferências estatais. O Estado precisa criar instrumentos - políticas públicas – que contribuam para as aspirações de felicidade das pessoas, municiado por elementos informacionais a respeito do que é importante para a comunidade e para o indivíduo. Pouco importa que em nenhum momento a  Constituição cite as palavras afeto ou afetividade. Tal fato nem de longe afasta o caráter constitucional do princípio da afetividade. Eles são a essência de vários outros princípios constitucionais explícitos, sobretudo o maior deles, qual seja, a dignidade da pessoa humana, princípios estes umbilicalmente ligados. (PÓVOAS apud, DIAS, 2021, p. 75).

Para a professora Dias (2021) o princípio da afetividade possui espaço implícito no âmago da Carta Magna vez que o afeto foi elevado ao status constitucional no momento em que

se admitiu que a união estável fosse reconhecida como entidade familiar baseada no afeto entre seus integrantes, formando o tão aclamado projeto eudemonista e igualitário de entidade família.

Neste aspecto é comum associar o princípio da afetividade com o princípio da felicidade no tocante as relações familiares, tendo em vista que a afetividade está vinculada a ideia de felicidade. A busca da felicidade leva a afetividade entre as partes e está ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana no sentido de que a felicidade deva ser uma garantia existencial do Estado.

Assim, em decorrência do princípio da afetividade não seria possível admitir conformações familiares meramente patrimoniais e/ou biológicos.

Por essas razões em tese não haveria o que se falar em limitação do afeto e da felicidade, aspectos subjetivos de uma pessoa para outra, conquanto algumas podem atrelar a felicidade a possível união poliafetiva com outras pessoas com quem tenham tamanho afeto, não havendo o que se falar em possibilidade de intervenção estatal.

3.2. Da Sua Relação Com o Direito Costumeiro (Feriados Nacionais Por Leis)

Cumpre lembrar que o calendário nacional possui alguns feriados vindos da doutrina cristã, inclusive redigidos por leis federais!

Isso na verdade se dá sob a justificativa de ser o catolicismo a religião mais presente no Brasil desde 1890 e por isso os feriados nacionais foram criados naquela época a partir do calendário gregoriano.

Porém, de acordo com o portal UOL (2024), tais feriados na data de hoje não significariam uma quebra do Estado laico vez que seriam uma celebração não obrigatória de “fatos históricos, tradições e costumes de um povo”.

Tal posicionamento é defendido pela professora Raquel de Carvalho (2018) em seu artigo publicado no portal JUS.COM aonde ela se fundamenta muito em razão de não haver leis nacionais que obriguem os cidadãos a segui-las ou as celebrarem.

Nesta ótica não seria então a religião cristã, paralela aos seus feriados nacionais, reconhecida como um direito costumeiro nacional, vez que apesar de ser o símbolo de feriados nacionais as pessoas seguem outras religiões possuem a faculdade de celebrar ou não tais feriados?

São feriados religiosos nacionais o dia 1º de janeiro em celebração ao Dia da Fraternidade Universal, o dia 29 de março em celebração a Sexta-feira Santa, o dia 12 de Outubro em

consideração ao Dia de Nossa Senhora Aparecida e o dia 25 de dezembro em comemoração ao Natal.

Os feriados do Dia da Fraternidade Universal e do Natal estão previstos no artigo 1º da Lei nº 662/49; já o feriado em prol da Sexta-Feira Santa está previsto no artigo 2º da Lei nº 9.093/95; por fim o feriado em celebração ao Dia de Nossa Senhora Aparecida está previsto no artigo 1º da Lei nº 6.802/80.

3.3. Das Nações Aonde São Permitidas as Relações Poligâmicas

Hoje não são mais raros os países aonde o homem ou a mulher podem ser casados com uma ou mais pessoas.

O jornal UOL (2022) publicou que nos Estados Unidos o estado Utah descriminalizou a poligamia, sendo ela considerada uma pequena infração administrativa como uma infração de trânsito por exemplo, levando-se em consideração o país não mais punir tal tipo de união familiar.

Além dos Estados Unidos o mesmo jornal nos informa na citada notícia que os países de Camarões, Afeganistão, Sudão, Emirados Árabes Unidos, assim como em vários outros países da África, Oriente Médio e Ásia, consignando-se que na África Subaariana como sendo a região aonde a poligamia é mais frequente, ressalvando-se que na maioria dos países quem possui tal direito é o homem, sendo vedada a poliandria.

4. DA RELAÇÃO ENTRE O CRIME DE BIGAMIA E O CRIME DE ADULTÉRIO

Há quase duas décadas foi revogado no ordenamento legislativo nacional o crime de adultério até então previsto no artigo 240 do Código Penal, que previa pena punitiva de liberdade em detenção de 15 dias a 6 meses para aquele que “cometer adultério”, prevendo também que o corréu incorria na mesma pena, porém o crime foi revogado pela Lei 11.106 de 2005.

Tal crime, assim como o crime de bigamia, nasceu no Código Penal de 1830 e estava previsto em seu artigo 250, punindo a adúltera com pena privativa de liberdade e trabalho de 1 a 3 anos assim como o marido no caso de concubina teúda e manteúda. Lembramos que a Constituição Federal em vigor era a Constituição Federal de 1824, que previa que a religião do império seria obrigatoriamente a religião católica.

O bem jurídico tutelado é definido como a proteção da família com relação ao casamento e à reciprocidade oriundos da relação monogâmica, como vemos pelo ensinamento do professor Almeida o qual aduz que “O bem jurídico tutelado nesse momento é a harmonia e continuidade do núcleo familiar, logo tanto homens quanto mulheres passaram a ser legitimados a cometer o referido crime” (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2010).

Após o advento do instituto da “abolitio criminis” o crime adultério deixou de ser tutelado pelo Direito Penal no Brasil e passou a ser tratado unicamente pelo ramo do Direito Civil, o qual instituiu como um dos deveres do casamento a fidelidade recíproca no artigo 1.566 em seu inciso I (Código Civil de 2002). Segundo os professores Icizuka e Abdallah, a evolução histórica da sociedade brasileira do que reconhece como ético e social foi determinante para a revogação do crime, destacando ainda que com o tempo os próprios juristas deixavam de aplicar o crime em tela, vejamos:

Após a promulgação do Código Penal de 1940, diante da evolução dos conceitos da sociedade brasileira em relação ao matrimônio, os juristas continuaram a divergir sobre a eficiência e a necessidade da punição legal como forma de defesa da instituição familiar, particularmente em face ao princípio penal da intervenção mínima. Finalmente, a Lei n. 11.106/05, de 28 de março de 2005, revogou o art. 240 do Código Penal de 1940, sendo que a doutrina já considerava anacrônica há tempos a incriminação do Adultério. (ICIZUKA; ABDALLAH, 2007).

O professor Moreira (2023) destaca a importância da evolução da sociedade como “papel elementar para o advento da revogação do crime” devido aos direitos que a mulher vem conquistando tal qual o homem e aos avanços quanto ao respeito e tratamento cada vez mais igualitário de valores morais, éticos e religiosos.

Oportuno notar que os crimes de bigamia e adultério guardam deveras semelhanças, haja vista que ambos foram criados no Código Penal de 1830 quando havia uma determinada imposição da igreja católica, ambos estão sob a ótica da relação monogâmica e que o crime de bigamia, quando praticado, envolve a violação da fidelidade, elemento este reconhecido como o bem jurídico tutelado do crime de adultério.

Neste sentido nos ensina o professor Moreira:

Seguindo esse ponto de vista a figura da Bigamia seria menos reprovável que a do adultério, posto que em várias ocasiões não haveria de se falar em efetiva traição quando o cônjuge do bígamo aprovasse a outra relação instituindo as denominadas relações poliafetivas, o que não se pode falar do adultério o qual pressupõe a traição. Em análise mais aprofundada poder-se-ia afirmar que no caso de relações movidas pelo poliamor não haveria de se falar em rompimento do dever de fidelidade, tendo em vista que tal dever geraria oposição apenas em face de terceiros não integrantes da relação. (MOREIRA, 2023).

Destarte a revogação do crime de adultério e a manutenção do crime de bigamia poderia perfeitamente ser notada como uma falha do legislador por imperícia em logística e coerência.

5. CONCLUSÃO

O presente artigo teve como objetivos principais a análise e estudo não só de eventual inconstitucionalidade do crime de bigamia como também se a poligamia merece ou necessita de reprimenda na esfera penal.

Para tanto foram levantadas as leis que deram origem ao referido delito desde antes das leis atuais, bem como os princípios que norteiam a Constituição Federal e o direito de família que em tese seriam aplicáveis ao tema levantado, assim como uma análise sobre o que se espera do bem jurídico tutelado por si só.

Neste sentido lembramos dos feriados nacionais religiosos justamente para reforçar a discussão vez que são definidos por leis federais e há religiões que não celebram as referidas datas e há também feriados de várias religiões que não são previstos legalmente como feriados nacionais. Buscamos também trazer nesse artigo a realidade tanto nacional quanto de outros países no tocante ao tratamento da poligamia, trazendo ainda um comparativo entre o crime de bigamia e o antigo crime de adultério revogado há quase duas décadas, mais precisamente em 2005.

Após uma análise pormenorizada do tema em questão, consideramos ser inconstitucional o delito de bigamia principalmente em razão regime estatal laico previsto na Constituição Federal, mas também levando-se em consideração aos princípios da liberdade e dignidade da pessoa humana. Consideramos assim que o Estado não tem o poder de criminalizar condutas se baseando em qualquer religião principalmente quando há religiões que defendem a possibilidade de existência daquilo que o Estado pretende criminalizar.

Mesmo que Constituição Federal não trouxesse tais princípios que citamos como normas constitucionais, enxergamos não poder o Estado tutelar criminalmente a monogamia, vez que no contexto familiar deve prevalecer a felicidade e afetividade, princípios que são subjetivos, isto é, o que pode ser motivo de felicidade e afeto para um grupo pode não ser para o outro, consequentemente de uma religião para outra, de modo que morais e valores subjetivas não devem ser amparados na esfera criminal. Enxergamos ser um acerto a revogação do crime de adultério, porém ressaltamos que se realmente tal revogação foi motivada pela evolução da sociedade no tocante aos valores éticos e sociais, enxergamos também a ocorrência de um alarmante erro histórico do legislativo, vez que bigamia e adultério são condutas praticamente idênticas: envolvem o mesmo dever de fidelidade, o mesmo tipo de relação monogâmica e fora que foram crimes criados juntos quando a lei constitucional de 1824 criava alarmante imposição da igreja católica. A diferença seria apenas no casamento, ou seja, “um papel assinado que nada muda quanto ao dever de fidelidade”, não desmerecendo a simbolização histórica, cultural e religiosa do casamento como entendem vários povos, mas apenas ressaltando que o ato de

casar não altera em nada o dever de fidelidade dentro das relações monogâmicas em comparação ao crime de adultério. Logo, concluímos que o crime de bigamia é nada mais nada menos que um crime religioso criado pelos costumes cristãos, religião esta que predomina em maioria no território nacional, porém a sociedade evoluiu num contexto de respeito com demais religiões, nos aspectos valorativos, ético e sociais, não havendo o que se falar em qualquer possibilidade de criminalização da poligamia. Lembramos ainda que há pessoas que, mesmo se declarando seguidores de determinada religião, não seguem integralmente o que elas pregam e os motivos são variados para cada um, motivo que, somado aos outros motivos que elencamos, enxergamos que deve ser informado no ato da celebração do casamento se todas as partes concordam ou não com o casamento de forma monogâmica, restringindo as consequências de desrespeito ao regime estabelecido pelas partes à legislação civil dentro do direito de família, assim como é tratado hoje o “adultério” mais conhecido atualmente como “traição”.

Não obstante, também em razão do regime nacional laico e dos princípios da igualdade e dignidade da pessoa humana, em que pese a existência de leis federais que estabelecem feriados algumas celebrações da religião cristã como feriados nacionais não ferirem o princípio do Estado laico constitucional, reconhecemos o direito das demais religiões terem suas celebrações religiosas também amparadas por legislação federal como feriados nacionais.

A sociedade evoluiu muito quanto aos aspectos sociais valorativos, a busca da igualdade principalmente entre raças, sexos, orientações sexuais, religiosos e de gênero, de modo que a existência de legislação federal que reconhece como feriados nacionais apenas datas de celebração de uma determinada religião é um crível desrespeito em desarmonia com as demais religiões, que não possuem o direito de paralisação de seus trabalhos profissionais para que possam celebrar as datas comemorativas de suas respectivas religiões, e está em desarmonia com o desenvolvimento da sociedade.

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CONFLITOS NORMATIVOS NA INTERFACE ENTRE A PSICOLOGIA E O DIREITO

Palavras-chave

Psicologia. Direito. Poder Judiciário.

Me. Vinicius de Carvalho Carreira

Advogado formado pela Faculdade de Direito de Bauru; Psicólogo formado pela UNESP – Bauru; Especialista em Direito de Família e Sucessões, em Direito Processual Civil e em Psicologia Comportamental e Cognitiva; mestre e doutorando em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem pela UNESP – Bauru.

Dra. Ma. Marianne Ramos Feijó

Professora Assistente Doutora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências da UNESP – Bauru; Psicóloga formada pela Universidade Paulista; Especialista em Terapia de Casal e de Família pela PUC – SP; Mestra e Doutora em Psicologia Clínica pela PUC – SP; Pós-doutora em Psicobiologia pela Universidade Federal de São Paulo.

Resumo

A interface da Psicologia com o Direito, no Poder Judiciário, decorre de expressa imposição legal. Leis como a de execução penal e a de alienação parental, além do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Código de Processo Civil, exigem a realização de perícias psicológicas para diversas demandas. Porém, os peritos e assistentes técnicos estão submetidos não apenas à legislação federal, mas às normativas emanadas tanto dos Tribunais de Justiça quanto do próprio Conselho Federal de Psicologia – o que pode levar a conflitos normativos. Neste contexto, foi elaborado o presente trabalho, de natureza descritiva, com a finalidade de levantar e descrever, embora de maneira superficial, alguns conflitos reais e aparentes que surgem na conjugação das normas do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e do Conselho Federal de Psicologia. Os pontos destacados são na atuação de psicólogos como assistentes técnicos, como avaliadores no sistema prisional e nas causas de alienação parental, entre outros.

1. INTRODUÇÃO

O Poder Judiciário brasileiro trabalha em interface com a psicologia, especialmente no que tange ao Direito Criminal, ao Direito das Famílias e ao Direito de Infância e Juventude. Por exemplo, a Lei Federal n.º 7.210/84 – Lei de Execução Penal – estabelece, em seus artigos 5º e 7º, que a individualização da pena dos condenados será feita por Comissão Técnica de Classificação que deve conter no mínimo um psicólogo (BRASIL, 1984).

Quanto ao Direito das Famílias, a atuação da psicologia é essencial, entre outras, nas causas em que se discute alienação parental – definida pelo artigo 1º da Lei Federal n.º 12.318/10 como

a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este (BRASIL, 2010).

Nas ações que versam sobre alienação parental, há duas normas que estabelecem a atuação de psicólogos. A primeira, na supracitada lei de regência, cujo artigo 5º estabelece que “havendo indício da prática de ato de alienação parental, [...] o juiz, se necessário, determinará perícia psicológica” (BRASIL, 2010).

A segunda norma que trata do tema, assim como de abuso – embora sem especificação de que tipo ou contra quem – é o Código de Processo Civil, cujo artigo 699 assim determina: “quando o processo envolver discussão sobre fato relacionado a abuso ou a alienação parental, o juiz, ao tomar o depoimento do incapaz, deverá estar acompanhado por especialista” (BRASIL, 2015). A referência a especialista pela lei processual, quando interpretada em conjunto com a lei de alienação parental, significa que o especialista deve ter conhecimento psicológico ou biopsicológico, sem excluir outras áreas, a depender do caso.

Por sua vez, o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei Federal n.º 8.069/90 – estabelece, em seu artigo 151, que a Justiça da Infância e da Juventude será assessorada por equipe interprofissional para

fornecer subsídios por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico (BRASIL, 1990)

Embora a lei não estabeleça qual é a composição dessa equipe interprofissional, no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (2013), as normas de serviço dos ofícios judiciais definem que a composição será por psicólogos e assistentes sociais:

Art. 802. Os Assistentes Sociais e os Psicólogos Judiciários executarão suas atividades profissionais junto às Varas de Infância e Juventude, da Família e das Sucessões, de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, de Crimes contra Crianças e Adolescentes e do SANCTVS, nas ações que demandem medidas de proteção a idosos em situação de risco, mesmo que tramitem nas Varas Cíveis ou da Fazenda Pública e nas ações que demandem o depoimento especial, nos termos da Lei nº 13.431/2017.5

§ 1º Compete à equipe interprofissional fornecer subsídios por escrito mediante laudos, ou oralmente, na audiência, e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção, depoimento especial e outras, tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico (TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2013)

O Tribunal de Justiça de São Paulo (2022) também editou o Manual de Procedimentos Técnicos que contempla atribuições e recomendações destinadas aos psicólogos judiciários. Esses profissionais, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), atuam especialmente em causas de acolhimento familiar e institucional, de adoção e de perda e suspensão de poder familiar.

Por outro lado, no Brasil, a profissão de psicólogo é regulamentada pela Lei Federal n.º 4.119/1962 e pela Lei Federal n.º 5.766/1971 (BRASIL, 1962, 1971). Enquanto aquela cuida da formação e das prerrogativas dos bacharéis em psicologia, esta trata dos Conselhos Estaduais e Federal – este com atribuição para normatizar a prática desses profissionais.

Além de diversas resoluções e notas técnicas, o Conselho Federal de Psicologia (2019) editou um livro destinado aos psicólogos judiciários lotados nas varas de família. Referida obra consiste num compilado das demais normas, sem trazer inovações.

Verifica-se, assim, que da mesma maneira que os Tribunais podem estabelecer normas regulando a atuação de psicólogos inscritos em suas fileiras, estes devem obediência também às determinações do Conselho Federal de Psicologia. E, eventualmente, tais normas não são compatíveis entre si.

Neste contexto, o presente trabalho se propõe a apresentar as normas aplicáveis aos psicólogos atuantes no Poder Judiciário no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, sejam oriundas do próprio Tribunal ou do Conselho Federal de Psicologia, destacando os pontos de conflito normativo.

2. MÉTODO

Este artigo é de natureza descritiva, elaborado a partir de consulta à legislação federal e aos documentos e normas editados pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e pelo Conselho Federal de Psicologia, além da portais de notícias de renome. A consulta foi feita nos sites oficiais de ambas as instituições, sendo excluídas eventuais normativas que não estivessem disponibilizadas nesses portais. Apenas normativas atualmente em vigor foram consideradas, ainda que tenham tido sua eficácia suspensa por decisão judicial –como aconteceu com uma das resoluções encontradas.

O trabalho não se propõe a esgotar o tema, mas sim, a servir de guia para a atuação dos operadores do Direito e da Psicologia no contexto forense, bem como para fomentar a revisão das normas e a elaboração de um repertório normativo elaborado em conjunto pelos Tribunais e pelo Conselho Federal de Psicologia.

2.1. Referências consultadas no site do Tribunal de Justiça paulista

As normas e documentos em vigor disponíveis no site do Tribunal de Justiça de São Paulo que tratam da atuação de psicólogos foram as seguintes:

Comunicado n. 345/2004: estabelece as atribuições do psicólogo judiciário (TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2004).

Comunicado n. 01/2008: recomendação para a atuação do psicólogo no Tribunal de Justiça (TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2008).

Provimentos n.º 50/1989 e 30/2013: normas de serviço dos ofícios de justiça – Tomo I (TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2013).

2022: manual de procedimentos técnicos: atuação dos profissionais de serviço social e psicologia – infância e juventude (TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2022).

2.2. Referências consultadas no site do Conselho Federal de Psicologia

As normas e documentos em vigor disponíveis no site do Conselho Federal de Psicologia que tratam da atuação de psicólogos judiciários foram as seguintes:

Resolução n.º 08/2010: dispõe sobre a atuação do psicólogo como perito e assistente técnico no Poder Judiciário (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2010).

Resolução n.º 12/2011: Regulamenta a atuação da(o) psicóloga(o) no âmbito do sistema prisional (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2011).

2019: livro “Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os) em varas de famílias” (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2019).

2019: livro “Debatendo sobre alienação parental: diferentes perspectivas” (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2019).

Nota Técnica n. 04/2022: sobre os impactos da lei nº 12.318/2010 na atuação das psicólogas e dos psicólogos (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2022).

Nota Técnica n. 01/2023: visa a orientar psicólogas e psicólogos sobre a prática da Constelação Familiar, também denominada Constelações Familiares Sistêmicas (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2023).

3.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Apesar da preocupação do Conselho Federal de Psicologia com a independência funcional dos psicólogos, algumas de suas normativas contemplam disposições que conflitam ora com a legislação, ora com normativas do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. As principais serão destacadas nos tópicos abaixo.

3.1. Atuação de psicólogos assistentes técnicos

A legislação impõe a realização de perícias psicológicas em diversas questões, especialmente nas causas de Família e de Infância e Juventude. Além disso, a lei processual estabelece que é direito da parte nomear um assistente técnico para acompanhar o trabalho do perito (BRASIL, 1973, 2015).

A fim de evitar conflitos éticos por ocasião da realização de perícias psicológicas, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (2008) editou o Comunicado n.º 01/2008. Referida norma estabelece a possibilidade de participação do assistente técnico durante a realização da perícia:

recomenda-se que o Assistente Técnico solicite ao Perito do juízo, caso deseje estar na sala no momento da realização da avaliação social ou psicológica a ser realizada por este último, cabendo ao Perito levar em conta as variáveis que integram uma avaliação, dada ciência por escrito para as partes (TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2008).

Posteriormente, foi editada a Resolução n.º 08/2010 do Conselho Federal de Psicologia (2010), que também trata dos psicólogos que atuam como peritos e assistentes técnicos no Poder Judiciário. Contrastando com o Comunicado n.º 01/2008 do Tribunal de Justiça de São Paulo (2008), o artigo 2º da Resolução em comento estabelece que

O psicólogo assistente técnico não deve estar presente durante a realização dos procedimentos metodológicos que norteiam o atendimento do psicólogo perito e vice-versa, para que não haja interferência na dinâmica e qualidade do serviço realizado (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2010).

Apesar de vedar a atuação permitida pelo Tribunal de Justiça estadual (TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2008), a normativa supracitada se reporta textualmente, no parágrafo único de seu artigo 8º, ao artigo 429 do Código de Processo Civil de 1973 (BRASIL, 1973), reproduzindo ipsis litteris a autorização nele contida para que o assistente técnico ouça pessoas e solicite documentos. Contudo, o novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015) regulamentou de maneira diferente a questão.

Embora o artigo 429 do Código de Processo Civil de 1973 (BRASIL, 1973) tenha correspondente no artigo 473, §5º, da Lei Processual Civil em vigor (BRASIL, 2015), a atual codificação ampliou as prerrogativas do assistente técnico:

§ 3º Para o desempenho de sua função, o perito e os assistentes técnicos podem valer-se de todos os meios necessários, ouvindo testemunhas, obtendo informações, solicitando documentos que estejam em poder da parte, de terceiros ou em repartições públicas, bem como instruir o laudo com planilhas, mapas, plantas, desenhos, fotografias ou outros elementos necessários ao esclarecimento do objeto da perícia. (BRASIL, 2015).

Além das novas prerrogativas, o novo Código de Processo Civil inovou ao incluir, em seu artigo 466, §2º, a determinação de que “o perito deve assegurar aos assistentes das partes o acesso e o acompanhamento das diligências e dos exames que realizar, com prévia comunicação, comprovada nos autos, com antecedência mínima de 5 (cinco) dias” (BRASIL, 2015). Portanto, a nova codificação está em harmonia com o Comunicado n.º 01/2008 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (2008).

Verifica-se, assim, que a Resolução n.º 08/2010 do Conselho Federal de Psicologia (2010) não foi atualizada para acomodar as alterações operadas pelo novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015), além de restringir prerrogativa assegurada por norma editada por Tribunal de Justiça estadual (2008).

3.2. Psicólogos no sistema prisional

Todo estabelecimento prisional deve contar com, pelo menos, um psicólogo para integrar sua Comissão Técnica de Classificação, como determina o artigo 7º da Lei de Execução Penal (BRASIL, 1984). Uma de suas atribuições é a realização de exames criminológicos, impostos pela lei para obtenção de certos benefícios, tais como a progressão de regime.

Em 2011, o Conselho Federal de Psicologia (2011) editou a Resolução n.º 12/2011, regulamentando a atuação dos psicólogos no sistema carcerário. Referida norma proibiu os profissionais de realizar aferição de periculosidade, bem como de “participar de procedimentos que envolvam as práticas de caráter punitivo e disciplinar, notadamente os de apuração de faltas disciplinares”.

A norma em comento foi contestada judicialmente pelo Ministério Público Federal e, nos autos do processo de n.º 5028507-88.2011.4.04.7100, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região tornou nula a Resolução n.º 12/2011 (CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA, 2011) em todo o Brasil (BRASIL, 2015).

3.3. Causas de alienação parental

A Lei Federal n.º 12.318/2010 (BRASIL, 2010) estabelece a necessidade de perícia psicológica ou biopsicológica nas causas em que há indício de ocorrência de ato de alienação parental. Essa atribuição compete aos psicólogos judiciários, no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (2004), por força do Comunicado n.º 345/2004, que atribui a esses profissionais a competência para

1. Proceder a avaliação de crianças, adolescentes e adultos, elaborando o estudo psicológico, com a finalidade de subsidiar ou assessorar a autoridade judiciária no conhecimento dos aspectos psicológicos de sua vida familiar, institucional e comunitária, para que o magistrado possa decidir e ordenar as medidas cabíveis;

2. Exercer atividades no campo da psicologia jurídica, numa abordagem clínica, realizando entrevistas psicológicas, individuais, grupais, de casal e família, além de devolutivas; aplicar técnicas psicométricas e projetivas, observação lúdica de crianças, crianças/pais, para compreender e analisar a problemática apresentada elaborando um prognóstico; propor procedimentos a serem aplicados; (TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2004).

Por seu turno, o Conselho Federal de Psicologia adota posição declaradamente contrária à Lei de Alienação Parental (BRASIL, 2010). O órgão considera que há poucas evidências científicas para o fenômeno, pontuando que

É importante destacar que nem Gardner, nem seus seguidores conduziram e/ou apresentaram qualquer evidência científica (estudos longitudinais e clínicos, por exemplo) para comprovar a existências dessas consequências e a relação com os atos de alienação parental. (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2019, p. 15)

Após a edição de livro discutindo a questão (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2019), foi editada a Nota Técnica n.º 04/2022 (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2022). Referida norma contempla recomendações aos profissionais instados a atuarem em causas que versam sobre alienação parental, em especial:

1 - As psicólogas e os psicólogos não fundamentem suas análises e conclusões acerca dos membros do grupo familiar e de suas dinâmicas relacionais com base no ilícito civil, definido pela Lei nº 12.318/2010 como alienação parental;

2 - Em situações nas quais são instados a se manifestar sobre a ocorrência ou não de alienação parental, nos termos da Lei nº 12.318/10, as psicólogas e os psicólogos contextualizem essa demanda e se pronunciem a partir do campo da Psicologia, evidenciando os referenciais teóricos, técnicos e éticos que fundamentam as suas análises e conclusões; (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2022).

Embora aparente, não houve a restrição ou proibição de avaliações psicológicas sobre questões de alienação parental. O que se procedeu foi à separação do ilícito civil instituído no artigo 6º da lei de regência e da constatação da ocorrência de ato de alienação, conforme descrito no rol exemplificativo no artigo 2º, parágrafo único, da referida lei (BRASIL, 2010).

A norma em comento (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2022) não se apresenta em oposição às atribuições do psicólogo judiciário estabelecidas pelo Comunicado n.º 345/2004 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (2004), uma vez que esta não atribui a esses profissionais a competência para pronunciamento sobre a ocorrência ou não de ilícitos civis. Além disso, foram definidas balizas para assegurar a qualidade da perícia exigida pelo diploma legal.

3.4 . Prática de constelação familiar sistêmica

A denominada constelação familiar sistêmica foi introduzida no Brasil em 2001, sendo uma prática desenvolvida por Bert Hellinger e tem como objeto a solução de conflitos (MARINO; MACEDO, 2018). Desde então, ela foi adotada e implantada no Poder Judiciário com base na Resolução n.º 125 do Conselho Nacional de Justiça (2010) e, como demonstram dados de abril de 2018 do referido conselho, a prática está presente nos Tribunais do Distrito Federal e de dezesseis outros Estados (FARIELLO, 2018).

A prática, porém, não é recomendada pelo Conselho Federal de Psicologia (2023), o qual, através da Nota Técnica n.º 01/2023, proibiu os psicólogos de praticarem a constelação familiar sistêmica.

Por fim, a inconsistência científica e epistemológica da Constelação Familiar, bem como a sua dissonância com o Código de Ética Profissional do Psicólogo e legislações profissionais, levam os Conselhos Federal e Regionais de Psicologia a concluírem que a prática é, no momento, incompatível com o exercício da Psicologia. O uso isolado de teorias e técnicas não se faz suficiente para legitimar uma prática como psicológica, e o que se identifica dos fundamentos epistemológicos da teoria da Constelação Familiar a coloca em confronto direto com preceitos fundamentais da profissão da psicóloga, conforme destacado, no que tange a diversas normativas da Psicologia e outras a ela correlatas.

[...] Além disso, percebe-se que a Constelação Familiar tem potencial para fazer emergir conflitos de ordem emocional e psicológica tanto individuais quanto familiares, de modo que pode desencadear ou agravar estados emocionais de sofrimento ou de desorganização psíquica, exigindo assim um acompanhamento profissional psicológico e/ou psiquiátrico que não é oferecido durante as sessões.

As concepções de indivíduo, família e papéis sociais das teorias majoritárias da

Constelação Familiar parecem ser dissonantes dos principais conceitos técnicos e teóricos da Psicologia e geram um risco de violação de preceitos éticos da profissão de psicóloga (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2022).

Apesar de proibição aos psicólogos, não há notícia de vedação semelhante no Tribunal de Justiça de São Paulo. Contudo, há um projeto de lei em trâmite pela Câmara dos Deputados, tramitando sob o n.º 2166/2024, visando proibir a constelação familiar sistêmica em todo o Poder Judiciário (BRASIL, 2024).

Em paralelo ao referido projeto de lei, tramita no Conselho Nacional de Justiça o pedido de providências de n.º 0001888-67.2019.2.00.0000, cujo objetivo é a regulamentação da constelação familiar sistêmica. Ainda não houve decisão do órgão, porém, a maior parte dos votos já manifestados foi pela proibição da prática no Poder Judiciário (TAJRA, 2024).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os psicólogos, por imposição legal (BRASIL, 1971), devem obediência às normas do Conselho Federal de Psicologia, órgão encarregado de disciplinar a profissão. Nesse contexto, a norma infralegal editada por quaisquer outros órgãos, ainda que Tribunais integrantes do Poder Judiciário, não têm o condão de compelir esses profissionais a agir em desobediência ao seu conselho profissional.

Por outro lado, não pode o Conselho Federal de Psicologia editar normativa – infralegal, portanto – que contrarie disposição expressa de lei federal. Da mesma maneira, a superveniência de legislação incompatível com a norma administrativa a derroga, porquanto hierarquicamente superior.

Partindo dessas premissas, o que se verifica é que, nos conflitos normativos verificados, tais como da Resolução n.º 08/2010 do Conselho Federal de Psicologia (2010) com o Comunicado n.º 01/2008 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (2008), os psicólogos judiciários devem obedecer ao seu órgão de classe.

Apesar da evidente ilegalidade verificada a partir da vigência do novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015), até que a norma administrativa seja declarada ilegal por ato judicial –como ocorreu com a Resolução n.º 12/2011 do Conselho Federal de Psicologia (2011), que regulamentava a atuação dos psicólogos no sistema carcerário – ou até que seja revogada por ato do próprio Conselho, ela deve ser observada.

Por outro lado, os operadores do Direito devem estar cientes das limitações impostas pelo Conselho Federal aos psicólogos no que tange à sua atuação. É o que se verifica nas causas em que se discute alienação parental (BRASIL, 2010), nas quais a imposição de regulamentação pelo órgão de classe (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2022) não significa impossibilidade de obediência às atribuições exigidas pelo Tribunal de Justiça (2004, 2022).

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Lei n.º 5.766, de 20 de dezembro de 1971 Cria o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Psicologia e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [1971]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5766.htm. Acesso em: 13 jul. 2024.

BRASIL. Lei n.º 7.210, de 11 de julho de 1984 Institui a Lei de Execução Penal. Brasília, DF: Presidência da República, [2024]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/l7210.htm. Acesso em: 13 jul. 2024.

BRASIL. Lei n.º 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Brasília, DF: Presidência da República, [2015]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869.htm. Acesso em: 13 jul. 2024.

BRASIL. Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990 Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras

providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2024]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ l8069.htm. Acesso em: 13 jul. 2024.

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Edição 46 Ano 2024

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