Revista Científica da Escola Superior de Advocacia: Direito das Mulheres - Ed. 33

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DIRETORIA OAB SP CAIO AUGUSTO SILVA DOS SANTOS

PRESIDENTE OAB SP

RICARDO LUIZ DE TOLEDO SANTOS FILHO VICE-PRESIDENTE OAB SP

AISLAN DE QUEIROGA TRIGO SECRETÁRIO-GERAL OAB SP

MARGARETE DE CÁSSIA LOPES

SECRETÁRIA-GERAL ADJUNTA OAB SP

RAQUEL ELITA ALVES PRETO DIRETORA TESOUREIRA OAB SP

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CONSELHEIROS EFETIVOS: AILTON JOSÉ GIMENEZ ALESSANDRO BIEM CUNHA CARVALHO ALEXANDRE CADEU BERNARDES ALEXANDRE COTRIM GIALLUCA ALEXANDRE LUÍS MENDONÇA ROLLO ANA AMÉLIA MASCARENHAS CAMARGOS ANA CAROLINA MOREIRA SANTOS ANA CRISTINA ZULIAN ANA LAURA SIMIONATO VICTOR ANE ELISA PEREZ ANTÔNIO CARLOS CHIMINAZZO ANTÔNIO CARLOS DELGADO LOPES CARLOS FERNANDO DE FARIA KAUFFMANN CELSO FERNANDO GIOIA CLARISSA CAMPOS BERNARDO CLÁUDIA PATRÍCIA DE LUNA SILVA CRISTIANO ÁVILA MARONNA DANIELLA MEGGIOLARO PAES DE AZEVEDO DANYELLE DA SILVA GALVÃO DIVA GONÇALVES ZITTO MIGUEL DE OLIVEIRA EDSON ROBERTO REIS FABIANA DAS GRAÇAS ALVES GARCIA FABRÍCIO DE OLIVEIRA KLÉBIS FLÁVIO OLÍMPIO DE AZEVEDO GABRIELLA RAMOS DE ANDRADE MOREIRA GISLAINE CARESIA GLAUCO POLACHINI GONÇALVES GUILHERME MIGUEL GANTUS IRMA PEREIRA MACEIRA IVAN DA CUNHA SOUSA JOÃO EMÍLIO ZOLA JÚNIOR JOSÉ MEIRELLES FILHO JOSÉ PABLO CORTÊS JOSÉ PASCHOAL FILHO JOSÉ ROBERTO MANESCO JULIANA MIRANDA ROJAS JÚLIO CÉSAR FIORINO VICENTE KEILLA DIAS TAKAHASHI VIEIRA LEANDRO SARCEDO LETÍCIA DE OLIVEIRA CATANI LUCIANA GERBOVIC AMIKY LUCIANA GRANDINI REMOLLI LUÍS AUGUSTO BRAGA RAMOS LUÍS HENRIQUE FERRAZ LUIZ EUGÊNIO MARQUES DE SOUZA LUIZ FERNANDO SÁ E SOUZA PACHECO LUIZ GONZAGA LISBOA ROLIM MARCO CÉSAR GUSSONI MARCOS ANTÔNIO DAVID MARCOS RAFAEL FLESCH MARIA DAS GRAÇAS PERERA DE MELLO MARIA HELENA VILLELA AUTUORI ROSA MARIA SYLVIA APARECIDA DE OLIVEIRA MARINA ZANATTA GANZAROLLI MARISA APARECIDA MIGLI MILTON JOSÉ FERREIRA DE MELLO ODINEI ROGÉRIO BIANCHIN ORLANDO CÉSAR MUZEL MARTHO REGINA MARIA SABIA DARINI LEAL RENATA SILVA FERRARA ROBERTO PEREIRA GONÇALVES ROGÉRIO LUÍS ADOLFO CURY RONALDO JOSÉ DE ANDRADE

ROSANA DE SANT’ANA PIERUCETTI ROSANA MARIA PETRILLI ROSELI OLIVA ROSINEIDE MARTINS LISBOA MOLITOR RUBENS ROCHA PIRES SIDNEI ALZÍDIO PINTO SÍLVIA HELENA MELGES SÔNIA MARIA PINTO CATARINO SUZANA HELENA QUINTANA TAYON SOFFENER BERLANGA THIAGO TESTINI DE MELLO MILLER WALFRIDO JORGE WARDE JÚNIOR

PATRÍCIA HELENA MASSA PAULO HENRIQUE DE ANDRADE MALARA PEDRO RENATO LÚCIO MARCELINO PEDRO RICARDO BOARETO PEDRO VIRGÍLIO FLAMÍNIO BASTOS RAFAEL OLÍMPIO SILVA DE AZEVEDO RAQUEL BARBOSA RENATA LORENZETTI GARRIDO RITA MARIA COSTA DIAS NOLASCO RODNEI JERICÓ DA SILVA RODRIGO DE MELO KRIGUER ROSÂNGELA FERREIRA DA SILVA RUBENS EDUARDO DE SOUSA AROUCA CONSELHEIROS SUPLENTES: RUTINALDO DA SILVA BASTOS RUY JANONI DOURADO ACYR MAURICIO GOMES TEIXEIRA SÉRGIO MARTINS GUERREIRO ANA PAULA MASCARO JOSÉ IZZI SÉRGIO QUINTERO ANDRÉ LUIZ SIMÕES DE ANDRADE SIDMAR EUZÉBIO DE OLIVEIRA ANNA LYVIA ROBERTO CUSTÓDIO SIMONE HENRIQUE RIBEIRO STELLA VICENTE SERAFINI ANTÔNIO JOSÉ KAXIXA FRANCISCO SUELI DIAS MARINHA ARNALDO GALVÃO GONÇALVES SUELI PINHEIRO AUGUSTO GONÇALVES SULIVAN REBOUÇAS ANDRADE CARLOS ALBERTO DOS SANTOS MATTAÍSA CINTRA DOSSO (LICENCIADA) TOS THAIS JUREMA SILVA CARLOS EDUARDO BOIÇA MARCONDES THAYS LEITE TOSCHI MOURA THIAGO PENHA DE CARVALHO FERREICÉSAR PIAGENTINI CRUZ RA CLÁUDIA ELISABETE SCHWERZ CAHALI THIAGO RODOVALHO DOS SANTOS CRISTIANO MEDINA DA ROCHA WAGNER FUIN EDUARDO SILVEIRA MARTINS WILLEY LOPES SUCASAS ÉLIO ANTÔNIO COLOMBO JÚNIOR WILLIAM NAGIB FILHO ÉRYKA MOREIRA TESSER EUGÊNIO CARLO BALLIANO MALAVASI FÁBIO GINDLER DE OLIVEIRA MEMBROS HONORÁRIOS VITALÍCIOS: FABRÍCIO AUGUSTO AGUIAR LEME FERNANDO BORGES VIEIRA ANTONIO CLAUDIO MARIZ DE OLIVEIFERNANDO FABIANI CAPANO RA FERNANDO MARIANO DA ROCHA CARLOS MIGUEL CASTEX AIDAR ÍRIS PEDROZO LIPPI JOSÉ ROBERTO BATOCHIO ISABELA GUIMARÃES DEL MONDE JOÃO ROBERTO EGYDIO PIZA FONTES ISABELLA AITA MACIEL DE SÁ LUIZ FLÁVIO BORGES D’URSO JOÃO BATISTA MUÑOZ MARCOS DA COSTA JORGE PINHEIRO CASTELO MARIO SERGIO DUARTE GARCIA JOSÉ LUIZ DA SILVA KÁTIA DE CARVALHO DIAS LEANDRO RICARDO DA SILVA CONSELHEIROS EFETIVOS PAULISTAS LIA PINHEIRO ROMANO DE CARVALHO NO CONSELHO FEDERAL: LIAMARA BORRELLI BARROS LUCIANA ANDRÉA ACCORSI BERARDI ALEXANDRE OGUSUKU LUIZ CARLOS ZUCHINI GUILHERME OCTÁVIO BATOCHIO LUIZ DONATO SILVEIRA GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY LUIZ GUILHERME PAIVA VIANNA BADARÓ MAITÊ CAZETO LOPES MARCEL AFONSO BARBOSA MOREIRA MARCELO KAJIURA PEREIRA CONSELHEIROS SUPLENTES PAULISTAS MARCELO TADEU RODRIGUES DE NO CONSELHO FEDERAL: OMENA MARCOS ANTÔNIO ASSUMPÇÃO CAALICE BIANCHINI BELLO DANIELA CAMPOS LIBÓRIO MARCOS FERNANDO LOPES FERNANDO CALZA DE SALLES FREIRE MARCOS GUIMARÃES SOARES MARIE CLAIRE LIBRON FIDOMANZO MÁRIO LUIZ RIBEIRO MARISTELA SABBAG ABLA ROSSETTI MYRIAN RAVANELLI SCANDAR KARAM NILSON BÉLVIO CAMARGO POMPEU ODILON LUIZ DE OLIVEIRA JÚNIOR OZÉIAS PAULO DE QUEIROZ TRIÊNIO 2019/21

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DIRETORIA ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA DA OAB SP JORGE CAVALCANTI BOUCINHAS FILHO DIRETOR ESA OAB SP

LETÍCIA DE OLIVEIRA CATANI VICE-DIRETORA ESA OAB SP

CONSELHO CURADOR ESA OAB SP EDSON ROBERTO REIS

PRESIDENTE DO CONSELHO CURADOR ESA OAB SP

SUELI APARECIDA DE PIERI

VICE-PRESIDENTE DO CONSELHO CURADOR ESA OAB SP

SILVIO LUIZ DE ALMEIDA

SECRETÁRIO DO CONSELHO CURADOR ESA OAB SP CONSELHEIROS:

MARCOS ANTONIO MADEIRA DE MATTOS MARTINS LUIZ HENRIQUE BARBANTE FRANZE LUCIANO DE FREITAS SANTORO PATRÍCIA ROMERO DOS SANTOS WEIZ REPRESENTANTE DO CORPO DOCENTE

ANA LAURA SIMIONATO VICTOR

COORDENADOR DE CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO

EDUARDO ARANTES BURIHAN

REPRESENTANTE DO CORPO DISCENTE

RICARDO CARAZZAI AREASCO ADRIANO FERREIRA

COORDENADOR GERAL ESA OAB SP

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REVISTA CIENTÍFICA VIRTUAL DIREITO DAS MULHERES

DIRETORIA OAB SP....................................................................... 02 CONSELHO OAB SP...................................................................... 03 DIRETORIA ESA OAB SP.............................................................. 04

Revista Científica Virtual da Escola Superior de Advocacia OAB SP

PREFÁCIO......................................................................................... 07

DIREITO DAS MULHERES

A SEXUALIDADE: UMA CONQUISTA DA MULHER MODERNA.................................................................... 08

Coordenação: Taís Nader Marta

DIREITOS DAS MULHERES E A EVOLUÇÃO FEMININA.... 24

Nº 33 São Paulo, OAB SP - 2020

A ATUAÇÃO PARCIAL E POSITIVA DO JUIZ NA CONDUÇÃO PROCESSUAL EM CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER................................................. 38

Jornalista Responsável: Marili Ribeiro

DESIGUALDADE E SUBDESENVOLVIMENTO: UMA ANÁLISE DOS IMPACTOS DA DESIGUALDADE DE GÊNERO E DAS VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER NO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DO ESTADO BRASILEIRO..................................................................................... 58 A INTERVENÇÃO DE ÓRGÃOS INTERNACIONAIS NA FISCALIZAÇÃO E PREVENÇÃO DE CRIMES CONTRA A MULHER E SUA IMPORTÂNCIA PARA O ALCANCE DA CONSCIENTIZAÇÃO MUNDIAL SOBRE A IGUALDADE, FRATERNIDADE E LIBERDADE.................................................. 70 LICENÇA-MATERNIDADE E ESTABILIDADE DE EMPREGO DA GESTANTE EM CASOS DE NASCIMENTO SEM VIDA OU MORTE PÓS-PARTO DA CRIANÇA........................................... 76 MULHERES E O MERCADO DE TRABALHO – CAUSAS E RECOMENDAÇÕES PARA BUSCA DE UMA SOCIEDADE JUSTA........................................................................ 88 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS DA MULHER.....102 TRÁFICO DE MULHERES: COMÉRCIO ILEGAL DE MULHERES PARA FINS SEXUAIS E O DESRESPEITO À DIGNIDADE HUMANA...........................................................120

Coordenação Geral: Adriano Ferreira Coordenação Acadêmica: Erik Gomes Arte e Diagramação: Felipe Lima Fale Conosco Largo da Pólvora, 141 Sobreloja Tel. +55 11.3346.6800 Publicação Trimestral ISSN - 2175-4462. Direitos Periódicos. Ordem Dos Advogados do Brasil Seção São Paulo


RESPONSABILIDADE CIVIL NOS CASOS DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA NO BRASIL...................................140 GAROTAS DE PROGRAMA E O TRABALHO ESCRAVO ANÁLOGO......................................................................................156 ASPECTOS DA SELETIVIDADE PENAL DO CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS E O ENCARCERAMENTO FEMININO.....................................................................................172 DIREITO DAS MULHERES – RESPEITO AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE/LIBERDADE..........................................................182 # METOO: O PAPEL DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NAS MÍDIAS DIGITAIS EM DEFESA DOS DIREITOS DAS MULHERES....................................................................................194 DA VIOLÊNCIA PATRIMONIAL.................................................202 AS FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR PREVISTAS NA LEI N. 11.340/2006: ALGUMAS QUESTÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS..............................................................216

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PREFÁCIO A Revista Científica Virtual é um periódico destinado à divulgação da produção científica da comunidade jurídica da Escola Superior de Advocacia da OAB de São Paulo – ESA OAB-SP, – que registra o crescimento e desenvolvimento da sua produção científica. Esta publicação atesta a seriedade, a maturidade de seu comitê editorial e a senioridade em pesquisa dos seus representantes, que preservam a memória da produção apresentada em seus eventos científicos. Nesta edição, de número 33 da Revista, os conteúdos retratam a produção produzida para o “I Congresso Regional de Direito das Mulheres”, promovido pela “21ª Coordenaria Regional da Comissão da Mulher Advogada” (presidida pela Dra. Gabriela Cristina Gavioli Pinto e composta pelas Comissões da Mulher Advogada da OAB de Agudos, Avaré, Bariri, Barra Bonita, Bauru, Botucatu, Cafelândia, Cerqueira Cesar, Dois Córregos, Ibitinga, Jaú, Lençóis Paulista, Lins, Pederneiras, Pirajuí e São Manuel), com apoio da OAB de Bauru, da Secional Paulista da Ordem, da ESA OAB-SP e da ABMCJ (Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica)/ SP. São temas relevantes sobre o Direito das Mulheres e abrangem os seguintes conteúdos: Sexualidade, Violência - Doméstica, Obstétrica -, Desigualdade, Mercado de Trabalho, Tráfego de Mulheres, Igualdade Tributária, dentre outros. Assim, a Revista oficializa as publicações acadêmico-práticas em torno dos Direitos das Mulheres com o intuito de levar à reflexão dessa temática já que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, conforme diz Simone de Beauvoir, e ainda há muitos preconceitos a serem superados, pois “época triste a nossa, em que é mais difícil quebrar um preconceito do que um átomo” (Einstein). Com essa publicação, a Revista Científica Virtual da ESA SP aproxima suas relações com outros centros de pesquisa, do Brasil e do exterior, através da participação da sua comunidade jurídica e indica o acerto do caminho traçado e, ao mesmo tempo, os compromissos da “21ª Coordenaria Regional da Comissão da Mulher Advogada” com a pesquisa séria e dedicada. Sonhamos e ultrapassamos a meta que nos propusemos. “Para que precisamos de pés quando temos asas para voar? “ (Frida Kahlo) Os artigos foram selecionados, levando-se em consideração o rigor que caracteriza a produção científica da ESA-SP, pertinência com a sua linha editorial, pela qualidade, clareza de ideias, estruturação, abordagem e, ao mesmo tempo, pela relevância científica deles. Todo este esforço é resultado de um processo laborioso da Comissão Editorial e de todos colaboradores, leitores e autores que contribuíram com suas críticas e sugestões. Me. Taís Nader Marta Coordenadora Científica

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A SEXUALIDADE: UMA CONQUISTA DA MULHER MODERNA Aline Regina Alves Stangorlini Mestranda em Direito Civil Comparado/Puc-Sp. Especialista em Direito Público pela Universidade de Itajaí Sc. Especialista em Mediação e Conciliação pela Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte. Especialista em Processo Civil e Contratos pela Uniderp, Especialista em Direito Constitucional pela escola da Magistratura do Ceara. Advogada e consultora jurídica desde 2009. Possui artigos escritos nas áreas de Direito: Médico, Família, Digital e Complice.

SUMÁRIO 1.Introdução 2. Sexualidade: Afinal o que é? 3. Direitos sexuais e liberdade sexual das Mulheres 4. Sexualidade Feminina e mínimo existencial 5. Conclusões Referências

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RESUMO O escopo do presente artigo está em analisar a liberdade sexual feminina como elemento integrante e indissociável da acepção jus-filosófica do mínimo existencial. A sexualidade e, por extensão, as plurais manifestações que o termo comporta, na contemporaneidade da mulher, encontram guarida no superprincípio da dignidade da pessoa, impelindo a superação do tradicional binarismo adotado pela cultura brasileira que sempre julgou, restringiu e subestimou a sexualidade da mulher. Neste aspecto, ao reconhecer que o superprincípio em comento configura mecanismo imprescindível ao desenvolvimento humano, comportando as mais diversas manifestações, entende-se, em alinho, que a liberdade sexual substancializa apenas uma faceta de tal realização no caleidoscópio da mulher contemporânea. Conflui-se, diante da fluidez das relações e a dinâmica transformação do Direito, para o reconhecimento dos direitos sexuais como dotados de fundamental e a liberdade sexual como elemento constituinte do mínimo existencial.

PALAVRAS-CHAVE Direitos Sexuais. Liberdade Sexual Feminino. Mínimo Existencial.

ABSTRACT The aim of this paper is to analyze female sexual freedom as an integral and inseparable element of the jus-philosophical meaning of the existential minimum. Sexuality and, by extension, the plural manifestations that the term implies, in contemporary women, find shelter in the super principle of the dignity of the person, impelling the overcoming of the traditional binary adopted by the Brazilian culture that always judged, restricted and underestimated the sexuality of women. . In this regard, recognizing that the super-principle under discussion constitutes an indispensable mechanism for human development, comprising the most diverse manifestations, it is understood that sexual freedom only substantiates one facet of such achievement in the kaleidoscope of contemporary women. if, given the fluidity of relations and the dynamic transformation of law, for the recognition of sexual rights as fundamental and sexual freedom as a constituent element of the existential minimum.

KEYWORDS Sexual Rights. Female Sexual Freedom. Existential Minimum.

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1. INTRODUÇÃO O avanço da sociedade, o modo de pensar e agir transforma-se e acompanha o galgar do tempo, visando sempre quebrar paradigmas e modificar aquilo que é predeterminado, absorvendo novos valores e repensando o ser humano. Com a personalidade feminina, a sexualidade ampliou seu horizonte, e também as discursões acerca do corpo, da saúde, do prazer, e da educação que foram integradas ao seu escopo. A sexualidade saiu do seu tom cinza monótono, ganhou cores e vozes em âmbito internacional, por intermédio de movimentos que apoiam o feminismo e a causa LGBTI. Estes movimentos culminados com encontros e conferências internacionais lutaram, e ainda lutam, pelos Direitos sexuais que seja voltado para todos. A luta pelo Direito sexual feminino tem uma conotação muito mais ampla do que apenas o sexo, o tema toca em Direitos fundamentais, a forma como o se feminino é encarado e tratado, da mesma forma como na seara da Declaração Universal dos Direitos Humanos, trazendo à tona a dignidade da pessoa humana e a ideia do mínimo existencial. Ambos possuem um forte vínculo com os ideais tutelados pelas várias frentes que defendem o ser humano, como um ser livre e capaz de tomar suas próprias decisões, e que por elas deve responder e ser respeitado. O reconhecimento da pessoa deve ser feito com

base naquilo que ela deseja para si, e com isso formar a sua identidade sexual, de forma saudável, afastando qualquer tipo de expectativa social, baseada apenas em um olhar frio e distante do ser humano. Uma vez que, mesmo declarado esse direito a mulher continuou as margens desse direito tão básico. Prestar o respeito a sexualidade é um direito fundamental, balizado pela liberdade, que por vários documentos, como a Constituição Federal de 1988 define a liberdade como uma garantia à todos. A liberdade, a sexualidade, os Direitos e garantias fundamentais, que são pontos que se entrelaçam e que trazem mais força e esteio jurídico para que os Direitos sexuais das mulheres não sejam demonizados e sim assas libertarias. E necessário que a própria sociedade, e o governo vejam que as Mulheres devem ser aceitas e tuteladas independente da forma de identidade sexual que ela escolha, para que não haja arbitrariedades e injustiças sociais. Os pensamentos retrógrados e conformistas não devem imperar afim de que não cerceiem a liberdade de outras pessoas. A força da lei determina que todos devem ser tratados com isonomia e com dignidade, porém, ainda vivemos em um cenário em que estes direitos ainda são desrespeitados.

2 . SEXUALIDADE: AFINAL O QUE É? O significado presente na etimologia da palavra sexualidade, segundo o dicionário Aurélio, s.d.,” O conjunto dos fenômenos da vida sexual”1. A sua hermenêutica abarca tudo no tocante ao sexo, experiências e relações interpessoais, estímulos sensórias e da mesma forma, as escolhas, que diferem de um indivíduo para o outro.

concebido de uma forma coletiva, mas que, é de forma individual que está se realiza, sendo um direito inerente à pessoa. O Direito à sexualidade, que não denota apenas a prática do sexo em si, mas também, da abstinência até a liberdade de dispor do seu corpo, é o direito de exercer a sua sexualidade da forma que melhor lhe aprouver, que mais lhe trouxer prazer2. Sendo este um Assim, a sexualidade é algo que pode ser direito em que o indivíduo irá realizar-se da ma-

1 AURELIO, O mini dicionário da língua portuguesa.1 4a edição revista e ampliada do mini dicionário Aurélio. 7a impressão – Rio de Janeiro, 2012. BIAGINI, F. 2 MALVEIRA, Jamille Saraty. Direito à Sexualidade: uma perspectiva juscivilística. In: Congresso Nacional do CONPEDI/UNINOVE, 22. 2014, São Paulo. ANAIS… São Paulo: FUNJAB, 2014. p. 111-138.

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neira mais satisfatória e prazerosa, e coletiva, ao passo que, a uma sociedade só pode subsistir se seus cidadãos tem uma vida sexual ativa em adentra no ramo do direito médico, podendo o indivíduo por meio de reproduções assistidas produzir sua prole, portanto, o sexo para muito virou uma manifestação de pensamentos, ideias e vontades.

Na construção do indivíduo, são aspectos importantes o sexo biológico e o gênero, e a forma como ele se enquadra na sua perspectiva social, possuindo peso na sexualidade. O sexo biológico diz respeito ao órgão sexual com o qual o indivíduo nasce, quais sejam: o pênis para o homem ou a vulva para a mulher. Tal classificação é feita ao se nascer, pelas vias medicas, onde se observa qual o sexo do bebê e este é registrado, As opiniões acerca do tema sexualida- e por esse escopo biológico, define-se o gênero de demonstram-se divergentes, por se tratar da pessoa, seja masculino, ou, feminino6. de um tópico, em que, é muito difícil se achar um consenso abrangente, e que satisfaça de “Nessa ocasião, a designação sexual da um modo geral a toda sociedade, refletindo as pessoa é realizada com base apenas no exanuances e peculiaridades existentes no espectro me da genitália externa, ou seja, de seu sexo sexual. Igualmente, em decorrência de ser uma morfológico, dado presumivelmente imutátemática de exploração direcionada, sobretudo à vel, iniciando-se sua masculinização ou femiluz do Direito. A repercussão que reveste o tema nilização. Assim, é possível designar o recém dá o tom da imprescindibilidade da discussão, em especial com o escopo de superar o para- nascido como pertencente ao sexo feminino digma vigente e descrito como tradicional/normal ou masculino, o que constará de seu registro 7 para os padrões da sociedade brasileira, princi- civil” . palmente para a mulher e como ela se encaixa A definição do vocábulo sexo passou a nessa profusão. Logo, o afastamento da temática, propicia, uma penumbra, pois, o tema persiste com a falta da devida atenção a alguns assuntos, que são considerados tabus pela maioria, ferindo, por via de consequência, o que é determinado como correto e probo3. Como é demonstrado nos Princípios de Yogyakarta4, especificamente na introdução aos seus princípios:

“Muitos Estados e sociedades impõem normas de gênero e orientação sexual às pessoas por meio de costumes, legislação e violência e exercem controle sobre o modo como elas vivenciam seus relacionamentos pessoais e como se identificam. O policiamento da sexualidade continua a ser poderosa força subjacente à persistente violência de gênero, bem como à desigualdade entre os gêneros.”5

ter uma conotação biológica (procurar referencia), e também quanto à relação sexual ou a pluridade dela. A palavra gênero atende ao intrínseco da pessoa, representa ao seu sexo psicológico, uma construção feita pela própria pessoa no decorrer de sua vida e experiências, o meio em que esta pessoa vive, a cultura local, desenvolvendo assim a sua verdadeira forma de exercer a sexualidade, além das características físicas.

Assim, continua-se a se subjugar diferentes formas de expressões, quais sejam; sexuais ou de gênero, que por meio de pressões sociais, sucumbem ao que é imposto como ser o “certo” e o “errado”, em uma visão tradicionalista do que deve ser sexo, e também, orientação sexual. Por meio de um processo de determina-

3 GUIMARÃES, Jamile. A Sexualidade como direito de cidadania: participação e juventude. In: Congresso português de sociologia, 7. 2012, Porto. ANAI. Porto: Universidade do Porto, 2012. p. 1-12. 4 Os Princípios de Yogyakarta são um documento sobre direitos humanos nas áreas de orientação sexual e identidade de gênero, publicado como resultado de uma reunião internacional de grupos de direitos humanos em Yogyakarta, Indonésia, em novembro de 2006. 5 WAS. Declaração Universal dos Direitos Sexuais: Durante o XV Congresso Mundial de Sexologia, ocorrido em Hong Kong (China), entre 23 e 27 de agosto 2000 a Assembléia Geral da WAS – World Association for Sexology, aprovou as emendas para a Declaração de Direitos Sexuais, decidida em Valência, no XIII Congresso Mundial de Sexologia. Disponível em: <https://lblnacional.wordpress.com/tag/xv-congresso-de-hong-kong/>. Acesso em 10 de janeiro de 2020. 6 CAMARGO, Marina Carneiro Leão de. A tutela jurídica da pessoa transexual. Curitiba: EdUFP, 2011. 7 CAMARGO, Marina Carneiro Leão de. A tutela jurídica da pessoa transexual. Curitiba: EdUFP, 2011. p. 22.

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ção, em que se verifica o gênero aparente do indivíduo, que passa então por um “processo de adequação social” em que este indivíduo é exposto às expectativas por terceiros sobre seu corpo, sua mente e a forma como esta pessoa deve ser na sociedade. ”Com base nisso, são idealizados os gêneros, com a definição de comportamentos adequados para os homens e para as mulheres, construindo-se modelos hegemônicos intangíveis.”8 Essa forma de olhar estreito, distorcido sobre as pessoas, classificando-as em gêneros pré-determinados como macho e fêmea, homem e mulher gera uma dicotomia que é vivenciada aqui no Brasil, valorando-se apenas a relação binária e não igualitária, lançando as mulheres e os demais em uma vala de indignidade ou de marginalidade ao arquétipo tradicionalmente adotado. Segundo Parker9, a dicotomia atua como de forma de justificativa da virilidade e da passividade, contudo, este pensamento vem sendo desconstruído ao longo do tempo, em “que nem todos os indivíduos atendem as expectativas esperadas a partir das normas de gênero”10. Esta nova construção do ser humano, com base em um novo olhar sobre si mesmo e sobre sua sexualidade, reflete um grande avanço no que diz respeito à liberdade sexual da mulher, tema que será aprofundado em um momento posterior.

o prazer idealizado não é o seu, as práticas as formas, contexto da relação afetando da mesma forma o seu jeito de se relacionar sexualmente com outras pessoas, de modo que este desvio de conduta é caracterizado por:

“[…] indivíduos do sexo feminino identificam-se com o gênero feminino e têm orientação sexual voltada para o sexo masculino; e que indivíduos do sexo masculino identificam-se com o gênero masculino e têm orientação sexual voltada para o sexo feminino”.11 Características que são apresentadas em diversos gêneros, como nos homossexuais, drag queens e drag kings, bissexuais, travestis, transexuais, pansexuais e assexuais, sendo que, exceto a homossexualidade e a bissexualidade, as demais formas de gênero são tratadas como desvios. Agora imagine, uma mulher heterossexual que já sofre a descriminação por sua qualidade de gênero, por suas escolhas de prazer, forma, conduta em um mundo machista. Agora pegue essa mulher e coloque as grandes somatórias de que não se enquadra no objeto heterossexual, enquadrando nas formas já citadas acima. A priori, “o status sexual da pessoa é composto pela combinação dos aspectos físicos, psíquicos e comportamentais”12. Entretanto, o aspecto psicológico não é realmente atestado nesse primeiro contato, entre o ser que acabou de ser concebido e o mundo a sua volta.

Nesse diapasão, a ideia atrelada entre o órgão genital que a pessoa carrega, sendo esta a definição biológica em que falo órgão reprodutor masculino, e a vulva, órgão reprodutor feminino, são definições puramente morfológicas. Aqueles criam expectativas de como a pessoa deve agir, pensar, se comportar e se desenvolver perante as pessoas e a sociedade como um todo, isto se dá até mesmo antes destas nascerem.

Ao longo de sua vida que o sujeito sexual é construído e, também, descobre a si mesmo por intermédio de suas experiências. Neste sentido, ainda, cuida reconhecer que a sexualidade é fruto não apenas de um determinismo morfológico binário, e que certo gênero físico – masculino- não se sobre põem a outrem, mas também reflete uma série de experiências e contatos interpessoais que são capazes de despertar, em cada um, as suas predileções, os seus desejos, Entretanto, a psique do indivíduo pode não os seus impulsos13. ser compatível com o seu corpo biológico, ou 8 CAMARGO, Marina Carneiro Leão de. A tutela jurídica da pessoa transexual. Curitiba: EdUFP, 2011. Pag 07. 9 Richard Guy Parker é um antropólogo, sociólogo, sexólogo e brasilianista estadunidense. Atualmente é professor titular e chefe do Department of Sociomedical Sciences e diretor do Center for Gender, Sexuality. Apud. Que estuda as questões sexuais. CAMARGO, Marina Carneiro Leão de. A tutela jurídica da pessoa transexual. Curitiba: EdUFP, 2011, p. 6. 10 CAMARGO, Marina Carneiro Leão de. A tutela jurídica da pessoa transexual. Curitiba: EdUFP, 2011, p.7. 11 CAMARGO, Marina Carneiro Leão de. A tutela jurídica da pessoa transexual. Curitiba: EdUFP, 2011, p. 8. 12 CAMARGO, Marina Carneiro Leão de. A tutela jurídica da pessoa transexual. Curitiba: EdUFP, 2011, p. 11. 13 BUTTLER, 2003, apud CAMARGO, 2011, p. 21.

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A comunicação entre o corpo e o intelecto da pessoa é o que dignifica a sua escolha como ser humano, não só quanto ao seu gênero, outrossim, a sua sexualidade e de que forma ira exerce-la, a construção do “eu”, em uma visão psíquica, norteia o sentir, o agir e o querer das pessoas no que tange a sua sexualidade, e também, pode vir a determinar o sexo biológico que a pessoa deseja carregar consigo pelo resto de sua vida, como acontece claramente no caso da transexualidade, onde, o sujeito anseia pelo equilíbrio entre o seu sexo biológico e psíquico, para que possa exercer de forma pela sua sexualidade, por meio de correção cirúrgica, sendo “indispensável para sua saúde física e mental”14.

nação por sua orientação sexual ou identidade de gênero”16.

Então, a sexualidade poderia ser vivenciada em sua plenitude, sem os ditames de atividade/passividade, ou o ideal heterossexual tradicionalista que transforma a sexualidade em algo hierarquizado apenas no homem heterossexual. Com este balanço entre a mente e o corpo, que se perfaz por sua expressão biológica, mas também, pela sua psique, que reflete a alma, aquilo que a pessoa é no amago do seu ser, e que deseja externar. Desta forma, simétrica, é que a sexualidade pode ser vivenciada de modo em que haja igualdade, “postulando simetria “, ideal este defendido pelos movimentos de liberação “Pode-se concluir, portanto, que, na das mulheres e dos homossexuais, e que tamperspectiva médica, coloca-se que as pes- bém defendem “a dissolução da distinção de 17 soas transexuais apresentam três caracte- gênero» .

rísticas essenciais que dão a base para a definição do transexualismo, quais sejam, a constituição física biologicamente normal, a convicção precoce, permanente e inabalável de pertencer ao sexo oposto ao sexo biológico, e a aversão aos próprios órgãos sexuais externos, desejando a sua modificação”.15

Sexualidade é uma parte integral de a personalidade de todo ser humano. O desenvolvimento total depende da satisfação de necessidades humanas básicas, como desejo de contato, intimidade, expressão emocional, prazer, carinho, amor. Sexualidade é construída através da interação entre os indivíduos e as estruturas sociais. O total desenvolvimento da sexualidade é Mesmo neste exemplo, faz-se necessário essencial para o desenvolvimento individual, insalientar que o sexo biológico que a pessoa car- terpessoal e social18. rega não é algo determinante para decidir a vida Sendo sexualidade um conjunto de fatores, sexual que a pessoa levará. Porém, ainda assim, denota-se que o assunto demanda a variedade, é importante para que este possa ter uma vida sexual saldável, e para tal, é necessário que am- e que a tônica, quanto ao significado do vocábubos os sexos, biológico e psíquico sejam conco- lo, é a diversidade de sexo e de gênero, logo, de mitantes, para que, se possa viver em conformi- opiniões. Então, tratar este tema, de uma forma dade com o seu próprio corpo. E isso vai além de limitada, ou conformada com os ideais tradiciouma intervenção cirúrgica, vai da aceitação, in- nais de se pensar as relações entre as pessoas, terna, do sujeito com sua situação atual, e exter- além de retrogrado, fere a individualidade que na, da população para com o indivíduo de gênero cada um possui de se relacionar e de expressar, diferente do heterossexual, que é atualmente o censurando a sociedade. dominante. A sexualidade é um direito de todos, e para Assim, como propõe os princípios da Yogyakarta, em que, seu segundo princípio, orienta que “todas as pessoas têm o direito de desfrutar de todos os direitos humanos livres de discrimi-

todos, não sendo restrita a uma parte da população, seja ela masculina e heterossexual, a efetiva realização desse direito só se dará por meio da tolerância e do respeito19.

14 ROCHA; SÁ, 2013, p. 2.349 15 ROCHA; SÁ, 2013, p. 2.349 16 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 11 17 GUIMARÃES, Jamile. A Sexualidade como direito de cidadania: participação e juventude. In: Congresso português de sociologia, 7. 2012, Porto. ANAI. Porto: Universidade do Porto, 2012, p.6. 18 WAS. Declaração Universal dos Direitos Sexuais: Durante o XV Congresso Mundial de Sexologia, ocorrido em Hong Kong (China), entre 23 e 27 de agosto 2000 a Assembleia Geral da WAS – World Association for Sexology, aprovou as emendas para a Declaração de Direitos Sexuais, decidida em Valência, no XIII Congresso Mundial de Sexologia. Disponível em: <https://lblnacional.wordpress.com/tag/xv-congresso-de-hong-kong/>. Acesso em 10 de janeiro de 2020. 19 MALVEIRA, Jamille Saraty. Direito à Sexualidade: uma perspectiva juscivilística. In: Congresso Nacional do

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3. DIREITOS SEXUAIS E LIBERDADE SEXUAL DAS MULHERES Em meio a uma sociedade moderna e globalizada, incitou novas temáticas dentro deste tema, que anteriormente eram pouco abordadas, ou, nunca. A sexualidade, como faz parte da vida do cidadão, passou também a ser vista como objeto de direitos, na esfera internacional, com a criação dos direitos na esfera sexual. “Apesar dos avanços obtidos, razões de ordem teórica e de ordem prática recomendam avançar mais. Para tanto, é preciso desenvolver um direito democrático da sexualidade”20.

pos esses que buscavam ser contemplados pelos Direitos Humanos como as demais pessoas eram, em seus direito de constituir uma família, e também lutavam pela proteção das mulheres, em um contexto geral as comunidades homossexuais junto com a comunidade feminista queriam ser reconhecidos pelo judiciário. Deste modo, estes grupos enfrentavam o desrespeito a seus Direitos fundamentais, e viviam em um contexto em que, a saúde sofria com os riscos de epidemias que se espalhavam sexualmente, violência e discriminação contra a liberdade feminina. Tal cenário era improprio para o desenvolvimento da sexualidade de maneira plena e, apesar dos avanços, ainda é possível se deparar com situações em que Direitos Humanos são violados, como na área jurídica, na saúde e educação.

É necessário que seja observada a própria Constituição Federal de 1998, que, legisla, timidamente, sobre direitos sexuais, direitos esses que estão na esfera de direitos e garantias fundamentais, sem os quais, não há como se falar em um Estado democrático de direitos. Entre eles: a dignidade da pessoa humana (art. 1º); o direito inerente às pessoas ao bem-estar, livre de O debate acerca da saúde sexual, por causa qualquer tipo de discriminação (art. 3º, IV); o dida presença de doenças sexualmente transmisreito à isonomia entre homem e mulher. síveis na sociedade, acerca da proteção sexuIsonomia esta que não é praticada no su- al feminina necessitava de uma discussão mais porte fático, dentre esses que representam vários ampla, e a proteção debatida no Cairo, quanto à ramos do Direito, estes mesmos artigos, também saúde sexual põe em evidencia a necessidade tutelam os direitos sexuais e é interessante notar de uma regulamentação internacional, não com que esses direitos são imprescindíveis, para que um caráter intervencionista, mas com uma proa vida do ser humano seja minimamente digna e posta que proporcionar liberdade, informação e próspera. Normas essas, que são tanto direitos igualdade. fundamentais e são utilizadas no ramo do Direito Nesse contexto, também foi abordada a imSexual, presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual o Brasil é signatário e portância de se voltar a atenção para os jovens, que, em seu primeiro artigo, declara a igualdade educando e orientando, da mesma forma como entre todos os seres humanos em dignidade e os “segmentos populacionais mais vulneráveis às violações de Direitos Humanos nos campos direitos21. da reprodução e da sexualidade23”. Tal nomenO termo, direitos sexuais é proveniente clatura, “direitos sexuais”, só fora utilizada na IV dos grupos homossexuais, da década de 1980 e Conferência Internacional sobre a Mulher, em vivenciaram a epidemia do vírus HIV/AIDS22. Gru- Pequim no ano de 199524. CONPEDI/UNINOVE, 22. 2014, São Paulo. ANAIS. São Paulo: FUNJAB, 2014, p. 111-138 20 RIOS, Roger Raupp. Para um direito democrático da sexualidade. In: Horizontes antropológicos, Porto Alegre, v.12, n. 26, dez. 2006, p.71-100. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832006000200004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 10 de janeiro de 2020. 21 WAS. Declaração Universal dos Direitos Sexuais: Durante o XV Congresso Mundial de Sexologia, ocorrido em Hong Kong (China), entre 23 e 27 de agosto 2000 a Assembléia Geral da WAS – World Association for Sexology, aprovou as emendas para a Declaração de Direitos Sexuais, decidida em Valência, no XIII Congresso Mundial de Sexologia. Disponível em: <https://lblnacional.wordpress.com/tag/xv-congresso-de-hong-kong/>. Acesso em 10 de janeiro de 2020. 22 SOUSA, Estella Libardi de. Sexualidade(s) e Direitos Humanos: “casos difíceis” e respostas (corretas?) do judiciário. In: Encontro Nacional do CONPEDI, n. 19, 2010, Fortaleza. ANAIS Fortaleza: UFC, 2010. p. 4905-4917 23 SOUSA, Estella Libardi de. Sexualidade(s) e Direitos Humanos: “casos difíceis” e respostas (corretas?) do judiciário. In: Encontro Nacional do CONPEDI, n. 19, 2010, Fortaleza. ANAIS… Fortaleza: UFC, 2010. Pag. 4906. 24 SOUSA, Estella Libardi de. Sexualidade(s) e Direitos Humanos: “casos difíceis” e respostas (corretas?) do judiciário. In: Encontro Nacional do CONPEDI, n. 19, 2010, Fortaleza. ANAIS… Fortaleza: UFC, 2010. Pag. 4906.

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Apesar da legislação existente, não somente no Brasil, mas também, em vários Países, persistem as violações aos princípios dos direitos humanos, violações baseadas na condição sexual dos indivíduos discriminados que seguem um contexto social e histórico, como aponta o preâmbulo da Yogyakarta:

“PREOCUPADOS com a violência, assédio, discriminação, exclusão, estigmatização e preconceito dirigidos contra pessoas em todas as partes do mundo por causa de sua orientação sexual ou identidade de gênero, com que essas experiências sejam agravadas por discriminação que inclui gênero, raça, religião, necessidades especiais, situação de saúde e status econômico, e com que essa violência, assédio, discriminação, exclusão, estigmatização e preconceito solapem a integridade daquelas pessoas sujeitas a esses abusos, podendo enfraquecer seu senso de auto-estima (sic) e de pertencimento à comunidade, e levando muitas dessas pessoas a reprimirem sua identidade e terem vidas marcadas pelo medo e invisibilidade” 25

deveres independente de seu sexo. Grandes lutas foram reconhecidas por nossa legislação trazendo mudanças, entre elas podemos citar as modificações promovidas na atual Constituição Federal, o novo Código Civil de 2002, o Estatuto da Mulher Casada de 1962, a Lei do Divórcio de 1977, entre outras. Na década de 1970, as reivindicações que envolviam os Direitos Reprodutivos estavam centradas nas reivindicações das mulheres pela autonomia corporal, o controle da própria fecundidade e atenção especial à saúde reprodutiva. Foi um período fortemente marcado pela luta em face da descriminalização do aborto e pelo acesso à contracepção, onde a liberdade sexual começou a ganhar espaço com o surgimento dos anticoncepcionais, nos anos 1980 e 1990, além do exercício da maternidade e das novas tecnologias reprodutivas, que passaram a ser incorporadas na agenda dos direitos, tendo o seu uso garantido legalmente27.

Por fim, as questões até então defendidas pelo movimento feminista ganham o fórum da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo no ano de O próprio documento aponta diretrizes para 1994, como já citado. a aplicação eficaz dos princípios, tendo em visSegundo o Portal de Saúde Sexual e Reta a legislação dos Países que venham a recepprodutiva, a referida conferência contemplou diciona-la, os princípios são bem lúcidos, e foram debatidos com o propósito de sua aplicação in- versas nações, o que resultou em um conjunto de ternacional trazendo benefícios ao cenário mun- iniciativas voltadas para o âmbito da população, dial. Assim, o conteúdo da Yogyakarta tem como igualdade, direitos, educação, saúde, ambiente e objetivos, tanto a aplicação efetiva dos direitos redução da pobreza através de uma abordagem humanos, a todos sem restrições, como também, centrada no desenvolvimento humano, subsnortear os direitos no âmbito sexual, trazendo em tituindo assim, o Plano de Ação da População seu texto uma base solida para fomentar leis que Mundial de 1974, o que se constituiu como um possam respeitar de fato preceitos fundamentais marco da saúde reprodutiva. preestabelecidos. A questão demográfica relativa aos aspecMas a nossa luta, surge no século XX, principalmente, com o movimento de mulheres. O tema foi incorporado a agenda feminista, por ser considerado fundamental face as demandas que emergiam dos novos contextos sociais e culturais vivenciados pelas mulheres na sociedade contemporânea26, a luta da mulher brasileira foi intensa para alcançar a igualdade de direitos e

tos da reprodução humana é então deslocada para o âmbito dos direitos humanos, reconhecendo-se os Direitos Reprodutivos como fundamentais para o desenvolvimento das nações. Assim, a noção de que os Direitos Reprodutivos fazem parte dos direitos humanos básicos e devem orientar as políticas relacionadas à população avançam e se firmam socialmente.

25 CORRÊA, Sônia. Princípios da Yogyakarta. In: Democracia Viva, n. 37, dez. 2007, p. 47-49. Disponível em: <http://www.rcdh.es.gov.br/sites/default/files/ARTIGO%202007%20SoniaCorrea%20RESENHA%20PRINCIPIOS%20 YOGYAKARTA%20s%20Orientacao%20Sexual.pdf>. Acesso em: 10 de janeiro de 2020. 26 MATOS, Maureen Lessa. GITAHY, Raquel RosanChristino. A Evolução dos Direitos da Mulher. ColloquiumHumanarum, v. 4, n.1, Jun. 2007, p. 74-90. 27 DÍAZ, Margarita. CABRAL, Francisco. SANTOS, Leandro. Os Direitos Sexuais Reprodutivos. In: RIBEIRO, C.; CAMPUS, M.T.A. (ed.). Afinal, que paz queremos? Lavras: Editora UFLA, 2004. p 45-70.

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No Brasil, no que diz respeito ao desenvolvimento dos direitos sexuais e pode-se destacar que o debate ainda é marcado pela cultura religiosa, predominantemente cristã e machista. Ao longo da história do país, as normas legais foram elaboradas, perpassando os valores religiosos e machistas de obediência e de servidão da mulher em relação ao homem. Da mesma forma, a sexualidade relacionava-se apenas a procriação, segundo os preceitos e valores cristãos. O prazer sexual era algo tipo para o homem e pelo homem.

saúde e na autonomia. As reivindicações feministas se integram as do movimento de reforma sanitária brasileira, contribuindo para a mudança de paradigma dos modelos de intervenção na saúde reprodutiva. Esta mudança proporcionou a criação, em 1983, do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher - PAISM, de abrangência federal, e do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – CNDM, em 1985. É válido ressaltar que foi somente em 1996, a partir da regulamentação legal que as mulheres ganharam o direito de terem esterilização cirúrgica voluntária durante a realização da cesariana se assim desejassem, a fim de não terem mais filhos. Anteriormente a essa regulamentação, a prática da esterilização era considerada crime de lesão corporal. Nessa perspectiva, têm-se buscado historicamente no país o reforço da concepção de Direitos Reprodutivos, e estimular o processo de elaboração legislativa e jurisprudencial relativa a esses direitos29.

A relação igreja e Estado possibilitou que por muito tempo se defendesse o crescimento elevado das taxas de natalidade, mas com o aprofundamento da crise econômica brasileira nos anos 80 impulsionou a diminuição da defesa desse crescimento, de modo que a ideia de que o crescimento populacional podia constituir um entrave para o desenvolvimento e provocar um esgotamento dos recursos ambientais, ganha importância. Então, “A própria Igreja Católica diminui a ênfase na defesa das teses natalistas e, ao invés da quantidade, passou a defender, Os movimentos feministas, em suas denúnprioritariamente, a qualidade de vida dos brasi- cias públicas sobre as diversas formas de violaleiros”28. ção de direitos e do exercício efetivo da cidadaCom isso, entende-se que não pode haver nia feminina, reivindicaram a liberdade sexual e imposição sobre o uso de métodos anticoncep- o direito de decidir sobre seus corpos como parte cionais ou sobre o número de filhos. Para, além central para o exercício de projetos de vida pledisso, o processo de industrialização, urbaniza- nos e autônomos. É possível constatar que o reção, o aumento da escolaridade e a entrada das conhecimento da natureza dos Direitos Reprodumulheres no mercado de trabalho, as mudanças tivos como direitos humanos é fundamental para nas relações de gênero, a maior autonomia e a a construção dos direitos que envolvem o exermelhoria do status sócio-legal da mulher fizeram cício das funções reprodutivas e da sexualidade. crescer a demanda por meios de regulação de Esse reconhecimento representa um elefecundidade. mento bastante significativo para que as diferenEmpreende-se, portanto, que nos anos 80 ças de gênero, geração, classe, cultura e outras o movimento feminista reivindicava o retorno da passem a ser consideradas, ao mesmo tempo democracia brasileira, além de reforçar suas rei- em que são reconhecidas necessidades sociais vindicações em torno à melhoria das políticas de específicas. Conforme o documento Saúde da saúde, especialmente, o acesso às informações Mulher (2010) “um diálogo aberto e participativo”, e aos meios para o pleno exercício dos Direitos o debate sobre esse tema é desafiante exigindo Reprodutivos. Dessa forma, a discussão sobre a uma maior atenção por ser de extrema importânregulação da fecundidade se ampliou, ingressan- cia para a mulher e dos demais segmentos da do na agenda da saúde e dos direitos humanos. sociedade por ser uma discussão polêmica, inA partir desse ingresso na agenda da saúde bra- cluindo o Estado laico, planejamento familiar e sileira, é criado um novo discurso para a reprodu- por se inserir num contexto de saúde pública a ção humana, baseado nos princípios do direito à partir do momento que ocorre a prática do aborto de maneira clandestina, acarretando em doen28 MATOS, Maureen Lessa. GITAHY, Raquel RosanChristino. A Evolução dos Direitos da Mulher. ColloquiumHumanarum, v. 4, n.1, Jun. 2007, p. 74-90. DOI: 10.5747/ch.2007.v04.n1/h037. 29 DÍAZ, Margarita. CABRAL, Francisco. SANTOS, Leandro. Os Direitos Sexuais Reprodutivos. In: RIBEIRO, C.; CAMPUS, M.T.A. (ed.). Afinal, que paz queremos? Lavras: Editora UFLA, 2004. p 45-70.

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ças e mortes30.

têm o enfoque e a abordagem que necessita.

Como esclarece o CFESS no ano de 201131, persiste na nossa sociedade os valores e ideologias machistas, conservadores e fundamentalistas em que tendem a ignorar e ridicularizar o direito das mulheres, não implementar legislações e políticas conquistadas e continuar subalternizando as mulheres, produzindo um cotidiano de violações e barbárie, que acabam por contarem nas estatísticas cotidianamente.

De fato, tal evento trouxe em sua discussão não somente o ponto de vista do feminismo, mas também um debate que visa quebrar o paradigma na sexualidade, em que o homem domina a relação e a mulher é passiva, discutindo assim a maior liberdade da mulher sobre seu próprio corpo, a forma de reprodução, visto pelo prisma da sexualidade. Ademais, além da reprodução consciente, a saúde sexual foi abordada como tema de grande relevância, pois, para o desenvolvimento da sexualidade, tanto como o desenvolvimento da própria sociedade, o acesso a saúde e a educação sexual são imprescindíveis, pois se tratam de direitos fundamentais.

O controle exercido sobre nossos corpos e sexualidade certamente ainda é uma das maiores repressões vivenciadas, especialmente pelas jovens, pobres e negras, um grande obstáculo para a efetivação de nossos direitos sexuais e reprodutivos. Mesmo com todas as conquistas em relação a nossa liberdade sexual, a sexualidade continua sendo um tabu na sociedade brasileira, principalmente quando associada a adolescentes, mulheres pobres, negras e GLBTS32.

Assim dentro dos Direitos Sexual encontra-se o Direito reprodutivo, que é tutelado pela magna carta, como os direitos elencados voltados para as gestantes, e a gestação, (art. 6º), mesmo quando a gestante se encontra em cumprimento de pena (art. 5º, L), e o direito ao “plaContraditoriamente, ainda segundo as au- nejamento familiar”34. toras, opondo-se ao silêncio e repressão a respeito do sexo, a apelação midiática e publicitária Neste ponto, vale ser observado, que o liaque fazem usufruto do corpo da mulher de ma- me de tais fundamentos são os direitos e garanneira apelativa, sendo o sexo feminino o único tias fundamentais, embasados na Declaração responsável pela adoção de métodos contracep- Universal dos Direitos Humanos e na Constituitivos e camisinha. Todos esses fatores, conforme ção federal, outrossim, há leis infraconstitucioo IBGE (2018) e OMS33, um quarto das relações nais que legislam sobre o assunto. sexuais ocorridas com adolescentes com idade A sexualidade é papel importante para o entre 13 e 14 anos ocorrem sem o uso de preexercício da reprodução e, neste sentido, em sua servativo. obra, descreve um caso do direito extraterrestre, Um fato de significativa representatividade em solo português, em que a esposa da vítima quando pensamos em gravidez na adolescên- de um acidente pede indenização, em face de cia, o que reforça ainda mais a necessidade de que o acidente ocorrido causou a impotência de termos um enfoque diferenciado no que tange seu marido. Tal caso foi descrito pela esposa da as políticas públicas voltadas para os direitos vítima, por intermédio de sua petição, como uma sexuais, considerando que o índice de jovens e violação ao seu Direito a sexualidade conjugal, e adolescentes grávidas vem crescendo cada vez também, a o seu direito a reprodução, que lhe foi mais e mesmo com esse crescimento exacerba- tolhido por causa do acidente 35. do, os direitos sexuais e reprodutivos ainda não 30 CFESS. Assistentes Sociais lutam pela autonomia e emancipação das mulheres. In: CFESS Manifesta. Brasília, 2011. 31 CFESS. Assistentes Sociais lutam pela autonomia e emancipação das mulheres. In: CFESS Manifesta. Brasília, 2011. 32 PORTELLA, Ana Paula. Lésbicas, sexualidade e saúde: sínteses dos resultados da Pesquisa Direitos Sexuais e Necessidade de Saúde de Lésbicas e Mulheres Bissexuais na percepção de profissionais de saúde e usuárias do SUS. Recife, SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, 2009. 33 Brasil tem gravidez na adolescência acima da média latino americana https://g1.globo.com/bemestar/noticia/ brasil-tem-gravidez-na-adolescencia-acima-da-media-latino-americana-diz-oms.ghtml.Acessado em 10 de janeiro de 2020. 34 SOUSA, Estella Libardi de. Sexualidade(s) e Direitos Humanos: “casos difíceis” e respostas (corretas?) do judiciário. In: Encontro Nacional do CONPEDI, n. 19, 2010, Fortaleza. ANAIS… Fortaleza: UFC, 2010. p. 4905-4917. 35 AMARAL, Ricardo. O Direito à sexualidade conjugal e sua violação provocada por acidente de viação. Verbo Jurídico, set. 2006. Disponível em:<https://www.verbojuridico.net/doutrina/outros/direitosexualidadeconjugal.html>.

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E sobre a sexualidade, a legislação brasileira falha em regulamentar lei sobre direitos sexuais e reprodução, falta de regulamentação, que, afeta de modo negativo em leis já existentes, e que obrigam a sociedade a ajuizarem demandas judiciais que esbarram na burocracia, e às vezes na arbitrariedade de alguns juízes, à discrepância nas decisões judicias, no âmbito dos Direitos se-

xuais, que ora são favoráveis, ora desfavoráveis, gerando uma “insegurança jurídica”, em que, o mérito é julgado por valores morais e religiosos, e que demandas são decididas como improcedentes por causa da omissão legislativa36. E esta insegurança, por fim, acaba por ferir a liberdade sexual das mulheres.

4. SEXUALIDADE FEMININA E O MÍNIMO EXISTENCIAL Os direitos que abarcam a sexualidade feminina e seu empoderamento se encontram atualmente em desenvolvimento e amadurecimento no cenário internacional, segundo os Princípios da Yogyakarta como já relatado, muitos Países avançaram na concepção de direitos que protegem tanto o direito a sexualidade e seu exercício de forma livre, como da mesma forma reforça a tutela dos Direitos Humano com relação às mulheres. Neste contexto, o respeito à Dignidade da Pessoa Humana aparece como uma peça primaz, dentre os Direitos fundamentais, para que haja a concretização de políticas que venham a ser eficazes para a proteção dos Direitos dos cidadãos em vários ramos do direito. Tal princípio, que está positivado na Constituição Federal de 1998 (art. 1°, III), se destaca como um “fundamento da Republica”37 e que delega a responsabilidade ao País de proteger a dignidade humana como um bem individual, e que para a coletividade é sinônimo de paz social. A dignidade é “como uma conquista da razão ético-jurídica”38, em que pelo contexto histórico e subjetivo de cada ser humano, é desenvolvida uma qualidade que é “intrínseca” ao sujeito39. Ao analisar a dignidade humana pelo prisma da filosofia de Kant, percebemos que a dignidade não possui algo que seja equivalente a ela, as

demais coisas que possuem equivalentes, ”valor”, podem ser cambiadas, entretanto a dignidade está em um plano acima, inerente ao sujeito não pode ser substituído ou trocado40. Este olhar filosófico sobre esta seara reafirma que como a dignidade é algo inerente ao ser humano, logo, o Direito a dignidade postulado pela Constituição brasileira deve ser promulgada de forma isonômica a sociedade, sendo necessária a distribuição deste princípio para todos os cidadãos. Este princípio se porta como um Direito fundamental a todos. Alcança-se que, segundo esse documento, os titulares dos direitos fundamentais são “todos os homens” independentemente de qualquer característica que este carregue, seja ela física ou mental. O direito a dignidade deve ser exercido plenamente por todos, com a fruição da liberdade, que se trata de outro direito fundamental, ambos, dignidade e liberdade, são direitos que configuram uma vida estável e prospera, longe de qualquer violação na seara dos direitos humanos.

“Nessa seara, Kant estabelece como imperativo categórico, a LIBERDADE do homem. Que para ser realmente livre necessita de condições para exercer esta liberdade, que nada mais são do que os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana,

Acesso em: 11 de janeiro de 2020. 36 SOUSA, Estella Libardi de. Sexualidade(s) e Direitos Humanos: “casos difíceis” e respostas (corretas?) do judiciário. In: Encontro Nacional do CONPEDI, n. 19, 2010, Fortaleza. ANAIS… Fortaleza: UFC, 2010. p. 4905-4917 37 KUMAGAI, Cibele; MARTA, Taís Nader. Princípio da dignidade da pessoa humana. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, a. 13, n. 77, jun. 2010. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7830>. Acesso em: 11 de janeiro de 2020. 38 KUMAGAI, Cibele; MARTA, Taís Nader. Princípio da dignidade da pessoa humana. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, a. 13, n. 77, jun. 2010. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7830>. Acesso em: 11 de janeiro de 2020. 39 WEBER, Thadeu. A ideia de um “mínimo existencial” de J. Rawls. In: Kriterion, Belo Horizonte, v. 54, n. 127, jun. 2013, p. 197-210. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2013000100011&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 11 de janeiro de 2020. 40 KANT apud KUMAGAI; MARTA, 2010

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condições estas que devem ser proporciona- principiológico45. Alguns parâmetros, no entanto, são, hoje, reconhecidos quanto ao que é necesdas pelo Estado” 41 . A liberdade à determinação da sexualidade de cada pessoa denota semelhança com a tese de Kant para a formação da dignidade do ser humano, pois em ambas as situações a autonomia do indivíduo se torna a pedra angular que endossa sua escolha. No caso da dignidade, pelo prisma da autonomia, o homem “é capaz de autodeterminar-se e agir conforme as regras legais, (…)”42.

sário para uma vida digna. Os direitos sociais como a saúde, a educação e a habitação estão entre eles.

Portanto, como uma primeira delimitação, pode-se afirmar que o conteúdo do mínimo existencial é constituído basicamente pelos direitos fundamentais sociais, sobretudo aquelas “prestações materiais” que visam garantir uma vida digna. Isso não significa garantir apenas a sobrevivência física, mas implica no desenvolvimenA sexualidade feminina nas últimas déca- to da personalidade como um todo. Viver não é das, por este mesmo prisma, se concretiza pela apenas sobreviver e viver com dignidade sabenlivre escolha, no que tange a suas decisões, e do o que te faz plenamente feliz. quanto a como esta pessoa levará sua vida seDentro desta temática, a realização do míxual e afetiva, fazendo escolhas conforme suas nimo existencial, também podem se dar por inpróprias convicções, como aponta o Direito à au43 termédio de “prestações matérias” que devem tonomia sexual . ser feitas por ações concretas para com o povo, A realização destes direitos fundamentais, pelo exercício de políticas públicas que visem o liberdade e dignidade faz parte da formação bem estar social, “como saúde, educação e hado “mínimo existencial”44, não é possível fixar bitação46. abstratamente o conteúdo desse mínimo exisNesse diapasão, os Direitos sexuais femitencial. Por se trata de um tema difícil de quantificar de modo coletivo, pois a ideia de mínimo de- ninos precisam ser cada vez mais objeto destas pende de vários indicadores sociais e pessoais, prestações materiais, pois, além das políticas de o que torna a fixação de um mínimo algo voltado saúde e educação, que são necessárias para para o indivíduo, sendo difícil se conceber alguns a sociedade, a produção legislativa é essencial para a pacificação de Direitos que estão na esfepontos de modo coletivo. ra fundamental, como os Direitos sexuais. AtualAssim, a prestação estatal, para a criação mente o Brasil carece de leis que possam regude um mínimo que possa atender a todos deve lamentar este direito, afim de que se possa fazer partir da distribuição dos direitos fundamentais cumprir os preceitos fundamentais da própria e de uma vida digna. O mínimo existencial está Constituição, que atualmente é insuficiente para também ligado à subsistência humana, no fito de tratar de tais direitos47. que certas necessidades devem ser preenchidas Os direitos sexuais vão além da forma que para que se possa viver, porém estas necessidades vão muito além de bens matérias, tais ne- a pessoa vai realizar sua sexualidade, tratam cessidades atingem também o âmbito jurídico e também sobre saúde, aceitação social, condi41 KANT apud KUMAGAI; MARTA, 2010 42 KANT apud KUMAGAI; MARTA, 2010 43 WAS. Declaração Universal dos Direitos Sexuais: Durante o XV Congresso Mundial de Sexologia, ocorrido em Hong Kong (China), entre 23 e 27 de agosto 2000 a Assembléia Geral da WAS – World Association for Sexology, aprovou as emendas para a Declaração de Direitos Sexuais, decidida em Valência, no XIII Congresso Mundial de Sexologia. Disponível em: <https://lblnacional.wordpress.com/tag/xv-congresso-de-hong-kong/>. Acesso em 11 de janeiro de 2020. 44 WEBER, Thadeu. A ideia de um “mínimo existencial” de J. Rawls. In: Kriterion, Belo Horizonte, v. 54, n. 127, jun. 2013, p. 197-210. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2013000100011&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 11 de janeiro de 2020. 45 WEBER, Thadeu. A ideia de um “mínimo existencial” de J. Rawls. In: Kriterion, Belo Horizonte, v. 54, n. 127, jun. 2013, p. 197-210. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2013000100011&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 11 de janeiro de 2020. Pag.199. 46 WEBER, Thadeu. A ideia de um “mínimo existencial” de J. Rawls. In: Kriterion, Belo Horizonte, v. 54, n. 127, jun. 2013, p. 197-210. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2013000100011&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 11 de janeiro de 2020, p.199. 47 SOUSA, Estella Libardi de. Sexualidade(s) e Direitos Humanos: “casos difíceis” e respostas (corretas?) do judiciário. In: Encontro Nacional do CONPEDI, n. 19, 2010, Fortaleza. ANAIS… Fortaleza: UFC, 2010. p. 4905-4917.

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ção de expressão. Da mesma forma para com a educação, que deve ser distribuída a todos com a meta de afastar a ignorância e o preconceito, e assim, fazer com que as pessoas entendam e respeitem uns a condição da mulher como dona irrestrita de sua sexualidade. Enfim, a tutela dos Direitos sexuais feminino faz parte da realização do mínimo existencial, pois, a positivação sobre estes direitos proporcionam isonomia quanto ao tratamento estatal durante a distribuição destes bens, os protegendo e garantindo uma vida digna. Proporcionar o

mínimo de forma abstrata, ainda não é possível para comunidade feminina, porém, o Estado não pode ignorar os próprios princípios Constitucionais, muito menos ignorar os Direitos fundamentais que tangem o assunto Direito sexual. Por tanto, a prestação do mínimo proporcionaria uma vida digna, além disso, também traria o desenvolvimento de uma sociedade, pautada na dignidade da pessoa humana, na pluralidade de pensamentos, que de forma saudável, forma o que é o Estado democrático de direitos.

CONCLUSÕES Acerca do tema proposto, observa-se que há de forma persistente celeumas que ainda necessitam ser tratadas quando o assunto é a sexualidade feminina, o conteúdo que ainda gera desconforto para uma parcela da sociedade. Boa parte da população não vê a emancipação sexual feminina como algo diferente destoante com a perspectiva construída ao longo dos anos como normal, e ainda é possível constatar, que é preciso se caminhar um longo caminho para que os direitos na seara da sexualidade para que sejam positivados.

bem estar social, e legislar em favor de toda a população, visando diminuir as desigualdades e tutelando a parte mais vulnerável da sociedade esquece da parcela primordial da sociedade, esquece da mulher. O país claramente demonstra que não foi capaz de acompanhar o desenvolvimento internacional, que de forma sagaz, compreendeu o Direito sexual como uma extensão dos Direitos humanos. Direitos esses que são imprescindíveis para a criação de um mínimo jurídico, capaz de agir de forma material sobre a vida da sociedade.

Além disso, é necessário que a própria sociedade pare de criar uma ficção baseada somente no corpo humano, e aceitar que a sexualidade é um conjunto de fatores que vão além de aspectos biológicos. Apesar de o arcabouço jurídico conter princípios e normas, que de forma parca, são utilizadas em casos concretos, é notável que o que reina ainda é a vontade soberana do judiciário, que supre a omissão do legislativo. Deste modo, a vontade da parcela mais vulnerável, em um ponto de vista social, sofre com o dissabor de ver sua dignidade medida de caso em caso, esperando pela boa vontade do Estado-juiz.

Deste modo, é importante que o Estado seja o primeiro a dar exemplo a sociedade, dando um passo para a consolidação de normas com o fulcro de acabar com arbitrariedades no âmbito jurídico nacional. Transformando assim também a forma de pensar das pessoas, não por uma imposição unilateral, mas com a utilização de medidas com o fito conscientizar a sociedade. É preciso que as leis e a Constituição sigam de acordo como os avanços internacionais já alcançados, e que o Estado brasileiro respeite a dignidade da pessoa humana, e não deixe a população que deve ser amparada à margem da sociedade, esquecida pelo legislativo.

O Estado que tem o dever de promover o

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DIREITOS DAS MULHERES E A EVOLUÇÃO FEMININA Carlos Alexandre de Carvalho Possui graduação em Licenciatura em Direito - Faculdades de Tecnologia de São Paulo em Parceria com a UNESP (2011), Graduação em Direito - Bacharelado - Instituição Toledo de Ensino (2007), é Mestre em Direito Constitucional pela Fundação Eurípides de Marília - UNIVEM e Doutorando em Saúde Coletiva pela Universidade de São Paulo. Atualmente ocupa o cargo de Presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas e de Vice-Presidente da Comissão de Defesa e Proteção Animal, ambas da 21ª Subseção da OAB São Paulo

Alisson Caridi Possui graduação em Direito - Instituição Toledo de Ensino é especialista em Direito Processual Civil. Professor do Instituto de Ensino Superior de Bauru e Diretor tesoureiro da 21ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil, Sessão de São Paulo

SUMÁRIO 1. Introdução 2. Carta Das Nações Unidas - 1945 3. Declaração Universal Dos Direitos Humanos 1948 4. Convenções E Conferências Em Defesa Da Mulher 4.2. Convenções Da Oit Nº 100, 103 E 111 4.3. Convenção Sobre Os Direitos Políticos Das Mulheres De 1953 4.4. Convenção Sobre A Igualdade De Oportunidades E De Tratamento Para Homens E Mulheres Trabalhadores: Trabalhadores Com Encargos De Família 4.5. Conferência Das Nações Unidas Sobre O Meio Ambiente E Desenvolvimento, Rio 92 4.6. Convenção Interamericana Para Prevenir, Punir E Erradicar A Violência Contra A Mulher, Belém, 1994 5. Lei 11.340 - Lei Maria Da Penha 6. Conclusão Referências

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RESUMO Este trabalho visa demonstra que, apesar da humanidade “ter começado a evoluir” entre 1 (um) e 3 (três) milhões de anos, sendo que o último estágio evolutivo se deu entre 400 (quatrocentos) e 100 (cem) mil anos, e nos últimos séculos desfrutarmos de tecnologia que trouxeram qualidade de vida e agilidade nos afazeres domésticos, vivermos em uma era globalizada onde a comunicação é instantânea e praticamente inexistir limites para os avanços tecnológicos, ainda encontramos exemplares humanos de tratam as mulheres como sendo subespécie, impondo-as limitações e deveres em seu modelo de vida e convivência. Sabendo destas limitações e comportamentos humanos, este trabalho abordará nas próximas páginas uma análise histórica e jurídica da evolução humana feminina, limitando-se ao século XX.

PALAVRAS-CHAVE Direitos das mulheres; discriminação; igualdade.

ABSTRACT This work aims to demonstrate that although humanity “started and evolved” between 1 (one) and 3 (three) million, being the last evolutionary stage that gave between 400 (four hundred) and 100 (one hundred) thousand years, of the last centuries of use of technology that brought quality of life and agility to home users, to live in a globalized era in which communication is instantaneous and practically non-existent in the limits for technological advances, are still examples of human beings of treatment as women as a subspecies, imposing limitations and duties on their model of life and coexistence. Knowing these human restrictions and procedures, this work deals in the next pages with a historical and legal analysis of female human evolution, limited to the 20th century.

KEYWORDS: Women’s rights; discrimination; equality.

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1. INTRODUÇÃO A filósofa existencialista Simone de Beauvoir (1908-1986), pode oferecer à sociedade brilhantes obras sobre a realidade da injusta, desleal e desumana divisão de gêneros imposta para sociedade machista que literalmente tratava as mulheres como subproduto dos demais. Neste contexto, a aplicação fática de Beauvoir foi essencial para compreender como somos iguais e como as mulheres devem ser respeitadas, demonstrando, em 1947 (período pós-guerra), o dilema do existencialismo ético. A obra ética da ambiguidade é uma realidade não apenas ajustável à década de 1950, como a nossa atual, vez que, o comportamento exclusivamente machista e autoritário determinava que as mulheres deveriam dotar uma postura de subverniência. Porém para Beauvoir, os acontecimentos sociais faziam expressar a ideia lógica de que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher...”. Esta frase é a comprovação de como a evolução feminista é fundamental não apenas para as mulheres, como também para toda sociedade.

luta pelo igualdade de gêneros. Deste modo, para melhor compreensão, serão exibidos os fatos históricos conforme sua importância cronológica.

Mantendo a linha evolutiva do período pós segunda guerra, devemos nos ater à importância das Nações Unidas no contexto de

2. CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS - 1945 Logo após o termino da Segunda Guerra Mundial, os países buscavam uma forma de pôr fim às atrocidades da guerra e promover um planeta mais harmônico. Desta forma, em 26 de junho de 1945, as principais nações do planeta, reunira-se em São Francisco para a Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional. Referido encontro pôs fim a liga das nações, dando origem a Organização das Nações Unidas.

ra, era a preocupação e comprometimento do Brasil em manter os acordos internacionais; já a segunda, que apesar de todo engajamento internacional para se promover a igualdade, principalmente com o respeito às mulheres, o Brasil levou mais de 60 (sessenta) anos para editar uma lei com efetiva proteção feminina, comprovando que, apesar do compromisso internacional, na esfera local não se viu resultado prático por mais de meio século.

Curiosamente e um tanto quanto ambí O preâmbulo da Carta deve ser obserguo para muitos, devido às posturas do Presi- vado, vez que ele é enfático ao tratar homens dente Getúlio Vargas, a edição do Decreto nº e mulheres de forma igualitária. 19.841, de 22 de outubro de 1945, (mesma NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLdata do início da vigência da Carta das Nações VIDOS a preservar as gerações vindouras do flagelo da Unidas) demonstra duas realidades: a primei- guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar

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a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional

métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse comum, a empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social de todos os povos.

Resolvemos conjugar nossos esforços para a consecução desses objetivos. (nosso grifo) possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla. E para tais fins praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais, e a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição dos

O texto de 1945, é um marco para toda humanidade. Um verdadeiro exponencial de direitos

3. DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS 1948 O documento é de tamanha magnitude e importância que, assim como o texto de 1945, serviu como elemento essencial para o desenvolvimento de políticas públicas e sociais para defesa e combate às discriminações vinculadas ao gênero feminino ao longo do planeta. Neste contexto, temos na declaração aspectos que merecem toda atenção, como versa o preâmbulo e o artigo XVI, textos que merecem transcrição, conforme ordem de citação.

mulheres na relação matrimonial e gestão da família, podendo qualquer um dos integrantes da relação familiar pedir o término da relação, demonstrando, assim, que há a possibilidade do fim do casamento, cabendo à parte contrária aceitar a vontade apresentada.

1. A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou religião. Durante o casamento e na altura da sua dissolução, ambos têm direi O preâmbulo enaltece a fé nos direitos tos iguais. humanos fundamentais, destacando os adje Prosseguindo, os números 2 e 3, detivos de cada homem. Sendo que a indicação monstram dois aspectos de grande relevância da palavra “fé” produz dois aspectos: o primeisocial. ro da reafirmação da situação, e o segundo na demonstração de como os elementos religioO primeiro, na questão de que o casasos podem fornecer maior conforto na leitura, mento só será válido se houver pleno consenpromovendo ao público final, maior confiança timento. no texto. Para muitos, a conexão da palavra 2. O casamento não pode ser celebrado fé vincula o homem à Deus: um ente perfeito sem o livre e pleno consentimento dos futuque se preocupa com sua criação. ros esposos. 1. Considerando que os povos das Na E para finalizar, no seguinte, temos a inções Unidas reafirmaram, na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dicação da proteção à família, devendo o Esdignidade e no valor do ser humano e na igual- tado promover tal direito. dade de direitos entre homens e mulheres, e 3. A família é o núcleo natural e fundaque decidiram promover o progresso social e mental da sociedade e tem direito à proteção melhores condições de vida em uma liberdade da sociedade e do Estado. mais ampla, Referido texto legal, demonstra a im Já o artigo XVI, merece total destaque portância da família no âmbito social. e reflexão. Na primeira parte, temos a indicação dos direitos igualitários entre homens e 27


4. CONVENÇÕES E CONFERÊNCIAS EM DEFESA DA MULHER A temática direito das mulheres tomou corpo e forma com o passar dos tempos. O desejo de uma sociedade justa e fraterna fez com que fossem desenvolvidas diversas convenções e conferências em defesa do gênero feminino, sendo que muitas delas tinham o cunho de defesa dos interesses das traba-

lhadoras, possibilitando assim, uma igualdade entre os sexos e/ou gêneros (depende do ano de cada uma). Estas conferências e convenções foram decisivas para mudança em nossa legislação, conforme demonstrado abaixo:

4.1. CONVENÇÃO INTERAMERICANA SOBRE A CONCESSÃO DOS DIREITOS CIVIS À MULHER (1948) A importância global pelos direitos das mulheres é visto pela Comunidade Americana como algo de extrema importância e relevância não apenas social, como também política. Por este motivo, as nações americanas, incluindo Cuba, reuniram-se em Bogotá, na Colômbia, para positivar, ao menos de forma escrita, os direitos igualitários das mulheres em relação aos homens. Curiosamente, o documento assinado por 20 nações dos três continentes americanos (Norte, Central e Sul) e que tinha o escopo de igualdade de gêneros não contou com nenhuma mulher, demonstrando desde já, como as mulheres eram excluídas da relação diplo-

mática na primeira metade do século passado. A indicação no artigo 1º da diploma legal reconhece a desigualdade entre homens e mulheres. Artigo 1º Os Estados Americanos convêm em outorgar à mulher os mesmos direitos civis que goza o homem. Outro aspecto que merece atenção é o reconhecimento por algumas nações da necessidade da igualdade de gêneros, que no passado possuía direta conexão com as nações vinculadas com os ideais contidos na ONU, e que hoje possuem posicionamento bem mais distante, como o caso de Cuba.

4.2. CONVENÇÕES DA OIT Nº 100, 103 E 111. As convenções promovidas pela Organização Internacional do Trabalho de 1951, 1952 e 1958, respectivamente 100, 103 e 111, abordaram o direito aos tratamentos igualitários de renda, licença gestante e proibição de discriminação por gênero. A convenção de 1951, somente teve sua vigência em solos tupiniquins no ano de 1958. A relevância do assunto encontrou muita resistência, gerando barreira até os dias atuais, pois, assim como nos demais casos, a igualdade de gênero causa grande alvoroço para alguns, que não aceitam esse tratamento igualitário e sem discriminação ligadas à questão de gênero. Esta realidade ainda está pre-

sente e pode ser comprovada com as diversas denúncias de discriminação velada na relação de trabalho, vez que, muitos homens ganham até 40% (quarenta por cento) a mais que as mulheres nas respectivas atividades laborais. Importante salientar que a convenção 103, ocorrida em Genebra no ano de 1952, somente foi recepcionada e aprovado pelo Congresso Brasileiro no ano 1965, com vigência apenas em 1966. Ademais, referidos direitos pela geração do filho assegurava à genitora licença de 12 semanas, conforme determinava o artigo III Art. III — 1. Toda mulher a qual se aplica a presente convenção tem o direito, mediante

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exibição de um atestado médico que indica a a) toda distinção, exclusão ou preferêndata provável de seu parto, a uma licença de cia fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião maternidade. política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a 2. A duração dessa licença será de doze igualdade de oportunidade ou de tratamento semanas, no mínimo; uma parte dessa licença em matéria de emprego ou profissão; será tirada obrigatoriamente depois do parto. b) qualquer outra distinção, exclusão ou 3. A duração da licença tirada obrigatopreferência que tenha por efeito destruir ou riamente depois do parto será estipulada pela alterar a igualdade de oportunidades ou tralegislação nacional, não será, porém, nunca tamento em matéria de emprego ou profissão inferior a seis semanas; o restante da licença que poderá ser especificada pelo Membro total poderá ser tirado, segundo o que decidir interessado depois de consultadas as orgaa legislação nacional, seja antes da data pronizações representativas de empregadores e vável do parto, seja após a data da expiração trabalhadores, quando estas existam, e outros da licença obrigatória, ou seja, ainda uma parorganismos adequados. te antes da primeira destas datas e uma parte Ironicamente, o art. 2º da convenção depois da segunda. exigia que os países signatários elaborassem A manutenção do período de afastamenpolíticas públicas para eliminar a discriminato viria a se tornar um direito Constitucional ção. Entretanto, passados mais de meio sécuem 1988, sendo ainda elevado o tempo de 12 lo, ainda hoje encontramos elevados níveis de semanas para 120 dias. discriminações. Art. 7º São direitos dos trabalhadores Art. 2 — Qualquer Membro para o qual urbanos e rurais, além de outros que visem à a presente convenção se encontre em vigor melhoria de sua condição social: compromete-se a formular e aplicar uma políXVIII - licença à gestante, sem prejuízo tica nacional que tenha por fim promover, por do emprego e do salário, com a duração de métodos adequados às circunstâncias e aos usos nacionais, a igualdade de oportunidacento e vinte dias; des e de tratamento em matéria de emprego Como indicado neste tópico, a OIT e profissão, com o objetivo de eliminar toda sempre se preocupou com a situação das tra- discriminação nessa matéria. balhadoras, tanto é que em 1958, durante sua A comprovação de que não houve efe111ª conferência, deliberou pela exigência em tividade na determinação é o fato de ainda garantir às mulheres igualdade nas relações de trabalho, proibindo a discriminação de gê- hoje encontrarmos discussões sobre as discrinero. Assim como na questão dos direitos da minações das mulheres. Se não houvesse disgestante, referido direito teve o início da vi- criminação, não haveria discurso. gência no Brasil apenas no ano de 1966. Art. 1 — 1. Para os fins da presente convenção o termo “discriminação” compreende:

4.3. CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS POLÍTICOS DAS MULHERES DE 1953 O voto feminino foi uma conquista das mulheres que demorou a ser concretizado, pois o modelo encontrado de voto amplo e obrigatório que conhecemos hoje é datado de

1946, vez que, o decreto de 1932, de instituiu o voto às mulheres, contemplava algumas “senhoras”, já que somente tinham o direito de votar aquelas casadas (com autorização

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do marido), viúvas e solteiras com renda. Esta nal, sem nenhuma restrição. realidade, começa a mudar em 1934, com o Artigo 3º As mulheres terão, em condidireito de votar às mulheres, sendo este o emções de igualdade, o mesmo direito que os brião do modelo atual. homens de ocupar todos os postos públicos e Os direitos contidos nos artigos iniciais de exercer todas as funções públicas estabeda convenção, ainda encontra resistência por lecidas em virtude da legislação nacional, sem uma parcela da sociedade. Os artigos abaixo nenhuma restrição. transcritos demonstram como deveria ser: A comprovação da ausência de aplicaArtigo 1º As mulheres terão, em igualda- ção e do nível de machismo presente se dá na de de condições com os homens, o direito de norma eleitoral vigente que obriga o percenvoto em todas as eleições, sem nenhuma res- tual mínimo de 30% (trinta por cento) no quatrição. dro de candidatas aos cargos proporcionais. Se tivéssemos em uma sociedade igualitário, Artigo 2º As mulheres serão, em condiesta norma não existiria. ções de igualdade com os homens, elegíveis para todos os organismos públicos de eleição, constituídos em virtude da legislação nacio-

4.4. CONVENÇÃO SOBRE A IGUALDADE DE OPORTUNIDADES E DE TRATAMENTO PARA HOMENS E MULHERES TRABALHADORES: TRABALHADORES COM ENCARGOS DE FAMÍLIA Não há como falar em sociedade igualitária sem aplicar uma relação de trabalho análoga com o discurso. Pensando nesta realidade, em 1981, a OIT, em sua 156ª Conferência aprovou documento condenando a discriminação e trouxe à luz uma realidade que, como já citado diversas vezes, impõe às mulheres uma dor sem precedente. Entretanto, em que pese a conferência tenha ocorrido há quase 4 décadas, até o momento o Brasil não promoveu sua ratificação. O documento ignorado pelo Brasil, demonstra uma realidade muito comum: mulher como chefe de família. Artigo 1º 1. Esta Convenção aplica-se a homens e mulheres com responsabilidades com relação a seus filhos dependentes, quando estas responsabilidades restringem a possibilidade de se prepararem para uma atividade econômica e nela ingressar, participar ou progredir.

bros de sua família imediata que manifestamente precisam de seus cuidados ou apoio, quando essas responsabilidades restringem a possibilidade de se prepararem para uma atividade econômica e de nela ingressar, participar ou progredir. Como é de simples análise, a figura feminina torna-se na década de 1980, um referencial não apenas de esposa, como também de chefe do lar. Este documento é fruto da chamada década da mulher, uma ideologia criada em 1975 na I Conferência Mundial sobre a Mulher, ocorrida na Cidade do México, onde ficou definida a criação da década de mulher 1975-1985, que tinha como escopo a valorização da mulher abordando a nova realidade do empoderamento do “sexo frágil”, sendo promulgada no Brasil somente em 2002. Esta conferência viria a se repetir em mais 3 edições: Copenhague, 1980; Nairóbi, 1985 e Pequim, 1995.

2. As disposições desta Convenção aplicar-se-ão também a homens e mulheres com responsabilidades com relação a outros mem30


4.5. CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE O MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, RIO 92 Para muitos, a Rio 92 foi uma conferência apenas de cunho climático, sem qualquer vinculação com as outras demandas políticas e sociais. A RIO 92, trouxe sem eu artigo 24, a necessidade de abordar e se fazer cumprir todos os acordos de envolvam os direitos das mulheres, conforme transcrição abaixo:

e administrativos para transformar os direitos reconhecidos em leis nacionais e devem tomar medidas para implementá-los, a fim de fortalecer a capacidade jurídica da mulher de participar plenamente e em condições de igualdade nas questões e decisões relativas ao desenvolvimento sustentável.”

Artigo 24: “Pede-se urgência aos Gover A agenda 21, nome atribuído ao docunos para que ratifiquem todas as convenções mento foi ratificado por diversas nações, popertinentes relativas à mulher, se já não o fi- rém, como passar das décadas, os compromiszeram. Os que ratificaram as convenções de- sos assumidos foram deixados de lado. vem fazer com que sejam cumpridas e estabelecer procedimentos jurídicos, constitucionais

4.6 CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR, PUNIR E ERRADICAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, BELÉM, 1994 Seguindo a esteira da Rio 92, em 1994, ocorreu na cidade de Belém uma convenção cujo objetivo era prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher. Foi a primeira vez na história dos encontros internacionais que a nomenclatura mulher, foi substituída por gênero. Um avanço não apenas para as mulheres, mas principalmente para todos que há décadas sofriam “aprisionados” devido à sua orientação sexual de gênero. O evento em terras norte brasileiras foi um verdadeiro divisor de águas, sendo ainda o primeiro encontro a reconhecer que a violência contra as mulheres é algo de interesse de Estado, devendo ser tratado com tamanha seriedade. Os dois primeiros artigos podem ser considerados os pais da Lei nº 11.340, a Lei Maria da Penha, pois logo em seu início encontramos elementos igualmente presentes na tão conhecida lei Artigo 1 - Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.

sexual e psicológica. a) ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras turmas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual; b) ocorrida na comunidade e comedida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e c) perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra. Como podemos notar, o evento daquele outono de 1994, trouxe um alerta para a realidade das pessoas com gênero feminino, devendo para tanto ser observado de forma plena e com muito rigor principalmente pelas autoridades constituídas.

Artigo 2 - Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, 31


5. LEI 11.340 - LEI MARIA DA PENHA Chegamos ao último estágio da cadeia evolutiva dos direitos das mulheres. Uma evolução, que se compararmos com um bebê, ainda gatinha, pois em pleno século XXI, o Brasil, registra 1 (um) caso de violência contra a mulher a cada 4 (quatro) minutos. Em que pese a lei Maria da Penha seja associada como uma conquista às mulheres, pois o Estado Brasileiro, através de seus representantes demonstrem orgulho no dispositivo legal, em que pese haja comemorações políticas pela lei, muitos detalhes devem ser observados, dentre eles o fato de que a Lei 11.340, somente existe por determinação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, pois devida à ausência de leis para proteção às mulheres, e após sofrer duas tentativas de homicídio pelo próprio marido, a Senhora Maria da Penha Maia Fernandes procurou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e lá denunciou o Estado Brasileiro por não assegurar os direitos de proteção à vida das mulheres, enfatizando que inexistia no Brasil leis que promovessem de forma eficaz qualquer medida. Em denúncia, Maria da Penha, citou que sofreu duas tentativas de homicídio, que na primeira ficou paraplégica e na segunda, seu marido tentou eletrocutá-la.

de violência contra a mulher e velar por que as autoridades, seus funcionários e pessoal, bem como agentes e instituições públicos ajam de conformidade com essa obrigação; b) agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher; c) incorporar na sua legislação interna normas penais, civis, administrativas e de outra natureza, que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, bem como adotar as medidas administrativas adequadas que forem aplicáveis; d) adotar medidas jurídicas que exijam do agressor que se abstenha de perseguir, intimidar e ameaçar a mulher ou de fazer uso de qualquer método que danifique ou ponha em perigo sua vida ou integridade ou danifique sua propriedade; e) tomar todas as medidas adequadas, inclusive legislativas, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes ou modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher;

f) estabelecer procedimentos jurídicos justos e eficazes para a mulher sujeitada a Como resposta à sua denúncia, Maria violência, inclusive, entre outros, medidas de da Penha recebeu da ONU, o reconhecimen- proteção, juízo oportuno e efetivo acesso a tais to do direito através da indicação de respon- processos; sabilidade do Estado Brasileiro pela violação g) estabelecer mecanismos judiciais dos direitos contidos nos artigos 8 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos, e administrativos necessários para assegurar reconhecendo também que o direito denun- que a mulher sujeitada a violência tenha efeciado contra as mulheres ainda infringia o ar- tivo acesso a restituição, reparação do dano e tigo 7º da Convenção de Belém do Pará, nes- outros meios de compensação justos e eficate caso, pela omissão praticada, a qual merece zes; plena transcrição: h) adotar as medidas legislativas ou de outra natureza necessárias à vigência desta Artigo 7 Convenção Os Estados Partes condenam todas as for A importância do tema junto com a reamas de violência contra a mulher e convêm em adotar, por todos os meios apropriados e sem lidade brasileira era tamanha que o Brasil teve demora, políticas destinadas a prevenir, punir e que acolher o relatório nº 54/01, o qual determinou, de acordo com documento, as seguinerradicar tal violência e a empenhar-se em: tes providências: a) abster-se de qualquer ato ou prática 32


4. Prosseguir e intensificar o lher evidencia que ela continua a ser desresprocesso de reforma que evite a tolerância es- peitada em seus direitos, subjugada e exposta tatal e o tratamento discriminatório com res- aos diferentes tipos de violência. peito à violência doméstica contra mulheres no Brasil. A Comissão recomenda particularmente o seguinte: a) Medidas de capacitação e sensibilização dos funcionários judiciais e policiais especializados para que compreendam a importância de não tolerar a violência doméstica; b) Simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual, sem afetar os direitos e garantias de devido processo; c) O estabelecimento de formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas de solução de conflitos intrafamiliares, bem como de sensibilização com respeito à sua gravidade e às consequências penais que gera; d) Multiplicar o número de delegacias policiais especiais para a defesa dos direitos da mulher e dotá-las dos recursos especiais necessários à efetiva tramitação e investigação de todas as denúncias de violência doméstica, bem como prestar apoio ao Ministério Público na preparação de seus informes judiciais. e) Incluir em seus planos pedagógicos unidades curriculares destinadas à compreensão da importância do respeito à mulher e a seus direitos reconhecidos na Convenção de Belém do Pará, bem como ao manejo dos conflitos intrafamiliares. Como pode-se notar, as normas contidas na lei Maria da Penha seguem as diretrizes do relatório anual 51/01, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Órgão Vinculado a Organização dos Estados Americanos – OAE. A necessidade de se elaborar uma que possa resguardar os direitos da mu-

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6. CONCLUSÃO Em que pese tenhamos realizado diversos encontros e conferências em defesa da igualdade entre homens e mulheres, ainda temos um caminho muito longo a se percorrer. Nossa sociedade brasileira precisa deixar de tratar as mulheres como ser inferior, adotando de forma efetiva uma postura de igualdade de condições e de tratamento, deixando de lado a prevalência da lei do mais forte, do macho alfa, do autoritarismo. Nossa sociedade precisa deixar de criar novas Marias da Penha. Não podemos continuar promovendo 14 violências contra as mulheres por hora. Esta realidade só mudará quando os cidadãos de hoje tiverem conhecimento de suas limitações legais e um saber filosófico de base, onde o estudante possa entender que os atos têm consequências, que o Estado pune, que não existe homem superior. Este estudo poderia começar com uma simples leitura do livro A República, do filósofo grego chamado Platão, que em seu livro V, nos traz a reflexão de como deveria ser o tratamento empregado às mulheres. Pensem nisso....

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REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de novembro de 1988. Brasília, DF, 05 nov. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 16 fev.2020 ________. COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E MINORIAS. Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/ comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/comite-brasileiro-de-direitos-humanos-e-politica-externa/ConvDirPolMulh.html>. Acesso em: 16 fev.2020 ________. COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E MINORIAS. Convenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos Civis à Mulher. Disponível em: <https://www2.camara.leg. br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/comite-brasileiro-de-direitos-humanos-e-politica-externa/ConvIntConcDirCivMul.html>. Acesso em: 16 fev.2020 ________.COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E MINORIAS. Convenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos Civis à Mulher. Disponível em <https://www2.camara.leg.br/ atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/comite-brasileiro-de-direitos-humanos-e-politica-externa/ConvIntConcDirCivMul.html>. Acesso em: 16 fev.2020 _______. Decreto nº 19.841 de 22 de outubro de 1945. Promulga a Carta das Nações Unidas, da qual faz parte integrante o anexo Estatuto da Corte Internacional de Justiça, assinada em São Francisco, a 26 de junho de 1945, por ocasião da Conferência de Organização Internacional das Nações Unidas. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm >. Acesso em: 16 fev.2020 _______.Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340. htm>. Acesso em: 16 fev.2020 Decreto nº 4.377 de 13 de setembro de 2002. Promulga a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, e revoga o Decreto no 89.460, de 20 de março de 1984. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/ D4377.htm>. Acesso em: 16 fev.2020 KOLONTAI, Alexandra. A Nova Mulher e a Moral Sexual. São Paulo: Expressão Popular, 2011. OEA. Relatório Anual 2000. Relatório nº 54/01. Caso 12.051. Disponível em <https://www. 35


cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm>. Acesso em: 16 fev.2020 ONU. Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, Rio 92. Disponível em <https://nacoesunidas.org/rio20/img/2012/01/agenda21.pdf>. Acesso em: 16 fev.2020 ________.A Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em <https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/declaracao/>. Acesso em: 16 fev.2020 OIT. Convenção nº 100 - Igualdade de Remuneração de Homens e Mulheres Trabalhadores por Trabalho de Igual Valor. Disponível em <https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/ WCMS_235190/lang--pt/index.htm>. Acesso em: 16 fev.2020 _________Convenção nº 103 - Amparo à Maternidade. Disponível em <https://www.ilo.org/ brasilia/convencoes/WCMS_235193/lang--pt/index.htm>. Acesso em: 16 fev.2020 _________. Convenção nº111 - Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação. Disponível em <https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235325/lang--pt/index.htm>. Acesso em: 16 fev.2020 _________. Convenção nº 156. Sobre a Igualdade de Oportunidades e de Tratamento para Homens e Mulheres Trabalhadores: Trabalhadores com Encargos de Família. Disponível em <https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_242709/lang--pt/index.htm>. Acesso em: 16 fev.2020

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A ATUAÇÃO PARCIAL E POSITIVA DO JUIZ NA CONDUÇÃO PROCESSUAL EM CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER Amanda Bassoli Siqueira da Silva Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Bauru, mantido pela Instituição Toledo de Ensino – ITE/CEUB. Pós-graduanda (lato sensu) LLM em Direito Civil e Processual Civil pelo Centro de Pós-Graduação da Instituição Toledo de Ensino. Atualmente, é membro da Comissão de Processo Civil da OAB/Bauru, bem como membro e Presidente Adjunta da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/Bauru. Advogada na Leal & Leal Advogados, com atuação preponderante nas áreas empresarial e contenciosa. Fabio Resende Leal Doutor e mestre em Direito (Centro Universitário de Bauru – CEUB/Instituição Toledo de Ensino – ITE); Especialista em Direito Empresarial (CEUB/ITE); Bacharel em Direito (CEUB/ ITE); Professor Adjunto da Universidade Paulista – UNIP (graduação e pós-graduação em Direito); Professor convidado do Núcleo de Pós-Graduação da ITE e da Escola Superior da Advocacia – ESA (pós-graduação e extensão em Direito); Presidente da Comissão de Processo Civil da OAB/Bauru; Membro da Comissão Especial de Direito Processual Civil da OAB/SP; Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP; Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP; Associado ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito – CONPEDI; Membro do Conselho Editorial da Juruá Editora e do Editorial Juruá; Membro do Corpo de Pareceristas do Conselho Internacional de Estudos Contemporâneos em Pós-Graduação – CONSINTER e da Revista Internacional CONSINTER de Direito; Assessor do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP; autor dos livros “Recurso especial: teoria e prática” e “Celeridade processual como pressuposto de efetividade dos direitos fundamentais”; e Sócio de Leal & Leal Advogados. SUMÁRIO 1. Introdução. 2. Da proteção constitucional da mulher. 2.1. Do princípio da igualdade versus a discriminação positiva – a efetividade dos direitos fundamentais. 2.2. Da tutela jurídica específica às mulheres – promulgação da Lei Maria da Penha. 3. Da violência doméstica. 3.1. Conceito. 3.1.1. A violência doméstica como violência de gênero. 3.1.2. A violência doméstica como violação aos direitos humanos. 3.2. Rede de apoio às vítimas de violência doméstica e familiar. 4. Da (im)parcialidade do juiz. 4.1. Da parcialidade subjetiva – atuação jurisdicional negativa. 4.2. A parcialidade positiva como concretização da igualdade material. 4.3. A condução processual parcial e positiva em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. 5. Considerações finais. Referências. 38


RESUMO O presente artigo tem como objetivo o estudo da conduta processual (im)parcial do juiz frente à condição histórica de vulnerabilidade da mulher. As discussões partem da disposição constitucional do princípio da igualdade em relação ao gênero feminino, seus direitos e garantias fundamentais, analisando-se a Lei Maria da Penha frente ao cenário histórico de violência doméstica e familiar contra a mulher. Pautando-se na doutrina contemporânea, esmiuçamos a possibilidade de atuação parcial e positiva do juiz na condução processual, tendo em vista às particularidades e vulnerabilidades de casos tutelados pela Lei n.° 11.340/2006.

PALAVRAS-CHAVE Direito das mulheres. Lei Maria da Penha. Imparcialidade. Princípio da igualdade. Grupos vulneráveis.

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1. INTRODUÇÃO A acepção de direitos fundamentalmente garantidos por toda a Constituição Federal constitui o cerne do ordenamento jurídico brasileiro.

artigo abordará uma reflexão da conduta processual do juiz no exercício da função jurisdicional em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, analisando o princípio da imparcialidade do julgador, suas implicaInaugurando o rol principiológico da Carções negativas e positivas, e a concepção de ta Magna, tem-se a máxima de que todos são um novo entendimento quanto à aceitação de iguais perante a lei, sendo vedada qualquer condutas parciais do Poder Judiciário. discriminação em sentido contrário. Desta forma, homens e mulheres formalmente osO texto contará com três tópicos printentam os mesmos direitos e deveres, sendo cipais. No primeiro capítulo, será analisada equivalentes juridicamente. a posição da mulher na Constituição Federal sob a ótica do princípio da igualdade. PassaNo entanto, a realidade nua e crua é muiremos pelos conceitos de igualdade material to diferente das disposições legais, sendo inee formal, suas implicações legais e práticas na gável que a mulher ocupa uma posição subjulegislação especial que tutela o gênero feminigada na sociedade quando em comparação ao no. Em um segundo momento, será analisado homem. o conceito de violência doméstica a partir de Historicamente, o gênero feminino su- pesquisa histórica e doutrinária. O terceiro tóporta uma carga geracional de violência, in- pico voltar-se-á ao princípio da imparcialidaclusive em seu próprio lar, não sendo raros de do juiz e sua atuação processual, analisanos relatos de vítimas que sofrem nas mãos de do-se as diversas acepções e irradiações do mencionado princípio por todo ordenamento seus próprios companheiros. jurídico. O texto se encerrará com breves conDesta forma, considera-se que o gênero siderações finais, com o intuito de confirmar feminino agrega uma minoria, não no sentido a hipótese de que a condução processual do quantitativo, mas, sim, em relação à tutela ju- julgador em casos de violência doméstica e rídica especializada, pois o gênero masculino familiar poderá voltar-se à participação positiainda possui incontáveis vantagens e privilé- va, sem implicar em ofensa ao texto constitugios que possibilitam a efetivação plena de cional e especial. seus direitos constitucionalmente previstos. Tendo em vista essa divergência social e jurídica atribuída ao “sexo frágil”, o presente

2. DA PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA MULHER A Carta Magna brasileira, promulgada no ano de 1988, registrou um marco preludiar à nação brasileira, inaugurando uma era de consagração às garantias e aos direitos fundamentais.

tido sociológico de uma Carta Magna se vale da representação e correspondência dos esforços sociais estruturantes do poder, caso contrário o documento é irrelevante, perfazendo mera folha de papel. O sentido jurídico, por sua vez, é definido como uma organização sistemática dos Como Lei Maior, a Constituição pode base- elementos constitutivos do Estado, elencandoar-se, dentre as diversas acepções, na estrutura -se a separação e funcionamento dos poderes, sociológica ou jurídica da sociedade que se visa o sistema de governo, dispondo sobre modelos reger. Lecionava Ferdinand Lassalle1 que o sen1 LASSALLE apud ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 18 ed. São Paulo: Verbatim, 2014, p. 32.

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econômicos e de garantias a serem seguidos2, na qual impera e, inclusive, integrar todos os eleservindo, ainda, para determinar os critérios de mentos jurídicos para a formação de um Estado validade das leis3. Democrático de Direito e seu ordenamento jurídico, incluindo direitos e garantias fundamentais. Tendo em vista esses conceitos, iniciamos nossa jornada partindo da premissa de que a Constituição deve espelhar socialmente a nação

2.1 DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE VERSUS A DISCRIMINAÇÃO POSITIVA – A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Nossa lex mater, em seu artigo 3º, elencou os objetivos primordiais da nação como sendo, dentre outros, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I), a redução das desigualdades sociais (inciso III) e a não discriminação por origem, raça, sexo, cor e idade (inciso IV). Ademais, instituiu em seu artigo 5° o rol dos direitos e garantias fundamentais, enfaticamente guiados em seu caput e inciso I pelo princípio da igualdade4.

ao caso estudado, além do fundamento supremo: os princípios possuem caráter edificante, são estandartes juridicamente vinculantes radicados nas exigências de justiça ou na ideia de Direito, são a razão de ser das normas-regras. No mesmo sentido, Pietro de Jesús Lora Alarcón6 leciona que

A expressão ‘princípio’ deriva do latim principium, que designa a causa primeira, o ponto de partida ou fundamento de um processo qualquer. Assim, estamos a falar de algo que revela uma certa essencialidade ou nascimento. No caso, a base de um sistema.

Cerne do presente estudo, as normas jurídicas em questão são escopo de extensas divergências doutrinárias quando da discussão de sistemas legais que integram tutelas específicas voltadas às minorias sociais, onde se Desta forma, o ordenamento jurídico pátrio discutem eventuais infringências ao princípio tem suas raízes cravadas nas férteis entranhas da igualdade. principiológicas que, por sua vez, o alimentam e Desta forma, um estudo principiológico faz-se de extrema importância para a compreensão e aplicação do Direito Constitucional. Com efeito, princípios e leis são os fundamentos do nosso ordenamento jurídico pátrio, divergindo, no entanto, em pontos cruciais em sua natureza.

edificam, sendo a razão de viver das normas jurídicas.

O princípio da igualdade, também denominado isonomia, versa sobre um dos pilares mais sólidos do sistema legal democrático. De acordo com Alarcón, antecede até mesmo a consagração do Estado, não limitando sua esfera protetiva Segundo José Joaquim Gomes Canotilho5, em apenas uma característica ou ação7. a singularidade desses conceitos baseia-se na densa abstração, razão pela qual torna-os vagos Em paralelo, ao tratarmos de direitos e gae indeterminados, dependentes de interações rantias fundamentais, Luiz Alberto David Araújo e hermenêuticas e concretas, aptas a integrá-los 2 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 18 ed. São Paulo: Verbatim, 2014. Ibidem, p. 34. 3 ALARCÓN, Pietro de Jesus Lora. Ciência política, estado e direito público: uma introdução ao direito público da contemporaneidade. 2 ed. São Paulo: Verbatim, 2014, p. 159. 4 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília, Distrito Federal: Senado Federal, 1988. 5 “Os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fácticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõe, permitem ou proíbem) que é ou não cumprida; [...] os princípios coexistem, as regras antinómicas excluem-se.” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 6 ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1.147). 6 ALARCÓN. Idem, p. 160. 7 ALARCÓN. Op. cit., p. 221.

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Vidal Serrano Nunes Júnior 8 diferenciam os institutos, atribuindo natureza puramente declaratória aos direitos, inerente à dignidade humana, ao passo que as garantias seriam mecanismos pelos quais os sujeitos alcançariam o exercício ou reparação quando violados estes direitos. Em sua concepção, Alarcón9 concede às garantias fundamentais natureza complementar aos direitos, servindo como um instrumento para sua efetivação. Por atuarem conjuntamente na promoção da dignidade do indivíduo, permite-se, em casos específicos, a ação de legislar para grupos minoritários, a fim de que alcancem a plenitude do conforto singular, assim como de sua própria dignidade e eficácia destes direitos.

das relações sociais, pois nestas, a pluralidade é óbvia ululante. O Direito Constitucional posto, ou seja, a Constituição positiva, deve refletir esta pluralidade (daí a importância da Constituição em seu sentido dialético-cultural).

O dogma “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” é materializado na figura da igualdade formal, aquela prescrita de forma abstrata e genérica, erga omnes. Tal premissa não encontra mais respaldo na doutrina contemporânea, uma vez que a igualdade material é a máxima perseguida, pois o tratamento somente será padronizado quando os sujeitos da relação puderem suportar a condição; Nessa linha de pensamento, Milena Gor- caso contrário, serão diferenciados e receberão don Baker10 explica que esses direitos funda- atendimento de acordo12. mentais imperiosamente possuem como natuNessa perspectiva, a segregação não mais reza a universalidade, atribuindo-se ao gênero será para diminuir e oprimir, mas, sim, para edififeminino certa vulnerabilidade, determinada pecar, tratar igualmente os iguais e desigualmente los fatores fisiológicos, sociais e econômicos que os desiguais na medida de sua desigualdade. as diferenciam e que exercem grande influência sobre a violência contra a mulher, sendo necesSegundo Tove Stang Dahl13, jurista noruesária a aplicação de legislação específica volta- guesa e pesquisadora assídua acerca dos dida para este âmbito de interação, até mesmo em reitos das mulheres, a discriminação negativa respeito ao princípio da igualdade. perpetuamente se debruça sobre um grupo minoritário, oprimindo-o, razão pela qual a segrega Assim, diante da diversidade social e das ção pejorativa é um instrumento de dominação: problemáticas como consequências do convívio humano, o Estado poderá ser clamado a prestar Está implícito que a discriminação negatutela específica a determinados grupos hipossu- tiva contra as mulheres é geralmente vantajoficientes, cujos direitos fundamentais não se en- sa para os homens, enquanto a discriminação contram em pleno exercício. Como observa Guilherme Ribeiro : 11

Nesta realidade nova, plural, é inadmissível a aplicação de um Direito ainda baseado na ideia da existência de um homo medius, pois este implica a existência de uma concepção monolítica do cidadão. Tal concepção encontra-se devidamente sepultada no campo

positiva em favor das mulheres lhes dá especiais vantagens em detrimentos dos homens. Em regra, esta acção afirmativa em relação às mulheres é apenas prejudicial para os direitos de certos homens, individualmente considerados, não envolvendo discriminação negativa contra os homens como grupo. A razão para assim ser é a de que a discriminação positiva em favor das mulheres tem frequentemente

8 ARAUJO; NUNES JÚNIOR. Idem, p. 152. 9 ALARCÓN. Idem, p. 377-378. 10 BAKER, Milena Gordon. A tutela da mulher no direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 01. 11 RIBEIRO, Guilherme. In ANSELMO, José Roberto; SIQUEIRA, Dirceu Pereira (orgs.). Estudos sobre direitos fundamentais e inclusão social: da falta de efetividade à necessária judicialização, um enfoque voltado à sociedade contemporânea. Birigui: Boreal, 2010, p. 182. 12 “Disso resulta que no Estado Democrático de Direito o princípio da igualdade deixou de ter um caráter passivo, de proibição de qualquer discriminação, termo com o qual correntemente se designa o tratamento diferente e não justificado e, portanto, tratamento que fere a igualdade, para tornar-se um princípio ativo, que atravessa a ordem jurídica e permite uma abertura do próprio sistema, que em ocasiões deve promover uma discriminação de cunho positivo, a chamada discriminação constitucional”. ALARCÓN. Idem, p. 222-223. 13 DAHL, Tove Stang. Direito das mulheres: uma introdução a teoria do direito feminista. 1 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993, p. 44-45.

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Preceitua Alarcón14 que a mesma igualdade na sua origem uma posição inicial e continuada de fraqueza destas, que se pretende pre- que concedeu ao legislador a oportunidade da cisamente contrabalançar com acções afirma- discriminação positiva também lhe possibilitou a criação das ações afirmativas, visando eliminar tivas.

os efeitos persistentes (psicológicos, culturais e Desta forma, a disparidade entre os gê- comportamentais) de um passado opressor, que neros e a consequente submissão feminina é tendem a perpetuar-se no tempo, perfazendo, pressuposto fundamental para a elaboração da desta forma, a igualdade material. discriminação positiva, efetivada através da implementação de ações afirmativas.

2.2 DA TUTELA JURÍDICA ESPECÍFICA ÀS MULHERES – PROMULGAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA Quando de seu advento, a Lei n° gas em universidade para negros e pobres, 11.340/200615 – popularmente chamada de Lei vagas destinadas a deficientes em concursos Maria da Penha – causou grande comoção no públicos, dentre outras.16 mundo jurídico, sendo alvo de inúmeras críticas Ao contrário da primeira impressão, a proacerca de sua legalidade. mulgação de uma legislação específica visando Em análise rápida dos primeiros artigos a proteção da mulher no âmbito doméstico e fada legislação, era possível presumir equivoca- miliar encontra respaldo constitucional abstrato, damente que a demorada gestação do Estado pelo princípio da igualdade, e expresso, pelas brasileiro para conceber aquele projeto de lei ha- disposições do artigo 226 da Constituição Fedevia, na verdade, dado à luz uma norma incons- ral17: titucional, alocando a mulher em uma posição Art. 226. A família, base da sociedade, privilegiada frente à sociedade patriarcal que se instaurara e, inclusive, perpetua-se até os dias tem especial proteção do Estado. recorrentes.

§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a Numa primeira leitura, podemos incidir integram, criando mecanismos para coibir a no erro de pensar que a nova lei, ao se di- violência no âmbito de suas relações. rigir especificamente à mulher, estaria ferinA mulher, como núcleo da entidade familiar, do frontalmente a igualdade formal posta na corriqueiramente sofre às suas expensas, para Constituição (artigo 5° e seus incisos). A in- que seu lar permaneça minimamente preservatenção do legislador foi forçar e provocar a do. À vista disso, as companheiras permaneciam mudança social (e da mentalidade de seus confinadas em seu próprio lar, condição que as membros) por meio de uma lei, que contém deixava extremamente vulneráveis e à mercê aspectos administrativos, civis, trabalhistas e das ações de seus companheiros, razão pela qual durante séculos, a violência contra as muespecialmente penais. É uma ação afirmativa lheres não era vista como um problema social e em favor da mulher vítima de violência do- político, mas sim privado, pelo fato de ocorrer no méstica, como também o é a reserva de va- interior do espaço doméstico e em meio a relaA esse respeito, Camilo Pileggi relembra:

14 ALARCÓN. Op. cit., p. 223. 15 BRASIL. Lei n.° 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. 16 PILEGGI, Camilo. Lei Maria da Penha: acertos e erros. In: Revista jurídica da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, ano 1, v. 1. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007, p. 18. 17 BRASIL. Ibidem, 1988.

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ativo, sendo o agressor o homem (do sexo oposto) e que como consequência a pena Como se sabe, na nossa sociedade as mulheres integram um grupo minoritário, cuja vul- seja agravada em decorrência dessa relação 21 nerabilidade é característica principal, sendo jus- entre os sujeitos ativo e passivo. ções familiares e conjugais18.

tificada por condições biológicas, econômicas e Em julgamento procedente da Ação Declasociais. ratória de Constitucionalidade de n° 19/DF, impeLogo, urge a aplicação da discriminação trada perante o Supremo Tribunal Federal pelo positiva materializada através da Lei Maria da então Presidente da República e julgada em 09 de fevereiro de 2012, o Ministro Marco Aurélio Penha.19 declarou que “para frear a violência doméstica, Em perspectiva mundial, Baker20 aponta que não se revela [...] ilegítimo o uso do sexo como a discriminação positiva é defendida amplamen- critério de diferenciação. A mulher é eminente quando da pauta acerca da violência domés- temente vulnerável quando se trata de constica e familiar, inclusive havendo recomendação trangimentos físicos, morais e psicológicos expressa da Organização das Nações Unidas sofridos em âmbito privado”. Em paralelo com (ONU) para a elaboração de legislações gender os direitos dos homens, esclareceu que, “mesmo sensitive, isto é, a não aplicação do Direito Penal quando homens, eventualmente, sofrem violêngeral nestes casos, em que o gênero da vítima é cia doméstica, a prática não decorre de fatores ponto determinístico para a solução e prevenção culturais e sociais e da usual diferença de força do problema, porque leis penais específicas in- física entre os gêneros”.22 Isto posto, esclarece corporam as experiências diferenciadas sofridas que a Lei n° 11.340/2006 está de acordo com a pelas mulheres nas violências cometidas pelo pauta constitucional (âmbito interno) e internagênero masculino. cional (seara externa). Logo, observamos a discriminação positiva Em “A luta pelo Direito”, Rudolph Von Jhematerializar-se na implementação de um novo ring discorre sobre o perpétuo relacionamento da instituto, o Direito Penal de Gênero, conforme lei e a batalha contra as injustiças, dos sintomas observa Mello: e consequências suscitados às normas legais diante da instabilidade da balança jurídica, sa[...] no qual a criação de um tipo penal lientando que “quando o direito legal do indivíduo específico referente à violência contra a mu- é sacrificado, a lei também é sacrificada” e que lher contenha os seguintes elementos: sujei- “um direito legal concreto só existe nas condições to passivo, obrigatoriamente a mulher, que é pelas quais o princípio abstrato de lei consolida objeto da agressão ou da conduta lesiva (por esse direito”23.

ser pertencente ao gênero feminino); sujeito

18 MELLO, Adriana Ramos de. Feminicídio: uma análise sociojurídica da violência contra a mulher no Brasil. Rio de Janeiro: GZ, 2016, p. 91. 19 “Nesse diapasão, a Lei sob o n. 11.340/2006 nasceu como forma de implementar a isonomia em sentido substancial entre os gêneros, reconhecendo a necessidade de proteção da mulher ao regulamentar o §8° do artigo 226 da Constituição Federal vigente. Ainda retrata a instauração de Política Pública para garantir à mulher, no âmbito das relações domésticas e familiares, a proteção contra toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 8°, §1°).” (SILVA, Nilson Tadeu Reis Campos; SIQUEIRA, Dirceu Pereira. Minorias e grupos vulneráveis: reflexões para uma tutela inclusiva. Birigui: Boreal, 2013, p. 185). 20 BAKER. Idem, p. 04. 21 MELLO. Idem, p. 04. 22 “A Lei Maria da Penha retirou da invisibilidade e do silêncio a vítima de hostilidades ocorridas na privacidade do lar e representou movimento legislativo claro no sentido de assegurar às mulheres agredidas o acesso efetivo à reparação, à proteção e à Justiça. A norma mitiga realidade de discriminação social e cultural que, enquanto existente no país, legitima a adoção de legislação compensatória a promover a igualdade material, sem restringir, de maneira desarrazoada, o direito das pessoas pertencentes ao gênero masculino. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais, vale ressaltar, reclama providências na salvaguarda dos bens protegidos pela Lei Maior, quer materiais, quer jurídicos, sendo importante lembrar a proteção especial que merecem a família e todos os seus integrantes.” BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade n.° 19/DF. Presidência da República. Relator Ministro Marco Aurélio Julgado em 09 fev. 2012. Unânime. Grifou-se. 23 “O que faz esse milagre aparecer? Não é sabedoria, ou educação, mas simplesmente dor. Dor é o grito de ajuda de algo que está em perigo. [...] A dor que uma sente quando os seus direitos legais são violados é a admissão espontânea e instintiva, tirada dele com o uso da força, do que a lei é para ele como indivíduo, em primeiro lugar, e en-

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tutelar especificamente para grupos minoritários, visando a sua equidade, é um erro fatal. À vista distante, aparenta atingir somente alguns indivíduos específicos, todavia resulta na Nesse confronto entre lei e injustiças, o não efetivação de seus direitos fundamentais, autor constrói a imagem de uma árvore para logo, na não efetivação da própria Constituidescrever a ação despótica da violação de di- ção. reitos: O princípio constitucional e sacramente Neste sentido, a violação de um direito acarretará a imediata tutela jurídica, como forma de estancar a injustiça e ilegalidade e garantir o exercício harmonioso do direito.

O sentimento de direito legal é a raiz da árvore. [...] A influência desastrosa que leis injustas e instituições legais ruins exercem no poder moral da nação age debaixo da terra, naquelas regiões em que muitos políticos amadores não dispensam atenção – eles se preocupam apenas com o topo; do veneno que sobe ao topo da raiz eles não conhecem nada. Porém, o despotismo sabe bem onde deve bater para derrubar uma árvore; ele deixa o topo intocado no início, mas destrói as raízes. O despotismo sempre começa atacando no direito privado, com a violação dos direitos legais do indivíduo; quando o trabalho está feito, a árvore cai.24

fundamental da igualdade erroneamente foi considerado violado por muitos que não se preocuparam em direcionar suas preocupações ao verdadeiro propósito da Lei Maria da Penha, que sempre se voltou para a desbanalização e coibição da violência doméstica ferozmente praticada pelos companheiros do lar e inarredavelmente suportada por aquelas cuja posição sempre foi subjugada e menosprezada. A referida Lei acaba, desse modo, com a impunidade dos agressores e leva à luz casos assombrosos desse tipo de violência.

Paralelamente ao trabalho estudado, conclui-se que a omissão estatal em legislar e

3. DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA A violência doméstica vem amplamente pécie (físico, sexual ou psicológico), morte, dano conceituada na Lei n° 11.340/200625, assim sendo patrimonial e/ou moral, podendo ocorrer tanto na toda conduta que tenha como premissa o gênero esfera pública como no espaço particular. feminino, que vise ao sofrimento de qualquer es-

3.1 CONCEITO Como bem observado pela jurista Maria Berenice Dias26, a Lei Maria da Penha foi além da proteção à mulher, inserindo em sua conjuntura a tutela da entidade familiar, denominando o fenômeno bárbaro como violência doméstica, não apenas como violência em face da mulher.

De certo que a violência doméstica seria apenas uma das várias outras violências perpetradas contra a mulher, entretanto, no nosso entendimento, a mais perversa e sagaz, pois a vítima jamais espera ver o conforto de

tão o que é para a sociedade. [...] O homem que não sentiu essa dor, ou a viu em outros, não sabe nada sobre o que é a lei, mesmo que ele saiba todo o corpus juris de cor”. VON JHERING, Rudolph. A luta pelo direito. São Paulo: Hunter Books, 2012, p. 107-118. 24 VON JHERING. Ibidem, p. 132. 25 BRASIL. Ibidem, 2006. 26 DIAS, Maria Berenice. Lei Maria da Penha: efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 48.

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seu lar transformado em uma zona de conflitos.

3.1.1 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA COMO VIOLÊNCIA DE GÊNERO Um diagnóstico aprofundado da questão observa-se que a violência doméstica se relaciona intimamente com o conceito de violência de gênero, uma vez que o fundamento para a agressão masculina em face da ofendida seria a desproporcionalidade da valorização atribuída aos gêneros das partes, fazendo com que uma sobressaia como superior à outra. Desde os primórdios, aos gêneros masculino e feminino heteronormativos foram impostos papéis a serem desempenhados na sociedade: ao primeiro, a dominância no espaço público, a ostentação das relações externas e, ao segundo, a submissão no espaço privado, a manutenção do lar e satisfação do varão como prioridade a ser atendida antes mesmo de sua própria27.

da história. Por sua vez, Adriana Ramos de Mello argumenta que a ideologia patriarcal, institucionalizada e garantida por leis, legitimava a dominação masculina, que fez do espaço do lar um local privilegiado para a violência contra a mulher, tida como necessária para a manutenção da família e o bom funcionamento da sociedade30.

Com a revolução feminista contemporânea, que teve surgimento em meados dos anos 1960, nos Estados Unidos, e segue resistindo até os dias atuais, esses papéis predeterminados aos gêneros e tidos como canônicos foram alvo de questionamentos, emancipando a mulher e a introduzindo no mercado de trabalho, situação que lhe possibilitou a construção de outras relações Às personagens são designadas funções sociais que não se limitavam à sua morada31. que a sociedade julga ser condizentes com seus Destarte, o gênero masculino foi convocado gêneros, atribuindo-lhes obrigações, limitandoa assumir responsabilidades e funções doméstias a espaços distintos e a condutas diferentes, sistematizando e hierarquizando as relações cas, concatenando com uma mudança nos paragerando, assim, conflitos sociais; assim, fruto dessa hierarquização, as digmas preexistentes, 32 mulheres frequentemente surgem como algo dentro do lar . diferente dos homens ou ‘‘inferior’’ a eles28. Observa Maria Berenice Dias que a vioA problemática, portanto, reside na valora- lência doméstica tem ensejo neste cenário, tenção dos gêneros de acordo com suas funções. do como vítima a mulher, aquela que suporta a Logo, à mulher, àquela confinada nos limites da agressão, e como agressor, seu companheiro, família e do lar, restou tão somente a submissão, visto que, antes, ele é que se encontrava em posição de superioridade, provedor das neceso polo passivo da relação. sidades do lar; nesse panorama historicamente No entendimento de Baker29, estes papéis modificado, compensa sua frustação acerca da de gêneros foram instituídos através do determi- quebra dos padrões de papéis de gênero responnismo ideológico, sendo perpetuados ao longo dendo com agressividade: 27 “Durante boa parte da história, o patriarcado foi incontestavelmente aceito por ambos os sexos. Os papéis diferenciados de gênero eram legitimados nos valores associados à separação sexual entre as esferas pública e privada”. DIAS. Ibidem, p. 25. 28 “[...] as mulheres são frequentemente consideradas ‘mini-pessoas’: têm pouca idoneidade moral, fraca inteligência, escassos direitos à propriedade e só em certos limites têm direito à igualdade. Mas o homem tem mais do que tudo isto e, por consequência, tem uma posição mais forte e mais autoridade”. DAHL. Ibidem, p. 06. 29 BAKER. Ibidem, p. 12. 30 MELLO. Ibidem, p. 89. 31 “Tradicionalmente, as vidas e problemas das mulheres circunscreviam-se à esfera doméstica/privada, enquanto os homens ‘possuíam’ o sector público. [...] A história prova que as esferas pública e privada não se têm desenvolvido de forma igual para os homens e as mulheres”. DAHL. Op. cit., p. 86-87. 32 “Até meados do século XX, o casamento implicava em uma divisão de tarefas específicas entre os cônjuges. Enquanto os maridos deveriam demonstrar seu domínio e força no exercício da vontade patriarcal, às mulheres eram designadas típicas tarefas do lar, relacionadas ao cuidado da família (leia-se filhos e marido). Para tanto, as esposas deveriam ser fiéis, submissas, recolhidas. Sua tarefa mais importante era, é claro, a procriação”. MELLO. Op. cit., p. 90.

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Nesse contexto é que surge a violência, justificada como forma de compensar possíveis falhas no cumprimento ideal dos papéis de gênero. Quando um não está satisfeito com a atuação do outro, surge a guerra dos sexos. Cada um usa suas armas: ele, os músculos; ela, as lágrimas! A mulher, por evidente, leva a pior e se torna vítima da violência masculina.33

sentimentos da vítima e a manter definitivamente sob seu controle são as atitudes de carinho e afeto que o agressor repentinamente toma com a ofendida, a chamada fase de lua de mel, em que o companheiro diz estar arrependido dos eventos ocorridos, bem como várias promessas de mudanças de seu comportamento são traçadas.

Todavia, como denominado, trata-se de um ciclo de violência, logo, um período de trégua até pode se fazer presente, entretanto, não se proEste processo doloroso suportado pelas longa no tempo, e a vítima novamente é submemulheres no seio de seu próprio lar foi estuda- tida à violência. do e documentado pela psicóloga estadunidense Assim é que o companheiro transforma Lenore Walker34, fundadora do Domestic Violence Institute, e foi nominado como ciclo de violên- um espaço que deveria ser acolhedor e segucia, consistente em três fases: período de ten- ro em uma zona de terror, estabelecendo sua são, tensão aguda e fase de lua de mel. dominância e suprimindo a autonomia que a O período de tensão é marcado pelo acúmulo de preocupações e conflitos entre as partes, em que o agressor começa a estabelecer seu domínio sobre o território afetivo, abalando paulatinamente a confiança e autoestima da vítima, deixando-a confusa acerca de sua parcela de culpabilidade em relação aos fatos, tornando-a propensa a querer reparar os atritos com seu companheiro a qualquer custo.

mulher exaustivamente lutou, e ainda o faz, para conquistar.

À vista disso, a legislação especial assim encarou as relações domésticas conflituosas.

Nas palavras da jurista Patrícia Copello36, a violência seria um instrumento de dominação utilizada como meio de perpetuar a desigualdade entre homens e mulheres; daí seu caráter perverso e a justificativa de uma pena maior para a Após este ínterim, dá-se início ao período violência contra a mulher. de tensão aguda, em que pressões psicológicas, De forma assertiva, a Lei Maria da Penha abusos físicos e emocionais são recorrentes. Nessa atmosfera, o agressor utiliza-se de todas optou por consagrar o termo violência de gênero as ferramentas violentas que têm à disposição no texto legal, fazendo alusão ao histórico de hiepara manter sua posição de supremacia em face rarquização dos papéis em sociedade. da vítima, que agora se encontra vulnerável e amedrontada, constatando que seus medos estão se concretizando e se intensificando a cada conflito. Milena Gordon Baker35 enfatiza que o medo sempre foi protagonista na história feminina, sendo construído e utilizado de forma hegemônica e universal. Nesta fase, a mulher encontra-se extremamente fragilizada, abalada e, mais do que nunca, policia suas próprias atitudes, pois acredita que tem parcela de culpa nos eventos e, assim, visa evitar qualquer motivo que dê causa a mais uma explosão de seu companheiro. Por fim, o entrelaço final para dissimular os 33 DIAS. Ibidem, p. 26. 34 WALKER, Lenore. Domestic Violence Institute. Dr. Lenore E. Walker, Flórida, EUA, 2017. Disponível em: http:// www.drlenoreewalker.com/domestic-violence-institute/. Acesso em: 15 jan. 2020. 35 BAKER. Ibidem, p. 70. 36 COPELLO, Patrícia (apud BAKER. Op. cit., p. 05)

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3.1.2 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA COMO VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS A Lei n.° 11.340/2006 ainda eleva a fragili- to da igualdade formal, ponto de partida para que zação doméstica a outro patamar, impondo em se busque a igualdade real: seu artigo 6° que a violação constitui afronta aos É inegável, historicamente, que a consdireitos humanos das mulheres37. Em peso se manifestou a doutrina. Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto entendem que a disposição legal é certa, porém somente explicita o óbvio, sendo dispensável a especificação do sexo da vítima para que seja considerada violação aos direitos humanos38. Em sentido contrário, Maria Berenice Dias defende que o âmago da violência doméstica aflige as três gerações dos direitos humanos39. A imposição de dominância pelo agressor e a eventual submissão da vítima no âmbito de seu lar afrontam diretamente o direito à liberdade, enfoque da primeira geração, e à igualdade, da segunda geração, ao elevar-se a um patamar de superioridade. A autora destaca, ainda, que a terceira geração de direitos humanos é violada através da flagelação da solidariedade, também chamada de fraternidade.

trução legal e conceitual dos direitos humanos se deu, inicialmente, com a exclusão da mulher. Embora os principais documentos internacionais de direitos humanos e praticamente todas as Constituições da era moderna proclamem a igualdade de todos, essa igualdade, infelizmente, continua sendo compreendida em seu aspecto formal e estamos ainda longe de alcançar a igualdade real, substancial entre mulheres e homens.

A posição das autoras supramencionadas encontra perfeita consonância com a Confederação das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, que no ano de 1993, em Viena, estabeleceu definitivamente que a violência contra a mulher configura ofensa direta aos direitos humanos, posicionamento posteriormente ratificado pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a VioEm sintonia com a jurista, Helena Omena lência Doméstica, em 1994, documento este Lopes de Faria e Mônica de Melo40 ressaltam que, inclusive, serviu de alicerce para a edição que a especificação legal que visa tratar direitos da Lei Maria da Penha. das mulheres é essencial para o aperfeiçoamen-

3.2 REDE DE APOIO ÀS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR de casos41.

Haja vista que a violência doméstica e familiar não é instituto inovado pela Lei Maria da Penha, movimentos de cunho feminista, que lutavam incessantemente pelo reconhecimento e afirmação dos direitos das mulheres, propôs na década de 1990 uma rede de apoio às vítimas, adotada até os dias atuais como forma de estudo

A abordagem didática se divide em duas espécies: rede de natureza primária e secundária, sendo catalogadas de acordo com a composição dos membros prestativos. A rede primária é constituída de familiares, amigos, até mesmo, vizinhos da vítima, que tenham convívio com ela, e são fundamentais na

37 BRASIL. Ibidem, 2006. 38 CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: Lei Maria da Penha comentada artigo por artigo. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 77-78. 39 DIAS. Ibidem, p. 43-44. 40 FARIA, Helena Omena Lopes de; MELO, Mônica de. Direitos humanos: construção da liberdade e da igualdade. Série estudos: Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, São Paulo, n. 11, out. 1998, p. 373. 41 DIALOGANDO sobre a Lei Maria da Penha. Senado Federal, Brasília, 2017, p. 57. Disponível em: <https:// saberes.senado.leg.br/course/info.php?id=1165>. Acesso em: 03 out. 2017.

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prevenção da violência doméstica, aconselhanA Rede de Enfrentamento de Violência Condo e denunciando quando necessário. tra a Mulher formalizou e institucionalizou a teia secundária de apoio às vítimas, tendo sido criada Por sua vez, a rede secundária é compos- no ano de 2003 pela Secretaria de Políticas para ta por instituições governamentais, não gover- as Mulheres, e tem como objetivo o empoderanamentais, associações de mulheres e demais mento e construção da autonomia das mulheres, grupos de apoio, com atuação em determinada os seus direitos humanos, a responsabilização região, e se destacam pela instrução qualificada dos agressores e a assistência qualificada às fornecida às vítimas em massa, que abordam in- mulheres em situação de violência42. formações sobre procedimentos médicos, investigativos, orientações e consultorias.

4. DA (IM)PARCIALIDADE DO JUIZ tístico, ou seja, a reunião de dados facilmente constatáveis, sem qualquer influência ou juízo de valor do sujeito que os coleta e aplica. A natureza objetiva, aqui, se justifica pelo interesse público abstrato da sociedade na análise externa da função jurisdicional, a finalidade reside na precaução em abordar questões Em uma análise epistemológica, a par- objetivas que pudessem colocar em dúvida a cialidade pode ser entendida como a defesa de aparência da imparcialidade que deve revestir interesses individuais, egoísticos, enquanto a im- a atividade jurisdicional. A noção jurídica de imparcialidade, tal como conhecemos hoje, advém da era pós Segunda Guerra Mundial, período no qual chegou-se a um consenso internacional na elaboração e definição de parâmetros de um processo justo, muito se discutindo sobre os conceitos objetivos e subjetivos que permeiam o tema43.

parcialidade seria a ausência da parcialidade, é O caráter subjetivo, por sua vez, permite dizer, a conduta de desinteresse, isenção, neuo estudo da atuação judicial e sua relação com tralidade44.

fundamentos pessoais do magistrado, suas

Artur César de Souza45 analisa a (im)parcialidade sob dois aspectos: objetivo e subjetivo. influências e inclinações diretas ou indiretas

no exercício estatal, como será esmiuçado a O enfoque objetivo tem como premissa seguir. a atuação jurisdicional do ponto de vista esta-

4.1 DA PARCIALIDADE SUBJETIVA – ATUAÇÃO JURISDICIONAL NEGATIVA Pautando-se nos ensinamentos processuais clássicos, a figura do magistrado é posicionada como equidistante das partes, um terceiro neutro ao litígio.

multânea dos interesses contrapostos no processo, exigindo-se a aplicação normativa sem qualquer influência de suas próprias convicções políticas e partidárias46.

O exercício judicial é, na concepção conComo aponta Nelson Nery Junior47, a defiservadora, a perfeita abstenção valorativa e si- nição de imparcialidade do juiz está intimamente 42 DIALOGANDO. Ibidem, p. 55. 43 “Atualmente, esta garantia encontra-se reconhecida na Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 10), Declaração Americana dos Direitos do Homem (art. 26,2), Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8.1), Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 14,1), Convênio Europeu para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais (art. 6,1) etc.” SOUZA, Artur César de. A parcialidade positiva do juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 28. 44 SOUZA. Ibidem, p. 29. 45 SOUZA. Ibidem, 2008. 46 SOUZA. Ibidem, p. 32. 47 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 7 ed. São Paulo: Revista dos

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ligada ao princípio do juiz natural, concepção que encontra fundamento nos incisos XXXVII e LIII do artigo 5º da Constituição Federal, elemento fundamental para a manutenção do Estado Democrático de Direito, servindo como garantia e proteção do interesse social. Uma atuação parcial, lato sensu, equivaleria em julgamento de exceção, isto é, a atuação jurisdicional em benefício de uma das partes da relação processual.

suais, servem como norteadores da atuação do magistrado na condução do processo, evidenciando condutas prejudiciais que não devem ser adotadas na elaboração do provimento jurisdicional.

Em outras palavras, a doutrina conservadora entende como objetivo principal do princípio da imparcialidade a determinação um parâmetro de exercício negativo do julgador, isto é, o que Com efeito, a Carta Magna vetou expres- não fazer na função, servindo como verdadeiro samente a realização de julgamentos posterior- guia de prevenção de condutas no curso do promente constituídos para deliberação de um fato cesso: específico (tribunal de exceção ad hoc) ou de Para perspectiva negativista do princídeterminado sujeito (tribunal de exceção ad perpio, a imparcialidade tem por objeto assegusonam)48.

rar a independência do Poder Judiciário e a neutralidade político-partidarista do julgador. Preconiza-se a independência perante os interesses partidários ou interesses privados, pessoais ou de grupo. A imparcialidade esgota-se, assim, na imposição de uma série de proibições: (...) a proibição de favorecer ou Atrelado aos princípios da imparcialidade e dar preferência, a proibição de discriminar ou do juiz natural, anteriormente mencionados, Flá- perseguir, a proibição de intervir no processo vio Martins Alves Nunes Júnior50 destaca mais quando pessoalmente interessado.51 Todavia, como ressalva Nery Júnior, a atividade jurisdicional do Estado é repartida em justiças especializadas, não importando, nestes casos, em tribunais de exceção, vez que suas criações são previstas e permitidas pela Constituição Federal49.

um instituto: o princípio da motivação das decisões judiciais. Segundo o doutrinador, a garantia de motivação das decisões judiciais se justifica em três finalidades: ordem subjetiva, ordem técnica e ordem pública. Em um primeiro momento, a motivação visa acalentar a parte sucumbente, expondo as razões do provimento jurisdicional que motivaram a aplicação de uma determinada norma jurídica em detrimento de outra. Logo após, o escopo técnico do mencionado princípio garante à parte a compreensão para interposição adequada de eventual recurso que visa atacar a decisão. Por fim, ponto que nos interessa, a ordem pública por trás da motivação das decisões judiciais diz respeito à fiscalização das intenções do magistrado, sua correta atuação e imparcialidade.

Evidente que, ao tratarmos exclusivamente da parcialidade do ponto de vista subjetivo, a atuação julgadora é limitada, cerceada, não podendo o agente público exercer juízo de valor quando há interesse pessoal na causa. Essa questão, de consenso doutrinário quanto ao repúdio, é solucionada nas hipóteses legais de impedimento e suspeição do magistrado. No entanto, o que se defende no presente trabalho não é a parcialidade subjetiva, mas, sim, a participação objetiva e positiva do juiz na condução de um processo com características particularidades que fogem à regra geral de atuação.

De um ponto de vista analítico, os princí Não fica difícil observar que o temor pios do juiz natural e da motivação das decisões, combinados com a noção de imparcialidade, em de se permitir ao julgador que desequilibre a seus aspectos endoprocessuais e extraproces- balança quando necessário levou ao estabeleTribunais, 2002, p. 66-67. 48 NUNES JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Curso de direito constitucional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 844. 49 “Portanto, a proibição da existência de tribunais de exceção, ad hoc, não abrange as justiças especializadas, que são atribuição e divisão da atividade jurisdicional do Estado entre vários órgãos do Poder Judiciário. Juízo especial, permitido pela Constituição e não violador do princípio do juiz natural, é aquele previsto antecedentemente, abstrato e geral, para julgar matéria específica prevista na Lei.” NERY JUNIOR. Ibidem, p. 67-68. 50 NUNES JÚNIOR. Ibidem, p. 859-861. 51 SOUZA. Ibidem, p. 231.

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cimento de um padrão de conduta extremamente impessoal, que enrijece e paralisa os magistrados, acabando por sacrificar a razão de ser de suas decisões.

formalidade e aplicação da imparcialidade literal e pura do juiz na condução processual, ponderando as consequências de uma atuação positiva e parcial, ainda que em aspectos objetivos, sob o ponto de vista da concretização da igualA atuação jurisdicional, quando seguida dade material. friamente e às cegas a despeito das particulaColocado de outra maneira, a nivelação ridades socioeconômicas de cada caso, transestabelecida pelo conceito clássico de conduta forma os operadores do direito em verdadeiras máquinas programadas para deferir ou indeferir imparcial do julgador pode ir de encontro às pardemandas, proferir decisões vazias, sem qual- ticularidades e vulnerabilidades de determinados casos, colocando em risco a justiça e o interesse quer pensamento crítico ou senso de justiça52. social. Necessário se faz, portanto, repensar na

4.2 A PARCIALIDADE POSITIVA COMO CONCRETIZAÇÃO DA IGUALDADE MATERIAL Partindo de um aspecto objetivo, ao contrário do que se presume, a atuação parcial não vai de encontro ao princípio da igualdade, mas, sim, tem por ele um norte de tramitação.

ta: enquanto a parcialidade subjetiva é repudiada por não se permitir ao juiz que atue no processo por seus valores pessoais (atuação negativa, imparcialidade como abstenção), a parcialidade objetiva deve ser fomentada, em razão de buscar Com efeito, o exercício jurisdicional posi- a concretização da igualdade (participação positivo, isto é, a não abstenção do magistrado na tiva). conduta processual, tem por finalidade a efetivação material dos princípios fundamentais previsNas assertivas colocações de Artur César tos na Constituição Federal53. de Souza, uma participação processual positiva por parte do magistrado não importaria em ofenComo resultado de seus estudos principio- sa à imparcialidade, pois os interesses públicos lógicos, Humberto Ávila explica que a igualdade não são iguais aos interesses postulados pelos e a razoabilidade são diretrizes a serem seguidas particulares, pois são dotados de parâmetros obquando da atuação jurisdicional, participando o jetivos55. magistrado como conciliador das normas jurídicas frente às peculiaridades do caso concreto: Destarte, entende-se que a verdadeira justiça no processo só é alcançada quando se atende [...] Primeiro, a razoabilidade é utilizada e se supera as diferenças nos aspectos sociais, como diretriz que exige a relação das normas econômicos, culturais e jurídicos das partes.

gerais com as individualidades do caso concreto, quer mostrando sob qual perspectiva a norma deve ser aplicada, quer indicando em quais hipóteses o caso individual, em virtude de suas especificidades, deixa de se enquadrar na norma geral. 54

Para a concepção positivista, a imparcialidade representa a necessidade de o juiz ponderar de forma adequada a tomada de decisão, levando-se em conta todos os interesses juridicamente relevantes.

Para se alcançar o processo justo e équo, A dicotomia negativa-positiva da imparciali- é imprescindível que o juiz também considere no dade não se anula entre si, mas se complemen- desenvolvimento da relação jurídica processual 52 “Conforme afirma Plácido Fernandez-Viagas Bartolomé: ‘La concepción del Juez como una máquina perfecta que, ante cada concreto litigio, tiene una solución única previamente fijada constituyó una de las aspiraciones originarias del pensamiento ‘ilustrado’”. SOUZA. Ibidem., p. 32. 53 SOUZA. Ibidem, p. 232. 54 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 156. 55 SOUZA. Op. cit., p. 48.

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as diferenças das circunstâncias sociais, econôEm resumo, não haverá atuação arbitrária e micas e culturais das partes. Somente se estiver desmedida quando da atuação parcial e positiva consciente da totalidade dessas circunstâncias, do magistrado, mas, de modo contrário, a condué que o juiz estará em condições de ser etica- ta pautar-se-á na equidade e razoabilidade. mente imparcial56.

4.3 A CONDUÇÃO PROCESSUAL PARCIAL E POSITIVA EM CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER Conforme mencionamos no início deste estudo, a Constituição Federal impõe como objetivo da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade justa e solidária, visando a erradicação das desigualdades sociais. No entanto, o convívio social nos acorda para uma realidade triste, onde a garantia fundamental da igualdade é observada somente na teoria, não sendo ouvida e aplicada na prática cotidiana.

Ademais, como abordado anteriormente, a perpetuação cultural de degradante submissão do ser mulher é tamanha no território brasileiro que se fez necessária a promulgação de legislação específica para a proteção desta minoria social. A Lei Maria da Penha, ressoando o que determina a Constituição Federal, é verdadeira discriminação positiva, desequilibra a balança de homem-mulher para fazer equidade no tratamento jurídico.

Em análise sistemática, o reconhecimento da condição vulnerável da mulher vítima de violência doméstica e familiar com a consequente aplicação das prerrogativas dispostas na Lei Maria da Penha, nada mais é do que exemplo gritante da parcialidade objetiva do juiz na conNo entendimento de Soraia da Rosa Men- dução processual. des57, “o direito não passa incólume ao simboDo mesmo modo, a atuação positiva do malismo de gênero e menos ainda ao patriarcado”, gistrado também pode se dar, nestes casos, na razão pela qual o processo pode servir de instruinstrução processual, com a produção e valoramento para produzir e reproduzir as desigualdação adequada da prova. des cotidianas. Com efeito, Mendes aponta para o fato de Na visão penalista da doutrinadora, judiciáque até mesmo a produção da prova, que segue rio por vezes é palco de machismo e misoginia, parâmetros objetivos, pode ser maculada pelo pois “não é possível compreender os processos ponto de vista patriarcal, infectando todo o dede criminalização e vitimização das mulheres senrolar processual: sem que se considerem crenças, condutas, atitudes e modelos culturais, bem como o modus O sistema de justiça criminal, do qual o operandi das agências punitivas estatais em re- processo é instrumento, orienta-se a partir de lação a elas”58. estigmas criados e alimentados pelo patriarAs mulheres, grupo social considerado historicamente vulnerável em razão da extensa trajetória de opressão e violência que se alastra até os dias atuais, frequentemente são revitimizadas ao buscarem amparo jurisdicional.

Em verdade, a condição de vulnerabilidade cado. Eis aí o nascedouro e o lugar onde se atribuída ao gênero feminino não é, nem de lon- assentam, por exemplo, a desconfiança em ge, infundada. relação à palavra da mulher e a inexistência

de forma “humanizada” de colheita de seu

56 SOUZA. Ibidem, p. 231-232. 57 MENDES, Soraia da Rosa. Processo penal feminista. São Paulo: Atlas, 2020, p. 92-93. 58 “[...] portanto, seja quanto à criminalização, seja quanto à vitimização das mulheres, exige uma fundamentação criminológica igualmente feminista para qual é imprescindível considerar como o patriarcado manifesta-se de modo a institucionalizar o domínio masculino que se estende a toda a sociedade, garantindo que os homens assumam os espaços públicos de poder, e que as mulheres sejam relegadas ao privado” MENDES. Ibidem, p. 92.

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depoimento quando é vítima.59

“perseguir, humilhar e ameaçar a vitima”.

Não obstante, o próprio Superior Tribunal de Justiça vem solidificando uma jurisprudência positiva, estabelecendo precedentes (até então persuasivos) que atribuem uma valoração diferenciada à palavra da mulher em casos de violência doméstica e familiar:

3. Demonstrada pelas instâncias ordinárias, com expressa menção à situação concreta, a presença dos pressupostos da prisão preventiva, não se mostra suficiente a aplicação de quaisquer das medidas cautelares alternativas à prisão, elencadas na nova redação do art. 319 do Código de Processo RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS Penal, dada pela Lei n.º 12.403/2011. CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIMES PREVISTOS NOS ARTS. 147, CAPUT, 148, 4. Recurso ordinário desprovido.60 § 1º, INCISO I, AMBOS DO CÓDIGO PENAL Portanto, a aplicação do instituto da E 24-A, DA LEI N° 11.340/06. PRISÃO PREparcialidade positiva pelo magistrado no exerVENTIVA. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE cício da atividade jurisdicional, não é sinôniFUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA E DOS REmo de atuação arbitrária e de reprodução de QUISITOS AUTORIZADORES DA PRISÃO. acepções pessoais e egoístas. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS A condução processual positiva e parcial DE URGÊNCIA. ART. 313, INCISO III, DO é materialização da igualdade e medida apta a CPP. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. PALA- remediar a vulnerabilidade da mulher: VRA DA VÍTIMA. ESPECIAL RELEVÂNCIA. A venda da deusa da Justiça necessita PRECEDENTES. MEDIDAS CAUTELARES ser retirada para que se possa reconhecer no DIVERSAS DA PRISÃO. INSUFICIÊNCIA. processo a racionalidade do outro, a sua difeRECURSO ORDINÁRIO DESPROVIDO. rença sociocultural-político-econômica. A ba1. A jurisprudência do Superior Tribunal lança, diante da realidade latino-americana, de Justiça considera idônea a decretação deve ser desequilibrada, a fim de representar da prisão preventiva fundada no descumpri- as desigualdades sociais, econômicas e culmento de medidas protetivas de urgência, turais existentes num continente regrado por de acordo com o previsto no art. 313, inciso injustiças sociais. E a espada, por fim, deveIII, do Código de Processo Penal, bem como ria ser substituída por uma “lupa”, para que que, “em casos de violência doméstica, a se possam avistar as concepções ideológipalavra da vítima tem especial relevância, cas que existem por detrás de um determinahaja vista que em muitos casos ocorrem do ordenamento jurídico de cunho capitalista em situações de clandestinidade” (AgRg e neoglobalizante.61 no RHC 97.294/MG, Rel. Ministro NEFI Destarte, sendo o processo instrumento púCORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em blico de pacificação social, diante de um confli09/10/2018, DJe 29/10/2018). to sustentado por violência doméstica e familiar 2. No caso, foi ressaltado que o Re- contra a mulher, a atuação positiva do magistrado corrente, mesmo cientificado das medidas em desequilibrar a relação processual não ferirá protetivas de urgência impostas, insistiu em o princípio da imparcialidade, pois “o Estado-Juiz deve atuar de modo tal que todos os sujeitos

59 MENDES. Ibidem, p. 94. 60 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIMES PREVISTOS NOS ARTS. 147, CAPUT, 148, § 1º, INCISO I, AMBOS DO CÓDIGO PENAL E 24-A, DA LEI N° 11.340/06. PRISÃO PREVENTIVA. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA E DOS REQUISITOS AUTORIZADORES DA PRISÃO. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA. ART. 313, INCISO III, DO CPP. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. PALAVRA DA VÍTIMA. ESPECIAL RELEVÂNCIA. PRECEDENTES. MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO. INSUFICIÊNCIA. RECURSO ORDINÁRIO DESPROVIDO. Recurso Ordinário em Habeas Corpus n.° 117.304/SP. J A DE P e Ministério Público do Estado de São Paulo. Relatora Ministra Laurita Vaz. Julgado em 17/10/2019. Grifou-se. No mesmo sentido: AgRg no HC n.° 337.300/RJ, HC n.° 290.361/SP, HC n.° 327.231/RS, dentre outros. 61 SOUZA. Ibidem, p. 255.

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processuais tenham iguais perspectivas de levar adiante suas pretensões”62, ainda que este exercício se dê do ponto de vista parcial e ex officio.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Analisou-se neste artigo que o gênero história da humanidade. feminino carrega indiscutível carga histórica Quando levados ao Poder Judiciário, esde violência e afronta aos direitos humanos, ses casos devem ser conduzidos com a sensibipráticas culturalmente perpetuadas até os lidade especial que necessitam. Observandodias atuais. -se as peculiaridades da violência de gênero, o Constatou-se que, em razão disso, as magistrado exercerá seu poder-dever ao aplimulheres integram um grupo vulnerável na car prerrogativas especialmente previstas na concretização de seus direitos, sendo-lhes legislação esparsa, pautando-se no princípio atribuído a categoria de minoria social, que da igualdade, buscando sua concretização. por muitas vezes é reproduzida na atuação A imparcialidade não será maculada pela institucional do Estado. atuação positiva do juiz no processo, uma vez Ao contrário do que se questionou quan- que o princípio apresenta uma dicotomia podo da promulgação da Lei n.° 11.340/2006, sitivo-negativa. uma tutela jurídica voltada à proteção do Com efeito, uma atuação negativa do gênero feminino não vai de encontro com o magistrado pode ser conceituada como asprincípio constitucional da igualdade. De forpecto subjetivo da imparcialidade, isto é, a ma oposta, a legislação especial visa atingir formulação de decisões judiciais pautando-se a igualdade material, discriminando positivaem valores pessoais, de forma egoística, indimente a posição da mulher na relação sociovidualizada. Essa concepção subjetiva é sabia-jurídica. mente repudiada pela doutrina e jurisprudênA Lei Maria da Penha representou um cia pátria, encontrando proibições no próprio marco na instituição de ações afirmativas que texto constitucional. visam o empoderamento feminino, estabelePor outro lado, a atuação positiva do juiz cendo proteção especializada que decretou diz respeito ao aspecto objetivo do princípio o combate à violência doméstica e familiar, da imparcialidade, onde o julgador analisará as conduta caracterizada como toda atrocidade características que estruturam o caso judicial, cometida pelo companheiro contra a mulher, aplicando-se, quando houver, a tutela especial baseando-se em relações afetivas e/ou desconstitucionalmente válida. prezo ao gênero, corriqueiramente acometidas no ambiente domiciliar. A condução processual diferenciada em casos de violência doméstica contra a mulher A comunidade internacional é pacífica não é inconstitucional, pelo contrário, importa na consagração da violência doméstica e/ou na aplicação do próprio texto magno, pois faz familiar como afronta aos direitos humanos, valer materialmente o princípio da igualdade. caracterizando-se violência de gênero. A justificativa doutrinária para tal definição é jusA mulher, como parte fragilizada na retamente o desequilíbrio econômico, social e lação processual, deve ser atendida de forma cultural ao qual a mulher é/foi acometida na díspar. O Estado, como um dos principais res62 SOUZA. Ibidem, 234. No mesmo sentido “(...) debe tratar desigualmente a sus ciudadanos, de modo que – después de la actuación del estado – todos ellos tengan iguales probabilidades de llevar a cabo su plan de vida. Puesto que el estado actúa en este caso me parece adecuado rebautizar a esta alternativa denominándola neutralidad positiva.” FARREL, Martin. D. Algunas maneras de entender a la neutralidad. Doxa, 1994, p. 15-16. (apud SOUZA. Ibidem, p. 234-235).

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ponsáveis na formação da rede de apoio às vítimas de violência doméstica, deve estender sua mão, abrigando a parte feminina sob sua tutela especial.

ção do magistrado em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher deve ser positiva, desequilibrando a balança da relação processual, fazendo valer a equidade material.

Tendo o processo como instrumento de pacificação social, o juiz observará as insatisfações sociais na condução processual, podendo atuar, quando necessário, de forma positiva e militante, sem a preocupação de incorrer em grave desrespeito ao princípio da imparcialidade jurisdicional. De forma parcialmente objetiva, a atua-

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DESIGUALDADE E SUBDESENVOLVIMENTO: UMA ANÁLISE DOS IMPACTOS DA DESIGUALDADE DE GÊNERO E DAS VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER NO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DO ESTADO BRASILEIRO Amanda Caroline Santos Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Bauru – ITE (2014). Advogada. Pós-graduanda em Direito Internacional. Presidente da Comissão de Defesa e Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da 182ª Subseção da OAB- Lençóis Paulista/SP; Vice-Presidente da Comissão OAB vai à Escola da 182ª Subseção da OAB- Lençóis Paulista/SP; Membro das Comissões do Jovem Advogado e Direitos Humanos, da 182ª Subseção da OAB- Lençóis Paulista/SP

JoingleRaplhaela do Carmos Viotto Bacharel em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP (2018). Advogada. Pós-graduada em Processo Civil e Pós-graduanda em Direito do Trabalho e Previdenciário. Membro das Comissões do Jovem Advogado, da Mulher Advogada e Direito Previdenciário, da 182ª Subseção da OAB- Lençóis Paulista/SP.

SUMÁRIO 1. Introdução 2. Construção Histórico/Social da Desigualdade de Gênero e das Violências Contra a Mulher 3. Violências, Desigualdade, Exclusão e Consequências Normativas 4. Os Impactos Econômicos da Desigualdade de Gênero das Violências Contra a Mulher 5. Por uma Nova Inclusão: Proteção e Empoderamento 6. Conclusão Referências

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RESUMO O presente artigo possui como principal finalidade abordar discussões sobre as implicações das violências contra a mulher na esfera econômica da sociedade brasileira, bem como o quanto tais violações repercutem na manutenção do subdesenvolvimento do Estado brasileiro, trazendo em seu corpo uma breve construção histórica da desigualdade de gênero e a formação dos movimentos feministas em busca de concretização de espaço e de direitos. Para tanto, foi realizada uma análise considerando evoluções temporais, bem como as criações legislativas que advém dos movimentos contracorrente ao patriarcado de imposições às mulheres. Na constante busca por empoderamento, força, dignidade e respeito, lutar por direitos e se afirmar socialmente com todas as suas capacidades, tem sido uma batalha diária das mulheres que ainda hoje precisam defender e brigar por lugares que, formalmente, são seus de direito.

PALAVRAS-CHAVE Desigualdade. Violência. Gênero. Subdesenvolvimento. Empoderamento.

ABSTRACT This article has as main goal to approach discutions about the result of violence against woman on economical´s sphere in the brazilian socity, such as how those violations resonate to mantain the underdevelopment in Brazilian State, bringing to the research a brief historical development from the difference between genders and the shaping of feminist movements that finds to materialize the feminine space and their rights. Therefore, it was realized a research considering temporal developments, as well as the creation of laws that came from movements counter-current the patriarchy of impositions to women. On this constant persuit for empowerment streght, dignity and respect, to fight for rights and claim for space in the society, has been a daily struggle for women nowadays, because they still need to defend and fight for places that belongs to them, by right.

KEY-WORDS: Difference. Violence. Gender. Underdevelopment. Empowerment.

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1. INTRODUÇÃO Apesar de muitos anos de luta e busca por uma igualdade de fato entre homens e mulheres, é certo, e perceptível, o quando ainda estamos longe de não precisarmos mais clamar por igualdade e reivindicar direitos. Assim como muitos países ao redor do mundo, o Brasil possui uma sociedade forjada em uma estrutura patriarcal de imposições físicas e culturais que restringem a autonomia e o papel da mulher em diversos cenários e instituições. Através de muitas lutas, reivindicações e embates é que, aos poucos, em doses homeopáticas, as mulheres passaram a ocupar espaços na sociedade para além do âmbito familiar. Em que pesem os avanços obtidos no último século, em especial em países europeus e, timidamente, em países latino-americanos, como o caso do Brasil, pensar e discutir a cultura de violência de gênero em nossa sociedade tem sido fundamental e deveria fazer parte da agenda de debates de estratégias para romper com o subdesenvolvimento social e econômico do estado brasileiro.

feito, tampouco é algo que se concretiza rapidamente. Com o tempo, as mulheres foram conquistando seus direitos na tentativa de atingir um patamar de igualdade em relação aos homens, que ainda custa a ser conquistado. Desta forma, o presente estudo tem por objetivo abordar um breve histórico das violências contra a mulher no Estado brasileiro, bem como a (in)eficácia das evoluções normativas de proteção e promoção de seus direitos e o quanto tais violências impactam na manutenção do subdesenvolvimento social e econômico do Estado brasileiro, utilizando, também, em sua metodologia, exemplos das evoluções sociais e normativas ocorridas em outros países.

Isto porque a discriminação e as violências contra mulheres acarretam uma série de consequências que transcendem a dor e o sentimento individual. Mulheres violentadas, sejam fisicamente, psicologicamente, socialmente, economicamente ou discriminadas certamente serão mulheres fragilizadas, com suas potencialidades subjugadas. Esse ciclo existencial, na maioria das vezes, será reproduzido em futuras gerações, perpetuando a desigualdade, a exclusão e a opressão. Portanto, violências contra a mulher: atrapalham o pleno desenvolvimento de meninas, a inserção e proteção de mulheres durante a vida adulta no mercado de trabalho e culminam em sua exclusão econômica, bem como, em muita das vezes, num envelhecimento indigno, como é o caso de diversas mulheres nos mais variados contextos mundiais. Todavia, quebrar estruturas e romper com paradigmas não é algo simples de ser 60


2. CONSTRUÇÃO HISTÓRICO/SOCIAL DA DESIGUALDADE DE GÊNERO E DAS VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER A crença na existência de diferenças entre pessoas e raças e o consequente sentimento e pensamento de superioridade/inferioridade sempre foram um dos principais fatores que legitimaram comportamentos e culturas de dominação entre pessoas, etnias e nações. Para Olsen (1995) desde os tempos de Platão, o dualismo sempre esteve presente em nosso pensamento, estruturando o saber e o agir a partir da oposição: racional/irracional, ativo/passivo, pensamento/sentimento, razão/emoção. Esses dualismos, opostos uns aos outros, sempre dividiram pessoas, pensamentos e coisas em lados antagônicos. E figurar em polos antagônicos é, consequentemente, ser diferente e desigual um ao outro.

a.C.), que foi um dos filósofos que, inclusive, influenciou esse pensamento de Aristóteles, defendeu, em alguns de seus fragmentos, a função da mulher reduzida à satisfação sexual masculina, qualificando-a como uma mera fonte de prazer carnal. Mulheres que se atrevessem a romper com essa cultura, enfrentar e questionar a “racionalidade” dos homens já sabiam sua sentença: eram consideradas loucas, ainda que totalmente providas de razão, como é a crítica contida no “mito de Cassandra”, da mitologia grega1. Portanto, desde a Grécia Antiga a divisão entre racional/irracional, razão/emoção, pensamento/sentimento, separou e excluiu mulheres da participação dos assuntos da “pólis”, limitando suas funções aos afazeres domésticos por serem, segundo a concepção dominante, desprovidas de razão e com a capacidade intelectual reduzida em relação aos homens.

Na relação entre gêneros não foi diferente, desde a Grécia antiga é possível observar grandes pensadores - que influenciaram a cultura e o pensamento de séculos - defenderem a inferioridade da mulher em Tal pensamento foi o que vigorou por relação ao homem em razão de diferenças séculos e séculos na maioria das culturas innaturais e biológicas que se resumem nas difluenciadas pela tradição greco-romana que, cotomias: racional versus irracional e razão posteriormente, foi acentuada pela tradição versus emoção. judaica e difusão da limitada e equivocada inAristóteles, por exemplo, foi um dos terpretação do pensamento cristão. pensadores que, estruturando seu pensaPortanto, nos países ocidentais, sob a mento em referidos dualismos, defendia a égide da má utilização da ideologia cristã, superioridade do homem livre, por ser este tal visão foi o que perdurou até meados os a parte racional, e entendia que a mulher era séculos XIX e XX quando, após a efervesincapaz de exercer qualquer outra função cência do pensamento iluminista, dos movique não fosse a de obedecer ao seu marido, mentos sindicalistas e feministas ocorridos sendo este, portanto, o responsável por gona Europa, mulheres passam a reivindicar vernar a família. direitos como educação, trabalho, condições Aristóteles ainda criticou severamente a de trabalho similares aos dos homens e direiautonomia das mulheres espartanas em rela- tos políticos. ção às atenienses, não concordando com o Ademais, a ideia de igualdade entre hofato de terem uma educação similar aos dos mem e mulher passa a se tornar ainda mais homens da época. Demócrito (460 a.C. – 370 forte no período pós-segunda guerra mundial, 1 Segundo uma das versões do conto, de acordo com a mitologia grega, “Cassandra era a mais bela filha de Príamo, o Rei de Tróia. Apolo

concedera-lhe o dom da profecia, em troca do seu amor; contudo, Cassandra não cumpriu a sua parte no acordo. Então Apolo, como castigo, retirou-lhe a credibilidade. Assim, Cassandra via as desgraças que se aproximavam, alertava para o facto, mas ninguém lhe dava ouvidos” considerando-a

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quando se dá início a um novo paradigma: o censão dos movimentos feministas, que até da dignidade da pessoa humana. hoje estão presentes em nossas sociedade ante as constantes e necessárias reivindicaNeste cenário, o pensamento do “não ções por igualdade, liberdade, respeito à auigual”, dos “seres superiores” e “dotados/ou tonomia e direitos das mulheres, nas searas não dotados de razão”, que por muito tempo sociais, política, econômica, trabalhista, denfizeram com que homens dominassem mutre outras. lheres, culturas subjugassem culturas e etnias escravizassem ou aniquilassem etnias, Em que pesem os importantes avanços começa a ser desconstruído com a afirma- obtidos e conquistados nas últimas décadas, ção de igualdade entre todos os humanos é certo que a cultura que por muito permeou o em razão do fato de todos serem dotados do olhar e a relação com a mulher ainda faz parmesmo atributo que nos diferencia de outros te da crença e do costume da nossa sociedaanimais: a razão. de. Como mencionado, a diferença sempre dá lugar à dominação. E quando esta ocorDesse pensamento advém a ideia forre, consequentemente, estaremos diante de mulada por Kant acerca da dignidade da pesuma relação de superioridade/inferioridade soa humana2 e que compõe o texto da Declaque, inevitavelmente, dará espaço para aburação Universal dos Direitos do Homem, de sos e violências das mais variadas formas. 19483. O paradigma da dignidade da pessoa humana colaborou posteriormente para a as-

3. VIOLÊNCIAS, DESIGUALDADE, EXCLUSÃO E CONSEQUÊNCIAS NORMATIVAS Sabe-se que desde o início da inserção da mulher no mercado de trabalho a intensão era a de obter uma mão de obra mais barata, que se submetesse às condições de trabalho insalubres e com pouca infraestrutura, visando aumento dos lucros em um período de expansão da industrialização. Ocorre que as conquistas das mulheres, seja por posições no mercado de trabalho, seja para conquistar seu espaço em quaisquer outras áreas, necessitaram de grande embate cultural para romper alicerces sedimentados há séculos.

metafórico. Em diversos Estados, o ganho de posições de maior destaque por mulheres, fugindo às posições familiares como mães, esposas ou filhas, acaba vindo com o grande ônus da contracorrente. Não apenas pela busca por maior reconhecimento ou por lugar de fala em uma sociedade, mas, até por necessidade, as mulheres passam a se sujeitar às diversas irregularidades no âmbito trabalhista, que acabam, na contramão das aspirações por espaço, gerando desigualdades e inúmeros outros problemas.

Quando é dito que a conquista feminiComo um emblemático exemplo dos na por espaço se deu através de lutas, não sérios problemas com o cenário das irregupossui essa palavra um simples sentido laridades trabalhistas e suas desastrosas louca (Fonte: https://www.uc.pt/fluc/eclassicos/publicacoes/ficheiros/BEC41/12__CASSANDRA___VOX_FEMINA_TRAGICA.pdf 2 Ora digo eu: - O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas acções, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ter considerado simultaneamente como fim (In KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela - Lisboa: Edições 70, 2007, p. 67/68). 3 Art. 1º Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

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consequências, temos o México. Uma das teorias que estudam os motivos dos assassinatos em massa, ocorridos nos campos de algodão, se deram em razão da disputa entre homens e mulheres pelos postos de trabalho em um momento de crise do México4.

mulher.

No caso “González e outras versus México”, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou que o México, em decisão publicada em 2009, alterasse de seu Código Federal Penal para incluir o tipo penal A situação no México tornou-se caótica de feminicídio. Contudo, isto só que efetivanos anos 2000, o que fez a Corte Interame- mente ocorreu em 2012 ricana de Direitos Humanos intervir, levando Como mencionado, essa decisão foi um a diversas regulamentações e produções grande marco, visto que influenciou ao melegislativas no país voltadas à proteção das nos 11 (onze) outros países latino-americamulheres. O mais interessante foi que essas nos (incluindo o Brasil) para que modificasproduções legislativas protetivas às mulheres sem suas legislações para tipificar o crime de inspiraram e influenciaram o ordenamento jufeminicídio. rídico de outros países da América Latina, inclusive o Brasil. O Brasil também enfrentou intervenção da Corte Interamericana de Direitos HumaNesse período, o México enfrentou a nos em prol da proteção nas relações de grave situação de violência sistêmica contra gênero. No caso “Maria da Penha Maia Fermulheres, que estavam constantemente pasnandes versus Brasil”, a Comissão Interasando por violações aos seus direitos humamericana determinou ao Brasil, em 2001, a nos. As mulheres mexicanas estavam sendo criação de uma norma jurídica de combate à mutiladas e assassinadas brutalmente e de violência contra a mulher. Por esta razão, foi forma massiva (centenas), sem que o Estado promulgada a Lei n. 11.340/2006, conhecida Mexicano tomasse providências adequadas como Lei Maria da Penha em homenagem à para investigação dos crimes. Não era realivítima do citado caso. zada uma persecução penal satisfatória, e o suporte dado aos familiares das vítimas era Tanto no caso mexicano quanto no braescasso. sileiro, houve omissão por parte do ordenamento interno destes países. A Corte InteraO episódio em tela, após diversos debamericana só pode ser acionada quando, em tes, foi considerado como crime de “homicíâmbito interno, foram esgotadas todas as dio de mulher por razões de gênero”, levando possibilidades e tentativas de repressão às ao reconhecimento das condutas praticadas violações de direitos humanos. Isso demonscomo feminicídio. Como mencionado, até os tra o quanto a luta das mulheres, ao redor dias de hoje diversas são as teorias a resdo mundo, é uma luta justa e, ao mesmo o peito das motivações desses crimes de femitempo, o quanto as respostas dos Estados nicídio, sendo a principal delas a ocupação nacionais, em especial Estados latino ameridas mulheres dos postos de trabalho, que canos, têm sido insatisfatórias. tradicionalmente seriam ocupadas por homens, bem como a ausência de proteção e Fato é que, apesar das construções lesegurança às trabalhadoras nas fronteiras e gislativas e das conquistas, a demanda por campos de algodão, área tradicionalmente tratamento digno, por igualdade, isonomia e dominada pelo tráfico de drogas. por justiça, ainda se enquadram nas pautas feministas. Esse empenho é perceptível no Fato é que os anos 2000 são determijudiciário e em Cortes Internacionais, sítios nantes para a agenda normativa de países que se tornam espaços para abarcarem dislatino-americanos no que se refere à producussões e a todo momento recebem reclação legislativa nacional de normas voltadas mações e ações voltadas à defesa dos direiao combate da violência de gênero contra a 4 Vide mais informações em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/128085/Monografia%20da%20 Mariele.pdf?sequence=1&isAllowed=y

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tos das mulheres, por falta de proteção nas outras instituições da sociedade.

4. OS IMPACTOS ECONÔMICOS DA DESIGUALDADE DE GÊNERO DAS VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER Conforme elucidado por SARLET (2003), a dignidade da pessoa humana implica o respeito e proteção da integridade física, autonomia corporal e psíquica, individualidade, intimidade, privacidade. Portanto, se não houver assegurada a garantia do respeito à vida, à integridade física e psíquica, bem como à sua identidade e autonomia, a dignidade estará seriamente comprometida.

homens. Isso em 2018.

Segundo um estudo realizado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), ainda no final do século passado, “uma em cada cinco mulheres que faltam ao trabalho o fazem por terem sofrido agressão física. A violência doméstica compromete 14,6% do Produto Interno Bruto (PIB) da América Latina, cerca US$ 170 bilhões. No Brasil, a vioPortanto, violências contra a mulher, lência doméstica custa ao país 10,5% do seu tanto no espaço doméstico, como também PIB”6. público, por meio das relações trabalhistas, Portanto, conclui-se que, além do prejuíparticipação política, exclusão ou subordizo individual, mulheres vítimas de violências, nação econômica, representa, além de uma em razão da vulnerabilidade mental, emoviolação expressa dos direitos e garantias incional e social que a violência lhes acarredividuais, a negação da dignidade humana. tam, se tornam, normalmente, pessoas com Ademais, “segundo a Relatora Especial a relação de trabalho comprometida e “sua da Organização das Nações Unidas (ONU, menor produtividade representa uma perda 1996), a violência contra as mulheres é a ex- direta para a produção nacional e tem imporpressão brutal da discriminação de gênero, tantes efeitos multiplicadores: as mulheres tendo sua origem no espaço doméstico que menos produtivas geralmente ganham mese projeta para a esfera pública”5. nos e essa diminuição de renda, por sua vez, implica uma diminuição do consumo e, por Assim observa-se que a violência contra conseguinte, da demanda global (BUVNIC, a mulher não se trata de um abuso que se 1999)”7. limita ao âmbito privado, mas se projeta para o espaço público, tanto na perpetuação de Verifica-se que a agressão se constitui uma cultura de subordinação e dominação, como um dispositivo eficaz e disciplinador como, também, no que concerne à inclusão e das mulheres no cumprimento do papel de participação das mulheres nos cenários polí- subordinação que lhes é atribuído; sendo, tico, econômico e social. portanto, um componente fundamental no sistema de dominação. Inclusive, gritantes são os seus reflexos no desenvolvimento econômico do Brasil, Ademais, é sabido que, além dos prejutendo em vista que, atualmente, as mulheres ízos ora elencados, mulheres vítimas de viocorrespondem a mais de 50% da sociedade lências se tornam, ainda, as principais usubrasileira, conforme dados do IBGE de 2018. árias dos serviços públicos da seguridade São 105.996.976 de mulheres e 103.189.829 social, como saúde e assistência social, além 5 Apud in DE CAMPOS, Carmen Hein. Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. DE CAMPOS, Carmen Hein; SIMIONI, Fabiane. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 178; 6 Apud in DE CAMPOS, Carmen Hein. Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. DE CAMPOS, Carmen Hein; SIMIONI, Fabiane. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 110; 7 Apud in DE CAMPOS, Carmen Hein. Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. DE CAMPOS, Carmen Hein; SIMIONI, Fabiane. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 179;

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das demandas pelos serviços integrantes do ser enfrentados: as jornadas duplas, dentro Sistema de Justiça (Poder Judiciário, polícia e fora de casa; as irregularidades nos regise defensoria Pública). tros; divergências salariais em relação aos homens, assédio no ambiente de trabalho, A presente crítica não tem o condão de, dentre muitas outros. em nenhum momento, negar o acesso aos serviços públicos, bem como à justiça, por De veras, esses aspectos são elucidatal público. Pelo contrário, defende a atenção dos quando da necessidade de regulamentaespecial que tais vítimas carecem do Estado ções específicas quanto à esses temas. Por e visa demonstrar o quanto a tolerância e a exemplo, o artigo 461, caput e §6º da Consonegligência em relação às violências contra lidação das Leis do Trabalho8. a mulher são caras socialmente e economiOutro exemplo de proteção legal, com camente a um Estado, mantendo, por todos consequências positivas às mulheres, equios motivos já elencados, o ciclo de pobreza e librando situações de disparidade entre hosubdesenvolvimento de uma sociedade. mens e mulheres em relações trabalhistas e Além dos aspectos acima menciona- previdenciária, tem-se a extensão probatória dos, há de se ponderar, ainda, os impactos documental, prevista no artigo 55, §3º, da Lei da violência contra a mulher na falta de sua nº 8.213/91, bem como na Súmula nº 06 da representatividade e protagonismo político Turma Nacional de Uniformização. na sociedade brasileira. Apesar de não ser restrita às mulheres, Pois, como uma mulher violentada, mal- esse avanço legislativo em muito às beneficia tratada física ou psicologicamente, que teve pois não é incomum casos em que, mulheres, sua formação prejudicada em razão de sua trabalhadoras rurais, têm dificuldades em exclusão econômica e social, possui condi- comprovar sua atividade pela falta de docuções de cuidar da coisa pública (res pública), mentos próprios, pois à época, mesmo lacontribuindo para o desenvolvimento de nos- borando, muitas delas colocavam em suas so país, quando, em razão dos danos provo- profissões em documentos oficiais como “do cados pela violência, a vulnerabilidade que a lar”, e hoje precisam utilizar os documentos acarreta torna difícil administrar e cuidar de si de seus cônjuges ou até filhos para compromesma? É aqui que clamamos pela atuação vação, dando uso extensivo à prova docuenfática do Estado por meio da proteção e mental rural. inclusão da mulher em todos os estágios de Essa extensão, capaz de comprovar a sua vida. atividade rural, a partir dos documentos do Por fim, no que concerne ao âmbito das cônjuge, pais e filhos à mulheres, denota uma relações trabalhistas de mulheres, bem como forma de ser feita justiça em relação à trabasua relação com direitos de seguridade so- lhadoras marginalizadas em suas relações de cial, são focos importantes à concretização emprego, necessitando de aparatos específide direitos que envolvam a questão de gê- cos a fim de terem seus direitos resguardados, nero, em razão da desigualdade enfrentada, e reconhecidos, em virtude de grande vulneque possui repercussão não apenas social, rabilidade social. mas também reflete diretamente na econoDiante dessas perspectivas, visível as mia do país. modificações dos paradigmas de uma socieConforme as mulheres foram pouco a dade conforme as lutas feministas ganham pouco assumindo mais espaços no mercado força, e mais ainda, quando recebem o respalde trabalho, diversos problemas passaram a do necessário pela continuidade de sua luta, 8

Art. 461. Sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, no mesmo estabelecimento empresarial, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo, etnia, nacionalidade ou idade [...] § 6o No caso de comprovada discriminação por motivo de sexo ou etnia, o juízo determinará, além do pagamento das diferenças salariais devidas, multa, em favor do empregado discriminado, no valor de 50% (cinquenta por cento) do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social. (Grifo nosso) (In BRASIL, Decreto-lei nº 5.452 de 1943, art. nº 461, §6º).

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seja por igualdade, autonomia ou por concretização de outros direitos.

5. POR UMA NOVA INCLUSÃO: PROTEÇÃO E EMPODERAMENTO A inclusão da agenda pública das demandas feministas foi fruto dos movimentos de mulheres e organizações não governamentais em pressionar o Estado a se mobilizarem, socialmente e politicamente, em prol da necessidade de se garantir proteção e efetivar direitos.

Como versado, as consequências das violências contra a mulher transcendem o espaço privado e individual, atingindo sempre, direta ou indiretamente, o espaço coletivo. Desta forma, além de proteções normativas, é necessário romper com o pensamento e cultura de inferioridade e desigualdade da mulher em relação ao homem. Neste cenário, ações preventivas de conscientização e empoderamento feminino devem, com prioridade, fazer parte das ações estratégicas de um Estado que, de fato, esteja preocupado em coibir as práticas de violência contra a mulher.

As conquistas obtidas nas últimas décadas fazem parte de um processo contínuo de lutas e reivindicações em âmbito nacional e internacional. Como mencionado, um exemplo é a Lei Maria da penha, de 2.006. Sabe-se que a legislação é fruto de uma condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Maria da Neste sentido, a própria Lei Maria da Penha Maia Fernandes vs Brasil, em razão Penha, em seu artigo 3º, parágrafo 1º, menda ausência de proteção e da morosidade em ciona a responsabilidade do poder público resolver e punir casos de violência doméstica em desenvolver políticas garantam os direino âmbito nacional. tos humanos das mulheres no âmbito das Outra situação, também já menciona- relações domésticas e familiares visando da, foi o caso Gonzales vs México, que fez resguardá-las de toda forma de negligência, com que a Corte Interamericana de Direitos discriminação, exploração, violência, cruelHumanos também condenasse o Estado do dade e opressão9. México a incluir em sua legislação um tipo Diante disso, temos não o dever moral penal específico que punisse de forma made compaixão, mas o dever público e institujorada os homicídios contra mulheres, dancional de prestar auxílio e proteção de qualido origem ao tipo penal do feminicídio. Nesdade às mulheres violentadas e discriminase contexto, tais países da América Latina, das, de modo que a atuação do Estado, por seguindo à condenação imposta ao México, meio dos Serviços Públicos e de Políticas também criaram, em suas legislações interPúblicas estratégicas, desenvolva trabalhos nas, um tipo penal específico para coibir a de resgate da integridade física, moral e psiprática dos crimes de homicídio contra mucológica. lheres. Paralelamente a isso, devemos pensar Tais alterações legislativas fazem parte nas ações preventivas que alterem nossa de um período muito recente da história huestrutura cultural que, mesmo após séculos, mana e, em específico, do Estado brasileiro. ainda dividem homens e mulheres em seres 9

Art. 3º: Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. § 1o O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. § 2o Cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos enunciados no caput.

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racionais/irracionais e superiores/inferiores.

são do gênero feminino ao masculino.

Trabalhos e campanhas conscientizadoras, trabalhadas desde a infância, que ensinem nossas crianças e (infelizmente) adultos, que homens e mulheres são sim iguais perante à lei e perante todos, que todos possuem as mesmas potências cognitivas e intelectuais e que, reciprocamente, demandam e merecem respeito um pelo outro, sem margem para qualquer ideia de dever de submis-

Há um trabalho emergencial que precisamos realizar com a presente geração, pois romper com abusos e violências contra a mulher antes de tudo é romper com uma cultura de desigualdade, nferiorização e opressão entre homens e mulheres.

CONCLUSÃO Como visto, ao falar sobre violências contra a mulher, não estamos limitados apenas às suas consequências no âmbito privado. Os reflexos da violência de gênero, manifesta nos mais diversos tipos de violências, permeiam substancialmente o espaço público, tanto no seu aspecto cultural, como também econômico, político e social. Portanto, a violência contra a mulher é um fenômeno complexo, com múltiplas facetas, e as questões econômicas então diretamente a ele relacionadas, seja em razão de violações ocorridas no âmbito doméstico ou familiar, no âmbito político, trabalhista, podendo atingir, até mesmo, o âmbito da cobertura previdenciária de mulheres idosas ou excluídas do mercado de trabalho. Nesse sentido, a intervenção dos Estados, bem como dos operadores e pesquisadores do direito, ao atuarem na esfera protetiva de sujeitos individuais, bem como na esfera macro, onde se pensa o desenvolvimento econômico e social de uma nação, não podem andar em caminhos paralelos. É necessário e imprescindível considerar e reavaliar o conjunto de estratégias que, de fato, estão sendo estudadas e implementadas para romper com um ciclo de subdesenvolvimento, inclusive, no que concerne às práticas de violências e exclusão.

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A INTERVENÇÃO DE ÓRGÃOS INTERNACIONAIS NA FISCALIZAÇÃO E PREVENÇÃO DE CRIMES CONTRA A MULHER E SUA IMPORTÂNCIA PARA O ALCANCE DA CONSCIENTIZAÇÃO MUNDIAL SOBRE A IGUALDADE, FRATERNIDADE E LIBERDADE Ana Carolina Carreto Malagoli Estudante de Direito No Centro Universitário Newton Paiva, com experiência na área de Direito Civil, com ênfase nos Direitos: Bancário, Imobiliário, Ressarcimento de Danos, Execução de título Judicial e Extrajudicial e Recuperação de Crédito.

SUMÁRIO 1. Introdução 2. Breve Histórico Internacional dos Direitos Humanos 3. Proteção dos Direitos Humanos das Mulheres 4. Caso Maria da Penha e Malala Yousafzai 5. Considerações Finais Referências

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RESUMO O presente artigo analisa a evolução da proteção internacional dos Direitos Humanos, com ênfase nos Direitos Humanos da Mulher, e a importância do papel dos órgãos internacionais como a ONU, na atuação em casos nacionais que envolvam o descumprimento e desrespeito dos Direitos da Mulher.

PALAVRAS CHAVES Direitos Humanos; Mulher; Proteção Internacional.

ABSTRACT This article will discuss the evolution of the International Protection of Human Rights, with an emphasis on Women’s Human Rights, and the importance of the role of international bodies such as the UN, acting in national cases involving the violation and disrespect for Women’s Rights.

KEYWORDS Human Rights; Women; International Protection.

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1. INTRODUÇÃO Este trabalho tem como objetivo mostrar a evolução da proteção dos Direitos Humanos, com ênfase na Proteção Internacional dos Direitos Humanos das Mulheres e como se faz importante a fiscalização pelos Órgãos Internacionais de casos internacionais denunciados, buscando maior efetividade nos meios de prevenção e punição da violência contra a mulher.

nacionais relacionados à proteção dos direitos humanos das mulheres.

Após a apresentação de um breve histórico de conquistas de direitos, os casos como o de Maria da Penha e Malala Yousafzai serão discutidos no presente trabalho a fim de, concreta e comprovadamente, mostrar que os Direitos Humanos das Mulheres merecem um olhar atencioso dos Órgãos Internacionais Foi realizado por meio de pesquisa bi- competentes para inspecionar casos e exigir bliográfica e documental a partir de autores medidas de prevenção e punição da violência que trataram o tema e de documentos inter- contra a Mulher.

2. BREVE HISTÓRICO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS Como representante da Proteção Inter- alheio, à vista de tumultos internos, e a prenacional dos Direitos Humanos, em 1948, a texto de proteger a vida e o patrimônio de Declaração Universal dos Direitos Humanos seus nacionais que ali se encontrassem.1 veio trazer recomendações de princípios sobre Igualdade, Fraternidade e Liberdade a serem adotados por todas as nações. A proteção internacional dos Direitos Humanos trata-se, portanto, de um fenômeDesenvolvida após a concussão da Seno recente, contudo em expansão nas últimas gunda Guerra Mundial, período que obrigou décadas. Assim, desde a criação das Nações as nações a posicionarem-se diante da digniUnidas, passou-se a celebrar tratados e dodade da pessoa humana, a Declaração Univercumentos internacionais com o objetivo de sal dos Direitos Humanos foi o primeiro doproteção dos direitos humanos, incluindo cacumento e método eficiente a tratar sobre o tegorias historicamente excluídas de direitos, tema. como as mulheres. Até então não havia métodos eficientes A Convenção sobre a Eliminação de todas que tratavam sobre a Proteção Internacional as Formas de Discriminação contra a Mulher, dos Direitos Humanos. Diz Rezek: ratificado em 1984, que trataremos a seguir Até a fundação das Nações Unidas, em foi um marco inicial do processo de integração 1945, não era seguro afirmar que houvesse, de Tratados Internacionais de Direitos Humaem direito internacional público, preocupa- nos no nosso ordenamento jurídico, sob a égição consciente e organizada sobre o tema dos de da Constituição Federal de 1988. direitos humanos. De longa data, alguns tratados avulsos cuidaram, incidentalmente, de proteger certas minorias dentro do contexto da sucessão de Estados. Usava-se, por igual, do termo intervenção humanitária para conceituar, sobretudo ao longo do século XIX, as incursões militares que determinadas potências entendiam de empreender em território 1 2014.

REZEK, Francisco, 2014, pag. 260 REZEK, Francisco. Curso de Direito Internacional Público. 15ª Ed. São Paulo, Saraiva,

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3. PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES Em 1979, as Nações Unidas aprovaram a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, que atualmente conta com 188 países membros buscando pela eliminação da discriminação e pela garantia de igualdade. A Convenção sobre a Mulher define no seu art. 1º, a discriminação contra a mulher: Para fins da presente Convenção, a expressão ‘discriminação contra a mulher’ significará toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo2.

reitos e obrigações, nos termos desta Constituição. Além da Convenção, em 2010, os estados membros da ONU juntamente com ativistas dos direitos das mulheres, criaram a ONU Mulher4 , que possui as seguintes enunciações: Estabelecer liderança corporativa de alto nível para a igualdade de gênero; Tratar todos os homens e mulheres de forma justa no trabalho - respeitar e apoiar direitos humanos e a não discriminação; Garantir a saúde, a segurança e o bem-estar de todos os trabalhadores e as trabalhadoras; Promover a educação, a formação e o desenvolvimento profissional das mulheres; Implementar o desenvolvimento empresarial e as práticas da cadeia de suprimentos e de marketing que empoderem as mulheres; Promover a igualdade através de iniciativas e defesa comunitária; Mediar e publicar os progressos para alcançar a igualdade de gênero.

O Brasil passou a integrar o princípio da igualdade entre homens e mulheres na ConsNo nosso país, a ONU Mulheres possui tituição Federal de 1988. Diz o artigo 5º da um escritório localizado em Brasília. Essa criaCR/883: ção possui como objetivo proporcionar um ráArt. 5º Todos são iguais perante a lei, sem pido avanço para as mulheres e as sociedades, distinção de qualquer natureza, garantindo-se para que tenham direito à vida com igualdade aos brasileiros e aos estrangeiros residentes de gêneros e sem discriminações. no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens E mulheres são iguais em di-

4. CASO MARIA DA PENHA E MALALA YOUSAFZAI Fazendo menção a dois casos que ganha- nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, no Brasil.5 ram repercussão internacional a respeito dos Em 1983, Maria da Penha sofreu uma Direitos Humanos das Mulheres, temos: dupla tentativa de homicídio pelo seu compaMaria da Penha Maia Fernandes, a mu- nheiro, dentro de casa, em Fortaleza/CE. lher que motivou a “Lei Maria da Penha”, Lei 2 Convenção CEDAW 1979 ONU – MULHERES. Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/cartilha_WEPs_2016.pdf 3 Constituição Federativa do Brasil 1988 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm 4 Cartilha de Princípio de Empoderamento das Mulheres 5

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Marco Antônio Heredia Viveros, então marido de Maria da Penha, na sua primeira tentativa de homicídio contra a esposa, simulando um assalto, acertou-lhe um tiro. Já na segunda vez, tentou eletrocutá-la durante o banho. Por conta das agressões, Maria da Penha ficou paraplégica. E mesmo sendo condenado duas vezes pelo Tribunal do Júri, Marco Antônio continuou em liberdade, motivo pelo qual o Centro para a Justiça e o Direito Internacional e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher, denunciaram o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos. Diante dessa situação, o Brasil foi penalizado por não possuir meios eficazes de prevenir e proibir a violência doméstica contra a mulher. Outro caso, este internacional, é o de Malala Yousafzai6, uma menina paquistanesa que defendia a educação das mulheres em seu país, mas que perseguida pelo Talibã e acertada com um tiro na cabeça quando voltava da escola, em 2012.

da Juventude na Organização das Nações Unidas em Nova Iorque, e em 2014 foi ganhadora do Prêmio Nobel da Paz. A petição que originou a retificação da primeira lei de direito à educação no Paquistão, foi feita no nome da Malala com o slogan “I am Malala” (Eu sou Malala). Em um trecho, Malala reafirma sua luta a favor do direito à educação no Paquistão: Hoje todos sabemos que a educação é nosso direito básico. E não só no Ocidente; o Islã também nos deu esse direito. Diz que toda menina e todo menino devem ir à escola. No Corão está escrito que Deus quer que tenhamos conhecimento. Ele quer que saibamos por que o céu é azul, sobre os oceanos e as estrelas. A luta é grande. No mundo existem 57 milhões de crianças fora da escola primária. Delas, 32 milhões são meninas. É triste, mas meu país, o Paquistão, ocupa um dos piores lugares: 5,1 milhões de crianças não vão sequer à escola primária, mesmo que nossa Constituição esteja escrito que toda criança tem esse direito. Há quase 50 milhões de adultos analfabetos, dois terços mulherescomo minha própria mãe. 6

Malala discursou em 2013 na Assembleia

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em ambos os casos mencionados, a intervenção dos Órgãos Internacionais na punição de casos de violência e discriminação contra a Mulher, e consequente estímulo para que não ocorram, foi essencial, vez que ao tomar as providências adequadas à cada caso, fizeram surtir efeitos revolucionários, como pudemos ver no caso de Malala, pivô na conquista do direito à educação para meninas e mulheres em seu país. Bem como no caso da Maria da Penha, que se não tivesse a morosidade do seu processo denunciada, jamais veria ser feita a justiça.

princípios desenvolvidos e estimulados internacionalmente, a fim de manter a Liberdade, Igualdade e Fraternidade nas Nações, a intervenção dos Órgãos competentes é fundamental para que se alcance métodos mais efetivos no combate contra a violência e discriminação contra a mulher no mundo.

Conclui-se, portanto, que se tratando de 6 5 Lei Maria da Penha, Senado BRASIL. LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006. Disponível em: Acesso em 20/10/2016. 6 Malala Story MALALA FUND. História de Malala Yousafzai. Disponível em: https://www.malala.org/malalas-story

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REFERÊNCIAS BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm BRASIL. LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006. Disponível em: Acesso em 20/10/2016. BRASIL, Senado Federal. Senado Notícias. Lei Maria da Penha. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/entenda-o-assunto/lei-maria-da-penha MALALA FUND. História de Malala Yousafzai. Disponível em: https://www.malala.org/malalas-story ONU – MULHERES. Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/cartilha_WEPs_2016.pdf REZEK, Francisco. Curso de Direito Internacional Público. 15ª Ed. São Paulo, Saraiva, 2014.

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LICENÇA-MATERNIDADE E ESTABILIDADE DE EMPREGO DA GESTANTE EM CASOS DE NASCIMENTO SEM VIDA OU MORTE PÓS-PARTO DA CRIANÇA Ana Cláudia Barbosa Dias Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós-graduanda em Direito em Compliance Trabalhista pelo Instituto de Estudos Previdenciários/Faculdade Arnaldo. Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Advogada.

SUMÁRIO 1. Introdução. 2. O Recurso de Revista no. 270500-84.2009.5.12.0050. 2.2. A solução do Tribunal Superior do Trabalho in casu. 3. A divergência doutrinária e jurisprudencial quanto à temática. 4. Considerações Finais. Referências.

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RESUMO O presente estudo objetiva a análise dos institutos da licença-maternidade e da estabilidade provisória de emprego, garantias conferidas às trabalhadoras urbanas e rurais gestantes, na hipótese de nascimento sem vida da criança ou, de outra parte, quando verificada sua morte logo após o parto. Busca-se elucidar, com efeito, à luz do ordenamento jurídico pátrio e de análise jurisprudencial específica, em que medida tais prerrogativas têm sido asseguradas às mulheres nessas circunstâncias, que, apesar de singulares, não se revelam incomuns.

PALAVRAS-CHAVE Licença-maternidade. Estabilidade provisória. Gestante.

ABSTRACT The present study aims to analyze the institutes of maternity leave and temporary job stability, guarantees given to urban and rural pregnant women workers, in the event of the child’s lifeless birth or, on the other hand, when the death is verified soon after the childbirth. It seeks to elucidate, in effect, in the light of the national legal system and specific jurisprudential analysis, the extent to which such prerogatives have been guaranteed to women in these circumstances, which, despite being singular, are not uncommon.

KEYWORDS Maternity leave. Provisional stability. Pregnancy.

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1. INTRODUÇÃO O texto constitucional confere às trabalhadoras urbanas e rurais licença-maternidade, sem prejuízo do emprego ou do salário, pelo período de 120 (cento e vinte) dias1 (art. 7o, CRFB/88 e arts. 392 a 393, CLT). No mesmo viés tuitivo, desde a confirmação da gravidez, até 05 (cinco) meses após o parto, a ordem jurídica brasileira condiciona a validade da dispensa dessas trabalhadoras à ocorrência de justa causa2 (art. 10, II, b, ADCT), tendo-se, nesse sentido, o que a doutrina denomina estabilidade provisória gestacional. Inobstante a licença-maternidade constitua encargo previdenciário3 e a estabilidade provisória de emprego conserve, por sua vez, natureza eminentemente trabalhista, os institutos encontram-se inegavelmente vinculados. O escopo de proteção à maternidade e, em termos mediatos, de tutela da própria existência humana, pode ser tido como o fundamento primeiro dessa ligação. Em continuidade, como é possível extrair da simples leitura dos dispositivos legais atinentes, o fato gerador - ou ao menos mantenedor - dessas prerrogativas não é a simples presença do estado gravídico da mulher. É que, obviamente, enquanto estiver grávida, a trabalhadora terá seu emprego garantido. Controvérsia surge, contudo, no que toca à permanência dessa estabilidade e, ainda, à concessão da licença-maternidade, em casos de nascimento sem vida da criança (natimorto) ou de sua morte após o parto, dentro dos 05 (cinco) meses

que o sucedem. Em casos de abortamento, vale dizer, de interrupção da gravidez até a 20a-22a semana de gestação e com produto da concepção pesando menos que 500g4, a legislação consolidada é expressa: terá a trabalhadora direito a 02 (duas) semanas de repouso remunerado, somente (art. 395, CLT). Doutrina e jurisprudência não se firmam uníssonas, entretanto, se verdadeiramente ocorrido um parto, isto é, se interrompida a gravidez a partir da 23ª semana (6º mês) de gestação (IN no. 971/09 INSS, art. 294)5, quando já verificada viabilidade fetal, e a criança vem a nascer sem vida ou a falecer brevemente após a parição. Isso porque o texto constitucional não traz previsão categórica nesse sentido, tampouco a legislação trabalhista infraconstitucional. O que ocorrerá nestes casos? Terão as genitoras, nessas situações, direito à licença-maternidade e à estabilidade provisória de emprego em sua totalidade? Serão tais hipóteses equiparadas a abortamento, de modo a terem essas mulheres direito apenas ao afastamento do art. 395 da CLT? Essas, as questões a serem discutidas a seguir, a partir do estudo de decisão proferida pela 2a Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) no Recurso de Revista no. 27050084.2009.5.12.0050.

2. O RECURSO DE REVISTA NO. 270500-84.2009.5.12.005 Como relatado, no presente estudo será inicialmente objeto de exame o Recurso de Revista no. 270500-84.2009.5.12.0050, julgado pela 2a Turma do Tribunal Superior do Trabalho em 22 de maio de 2013 e de relatoria originária do

Ministro Renato de Lacerda Paiva, vencido no julgamento. O acórdão relativo ao apelo, redigido pela Desembargadora Convocada Maria das Graças Silvany Dourado Laranjeira, foi publicado em 21 de junho de 2013.

1 Embora constitua exceção, cumpre salientar que o Programa empresa cidadã (Lei no. 11.770/2008) define que as empresas que aderirem ao programa se comprometem a prorrogar a licença-maternidade por mais 60 (sessenta) dias, totalizando, portanto, 180 (cento e oitenta) dias de afastamento. Os 60 (sessenta) dias adicionais, nesta hipótese, são pagos pelo empregador. 2 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 12. ed., São Paulo: LTr, 2013, p. 1292-1294. 3 Idem, p. 1108-1109. 4 BRASIL, Ministério da Saúde. Atenção Humanizada ao Abortamento: norma técnica. Brasília, 2005, p. 14. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_humanizada_abortamento.pdf. Acesso em: 07. fev. 2020. 5 CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do trabalho: de acordo com a reforma trabalhista. 15. ed., rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018, p. 1152.

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Trata-se de Recurso de Revista interposto por empregada que teve o pedido de pagamento das verbas relativas ao período de estabilidade de emprego gestacional6 (art. 10, II, b, ADCT), formulado em face de sua ex-empregadora, negado nas instâncias ordinárias da Justiça do Trabalho em razão de ter ocorrido morte de seu filho 02 (dois) dias após a parição. In casu, a criança nasceu em 12-04-2009, indo a óbito em 14-042009.

(...) XVIII - licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias (CRFB/88); Art. 392. A empregada gestante tem direito à licença-maternidade de 120 (cento e vinte) dias, sem prejuízo do emprego e do salário (CLT);

Art. 10. Até que seja promulgada a lei Inconformada com a decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 12a Região em Recurso complementar a que se refere o art. 7º, I, da Ordinário, a trabalhadora interpôs o Recurso de Constituição: Revista em análise, denunciando violação ao art. (...) 7º, VIII, da Constituição Federal de 1988, 10, II, “b”, do ADCT, contrariedade à Súmula 244 e à II - fica vedada a dispensa arbitrária ou Orientação Jurisprudencial 88 da SBDI-1, ambas sem justa causa: do TST, e, ainda, divergência jurisprudencial.

(...) A matéria abordada neste estudo envolve as disposições constantes do art. 7o, XVIII, da b) da empregada gestante, desde a conConstituição Federal de 1988 e do art. 10, II, b, firmação da gravidez até cinco meses após o do ADCT. Também abrange os arts. 391 a 392-C parto (ADCT); e 395 da CLT, o art. 93, §§4º e 5o, do Decreto no. 3.048/99, a Convenção no. 103 da OIT e as SúArt. 395 - Em caso de aborto não crimimulas no. 244 e 396 do TST. noso, comprovado por atestado médico ofi Transcreve-se, nesse sentido, de algumas cial, a mulher terá um repouso remunerado de 2 (duas) semanas, ficando-lhe assegurado o dessas normas:

direito de retornar à função que ocupava an Art. 7º São direitos dos trabalhadores tes de seu afastamento (CLT). urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

2.2. A SOLUÇÃO DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO IN CASU Na hipótese em cotejo, decidiu a 2a Turma do Tribunal Superior do Trabalho, por maioria, pelo provimento do Recurso de Revista no. 270500-84.2009.5.12.0050, de modo a reconhecer em favor da trabalhadora o direito à estabilidade provisória prevista no art. 10, II, b, do ADCT, ainda que ocorrida a morte da criança 02 (dois) dias após o parto.

Veja-se, nesse sentido, a conclusão do acórdão em estudo:

ACORDAM os Ministros da Segunda Turma do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade, conhecer do recurso de revista, por contrariedade à Súmula 244, I e II do TST e, no mérito, por maioria dar-lhe provimento, para condenar a reclamada ao pagamento da O Relator originário do apelo restou indenização substitutiva da estabilidade provencido, tendo sido o acórdão redigido pela visória, consistente nos salários e demais diDesembargadora Convocada Maria das Gra- reitos correspondentes a todo o período da ças Silvany Dourado Laranjeira. estabilidade provisória, compreendido entre a 6 Como sabido, a gestante dispensada sem justa causa terá direito à reintegração apenas enquanto estiver em curso sua estabilidade, de modo que, ultrapassado esse período, como na hipótese, a reintegração será convertida no valor pecuniário substitutivo (Súmula no. 244, II, do TST).

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dispensa em 12/02/2009 e gravidez até cinco meses após o parto. Vencido o Exmo. Ministro Renato de Lacerda Paiva, Relator, que dava provimento menos amplo (p.08).

onde o legislador não distingue, não cabe ao intérprete fazê-lo (Barros, 2006:1.055). Recurso de revista conhecido e provido. (TST/ RR- 270500-84.2009.5.12.0050 - 2ª Turma - Relator: Ministro Renato de Lacerda Paiva Em análise aprofundada, assentou o Co– Data de Julgamento: 22/05/2013 - DEJT legiado que o ordenamento jurídico pátrio não 21/06/2013). exige que a criança nasça com vida, ou permaneça com vida logo após o nascimento, para Cumpre salientar, todavia, que o relator que a empregada tenha direito às garantias originário do Recurso de Revista em análigestacionais em sua totalidade, não cabendo se, vencido no julgamento, posicionou-se de ao intérprete criar distinções restritivas não modo integralmente diverso da maioria sobre instituídas pelo próprio legislador. a questão. Consignou a 2a Turma, assim, que o legislador trabalhista expressamente criou restrições à estabilidade gestacional tão somente na hipótese de abortamento espontâneo (art. 395, CLT), não ocorrido in casu, haja vista ter sido a gravidez da trabalhadora Recorrente interrompida em momento bastante posterior à conclusão da 23a semana de gestação. Confira-se, com efeito, de trecho do julgado: O tempo de gestação revela a ocorrência de parto (e não aborto) e que a criança veio a óbito dois dias depois de nascer. Neste contexto, à hipótese não se aplica a regra do art. 395 da CLT, nem mesmo por analogia (p. 06). As razões de decidir do julgamento em investigação se encontram, basicamente, dispostas em sua ementa, que ora se expõe:

Segundo o julgador, aplicar-se-ia ao caso, por analogia simples, a previsão do art. 395 da CLT, cabendo à Recorrente, pois, tão somente, direito a repouso remunerado de 02 (duas) semanas. É o que se extrai do trecho de seu voto a seguir apresentado: Portanto, uma vez comprovado o óbito, tem-se a perda do objetivo da lei, relativo à garantia de integridade do nascituro e à garantia de ser amparado pela mãe, nos meses seguintes, cruciais ao seu bom desenvolvimento. Ou seja, por silogismo, a estabilidade provisória perdeu sua razão de ser e assim, extinguiu-se no momento em que se deu a referida fatalidade. Esta parece, inclusive, ter sido a vontade do legislador, quando por analogia simples, observa-se a situação prevista pelo artigo 395 da CLT (...) (p. 03).

Nesse viés, para o Relator originário do EMENTA: ESTABILIDADE PROVISÓRIA apelo, o destinatário único da norma relativa à GESTANTE – ÓBITO FILIAL. A pretensão à es- estabilidade provisória de emprego gestacional tabilidade postulada pela gestante é um direi- seria o nascituro, de modo que, uma vez ocorrido o óbito fetal, extinta estaria a prerrogativa.

to de indisponibilidade absoluta, que se qualifica, em face de sua natureza jurídica, como direito social previsto constitucionalmente e que, por isso, não cabe interpretação da Carta Magna a fim de reduzir o alcance dos seus dispositivos, ou seja, é garantida à gestante a estabilidade prevista no art. 10, II, b, do ADCT, tanto nos casos em que a gestação se completa quanto nas hipóteses de natimorto. “O fato de a criança ter falecido não elide a pretensão. É que o dispositivo constitucional pertinente, o art. 392 consolidado e a lei previdenciária não exigem que a criança nasça com vida, para que a empregada tenha direito à licença-maternidade e à garantia de emprego. Logo,

Não é esse o entendimento majoritariamente verificado na instância extraordinária trabalhista, contudo. Observa-se que o entendimento consagrado por maioria no julgado em estudo, no sentido de se conceder à mulher o direito à estabilidade nas hipóteses de natimorto ou morte logo após a parição, é o que tem prevalecido no âmbito jurisprudencial.

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3. A DIVERGÊNCIA DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL QUANTO À TEMÁTICA Nesse viés, a 2a Turma não aplicou a regra do art. 395 da CLT à hipótese de morte da criança 02 (dois) dias após o parto, nem mesmo por analogia, pois o tempo de gestação in casu teria revelado a ocorrência de parto - e não aborto -, ainda que a criança tenha faleci Isso porque o art. 294, § 3º, da Instrução do pós-parto.

Inicialmente, impende registrar que, quanto ao instituto da licença-maternidade, a controvérsia relativa à pertinência de sua concessão à mulher em casos de nascimento sem vida da criança ou de sua morte pós-parto apresenta-se de forma muito branda, ou quase inexistente. Normativa n° 45/2010 do INSS/PREV, é cristalino: “Para fins de concessão do salário-maternidade, considera-se parto o evento ocorrido a partir da 23ª semana (6º mês) de gestação, inclusive em caso de natimorto” 7. Logo, se a mãe que dá à luz a um natimorto tem direito ao benefício, com ainda mais propriedade o terá também a mãe que deu à luz a criança falecida logo após o nascimento. No que pertine à estabilidade provisória gestacional, entretanto, verifica-se que, para os casos de nascimento sem vida (natimorto) ou morte pós-parto da criança, doutrina e jurisprudência se dividem, basicamente, em duas correntes. CASSAR, nesse sentido, assim define a primeira corrente:

A primeira corrente entende que houve parto, assim entendido como o nascimento com ou sem vida da criança (ou após a 12a semana completa, conforme a medicina, ou após a 23a semana da gestação, conforme a previdência), este é o fato gerador da estabilidade, na forma da interpretação literal do dispositivo constitucional. Portanto, teria a mulher a mesma estabilidade que a mãe que acabou de parir seu filho com vida.8 Nota-se ter sido este o posicionamento adotado por maioria pela 2a Turma do Tribunal Superior do Trabalho no Recurso de Revista acima estudado, eis que sustentado o entendimento de que a ordem jurídica pátria confere proteções distintas à gestante quando ocorrido aborto e quando verificado parto, ainda que de natimorto ou com óbito filial.

Coaduna-se essa corrente, aliás, com o princípio trabalhista da proteção, em seu subprincípio in dubio pro misero, que, consoante dispõe DELGADO: Como princípio de interpretação do Direito, permite a escolha da interpretação mais favorável ao trabalhador, caso antepostas ao intérprete duas ou mais consistentes alternativas de interpretação em face de uma regra jurídica enfocada. Ou seja, informa esse princípio que, no processo de aplicação e interpretação do Direito, o operador jurídico, situado perante um quadro de conflito de regras ou de interpretações consistentes a seu respeito, deverá escolher aquela mais favorável ao trabalhador, a que melhor realize o sentido teleológico essencial do Direito do Trabalho.9 Também como exemplo prático dessa corrente, apresenta-se julgado da 4a Turma do TST, que confirmou o direito à estabilidade provisória da trabalhadora gestante na hipótese de ter o feto nascido sem vida: EMENTA: RECURSO DE REVISTA. ACÓRDÃO REGIONAL PUBLICADO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.015/2014. ESTABILIDADE DA GESTANTE. NATIMORTO. I. O art. 10, II, b , do ADCT dispõe que é vedada a dispensa arbitrária ou sem justa causa da empregada gestante “ desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto “. II. Não há no dispositivo constitucional nenhuma restrição para a hipótese em que o feto tenha nascido sem vida. O requisito objetivo para a aquisição da referida estabilidade pro-

7 CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do trabalho: de acordo com a reforma trabalhista. 15. ed., rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018, p. 1152. 8 Idem, p. 1153. 9 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 12. ed., São Paulo: LTr, 2013, p. 192.

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visória é que a concepção ocorra no curso do contrato de trabalho. III . Recurso de revista de que se conhece, por divergência jurisprudencial, e a que se nega provimento. (TST RR 813-46.2013.5.12.0023, 4ª Turma, Rel. Cilene Ferreira Amaro Santos, Data de julgamento: 19/04/2017, Data de publicação: 28/04/2017). Na mesma linha é o seguinte aresto do Tribunal Regional do Trabalho da 2a Região, que assinalou a impossibilidade de se condicionar a garantia constitucional da estabilidade provisória de emprego da gestante à “maternidade útil”:

ção de reprodutora fracassada;a duas, porque a trabalhadora gestante é a destinatária direta da proteção trabalhista conferida pelo artigo 10º,II, b, do ADCT da Constituição Federal , sem embargo de se reconhecer que o nascituro é beneficiário indireto desse amparo e goza do reconhecimento de direitos desde a concepção ( Código Civil , art. 2º ). Recurso provido para deferir a reintegração e conseqüentes. (TRT2 - RO 20060653811 SP, 4ª TURMA, Relator: Ricardo Artur Costa e Trigueiros, Data de julgamento: 22.08.2006, Data de publicação: 01.09.2006).

Esse entendimento, aliás, não é novo, como se extrai de ementa do Tribunal RegioEMENTA: GESTANTE. MORTE DA nal do Trabalho da 3a Região, referente a acórCRIANÇA APÓS O PARTO. DIREITO À ESTAdão publicado ainda em 1994: BILIDADE. O legislador constituinte expliciEMENTA: LICENÇA - MATERNIDADE - GARANTIA tou a tutela jurídica à gestante, desde a conDE EMPREGO - NATIMORTO. O art. 7º, inc. XVIII, da CF firmação da gravidez até cinco meses após o de 88, o art. 10, II, alínea b, do ADCT, da mesma Constituiparto, nada dispondo sobre a hipótese de a ção e art. 71, da Lei n.º 8213/91, asseguram à empregada criança nascer ou não com vida. A Lei 8.213 o direito à licença-maternidade e a garantia de emprego, do nascimento com vida da criança. /91 também elegeu o parto como marco para independentemente Objetivando não só a proteção do nascituro, mas, também, a concessão do salário-maternidade,não ex- a recuperação física e psíquica da mãe, a licença-maternidacepcionando a hipótese de morte da crian- de deverá ser concedida mesmo na hipótese do natimorto. ça,após o parto, pelo que, esta circunstância Dispensando imotivadamente a autora no período de gozo da licença-maternidade e estabilidade provisória, o emnão pode ocasionar a cessação da licença-ma- pregador atraiu para si o ônus do pagamento dos salários ternidade e tampouco compromete a garan- referentes à garantia, já que os primeiros meses desta se tia estabilitária assegurada pelo artigo 10º,II, confundem com a licença. (TRT da 3.ª Região; Processo: RO b, do ADCT. Se o legislador não distinguiu, -11191/94; Data de Publicação: 30/09/1994; Disponibilização: 29/09/1994, DJMG ; Órgão Julgador: Segunda Turnão pode o intérprete fazê-lo. A instituição de ma; Relator: Pedro Lopes Martins). benefícios e garantias da gestante em nome Apresenta-se, ainda, julgado mais recenda “utilidade social da função materna”, no dizer de André Gorz, introduz “a idéia de que te desse mesmo Regional, no qual adotada a a mulher pode tornar-se o equivalente de um primeira corrente: ventre de aluguel no interesse da sociedade”, EMENTA: EMPREGADA GESTANTE o que é de todo intolerável. A maternidade ESTABILIDADE PROVISÓRIA - PARTO PREnão pode ser dissociada da pessoa da mãe, MATURO - NATIMORTO - Eventualmente sob pena de concretização da visão fantas- se o filho da reclamante gestante nascer sem magórica de futuro referida na literatura e ci- vida, em parto prematuro, não afasta a garannema (vide Matrix),em que a função materna, tia de emprego de que trata o art. 10, inciso e portanto, a matriz da vida, acabará por ser II, alínea “b”, do Ato das Disposições Constiretirada da mulher e terceirizada por meio de tucionais Transitórias da Constituição Federal barrigas artificiais. Tampouco se pode aceitar de 1988. (TRT da 3.ª Região; PJe: 0010999a alocação da garantia constitucional à ges- 32.2015.5.03.0178 (RO); Disponibilização: tante condicionada à “maternidade útil”, i. é, 17/12/2015, DEJT/TRT3/Cad.Jud, Página “bem sucedida”, já que a proteção à mãe não 440; Órgão Julgador: Setima Turma; Relator: pode deixar de existir pelo fato de a criança Paulo Roberto de Castro). vir a falecer: a uma porque tal implicaria casti Em continuidade, a segunda corrente atigá-la como se tivesse falhado na missão de ser mãe, reduzindo-a assim, à humilhante condi- nente à matéria, minoritária na jurisprudência 82


contemporânea, entende pela impossibilidade de concessão da estabilidade provisória de emprego à gestante em casos de nascimento sem vida ou óbito filial, equiparando tais circunstâncias, por analogia, ao aborto. Entendem os signatários dessa corrente, com efeito, que a finalidade da garantia constitucional é a tutela dos interesses do nascituro, de modo que, ausente esse aspecto objetivo, inexiste razão para a permanência da tutela legal. Assim, nas palavras de CASSAR,

faz jus a empregada à estabilidade. Não viola o artigo 10, inciso I, alínea “b”, da ADCT decisão proferida por Tribunal Regional do Trabalho que, em semelhante circunstância, não reconhece o direito à reintegração, com fundamento em estabilidade à gestante. Recurso de revista não conhecido. (TST - RR - 3860035.2007.5.01.0053, 5ª Turma, Rel. Emmanoel Pereira, Data de julgamento: 16/09/2009, Data de publicação: 25/09/2009). In casu, o TST posicionou-se no sentido de que o destinatário único e direto da estabilidade provisória gestacional seria a criança. Logo, se não mais existe criança a ser cuidada, tendo e vista o seu falecimento 20 (vinte) minutos após o parto, inexistiria direito à reintegração da mãe com fundamento nessa estabilidade.

A segunda corrente, em sentido contrário, equipara o nascimento sem vida ao aborto, mesmo após a 12a ou 23a semana, acarretando apenas o direito ao repouso previsto no art. 395 da CLT. Argumentam que em caso de morte de filho (em outra fase da vida) a CLT garante apenas o descanso de dois dias - art. 473, I da CLT, logo o repouso remuneCASSAR discorda desse entendimento, rado de duas semanas é mais benéfico que a consoante explica a seguir: regra geral. Ademais, a estabilidade de cinco [...] a gestante que perde seu filho após meses após o parto destina-se à criança, à a a 12 semana, seja no início ou no fim da gesmaternidade, o fato não ocorreu.10 tação, além de perda irreparável, sofre com Consagrando esse entendimento, verifi- a queda brusca dos hormônios, que geram cado com menos recorrência na jurisprudên- efeitos colaterais mais gravosos, tanto psicia pátria, veja-se o seguinte julgado da 5a Tur- cológicos, como físicos. Além do mais, se a ma do TST: própria previdência garante a licença-materEMENTA: GESTANTE. ESTABILIDADE. nidade nestes casos, por que o empregador ARTIGO 10, I, b, ADCT. A estabilidade asse- não garantiria a estabilidade, já que não terá 11 gurada à gestante é norma constitucional de prejuízos com este afastamento? índole objetiva, com vistas a proteger não só o mercado de trabalho da mulher, como também resguardar a vida da personalidade que está se formando, propiciando que tenha subsistência menos conturbada nos primeiros meses de vida. Tal estabilidade, revestida do caráter de proteção ao nascituro, não pode sofrer limitação em decorrência dos riscos do empreendimento, os quais são, em homenagem ao princípio da alteridade, suportados pelo empregador. No caso em tela, embora nascido com vida, quando já completadas treze semanas e três dias de gestação, o nascituro veio a falecer vinte minutos após o parto. Faltando o destinatário do bem de vida protegido, finalidade precípua da norma, não

No mesmo sentido é a doutrina de BARROS:

Atualmente, o afastamento após o parto é obrigatório. É que a licença tem como fato gerador não só o nascimento do filho, mas também a gestação, que, como é sabido, ocasiona à mulher transtornos físicos naturais e até psíquicos. Aliás, o próprio diploma internacional citado, isto é, a Convenção n. 103 da OIT (revista pela de n. 183) e ratificada pelo Brasil, em 1966, previu no art. 3o, 6, para a hipótese de doença decorrente do parto, uma prorrogação dessa licença, mas nunca substituição da licença-maternidade por doença, ainda que decorrente daquela. O fato de a criança ter falecido não elide a

10 CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do trabalho: de acordo com a reforma trabalhista. 15. ed., rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018, p. 1153. 11 Idem.

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pretensão. É que o dispositivo constitucional pertinente, o art. 392 consolidado e a lei previdenciária não exigem que a criança nasça com vida, para que a empregada tenha direito à licença-maternidade e à garantia de emprego. Logo, onde o legislador não distingue, não cabe ao intérprete fazê-lo.12

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A proteção à maternidade, direito fundamental constitucionalmente consagrado (art. 6°, art. 201, II, art. 227, §1.° CRFB/88), deve abranger a função materna em todos os seus pormenores. Assim é que os esforços de toda a sociedade nesse amparo impõem a defesa da criança recém-nascida, mas a ela não se podem resumir. Não se trata o recém-nascido de destinatário único do regramento protetivo constitucional, celetista ou previdenciário relativo à maternidade. Esse conjunto normativo visa, igualmente, tutelar a mãe.

tória às maternidades “mal sucedidas”, violando o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, CRFB/88) de maneira a colocar a gestante em condição de total vulnerabilidade. Tal situação, inclusive, desencoraja a gravidez da mulher, instrumento de construção de toda a sociedade em termos mediatos. Merece, pois, ser superada a concepção meramente biológica da maternidade, ou voltada objetivamente ao nascimento com vida de uma criança, razão pela qual se revela correta a primeira corrente apresentada neste estudo a respeito do tema, que coaduna, inclusive, com o princípio da proteção do trabalhador, ao não admitir interpretação desfavorável da legislação trabalhista. Não cabe ao intérprete criar restrições não criadas pelo próprio legislador.

Nesse sentido, devem ser objeto de ampla tutela jurídica a gestação e também o período a ela posterior, o que inclui os cuidados com a criança parida com vida e, da mesma maneira, o possível trauma materno decorrente de morte da criança, ou até mesmo de seu abortamento, situAliás, até mesmo a previsão do art. 395 da ações que atingem aspectos fisiológicos, sociais CLT, atinente ao aborto, merece melhor atenção e psicológicos da mulher. e, talvez, revisão. O Ministério da Saúde ressalta Não é demais dizer que, no mundo, são que a atenção em casos de abortamento deve mais de três milhões e, no Brasil mais de 30.000 ser compreendida como um conjunto de ações (trinta mil) natimortos por ano13, além dos inúme- oferecido à mulher durante e também após a inros óbitos logo após o nascimento com vida, e terrupção de uma gestação, estendendo-se até o que os efeitos disso vão muito além de uma con- 42o dia após o termino da gravidez, ao menos14. tagem numérica populacional. A gestação possui Nesse viés, a concessão de um repouso reos mais diversos impactos na vida de uma trabamunerado de apenas 02 (duas) semanas à trabalhadora e isso deve ser objeto de proteção legal, seja a criança gerada com vida ou não, venha a lhadora em caso de abortamento, como previsto no texto consolidado, talvez não seja a melhor falecer posteriormente ou não. forma de proteção à maternidade também neste Reduzir as garantias da mulher em casos caso. de nascimento sem vida ou de morte pós-parto Portanto, assim como se revela legítima a em nada contribui para a promoção da igualdaproteção total da gestante em caso de nascimende entre homens e mulheres, princípio também to do feto sem vida ou óbito pós-parto, por razões consagrado pelo texto constitucional (art. 5o, I, CRFB/88). Ao revés, constitui medida discrimina- sociais e também biológicas de tutela à maternidade, merece maior atenção o conjunto de ações 12 BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 10. ed., São Paulo: LTr, 2016, p. 715. 13 CUNHA, Alfredo de Almeida; NASCIMENTO, Maria Isabel do. Natimorto: uma revisão dos sistemas de classificação. Disponível em: http://files.bvs.br/upload/S/0100-7254/2015/v43n3/a5121.pdf. p. 01. Acesso em 07. fev. 2020. 14 BRASIL, Ministério da Saúde. Parto, Aborto e Puerpério. Assistência Humanizada à Mulher. Brasília, 2001, p. 147. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cd04_13.pdf. Acesso em 07.fev.2020.

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e de direitos conferidos em caso de abortamento. Tudo isso para que se promova a igualdade, a dignidade da pessoa humana, dentre outros princípios tão caros à ordem jurídica brasileira e internacional, como medida de Direito e de Justiça.

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REFERÊNCIAS AMADO, Frederico. Direito Previdenciário. 8. ed., Juspodivm: Salvador, 2017. BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 10. ed., São Paulo: LTr, 2016. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 9. ed. São Paulo: Saraiva, Vade Mecum, 2016. BRASIL. Decreto-Lei n.º 5.452. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Rio de Janeiro, mai. 1943. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452compilado.htm. Acesso em: 07. fev. 2020. BRASIL, Ministério da Saúde. Atenção Humanizada ao Abortamento: norma técnica. Brasília, 2005. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_humanizada_abortamento.pdf. Acesso em: 07. fev. 2020. BRASIL, Ministério da Saúde. Parto, Aborto e Puerpério. Assistência Humanizada à Mulher. Brasília, 2001. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cd04_13.pdf. Acesso em: 07. fev. 2020. ____TST - RR: 270500-84.2009.5.12.0050, 2ª Turma - Relator: Ministro Renato de Lacerda Paiva, Data de Julgamento: 22/05/2013, Data de Publicação: 21/06/2013. ____TST. RR 813-46.2013.5.12.0023, 4ª Turma, Rel. Cilene Ferreira Amaro Santos, Data de julgamento: 19/04/2017, Data de publicação: 28/04/2017. ____TST - RR - 38600-35.2007.5.01.0053, 5ª Turma, Rel. Emmanoel Pereira, Data de julgamento: 16/09/2009, Data de publicação: 25/09/2009 ____TRT2 - RO 20060653811 SP, 4ª Turma, Relator: Ricardo Artur Costa e Trigueiros, Data de julgamento: 22.08.2006, Data de publicação: 01.09.2006 ____TRT3; Processo: RO -11191/94; Data de Publicação: 30/09/1994; Disponibilização: 29/09/1994, DJMG ; Órgão Julgador: Segunda Turma; Relator: Pedro Lopes Martins. ____TRT3: PJe: 0010999-32.2015.5.03.0178 (RO); Disponibilização: 17/12/2015, DEJT/ TRT3/Cad.Jud, Página 440; Órgão Julgador: Setima Turma; Relator: Paulo Roberto de Castro. CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do trabalho: de acordo com a reforma trabalhista. 15. ed., rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018. CASSAR, Vólia Bomfim; BORGES, Leonardo Dias. Comentários à Reforma Trabalhista. São Paulo: Método, 2017. CUNHA, Alfredo de Almeida; NASCIMENTO, Maria Isabel do. Natimorto: uma revisão dos sistemas de classificação. Disponível em: http://files.bvs.br/upload/S/0100-7254/2015/v43n3/ a5121.pdf. Acesso em: 07. fev. 2020. 86


DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 12. ed., São Paulo: LTr, 2013. DELGADO, Mauricio Godinho; DELGADO; Gabriela Neves. A Reforma Trabalhista no Brasil: com os comentários à Lei n. 13.467/2017. São Paulo: LTr, 2017.

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MULHERES E O MERCADO DE TRABALHO – CAUSAS E RECOMENDAÇÕES PARA BUSCA DE UMA SOCIEDADE JUSTA André Luis do Prado Advogado atuante nesta comarca de Bauru/SP, formado pela Faculdade de Direito de Bauru – Instituição Toledo de Ensino, Pós graduado em Direito Processual Civil pela faculdade Anhanguera S/A, Pós graduado em Direito Tributário pela Faculdade Getúlio Vargas, Secretário da Comissão de Direito Bancário da 21ª Subseção da OAB Bauru, Secretário da Comissão Estadual de Direito Bancário da OAB/SP, Monitor do curso de pós graduação em Direito Empresarial da Faculdade Getúlio Vargas, conveniada Centro Hermes FGV Bauru.

SUMÁRIO 1. Introdução 2. Discriminação – Os Números Não Mentem 3. Causas E Evolução Legislativa 4. Recomendações 4.1. Políticas Positivas 4.2. Setor Público X Setor Privado 5. Conclusão

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RESUMO A constante evolução social resulta na busca por igualdade de oportunidades, pelo tratamento igual, pelo recebimento de mesmo salário no desenvolvimento da mesma atividade, nossa realidade ainda é bem diferente em relação ao trabalho da mulher, segundo dados do governo, mulheres ainda recebem cerca de 70% do salário masculino, porém, possuem mais estudo e são maioria na população, neste contexto, questionamos as causas e o que pode ser feito para quebrar essa visão patriarcal e atingirmos uma sociedade equilibrada e com possibilidade para todos.

PALAVRAS CHAVE Mulher, trabalho, estatísticas, causas e recomendações

ABSTRACT The continuous social risefollowstoachieveequality in opportunities, fairertreatment, andequalincomebasedon similar activities; theBraziliansituationis still greatlydifferentrelat edtowomen’sworkforce. Accordingtogovernment’s data, women are still earningabout 70% ofmen’sincome, eventhoughthey are more educatedandcomposingthemajorityofthepopulation in Brazil. At thiscontext, it isassessedthe causes andwhatcanbedonetoceasethispatriarchalvision, as a waytoreach a fair societyandopportunitiestoeveryone.

KEYWORDS Women, work, statistics, causes and recommendations

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1. INTRODUÇÃO No ápice da revolução industrial, as empresas tinham como principal mão de obra crianças e mulheres, sendo a justificativa simples, por serem estas mais fáceis de lidar, por duas razões: não possuírem equidade de força física e submeterem-se passivamente às imposições sociais. Assim, as fábricas viviam sempre cheias, tornando se a submissão a longas jornadas um hábito, 16 ou até mais horas de trabalho seguidas, pequenas folgas, ambientes insalubres, entre outros fatores que praticamente faziam daquele trabalho algo análogo a escravidão.

rias, instalando-se, após o término da segunda guerra mundial, uma nova onda protecionista, visto que o medo que aquele período trouxe foi combustível para mover a defesa dos direitos humanos, o mundo passou a cobrar melhores condições de vida causando grande reflexo na sociedade. Chegamos em 2020, a sociedade, o trabalho, o pensar, a família, tudo mudou, porém, as mulheres passaram ter seu espaço? O trabalhou passou a ter valor igualitário? Equiparou-se a remuneração?

Essas questões passam a ser enfrentadas Os anos passaram, as revoluções vieram, neste artigo, a importância feminina na socieos sindicatos passaram a ter voz ativa, o Estadade e a realidade dos dias atuais. do adotou uma linha protecionista e passou a tutelar a defesa dos empregados e das mino-

2. DISCRIMINAÇÃO – OS NÚMEROS NÃO MENTEM A ativista Nigeriana ChimamandaNgoziAdichie, em seu livro, Sejamos Todos Feministas, questiona o que é ser feminista no século XXI, no qualrelata um episódio ocorrido na sua infância quando tentou ser monitora da sala de aula. O critério era simples: aquele que obtivesse a maior nota na prova para tal fim. Ela tirou a maior nota, no entanto, a professora esqueceu de avisar que a vaga era exclusiva ao sexo masculino, isso foi decepcionante e, assim, concluiu:

ocupados por homens.1(ADICHE, C. N, 2014) A visão da ativista reflete o mercado de trabalho na maior parte do mundo e, em especial, no Brasil.Para que não deixemos dúvidas, abaixo indicamos números alarmantes que refletem tamanha disparidade. Quando falamos em salário, temos os seguintes dados fornecidos pelo IPEA2: em 1991, o salário da mulher correspondia a 57% do salário do homem, em 2001 66,3%, em 2009 68,5%, em 2012 71%, ou seja, ao longo dos 20 anos a diferença salarial caiu 14%, embora ainda se mantenha está no patamar de 70%.Caso sejammantido os percentuais de crescimentos indicados, somente daqui 40 anos teremos equidade salarial para o mesmo serviço, ou seja, trata-se de um dado alarmante para atual contexto social.

Se repetimos uma coisa várias vezes, ela se torna normal. Se vemos uma coisa com frequência, ela se torna normal. Se só os meninos são escolhidos como monitores de classe, então em algum momento nós todos vamos achar, mesmo que inconscienteEm 2015, na divisão populacional brasileira mente, que só um menino pode ser o monitor 51,5% de mulheres contra de classe. Se só os homens ocupam cargos por gênero, tínhamos 3 48,5% de homens , segundo Boletim Estatístide chefia nas empresas, começamos a achar co de Pessoal do Ministério do Planejamento – “normal” que esses cargos de chefia sejam 1 ADICHIE, C. N., SEJAMOS TODOS FEMINISTAS. São Paulo: Editora Schwarcz S.A., 2014. 2 GABRIEL ULYSSCA e ANA LUIZA NEVES DE HOLANDA BARBOSA. COMUNICADO 160 - Um retrato de duas décadas do mercado de trabalho brasileiro usando a PNAD. Disponível em www.ipea.gov.br/portal/index.php%3Foption%3Dcom_ content%26view%3Darticle%26id%3D20065+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br. Acesso em 09/02/2020 3 CÁSSIA ALMEIDA. Mulheres estão em apenas 37% dos cargos de chefia nas empresas. Disponível em http://oglobo.globo. com/economia/mulheres-estao-em-apenas-37-dos-cargos-de-chefia-nas-empresas-21013908. Acesso em 09/02/2020

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PNAD. No entanto, ocorre que a proporção era inversa quando entramos na taxa de ocupação, pois o mercado estava estruturado com 56,2% de homens contra 43,8% de mulheres;sendo, ainda, para cargos de gerência a diferença de 63% para homens e 37% para mulheres, piorando nos cargos mais altos, em que 78,3% são ocupados por homens enquanto 21,7% por mulheres, e, no pico da diferença, 90% dos cargos mais altos das empresas são ocupados por homens, enquanto apenas 10% por mulheres, devendo-se ressaltar que estamos falando de 2015.

Entre os jovens trabalhadores5, a diferença salarial também existe, em uma primeira faixa, algo diferente, o homem recebendo menos que a mulher, no ensino fundamental o homem recebe cerca de 88% do salário da mulher, porém, com o aumento do nível escolar, essa diferença inverte, já que, no ensino médio, a mulher recebe cerca de 61% do salário do homem, e, no superior e na pós-graduação, 94 e 76%, respectivamente.

Outro ponto importante de se ressaltar é com relação ao gênero e à atividade desenvolvida.Segundo o IPEA6, as mulheres são maioria Outro ponto relevante para adentrarmos em apenas 2 pontos: órgãos públicos (7,2% X nas causas dessa discriminação diz respeito à 6,8%) e trabalho doméstico (27,1% X 14,7%). situação de escolaridade. Entre 15 e 19 anos, teA partir dos dados acima, podemos enxermos os homens com 73,1% de sua população estudando, já as mulheres ficam com 70,7%, gar que temos uma marcante diferença quanto a apesar de os dados tomarem rumos distintos remuneração entre os diferentes gêneros e, para quando falamos de sequência, visto que, na fai- combatê-la, é necessário conhecer suas causas xa etária de 20 a 24 anos; as mulheres passam e, a partir daí, buscar soluções. ao percentual de 26,6%, enquanto os homens fiDe acordo com os dados expostos, no cam com 20,4%; na faixa entre 25 e 29 anos, as um cenário atual, a mulher embora seja maiomulheres têm percentual de 12,7%, enquanto os ria na população brasileira, é minoria na taxa homens possuem 12,6%4. de ocupação; passa mais tempo nos estudos, Tomando por base ainda a população ocu- porém tem salário na proporção de 70% do hopada, temos as mulheres com um índice de mem.Sua participação nos cargos de gestão é 63,6% de conclusão do ensino médio, enquan- muito baixa, portanto, esses dados não refletem to os homens ficam no patamar de 59,6%; em a situação atual.Neste contexto, questionamos: relação ao ensino superior, 8,8% das mulheres como chegamos a esse ponto e o que precisaconcluíram contra 5,6% dos homens, ficando a mos fazer para superar essa injusta realidade? pós-graduação no patamar de 1,9% das mulheres e 0,9% dos homens.

3. CAUSAS E EVOLUÇÃO LEGISLATIVA Conforme já exposto, no ritmo atual, eventual igualdade só será alcançada em, no mínimo, 40 anos, as leis mantêm-se na busca de uma equiparação, mas ainda existe uma falha, uma vez que direito e moral nem sempre caminham juntos, basta lembrar que nem tudo que é direito é moral e nem tudo que é moral é direito, por conseguinte, a participação interdisciplinar é fundamental para construção de uma sociedade mais justa.

proibiu o trabalho de mulheres em subterrâneo; o FactoryAct (1844) limitou o trabalho da mulher em 12 horas, proibindo-o no período noturno; o Factoryand Workshop Act (1878) vedou a utilização de mulheres em trabalhos perigosos e insalubres.

A atenção tornou-se maior a partir de 1900, a mulher passou a conquistar seu espaço e deixou de ser “propriedade” de seu marido. Na Revolução Industrial, ao lado das Na Inglaterra, o Coal Mining Act (1842) crianças, elas recebiam tratamento como mão

4 GUSTAVO VENTURINI E DANILO TORINI. Transição da escola para o mercado de trabalho de mulheres e homens jovens no Brasil. Disponível em http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/@dgreports/@dcomm/documents/publication/wcms_326892. pdf. Acesso em 09/02/2020 5 GUSTAVO VENTURINI E DANILO TORINI. 6 GUSTAVO VENTURINI E DANILO TORINI.

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de obra barata e descartáveis, submetiam-se a longas jornadas, poucas pausas e não tinham nenhum direito. Com o passar dos anos, o Estado deixou de lado seu papel liberal e passou a implementar um papel fraternalista. O término da Segunda Guerra Mundial, o medo o pavor que este acontecimento funesto deixou aguçou ainda mais esse papel fraternal e as minorias passaram a ter seus direitos reconhecidos e implementados, marco dos Direitos Humanos.

ções justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.” e, em especial, o segundo parágrafo: “Toda pessoa, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho.”.

No Brasil, nossa Consolidação das Leis do Trabalho, promulgada em 1º de maio de 1943, já trazia em seu artigo 461 a igualdade salarial: “Sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, na mesma localidade, corresponderá, igual salário, sem distinção de sexo”, contudo o trabalho da mulher Referência na defesa dos trabalhadores e era limitado e se restringia a pequena parcela das minorias, a OIT foi fundada em 1919 após dos setores.

o término primeira guerra mundial, seu papel de orientadora contribuiu significativamente no mundo, suas convenções não são obrigatórias, porém, uma vez ratificadas pelos países de origem, ganham status de legislação e devem ser seguidas.Atualmente no Brasil, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados com quórum de emenda constitucional ganham a mesma força desta, sendo a justificativa a nossa Constituição cidadã, promulgada em 1988 após o pior período de nossa história, a ditadura. A Constituição de 1988 foi elaborada nos mínimos detalhes, sempre visando ao bem-estar social, a defesa das minorias. Até o final da segunda guerra, a situação laboral da mulher havia melhorado levemente, mas sua proteção era limitada, entretanto após o término,tivemos importantes convenções: Convenção número 100, de 1951, cujo objetivo foi a igualdade de remuneração entre os sexos; a Convenção número 103, de 1952, que concedeu proteção às gestantes; a Convenção 111, de 1958, que trata da discriminação em matéria de conceder emprego e profissão; a Convenção 156, de 1981, que teve como foco a igualdade de oportunidade de tratamento para trabalhadores de ambos os sexos em relação às responsabilidades familiares7. Ainda, em 1948, é adotada e proclamada pela Resolução 217A, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, dentre suas orientações, destacamos o artigo 23, primeiro parágrafo, no qual consta: “Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condi-

Deste cenário já podemos elencar algumas causas que refletem até os dias atuais, considerando, para fins didáticos, o marco temporal de 1900, auge da revolução industrial, temos aproximadamente 50 anos de exploração indiscriminada do trabalho da mulher (até o fim da segunda guerra). No Brasil, a ocupação feminina era baixa, sua condição submissa imperava e chegava ao patamar de existir a Lei da mulher casada, facultando às mulheres somente o trabalho com a autorização do marido.Ressalta-se que o termo “mulher honesta”, presente no Código Penal de 1940, somente foi retirado, com alterações, em 2005 e 2009. Veja que temos um triângulo que afeta diretamente o trabalho e a remuneração da mulher: a falta de legislação até meados de 1950, sua condição submissa perante a sociedade e a visão do marido como “chefe de família”, expressão essa que também não é mais utilizada, sendo correto o termo “provedor”, já que o conceito de família ganhou novos contornos e passou a abraçar todo tipo de união. Julia Melim Borges Eleutério, na obra (Des) igualdade de gênero nas relações do trabalho, entende ser a quebra dessa visão machista um grande passo para busca de uma sociedade mais justa: Antes de apresentar os percursos dos feminismos, deve-se considerar que a desconstrução da cultura machista é o enfrentamento necessário à ruptura estrutural da opressão e da lógica de poder que se instaura nas relações de gênero. Desconstruir o que já foi construído demanda desdobramentos difíceis de serem perseguidos8.

7 MARTINS, S. P. Direito do Trabalho. 25ª ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2009. 8 ELEUTÉRIO, J. M. B, (DES) IGUALDADE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES DO TRABALHO. Por um novo paradigma relacional a partir da desconstrução da cultura machista. Florianópolis SC: Empório do Direito, 2017.

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Conforme exposto no tópico anterior, de 1991 a 2012, a diferença salarial entre os gêneros caiu 14% em 20 anos, reflexo da maior proteção e políticas inclusivas em conjunto com a mudança social e independência feminina. Na relação mudança social com independência feminina, cabe ressaltar alguns dados publicados pelo IPEA9, sendo a comparação referente ao período de 2001 à 2009:

Situação

2001

2009

Casal sem filhos – mulher provedora

0,62

2,52

Casal com filhos – mulher provedora

1,79

6,67

Mãe com filhos – mulher provedora

17,80

17,34

Outros – mulher provedora

7,13

8,65

Casal sem filhos – homem provedor

13,18

14,88

Casal com filhos – homem provedor

51,49

40,58

Pai com filhos – homem provedor

2,06

2,17

Outros – homem provedor

5,93

7,21

Conforme podemos verificar, em 2001, as hipóteses em que a mulher era provedora do lar chegavam ao percentual de aproximadamente 27%, enquanto os homens detinham o percentual de 73%; em 2009, a situação mudou e houve um aumento do percentual relativo à mulher provedora, passou para 35%, ou seja, em 8 anos tivemos um aumento de 8%, o que contrasta com a diminuição da diferença salarial e quebra o paradigma que o homem é o provedor do lar e, por isso, precisa de maior salário. Outro fato alarmante que também está relacionada com a cultura machista e que reflete diretamente no trabalho feminino é a dupla jornada, conforme dados do IPEA10, “Em 2008, 86,3% das brasileiras com 10 anos ou mais afirmaram realizar afazeres domésticos, contrapostos a 45,3% dos homens. Além desta diferença, enquanto as mulheres despendiam em média 23,9 horas por semana, os homens gastavam 9,7 horas”, a mudança neste quesito foi inexpressiva, pois a queda de 2001 para 2009 foi de apenas 5 horas para as mulheres enquanto, para os homens, foi de 1%;entretanto, o dado que há de se comparar

aqui é a quantidade de horas trabalhadas, o homem considerado provedor do lar tem jornada de aproximadamente 44 horas semanais, enquanto a mulher de apenas 36 horas11, verifica-se, assim, a influência do trabalho doméstico na jornada de trabalho da mulher e seus reflexos financeiros. Comparando os dados, temos a mulher com dupla jornada, o que reflete um menor tempo laboral, ou seja, reflexo direto na remuneração, neste sentido, a Convenção 156 de 1983 da OIT, “Sobre a Igualdade de Oportunidades e de Tratamento para Homens e Mulheres Trabalhadores: Trabalhadores com Encargos de Família” – já alertava para disparidade e orientava os Estados-membros a “conscientizar-se da necessidade de mudança no papel tradicional tanto do homem como da mulher na sociedade e na família, para se chegar à plena igualdade entre homens e mulheres”. Como disse a ativista nigeriana ChimamandaNgoziAdichie, “se só os homens ocupam cargos de chefia nas empresas, começamos a achar “normal” que esses cargos de chefia sejam ocupados por homens.”, neste contexto, em especial a desconstrução da cultura patriarcal e busca por uma sociedade mais justa, faz-se necessária a integração das áreas para uma mudança gradativa. Ressaltamos que a sociedade passa por mudanças e que a estrutura familiar também, mas nossa sociedade é modificada por gerações, hoje os gestores e principais responsáveis das empresas são do sexo masculino, conforme já exposto, sendo que esse fato decorre da falta de oportunidades no passado para mulheres, sendo que, para quebrar esse dogma e criar melhores condições, políticas públicas devem ser criadas e cobradas destes gestores, pois a mudança de paradigma é um processo difícil e necessita de atenção e fiscalização.

9 NATÁLIA FONTOURA e CLAUDIA PEDROSA. PNAD 2009 - PRIMEIRAS ANÁLISES: Investigando a chefia feminina de família. Disponível em http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/5286/1/Comunicados_n65_PNAD2009.pdf. Acesso em 09/02/2020 10 NATÁLIA FONTOURA e CLAUDIA PEDROSA. 11 NATÁLIA FONTOURA e CLAUDIA PEDROSA.

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4. RECOMENDAÇÕES 4.1 POLÍTICAS POSITIVAS Vivemos tempos de mudanças, temos uma sociedade que está estudando mais e se preparando mais.Segundo dados apontados pelo IPEA, as mulheres, além de terem maior tempo de estudo, estão preferindo retardar sua entrada no mercado de trabalho e se preparar mais, isso contribui significativamente para melhores condições, a desconstrução da cultura patriarcal por meio de modelos interdisciplinares, participação de movimentos feministas e uma atenção maior do setor privado, principalmente na construção de exemplos são fatores que cooperam para busca da igualdade almejada.

tarem os direitos humanos, avaliar periodicamente se tais leis resultam adequadas e remediar eventuais lacunas;

Mudanças significativas precisam de uma combinação de leis e políticas públicas.Neste contexto em junho de 2011, o “Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou por consenso os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos”12, sendo que estes princípios têm por base proteger, respeitar e reparar. A proteção como responsabilidade do Estado, o respeito por parte das empresas e a reparação pelo ponto de medidas adequadas e eficazes.

D. Estimular e se for preciso exigir que as empresas informem como lidam com o impacto de suas atividades sobre os direitos humanos.

No passo da mudança, as empresas, representantes do setor privado, ganham grande importância, passam a exercer efetivamente sua função social, segundo John Ruggie, representante especial na ONU para a área de negócios e direitos humanos, “o papel das empresas como órgãos especializados da sociedade que desempenham funções especializadas e que devem cumprir todas as leis aplicáveis e respeitar os direitos humanos.”. Aqui temos a necessidade da norma, como medida coercitiva e dotada de obrigatoriedade traduzida pela sanção.

B. Assegurar que outras leis e diretrizes políticas que regem a criação e as atividades das empresas, como o direito empresarial, não restrinjam mas sim que propiciem o respeito aos direitos humanos pelas empresas; C. Assessorar de maneira eficaz as empresas sobre como respeitar os direitos humanos em suas atividades;

PRINCÍPIO 26 Os Estados devem adotar as medidas apropriadas para assegurar a eficácia dos mecanismos judiciais nacionais quando abordem as violações de direitos humanos relacionadas com empresas, especialmente considerando a forma de limitar os obstáculos jurídicos, práticos e de outras naturezas que possam conduzir para uma negação do acesso aos mecanismos de reparação. Os dois princípios indicam que deve haver a implementação de políticas e leis que tratem do assunto, fiscalização mediante auditorias e sanções, e o cumprimento, por meio dos resultados e mecanismos de denúncia.

Além das orientações da OIT e dos princípios em questão, temos em nossa Constituição que todos são iguais perante a lei, sem Destacamos 2 dos 31 princípios aponta- distinção de qualquer natureza (art. 5º), que homens e mulheres são iguais em direitos e dos como base para mudança: obrigações, nos termos da Constituição (art. PRINCÍPIO 3 5º, I, da CF);licença à gestante, sem prejuízo Em cumprimento de sua obrigação de do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias (art. 7º XVIII), proteção do proteger, os Estados devem: mercado de trabalho da mulher, mediante inA. Fazer cumprir as leis que tenham por centivos específicos, nos termos da lei (art. objeto ou por efeito fazer as empresas respei12 JOHN RUGGIE. Empresas e Direitos Humanos. Parâmetros da ONU para proteger, respeitar e reparar. Disponível em https://www.conectas.org/publicacoes/download/empresas-e-direitos-humanos-parametros-da-onu. Acesso em 09/02/2020

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7º XX), proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil (art. 7º, XXX); Segundo a OIT, no estudo Mulheres no Trabalho, Tendências 2016: ... as políticas de ação positiva, incluindo a definição de metas, objetivos ou quotas, representam uma importante medida que pode ser aplicada pelos governos, sindicatos, organizações de empregadores e empresas para ajudar a corrigir a grave sub-representação das mulheres, bem como as suas preocupações na tomada de decisões nas empresas e nas sociedades13 Como já exposto, a CLT, em seu artigo 461, estabelece “Sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, na mesma localidade, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo, nacionalidade ou idade.”, ou seja, em nosso ordenamento, temos as garantias cravadas no ápice do nosso ordenamento jurídico, Constituição Federal, bem como na legislação infraconstitucional e demais disposições legislativas. Em 2017, o Pleno do STF, em repercussão geral no RE 658.312, reconheceu que o art. 384 da CLT foi recepcionado pela Constituição - dispõe sobre o intervalo de 15 minutos para trabalhadora mulher antes do serviço extraordinário. O empregador recorrente sustentava que a referida regra celetista afrontaria a isonomia entre homens e mulheres prevista na Constituição (arts. 5º, I, e 7º, XXX). O STF esclareceu que a própria Constituição

permite tratamento diferenciado para as situações expressas de tratamento desigual, a exemplo dos arts. 7º, XX; e 40, § 1º, III, a e b – trata-se de posição afirmativa do Poder Judiciário na busca por melhores condições. Em termos de legislação e políticas positivas, podemos citar como exemplo o fato de ser proibida a concessão ou a renovação de quaisquer empréstimos ou financiamentos pelo BNDES a empresas da iniciativa privada cujos dirigentes sejam condenados por assédio moral ou sexual, racismo, trabalho infantil, trabalho escravo ou crime contra o meio ambiente (art. 4º, Lei 11.948/09). As normas em questão não são recentes, mas estão em consonância com tais princípios e auxiliaram na redução das desigualdades, embora, por si sós não conseguem mudar por completa a sociedade, há necessidade de fiscalização e denúncias, podendo essas ser feitas para os Sindicatos, que têm o papel de representar as respectivas categorias, para o Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho, por meio de suas delegacias ou, individualmente,por meio de reclamações trabalhistas. O papel do Ministério Público do Trabalho ganha importância pelo poder de fiscalizar e, constatando irregularidades, implementar os Termos de Ajustamento de Conduta ou mesmo multas, forçando as empresas a realizarem as regularizações necessárias.

4.2. SETOR PÚBLICO X PRIVADO Direito e moral se confrontam no âmbito privado, visto que a diferença salarial não é aberta, mas existe e é representada pelos números expostos neste trabalho.A legislação prevê o pagamento de salário igual para todo trabalho de igual valor e tal ato poderia gerar multa e futura reclamação trabalhista para equiparação, assim, conscientizar os empre13

gadores também é objetivo do Estado para promoção da igualdade. No serviço público, no qual temos mulheres como maioria, os critérios para promoções e vencimentos não possuem característica pessoal, mas sim profissional, apesar de ainda existir muita diferença nos mais alto escalão, já que temos ali nomeações.

ONU MULHERES. Disponível em http://www.onumulheres.org.br/. Acesso em 09/02/2020

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Um dos bons exemplos é a evolução do quadro feminino na Polícia Militar do Estado de São Paulo, a Lei Complementar 892, de 31 de janeiro de 2001, estabelece os critérios para promoção dentro da corporação, os critérios são da antiguidade e mediante provas e concursos internos, em que as vagas são abertas, porém sem limitação por gênero, sendo que a exceção se dá apenas nas tropas de combate corpo a corpo, visto diferença fisiológica. Em termos salarias também não existe diferenciação. Por estar o Estado obrigado a divulgar seus dados, o pagamento fica condicionado à lei orçamentária e todos os vencimentos são expostos, visto que derivam das receitas públicas e tributos. Cumpre ressaltar que, devido ao princípio da legalidade estrita, a administração pública somente pode agir de acordo com os ditames legais, neste contexto, a obediência à legislação pátria leva a uma igualdade que ainda não é encontrada na esfera privada, o particular pode fazer o que a lei não proibir, porém a Constituição traz como princípio norteador da ordem econômica a função social da propriedade: Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - ... II - propriedade privada; III - função social da propriedade;

interdisciplinar. O diálogo interdisciplinar é fundamental para melhorarmos os resultados, Julia Melim Borges Eleutério explica: na medida em que

se admite um diálogo interdisciplinar entre os diversos campos do conhecimento, cuja integração seja assumida por operadores jurídicos com vieses transformadores, que podem (re) criar um novo Direito a partir da ação compromissada com uma (re) estruturação social que almeja a verdadeira justiça, somada à virtude da convivência humana, onde o “eu” passe a se preocupar com o “nós” e vice-versa, bem como passe a se espelhar no/a “outro/a”, posto que iguais conquanto hajam diferenças, o Direito, desta forma, contribuirá para o alcance da justiça social14 Ou seja, a atuação pontual do recurso humano e dos dirigentes na hora de criar processos justos e que levem em consideração todo o contexto social enfrentado, a necessidade de se quebrar essa visão patriarcal, essa visão de o monitor ser apenas homem. Na rede mundial de computadores, temos alguns bons exemplos de instituições que lograram êxito neste ponto, a preocupação com diversidade e equiparação de gêneros, a revista exame elencou as 15 melhores empresas neste quesito15, as quais destacamos a Sodexo, com 118.300 funcionários nos Estados Unidos “o comprometimento com a causa começa no topo da empresa – 25% dos bônus dos executivos e até 15% dos bônus dos gerentes estão associados a metas ligadas a diversidade.”, já a Kaiser Permanente, que conta com 172.979 funcionários nos Estados Unidos, possui outra política, “entre os 14 executivos que dirigem a empresa, são três negros, dois latinos, dois asiáticos e cinco mulheres”, a P&G, que conta com mais de 126.000 funcionários no mundo tem o programa “Flex@ Work” cujo principal objetivo é a integração entre a vida profissional e pessoal, A Johnson & Johnson, com quadro de 128.000 funcionários tem em sua política a preocupação de cobrar de todos os fornecedores e empresas terceirizadas têm de provar seus investimentos na promoção da diversidade.

De acordo com a função social da propriedade, bem como da aplicação dos direitos fundamentais pelas empresas, seja de forma voluntária ou através de políticas públicas, essas devem se empenhar para construção social, pensando na coletividade e não apenas no “eu”, assim, temos que não apenas leis deOutro caso que merece atenção é o puvem seguir de base, mas o já citado diálogo blicado pelo site seteco.com.br, em que, no artigo “Empresas adotam políticas para promover

14 ELEUTÉRIO, J. M. B 15 BARBARA LADEIA. As 15 melhores empresas em diversidade e inclusão. Disponível em http://exame.abril.com.br/negocios/as-15-melhores-empresas-em-diversidade-e-inclusao/. Acesso em 09/02/2020

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mulheres”16, temos a empresa Ypióca, fábrica de aguardente localizada em Fortaleza - Ceará, onde temos a trajetória de uma funcionária que começou como analista júnior e chegou ao cargo de coordenadora de relações corporativas, em que ela ressalta: “Para essa carreira, além

de seu esforço próprio, foi vital a existência de valores de igualdade de gênero, integrados aos demais ideais da companhia, por meio da prática de políticas de recursos humanos voltados a distribuição equilibrada de cargos entre homens e mulheres.”

João Senise, diretor de RH da gigante britânica Grupo Diageo – produtora das marcas Johnnie Walker, Smirnoff e da famosa cerveja Guinness e, no Brasil, da Ypióca, também fala sobre as medidas adotadas pela empresa: ...um dos diferenciais da companhia é ter sido a primeira a assinar, em 2015, o compromisso com a ONU Mulheres. “O objetivo é ocupar 50% dos cargos administrativos com mulheres até 2025. Hoje, elas respondem a cerca de 40% dos cargos de liderança na Diageo.”17

a taxa inicial é de 21,7% para homens e 20,3% para mulheres, devendo-se esse avanço aos “programas de incentivo ao empreendedorismo feminino, a exemplo do Programa 10.000 Mulheres da Goldman Sachs, oferecido no Brasil em parceria com a EAESP – FGV/SP, dentre outros, sendo estratégicos para promoção de condições favoráveis ao incremento do empreendedorismo feminino no país.”18. Aqui temos uma política de incentivo que deu certo e equilibrou os números, o que gerou mulheres no comando e que mantêm-se na luta pela igualdade, o que leva a um círculo virtuoso. Empresas possuem grande responsabilidade na busca por uma sociedade mais justa, suas políticas devem basear-se em práticas inclusivas e antidiscriminatórias, devem atentar aos direitos e garantias fundamentais, à quebra da imagem patriarcal e à possibilidade de crescimento das minorias, criando exemplos e mudando os números atuais.

Outra mudança que está ocorrendo e que diz respeitoà taxa de empreendedorismo, as mulheres estão em patamar igual aos homens na proporção inicial.Segundo o Sebrae, em 2015,

5. CONCLUSÃO A constante evolução social nos leva para a busca de uma sociedade mais justa e com possibilidade para todos, movimentos sociais como o feminismo lutam por direitos iguais, pelo cumprimento da lei, das orientações internacionais, sem privilégios, mas com a reparação de um passado sombrio. A figura feminina sempre foi vista como inferior à masculina, na revolução industrial, mão de obra preferida, visto sua fragilidade.A legislação passou por avanços, mas modificações lentas, a cultura machista se prologou ao

longo dos anos e essa sistemática reflete até hoje. Conforme exposto neste trabalho, mulheres são maioria em dois setores, no funcionalismo público, visto o ingresso se dá mediante concurso, e serviços domésticos.Nos demais setores, em que pese tenham mais estudo e maior quantidade populacional, são minoria, permanecendo percentual fica ainda mais gritante nos cargos de gerência, nos quais os exemplos são mínimos.Essa representação ainda é muito baixa e isso apresentareflexos

16 IBE Business Education. Empresas adotam políticas para promover mulheres (DCI). Disponível em https://www.ibe.edu. br/47525-2/. Acesso em 17/02/2020 17 IBE Business Education 18 MARIANO DE MATOS MACEDO E OUTROS. Empreendedorismo no Brasil 2015. Disponível em http://www.bibliotecas.sebrae.com.br/chronus/ARQUIVOS_CHRONUS/bds/bds.nsf/4826171de33895ae2aa12cafe998c0a5/$File/7347.pdf. Acesso em 09/02/2020

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na mudança de cenário. Para enfrentarmos essa questão, necessitamos de leis, políticas públicas e trabalhos interdisciplinares, a sociedade engajada na mudança e lutando pela efetiva aplicação da norma, de forma que aqueles que não implantem de forma voluntária, tenham alguma sanção. Entendo que tal prática não deve ser eterna, mas válida até alcançarmos níveis iguais de remuneração e oportunidade, são as políticas inclusivas que nos guiam pelo caminho da pacificação social. Os números demonstram que tivemos uma evolução, porém a realidade ainda é injusta, o salário da mulher ainda representa 70% (setenta por cento) do salário do homem.Há urgência de efetiva aplicação das leis, políticas públicas, atuação permanente dos órgãos nacionais e internacionais na mudança deste cenário, os meios de fiscalização ser intensificados, os mecanismos de denúncia também, uma vez que o mundo é outro, a independência feminina é uma conquista e precisamos das mulheres no poder.O empoderamento feminino é uma realidade, uma necessidade para o mundo, não podemos nos calar, mesmo num cenário político contrário, como o atual governo, afinal, a igualdade realmente se dácomo bem expôs o filósofo Aristóteles:“tratar os iguais de maneira igual e os desiguais na exata medida de sua desigualdade”.

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REFERÊNCIAS GUSTAVO VENTURINI E DANILO TORINI. Transição da escola para o mercado de trabalho de mulheres e homens jovens no Brasil. Disponível em http://www.ilo.org/wcmsp5/ groups/public/@dgreports/@dcomm/documents/publication/wcms_326892.pdf. Acesso em 09/02/2020 CÁSSIA ALMEIDA. Mulheres estão em apenas 37% dos cargos de chefia nas empresas. Disponível em http://oglobo.globo.com/economia/mulheres-estao-em-apenas-37-dos-cargos-de-chefia-nas-empresas-21013908. Acesso em 09/02/2020 IBE Business Education. Empresas adotam políticas para promover mulheres (DCI). Disponível em https://www.ibe.edu.br/47525-2/. Acesso em 17/02/2020 CAMILA MORSH. Equidade de gênero nas empresas: por uma economia mais inteligente e por direito. Disponível em http://www3.ethos.org.br/cedoc/equidade-de-genero-nas-empresas-por-uma-economia-mais-inteligente-e-por-direito/#.WQX3R0PR_IV. Acesso em 09/02/2020 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Mulheres no trabalho: Tendências 2016. Disponível em http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/---publ/ documents/publication/wcms_457096.pdf - Mulheres no trabalho. Tendências 2016. Acesso em 09/02/2020 BARBARA LADEIA. As 15 melhores empresas em diversidade e inclusão. Disponível em http:// exame.abril.com.br/negocios/as-15-melhores-empresas-em-diversidade-e-inclusao/. Acesso em 09/02/2020 JOHN RUGGIE. Empresas e Direitos Humanos. Parâmetros da ONU para proteger, respeitar e reparar. Disponível em https://www.conectas.org/publicacoes/download/empresas-e-direitos-humanos-parametros-da-onu. Acesso em 09/02/2020 MARIANO DE MATOS MACEDO E OUTROS. Empreendedorismo no Brasil 2015. Disponível em http://www.bibliotecas.sebrae.com.br/chronus/ARQUIVOS_CHRONUS/bds/bds.nsf/ 4826171de33895ae2aa12cafe998c0a5/$File/7347.pdf. Acesso em 09/02/2020 ELEUTÉRIO, J. M. B, (DES) IGUALDADE DE GÊNERO NAS RELAÇÕES DO TRABALHO. Por um novo paradigma relacional a partir da desconstrução da cultura machista. Florianópolis SC: Empório do Direito, 2017. ADICHIE, C.N., SEJAMOS TODOS FEMINISTAS. São Paulo: Editora Schwarcz S.A., 2014. MARTINS, S. P. Direito do Trabalho. 25ª ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2009. SARLET, I. W. A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. Uma teoria geral dos Direitos Fundamentais na perspectiva constitucional. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora., 2011

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NATÁLIA FONTOURA e CLAUDIA PEDROSA. PNAD 2009 - PRIMEIRAS ANÁLISES: Investigando a chefia feminina de família. Disponível em http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/5286/1/Comunicados_n65_PNAD2009.pdf. Acesso em 09/02/2020 GABRIEL ULYSSCA e ANA LUIZA NEVES DE HOLANDA BARBOSA. COMUNICADO 160 Um retrato de duas décadas do mercado de trabalho brasileiro usando a PNAD. Disponível em www.ipea.gov.br/portal/index.php%3Foption%3Dcom_content%26view%3Darticle%26id%3D20065+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br. Acesso em 09/02/2020 NATALIA FONTOURA, ROBERTO GONZALEZ E MARCELO GALIZA. COMUNICADO 40 Mulheres e trabalho: Avanços e continuidades. Disponível em http://repositorio.ipea.gov.br/ bitstream/11058/5318/1/Comunicados_n40_Mulher.pdf. Acesso em 09/02/2020 POLICIA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO. Disponível em http://www.policiamilitar.sp. gov.br/. Acesso em 09/02/2020 LEGISLAÇÃO NACIONAL. Disponível em http://www2.planalto.gov.br/. Acesso em 01/03/2017 NAÇÕES UNIDAS. Disponível em https://nacoesunidas.org/. Acesso em 09/02/2020 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Disponível em https://www.ilo.org/brasilia/conheca-a-oit/oit-no-brasil/lang--pt/index.htm Acesso em 09/02/2020 ONU MULHERES. Disponível em http://www.onumulheres.org.br/. Acesso em 09/02/2020

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EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS DA MULHER

Beatriz Francisca Rahal Lenharo, Graduada em Letras pela Instituição Toledo de Ensino, e Bacharel em Direito pela Faculdade Marechal Rondon – FMR, Supervisora Geral Aposentada do Banco do Brasil. email: beafrancesca1952@gmail.com

Orientadora: Iriana Maira Munhoz, Advogada, Coordenadora do Curso de Direito da FMR, Professora de Direito Civil dos Cursos de Direito da FMR e UNIESP e de Pós-Graduação na área de Direito de Família, Doutoranda da Universidade de Buenos Aires. email: irianamunhoz@hotmail.com

“O empoderamento feminino não significa apenas a devolução de todos os nãos que recebemos a vida inteira. NÃO do Estado! NÃO da Igreja! Ele passa pela universalização do SIM e da certeza de que devemos ter o poder de escolher os nossos próprios destinos. E só assim, as Marias poderão, como na música de Milton, viver e amar como outra qualquer do planeta...” FELIPE, Maria Dione de Araújo. Oito mulheres que fizeram a diferença na advocacia e na sociedade. (OAB-DF. Disponível em: <http://www.oabdf.org.br/sem-categoria/oito-mulheres-que-fizeram-a-diferenca-na-advocacia-e-na-sociedade/>. Acesso em: 14 out. 2019)

SUMÁRIO Introdução 1 Breve Relato Das Conquistas Femininas 1.1 Evolução Dos Direitos Da Mulher No Mundo 2. Legislação Brasileira Sobre Os Direitos Da Mulher 2.1 Princípios Constitucionais Da Proteção Aos Direitos Da Mulher 3 Análise Das Diferenças A Serem Superadas Pelas Mulheres 3.1 Diferenças Salariais 3.2 Representatividade Política 3.3 Da Violência Contra A Mulher Conclusão Referências Bibliograficas

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RESUMO O presente trabalho discute criticamente a evolução histórica dos direitos da mulher, passando pela forma como a mulher era vista desde a pré-história até os dias atuais, com foco nas leis que os asseguram. Para tanto, são elencadas a situação de subserviência da mulher nos primórdios da civilização ocidental e a gradual conquista de seus direitos. São catalogados também os principais avanços das leis garantidoras da igualdade de direitos às mulheres na legislação brasileira. Apontamos as lacunas dos direitos a serem assegurados às mulheres, como a representatividade política, a equivalência salarial entre homens e mulheres, a extinção da violência contra a mulher – que a cada dia faz novas vítimas –, e a efetividade das leis que preconizam esses direitos.

PALAVRAS-CHAVE Direitos das Mulheres; igualdade; legislação.

ABSTRACT

This paper critically discusses the evolution of the rights of women, going through the way women were portrayed from pre-history to the present day, focusing on the laws that ensure them. For that matter, we have detailed the subservient situation of women in early times and the gradual evolution of their rights. We have listed the main advances in laws that guarantee equal rights to women in Brazilian legislation. We stablished what there is still to accomplish so that the rights of women are fully guaranteed to women, which means political representation, end of gender income gap, extinction of violence against women – that makes new victims every day – and effectiveness of the laws that ensure those rights.

KEYWORDS Women’s rights; gender equality; legislation.

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INTRODUÇÃO Este trabalho versa sobre as principais conquistas femininas tanto no ramo do direito quanto no aspecto da evolução da condição humana durante toda a sua existência com base nos registros existentes da cultura ocidental. Percebe-se ao longo da história o quanto lhe foi roubado em relação à sua própria liberdade, o quanto lhe foi diminuído pelo credo em sua falta de capacidade de realização e, principalmente em razão da ausência de oportunidades iguais, para a manutenção do modelo patriarcal vigente e da própria pequenez do ser humano. Buscou-se demonstrar, por meio de uma avaliação histórica, o que foi até aqui alcançado, suas motivações, o estágio atual das conquistas femininas, e, principalmente, em que nível de desenvolvimento se precisa chegar para atingir o óbvio, que nada mais é que a igualdade, igualdade esta que reconheça as diferenças, e diferenças estas que não produ-

zam ou reproduzam desigualdades. Para tal, o presente trabalho baseia-se na discussão das leis que garantem o tratamento igualitário entre homens e mulheres e a efetiva aplicação desses mandamentos no ordenamento pátrio. Há que enfatizar que o próprio desenvolvimento do trabalho ora apresentado, assim como outros tantos marcos – a exemplo da determinação do ano internacional da mulher em 1975, ou do dia internacional da mulher em 8 de março –, é nada mais nada menos que demonstração cabal das diferenças até hoje existentes. Caso contrário, não haveria necessidade de existir dia ou ano dedicados às mulheres ou, ainda, leis que estabeleçam a representatividade política das mulheres, e até mesmo uma monografia para a conclusão do curso de direito.

1 BREVE RELATO DAS CONQUISTAS FEMININAS O feminino na história, desde os primórdios da civilização, refletiu a visão do homem sobre a mulher. Desse modo, a mulher foi colocada em situação de inferioridade em relação ao homem. Assim, a misoginia caracteriza-se como o maior preconceito que existe na história da humanidade.

sentação da visão da época, a mulher foi retratada como “coisa”, ao lado de vacas, cabras, etc. De Willendorf (Vênus de Willendorf, obra do final do período paleolítico) até Lucian Freud (pintor nascido na Alemanha e naturalizado britânico em 1939, que introduziu a realidade feminina), a mulher era vista por suas características de fertilidade, exclusivamente como corpo.

“A misoginia, segundo Allan G. Johnson, é um aspecto central do preconceito sexista e ideológico e, como tal, é uma base importante para a opressão de mulheres em sociedades dominadas pelo homem.”1

A cultura e o preconceito inverteram a biologia, uma vez que as mulheres vivem mais do que os homens e comumente são responsáveis por maiores afazeres (como a dupla jornada); entretanto, tal preconceito sobreviveu até Lucian “Ela funciona como uma ideologia ou sis- Freud e quiçá sobreviva até hoje em muitos paítema de crença que tem acompanhado o patriar- ses. cado ou sociedades dominadas pelo homem por Assim, a mulher foi vítima de preconceito milhares de anos e continua colocando mulheres durante toda a história. Entretanto, houve evoluem posições subordinadas com acesso limitado ção de seus direitos, e esta é a temática do preao poder e a tomada de decisões.”2 sente trabalho – o que já foi feito e o que ainda Até mesmo na Bíblia, que é uma repre- resta por fazer. As disposições legais que garan-

1 JOHNSON, Allan G. The Blackwell dictionary of sociology: a user’ guide to sociological language. 2. ed. Massachusetts: Blackwell, 2000. p.197. 2 FLOOD, Michael et al. International Encyclopedia of men and masculinities. Londres: Routledge, 2007.

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tem tratamento igualitário às mulheres e sua real no. O homem era educado para exercer funaplicabilidade. ções de chefia, enquanto a mulher era educa-

A mulher, desde os primórdios da civilização, foi tratada diferentemente do homem. Principalmente quanto à educação permitida para a mulher, a qual demonstrava flagrante desrespeito aos seus direitos como ser huma-

da para obedecer e servir o homem. Quando solteira, devia obediência ao pai e, após o casamento, passava a dever obediência ao marido.

1.1 EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER NO MUNDO As mulheres não tinham como pensar em igualdade de direitos, uma vez que não lhes era disponibilizado qualquer estudo além de trabalhos manuais e domésticos. As escolas que podiam frequentar eram escolas administradas pela Igreja.

O começo da busca ao direito ao voto para as mulheres foi em 1792, quando Mary Wollstonecraft escreve o livro “A Vindication of the Rights of Woman”, em que defende a educação para meninas.

Com a Constituição Federal de 1824, no Brasil, surgiram escolas para a educação da mu Quando a Corte portuguesa veio para o lher, mas estas não podiam frequentar as mesBrasil, foram abertas algumas escolas para as mulheres, mas o ensino continuou limitado a mas escolas dos homens. O ensino dado aos homens era superior, e o das mulheres equivalia trabalhos manuais. à instrução primária.

A busca pela igualdade de direitos entre No Brasil, em 1827, surge a primeira lei homens e mulheres percorreu um longo cami- sobre educação das mulheres, permitindo a frenho até os dias atuais. Para melhor compreen- quência às escolas elementares, não sendo persão apresenta-se de forma didática, na ordem mitido o acesso ao ensino superior. cronológica, a evolução dos direitos das mu Nísia Floresta, brasileira, vista como a lheres: Entre 1364 e 1429 Cristine de Pisan se opôs às imposições da Igreja, que impunham a subordinação das mulheres, e defendeu a igualdade entre homens e mulheres e a educação similar para todos. Cristine foi uma poetisa e filósofa de procedência italiana, mas que viveu na França. Cristine ficou conhecida por seu embate com Jean de Meung (escritor de Roman de La Rose – Romance da Rosa, que representava as mulheres como nada mais do que sedutoras) e por seu ferrenho combate à misoginia. Na França, em 1791, Marie Gouze (Olympe de Gouges), uma defensora dos direitos da mulher, através de suas peças teatrais, colocava em evidência os direitos das mulheres. Através do texto “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã” (Adendo), divulgado em 1791, incitava as mulheres a defenderem seus direitos. Por incitar as mulheres a agir, Marie Gouze foi guilhotinada em 1897.

primeira feminista brasileira, escreve em 1832, o livro “Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens”, usando o texto de Mary Wollstonecraft adaptado à realidade brasileira. Nísia Floresta foi o pseudônimo adotado por Dionísia Gonçalves Pinto, nascida em 12 de outubro de 1810 na cidade de Papari – cidade que teve seu nome posteriormente alterado para Nísia Floresta, situada na capitania de Paraíba, Rio Grande do Norte. Na obra “Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens”, Nísia não se limita a traduzir o livro de Mary Wollstonecraft, mas vai além, adaptando-o culturalmente, denunciando a posição de inferioridade das mulheres nessa época e todos os preconceitos que as cercavam. Em 1841, Nísia publica o seu segundo livro, “Conselhos à minha filha”. Apesar de não deixar de lado a igualdade de gênero, suas obras passam a destacar mais a educação. Em 1853, publicou o livro “Opúsculo humanitário”, obra que critica as instituições de ensino da época, principalmente sobre a educação feminina.

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Por essa obra e pelos artigos publicados les Babbage, ou seja, criou o primeiro algoritmo em jornais a partir de 1830, no Recife, é conside- de programação. rada pioneira do movimento feminista brasileiro. Somente em 1982 foi reconhecida sua im Em 1838, Nísia funda, no Rio de Janeiro, portante contribuição, quando uma linguagem de o Colégio Augusto, voltado à educação femini- programação ganhou o nome “Ada”, em homena, que não só disponibilizava o tradicional en- nagem a essa notável personagem. sino feminino da época, mas também ensinava Continuando a trajetória histórica, as mulínguas, ciências, história, geografia, educação lheres puderam votar somente em 1932, e apefísica, artes e literatura. A proposta pedagógica de Nísia era de uma educação para as mulhe- nas aquelas autorizadas pelos maridos, viúvas res nos mesmos moldes da educação masculina, ou solteiras. O movimento feminista brasileiro gacomo os utilizados no Colégio Pedro II, para os nhou força com as ações de Bertha Lutz, bióloga que criou a Federação Brasileira pelo Progresso meninos. Feminino (FBPF) e que além de afirmar que não O dia 8 de março, atualmente considerado deveria haver distinção de gênero, debatia sobre o Dia Internacional da Mulher, expõe uma face a obrigatoriedade do voto. cruel da luta das mulheres, pois nessa data, em Bertha Maria Julia Lutz foi uma das pre1857, numa fábrica têxtil 129 mulheres morreram cursoras da luta pelos direitos políticos das muqueimadas em confronto com a polícia, porque reivindicavam redução de jornada de trabalho de lheres brasileiras e pela igualdade de gênero. 14 horas para 10 horas e direito à licença-mater Nascida em São Paulo, filha do especianidade. lista em medicina tropical Adolfo Lutz e de Amy Clara Zetkin (1857-1933), alemã, mem- Fowler, enfermeira, Bertha foi educada na Eurobro do Partido Comunista Alemão, deputada em pa, estudou na Universidade de Paris, formando1920, militava junto ao movimento operário e se -se na Sorbonne em biologia. Nessa época famidedicava à conscientização feminina. Fundou liarizou-se com a campanha sufragista inglesa.

e dirigiu a revista Igualdade, que existiu por 16 Após voltar ao Brasil, em 1918 prestou anos (1891-1907). concurso público na área de biologia do Museu Líderes do movimento comunista como Nacional, e tornou-se a segunda mulher a inClara Zetkin e Alexandra Kollantai, ou anarquis- gressar no serviço público brasileiro. Dedicou-se tas como Emma Goldman lutavam pelos direitos à luta pelo voto feminino e criou, em 1919, a Liga das mulheres trabalhadoras, mas o direito ao para a Emancipação Intelectual da Mulher, que voto as dividia: Emma Goldman afirmava que o foi o ponto de partida para a criação da Federadireito ao voto não alteraria a condição feminina ção Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF). se a mulher não modificasse sua própria consci“Em 1922, Bertha representou as brasiência. leiras na Assembleia-Geral da Liga das Mu Ao participar do II Congresso Internacio- lheres Eleitoras, nos Estados Unidos, sendo nal de Mulheres Socialistas, em Copenhagen, eleita vice-presidente da Sociedade Pan-Aem 1910, Clara Zetkin propôs a criação de um mericana. Somente depois do ingresso das Dia Internacional da Mulher sem definir data pre- brasileiras na Liga das Mulheres Eleitoras, cisa. Contudo, vê-se erroneamente afirmado no em 1932, por decreto-lei do presidente GeBrasil e em alguns países da América Latina que túlio Vargas, foi estabelecido o direito de voto Clara teria proposto o dia 8 de março para lem- feminino.”4 brar operárias mortas num incêndio em Nova Ior Na Organização Internacional do Traque em 1857.3

balho (OIT), promoveu debates sobre a pro-

Augusta Ada King, também conhecida como Ada Lovelace, é considerada a primei- teção do trabalho da mulher. Fundou ainda a ra programadora da História, por ter criado, em União Universitária Feminina, a Liga Eleitoral 1842 notas a respeito de uma máquina de Char- Independente, em 1932, e, no ano seguinte,

a União Profissional Feminina e a União das

3 Op. cit. BLAY, Eva Alterman, 2001. 4 SENADO NOTÍCIAS. Bertha Lutz. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/entenda-o-assunto/bertha-lutz>. Acesso em: 17 ago.2019.

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Funcionárias Públicas.

cano, o Decreto nº 181, de 24 de janeiro de 1890, manteve o regime patriarcal, mas reti Bertha foi candidata em 1933 a uma rou do marido o direito de impor castigos corvaga na Assembleia Nacional Constituinte de porais à mulher e aos filhos. 1934, pelo partido Autonomista do Distrito Federal. Apesar de não ter conseguido se Em 1893 foi dado o direito de voto para eleger, Bertha obteve a primeira suplência no mulheres na Nova Zelândia. pleito seguinte, e assim assumiu o mandato Em 1961, tivemos a conquista da pílula de deputada na Câmara Federal em julho de anticoncepcional. Margaret Sanger, juntamen1936, devido à vacância surgida com a morte te com Gregory Pincus, John Rock e Katharine de Cândido Pessoa. McCormick, foi responsável pela descoberta Os marcos de sua atuação como depu- da pílula anticoncepcional, que passou a ser tada foram a proposta de mudança na legis- disponibilizada a partir de 1957. Acreditava lação referente ao trabalho da mulher e do que as mulheres só seriam livres se pudessem menor. Lutou também pela igualdade salarial ter controle sobre seu próprio corpo. entre homens e mulheres, pela licença de três Na Argentina, com a morte de Juan Domeses para a gestante e a redução da jornada mingo Perón, Isabellita Perón tornou-se a pride trabalho, então de 13 horas diárias. meira mulher presidente em 1974. Entretan Após o fechamento das casas legislati- to, enfrentando diversas crises, Isabellita foi vas estabelecido pelo regime do Estado Novo, deposta em 1976. implantado em 1937, Bertha passou a ocu A dissolução do casamento só foi pospar importantes cargos públicos, tais como a sível a partir de 1977. Antes, havia o desquite, chefia do setor de Botânica do Museu Nacioque mantinha o vínculo entre os cônjuges. Sonal. Aposentou-se em 1964. No ano de 1975, mente a partir de 1977, a Lei do divórcio per“Ano Internacional da Mulher” estabelecido mitiu que as pessoas pudessem se casar mais pela ONU, Bertha fez parte da delegação brade uma vez. sileira no primeiro Congresso Internacional da Mulher, realizado na capital do México. O Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (Cedim/RJ) foi criado em 1987, a fim Myrthes Gomes de Campos, nascida de elaborar políticas públicas buscando a em 1875 no município de Macaé (RJ), tornouigualdade de oportunidades para homens e -se a primeira mulher a exercer a advocacia mulheres. Sua credibilidade fez que outros esno Brasil. Formou-se em 1898, mas somente tados criassem seus próprios conselhos, instiem 1906 ingressou no Instituto da Ordem dos tuindo depois a Superintendência de Direitos Advogados do Brasil, já pressuposto para o da Mulher, em 2007, e posteriormente, a Subexercício da profissão. Em 1899 atuou como secretaria de Políticas para as Mulheres. defensora no Tribunal do Júri e, ganhando, deixou registrada a importância da atuação da Em 2006 foi promulgada a Lei Maria mulher. da Penha, a qual se apresenta como uma das grandes conquistas no enfrentamento da vio O reconhecimento da importância de lência contra a mulher. Maria da Penha Maia Myrthes foi estabelecido em março de 2016, Fernandes, farmacêutica do Ceará, foi brutalquando a Seccional da OAB do Distrito Fedemente agredida por seu marido, o que acabou ral estabeleceu a medalha Myrthes Gomes de tornando-a paraplégica. Desde então, Maria Campos, visando prestigiar o exercício da Adda Penha lutou para levar seu ofensor à Justivocacia pelas mulheres. ça. Em 1879 foi dada autorização às mu A Lei Maria da Penha só foi efetivada lheres para frequentarem instituições de ensimediante interferência da ONU e, segundo no superior no Brasil. essa Organização, trata-se de uma das melho Com a implantação do regime republi- res do mundo. A citada lei será tratada em ca107


pítulo próprio.

governo da Presidenta Dilma Roussef. O código penal foi alterado qualificando o homicídio A Lei do feminicídio, que passa a concontra a mulher e no ambiente familiar, agrasiderar hediondo o assassinato mulheres em vando as penas para esses casos. função da discriminação de gênero e de violência doméstica, foi aprovada em 2015, no

2. LEGISLAÇÃO BRASILEIRA SOBRE OS DIREITOS DA MULHER A Constituição Política do Império do Brasil, nossa primeira Constituição, outorgada em 25 de março de 1824, foi a que mais tempo durou – 65 anos. Ela dispôs sobre o princípio da igualdade em seu artigo 178, XII, que previa: “A lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue e recompensará em proporção dos merecimentos de cada um”. Entretanto, essa Constituição considerava cidadão somente o do sexo masculino, excluindo as mulheres. Também não concedia o direito de cidadania à mulher – o direito de votar e ser votada. A Assembleia Constituinte foi eleita em 1890, e a primeira Constituição da República do Brasil foi promulgada em 24 de fevereiro de 1891. Em seu artigo 72, § 2º, declarava: todos são iguais perante a lei. A República não admite privilégios de nascimento, desconhece foros de nobreza e extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas prerrogativas e regalias, bem como os títulos nobiliárquicos e de conselho. Nessa nova Constituição, o direito ao voto também era proibido às mulheres. As alterações advindas com o Código Civil de 1916 não representaram avanços para a concretização dos direitos da mulher. Foi um Código que praticamente já nasceu velho, pois vinha sendo idealizado desde 1899.

conforme seu artigo 186, havendo discordância entre os pais, prevalecia a vontade paterna. Assim, a mulher casada perdia a sua plena capacidade, precisando da autorização do marido para trabalhar, equiparando-a à índios, pródigos e menores. O artigo 380 do referido Código só permitia o exercício do pátrio poder pela mulher na falta ou impedimento do marido. No artigo 385, a administração dos bens do filho cabia ao pai. Só na falta do pai, cabia à mãe a incumbência. O artigo 242 do Código Civil de 1916 ainda estabelecia que a mulher não podia, sem o consentimento do marido, alienar ou gravar de ônus reais os imóveis de seu domínio particular, alienar os seus direitos reais sobre imóveis de outrem, aceitar ou repudiar herança ou legado, aceitar tutela ou curatela, exercer profissão, contrair obrigações e aceitar mandato. Conforme texto de Maria Berenice Dias: “O Código Civil de 1916 era uma codificação do século XIX, pois foi no ano de 1899 que Clovis Bevilacqua recebeu o encargo de elaborá-lo. Retratava a sociedade da época, marcadamente conservadora e patriarcal. Por isso, a mulher ao casar perdia sua plena capacidade, tornando-se relativamente capaz, como os índios, os pródigos e os menores. Para trabalhar precisava da autorização do marido.”5

Em 1899, Clóvis Beviláqua foi incumbido de idealizar o Código Civil de 1916. Este consagrava a superioridade masculina, pois retratava a sociedade da época. Manteve o A redação inicial do artigo 233 do Código homem como chefe da família e limitou a mu- Civil de 1916 revelava a flagrante desigualdalher à emancipação que poderia ser concedida de existente entre homem e mulher, quando pela mãe apenas no caso de morte do pai, e, atribuía ao marido a chefia da sociedade con5 DIAS, Maria Berenice. A mulher no Código Civil: Como era, como é e como deveria ser. Disponível em: <www.mbdias. com.br>. Acesso em: 26 ago. 2019.

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jugal, o dever de mantença da família, a representação legal da família, a administração dos bens comuns e particulares da mulher, o direito de fixar e mudar o domicílio da família, o direito de autorizar ou não a profissão da mulher e a sua residência fora do teto conjugal.

Mulher Casada (Lei 4121/62), a mulher deixou de ser considerada civilmente incapaz.

Por suas determinações, a Lei 4121/62 autorizou o trabalho da mulher fora de casa e também o direito à herança, além de permitir que a mulher tivesse a guarda dos filhos em Esta lista de atribuições do marido frente caso de separação. à sociedade conjugal revelava o exclusivo poCom essa lei, houve vários avanços, tais der do homem e, combinada com os artigos como a manutenção do pátrio poder à mulher 240 e 247 do mesmo diploma legal, deixava quando contraísse novas núpcias e a alteração clara a situação do homem como provedor e do artigo 380 do Código Civil de 1916, que da mulher como mero auxiliar nos encargos passou a conceder o exercício do pátrio poder familiares, nitidamente limitada na esfera da a ambos os pais, podendo a mãe recorrer ao atuação jurídica que não podia exercer sem a Judiciário para solução de litígios. autorização marital. Ainda graças ao Estatuto da Mulher CaO Código Eleitoral de 1932, primeiro Cósada, a mulher foi guindada a colaboradora na digo Eleitoral do país, criado no governo de administração da sociedade conjugal. Deixou Getúlio Vargas estabeleceu a competência da de ser necessária a autorização do marido Justiça Eleitoral. Em maio de 1932 o Tribunal para que a mulher pudesse trabalhar, além de Superior Eleitoral (TSE) estabeleceu-se no Rio instituir os bens reservados. de Janeiro, na época capital do Brasil. Trouxe importantes aperfeiçoamentos ao processo. A Constituição de 1967, período da diInstituiu o voto feminino e retirou do Poder tadura militar no Brasil, prescrevia, em seu arLegislativo o controle sobre seu próprio pro- tigo 153, que “todos são iguais perante a lei, cesso de eleição. sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas”. Será punido O texto de nossa Constituição de 1934 pela lei o preconceito de raça. Os mesmos sofreu forte influência da Constituição de ditames foram mantidos pela Emenda ConsWeimar, de 1919, da Alemanha, e estipulou titucional nº 1, de 1969. Entretanto, estabeum estado social de direito que trazia em seu leceu tratamento diferenciado à mulher para bojo, no artigo 113, § 1º, que “Todos são iguais a aposentadoria, estabelecendo 30 anos para perante a lei. Não haverá privilégios nem disa aposentadoria das mulheres, contra 35 anos tinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, dos homens. profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou ideias políticas”. Por fim, nossa Constituição-cidadã, de 1988, em seu artigo 5º, estabelece que: A Constituição de 1934, além de estabelecer a isonomia, ainda determinou a proi“todos são iguais perante lei, sem distinbição de salários desigualados em virtude do ção de qualquer natureza, garantindo-se aos sexo para uma mesma função. Estabeleceu brasileiros e aos estrangeiros residentes no também a proteção à maternidade e assegu- País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberrou assistência médica à gestante, sem preju- dade, à igualdade, à segurança e a propriedaízo do salário. de, nos termos seguintes: A Constituição de 1937, com forte inI - Homens e mulheres são iguais em difluência da Constituição polonesa fascista de reitos e obrigações, nos termos desta Consti1935, denominada de “Polaca”, manteve em tuição;” seu artigo 122 § 1º, que “todos são iguais pe Na época da discussão na Assembleia rante a lei”, expressão também mantida pela Constituição de 1946, em seu artigo 141, § 1º. Nacional Constituinte as mulheres mobilizaram-se para garantir a igualdade de direitos Em 1962, com a edição do Estatuto da há muito omitidos. O texto mostra, de ma109


neira irrefutável, a luta das mulheres a partir da redemocratização do país para superação das desigualdades existentes no tratamento jurídico da mulher, pois apesar da letra da lei de 1934, em nada se avançou, com o passar dos anos, para atingir um simulacro de igualdade de gênero. Somente com a Constituição de 1988, e devido à ferrenha luta das mulheres, a igualdade de tratamento de homens e mulheres restou definitivamente posta no

ordenamento jurídico brasileiro. Essa Constituição, além da igualdade prevista no artigo 5º, estabelece a igualdade na gerência da entidade familiar (artigo 226, § 5º) e, no § 8º do mesmo artigo, a defesa de cada um dos seus membros, coibindo a violência no âmbito de suas relações. Estabelece ainda, no artigo 7º, a proibição de discriminação da mulher nas relações trabalhistas.

2.1 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA PROTEÇÃO AOS DIREITOS DA MULHER Para que tais mandamentos constitucionais se tornem uma realidade social efetiva, entretanto – e esta é a ideia central deste trabalho –, é imprescindível que a sociedade se empenhe na concretização dessas normas, e conforme dispõe Konrad Hesse:

tos e obrigações entre homem e mulher, nas relações conjugais e de união estável, acompanhou a evolução do princípio da igualdade no âmbito dos direitos fundamentais, incorporados às Constituições dos Estados democráticos contemporâneos.”7

“A constituição pode dar “forma e mudança” à realidade a que se dirige. Pode passar a atuar como força que age na natureza das coisas. Pode ainda, ela mesma converter-se na força atuante que opera na realidade social e política, condicionando-a. Esta força poderá impor-se tanto melhor, frente a eventuais resistências, quanto mais assentada se encontre na consciência geral a ideia de inviolabilidade da Constituição, quanto mais viva se encontre, sobretudo, na consciência dos responsáveis pela vida constitucional.”6

A igualdade buscada pela mulher e apregoada pela Constituição vigente somente veio a se estabilizar com pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal quanto à revogação de toda e qualquer norma infraconstitucional diferenciadora, anterior à Constituição, quando incompatíveis com a Magna Carta.

Como citado anteriormente, a mulher só deixou de ser considerada civilmente incapaz em 1962, com a edição do Estatuto da Mulher Casada; entretanto, somente com a Constituição de 1988 os direitos foram igualados entre homens e mulheres. Conforme os dizeres de Paulo Luiz Neto Lobo: “A materialização da igualdade de direi-

No art. 5º, caput, a Constituição Federal de 1988 demonstra extrema preocupação com o princípio da isonomia, ao enunciá-lo ao lado do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade como direitos invioláveis. A isonomia jurídica está presente em todas as Constituições Brasileiras desde a de 1934, porém, como ressalva Florisa Verucci, no que diz respeito ao direito da mulher, “nunca exerceu a necessária influência sobre sua emancipação ou sobre os impedimentos à discriminação”. Por isso, o item I, do art. 5º determina: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações nos termos desta Constituição”, e reforça esse princípio no item XLI do mesmo artigo: a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”.8

6 HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional. Trad. Pedro Cruz Villalon. 2. ed. Madrid: Centro de Estudos, 1992. p.70. 7 LOBO, Paulo Luiz Netto. Igualdade conjugal – direitos e deveres. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 31. 1999. p.135-147. 8 VERUCCI, Florisa. Mulher e família na nova Constituição Brasileira. p.63.

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o ser humano desde o seu nascimento, pois decorre de sua própria natureza. A segunda geração de direitos humanos consagra o direito à igualdade, que cobra uma atitude ativa distinção, exclusão ou restrição baseada no do Estado em prol de quem não desfruta de sexo e que tenha por objeto ou resultado pre- iguais direitos.” 11 judicar ou anular o reconhecimento, gozo, O respeito à dignidade da pessoa humaexercício pela mulher, independentemente na é condição para o atingimento da felicidade, de seu estado civil, com base na igualdade objetivo final do ser humano. Como bem se posido homem e da mulher, dos direitos humanos ciona Immanuel Kant, “[...] toda pessoa humana e das liberdades fundamentais nos campos é digna, e essa característica é inerente à condipolítico, econômico, social, cultural e civil ou ção do ser humano, por isso, para se ter dignidaem qualquer outro campo.”9 de basta ser humano.”12 De acordo com a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, aprovada em 1979 pela Organização das Nações Unidas (ONU), significa: “toda

No artigo 1º da Constituição da República A interpretação dada sobre o sistema de Federativa do Brasil, fica estabelecida “a digni- direitos fundamentais consagrados pela Constidade da pessoa humana” como fundamento do tuição seria a de uma “ordem de valores”, que Estado Democrático de Direito. deve espraiar seus efeitos sobre todas as nor A Constituição Federal de 1988 positivou mas constitucionais e sobre todo o ordenamento a dignidade da pessoa humana como fundamen- jurídico, uma vez que representam conceitos unito da República Federativa do Brasil, portanto, versais de Justiça. trata-se de cuidar do bem-estar das pessoas.

A realização total do indivíduo como ser humano exige que todas as condições de dignidade da pessoa humana sejam respeitadas.

A Constituição de 1988 positivou a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil. Nesse diapasão, Bobbio preleciona: “mas sim, qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados?”.13

A Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que “a dignidade é inerente a toda pessoa humana, titular de direitos iguais e inalie Levando-se em consideração os preceitos náveis, cuja única e exclusiva aptidão é a condide igualdade estabelecidos de forma tão contunção de ser “pessoa” para a titularidade de direidente pela Constituição da República Federativa tos”.10 do Brasil de 1988, surpreende-se que ainda per A discriminação da mulher baseia-se no sistam ideologias patriarcais. O homem é valosistema patriarcal, segundo o qual a mulher, no rizado por sua força física e a mulher por suas ambiente familiar, encontra-se em relação de in- prendas domésticas, ainda que hoje, os direitos ferioridade perante o homem. O princípio funda- das mulheres sejam “parte inalienável, integral e mental da tutela de proteção à mulher envolve indivisível dos direitos humanos universais”.14 o princípio da dignidade da pessoa humana e se justifica por ainda existirem preconceitos da cultura patriarcal. Quando se refere à posição da mulher, estão envolvidos os princípios fundamentais da liberdade, da igualdade e do respeito à dignidade da pessoa humana: “... o primeiro é

o direito de liberdade. Trata-se de um direito do indivíduo, direito natural que acompanha

9 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 4. ed. São Paulo: Max Limonad, 2002. p.188. 10 PIOVESAN, Flavia. Op. cit. p. 307. 11 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 2. ed.São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 40. 12 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964. p. 28. 13 BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. São Paulo: Editora Campus, 2004. p.30. 14 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max Limonad. 2002. p. 190.

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3 ANÁLISE DAS DIFERENÇAS A SEREM SUPERADAS PELAS MULHERES Há que se considerar também que, apesar da emancipação feminina, a mulher ainda é extremamente vulnerável na realidade social: no mercado de trabalho, pela desigualdade salarial e pela estigmatização da mulher pela possibili-

dade de gravidez; na desigualdade da representação política da mulher em todas as esferas de poder e, muito mais preocupante e gravoso, na violência doméstica contra a mulher que continua, dia a dia, a produzir mais vítimas.

3.1 DIFERENÇAS SALARIAIS Segundo a Agência de notícias do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres trabalham três horas a mais que os homens. Apesar de possuir escolaridade mais elevada, obtém como resultado de seu trabalho, aproximadamente 76,5% dos valores da remuneração dos homens. Ainda segundo o IBGE, são várias as causas dessas diferenças salariais entre homens e mulheres. Normalmente as mulheres ocupam seu tempo com cuidados domésticos e com o encargo de seus familiares. Em tais circunstâncias, eventualmente, preferem jornadas de trabalho em tempo parcial e, apesar disso, sua jornada de trabalho é de 54,4 horas semanais contra 51,4 dos homens. Além desses limites impostos às mulheres, existe, segundo o IBGE, o chamado “glass ceiling”, usualmente traduzido como “teto de vidro”, que significa um ponto segundo o qual as mulheres não conseguem ir mais além em muitas profissões. Isso significa que a mulher “tem a

escolarização necessária ao exercício da função, consegue enxergar até onde poderia ir na carreira, mas se depara com uma barreira invisível que a impede de alcançar o seu potencial máximo” das mesmas funções. Assim, uma das diferenças maiores está no acesso da mulher a cargos mais bem remunerados e garantia de recebimento de salários equivalentes pelo desempenho das mesmas funções. Trata-se, evidentemente, de preconceito quanto à capacidade da mulher. A ONU-Mulheres Brasil tem incentivado o estabelecimento da equidade de gênero, através do programa “Princípios de empoderamento das mulheres”, para superar as diferenças entre homens e mulheres no mercado de trabalho. Grandes empresas já têm se valido desses novos conceitos, que visam conscientizar principalmente as lideranças empresariais.

3.2 REPRESENTATIVIDADE POLÍTICA Dentre os princípios fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal de 1988, encontramos a cidadania, que significa a condição da pessoa que, como membro de um Estado, é sujeito de direitos e obrigações e se acha na condição de participar das decisões políticas desse Estado.

as dez maiores economias do mundo, quando se fala em representatividade política da mulher no Brasil, a nossa posição é ultrajante: o Brasil ocupa a 154ª posição, atrás de países como o Afeganistão, Ruanda e Paquistão.

A participação ativa das mulheres na política faz parte do arcabouço de direitos civis e Segundo Dalmo de Abreu Dalari “A cida- políticos que deveriam ser respeitados e estimudania expressa um conjunto de direitos que dá à lados, uma vez que representam ideais demopessoa a possibilidade de participar ativamente cráticos. da vida e do governo de seu povo”.15 Com a vigência da Constituição de 1988, Ainda que se diga que o Brasil está entre foram estabelecidos novos parâmetros para a or15 SECRETARIA DA JUSTIÇA, TRABALHO E DIREITOS HUMANOS. Departamento de Direitos Humanos e Cidadania. O que é cidadania? Disponível em: <http://www.dedihc.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=131>. Acesso em: 06 out. 2019.

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ganização dos partidos políticos. O artigo 17 bem define que “é livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais da pessoa humana”.16 A Lei dos Partidos Políticos (Lei 9096/95, de 19 de setembro de 1995) estabeleceu plena autonomia dos partidos. Entretanto, para que o partido possa participar das eleições, ter direito a horário gratuito na televisão e receber recursos do fundo partidário, precisa estar registrado no TSE.

cadar valores do fundo partidário, que seriam repassados aos partidos políticos, como o notório caso que envolve Marcelo Álvaro Antonio, atual Ministro do Turismo, nas chamadas “candidaturas laranjas”, em que as candidatas mulheres são obrigadas a repassar os valores recebidos aos demais membros do partido. É uma forma de burlar a legislação eleitoral, uma vez que em 2018, o valor de R$ 1,7 bilhão foi destinado a financiar campanhas eleitorais, e, desse valor, 30% deveria ter sido destinado às candidaturas femininas.

Atualmente existe na Câmara dos Deputados projeto para acabar com as cotas de 30% para as candidaturas de mulheres. O projeto é de autoria do Senador Angelo Coronel, e está sendo analisado na Comissão de Constituição e Justiça. Vários movimentos políticos estão combatendo a proposta, inclusive o gru A Lei 9504/97 evidencia uma política púpo Mulheres do Brasil. blica de ação afirmativa, visando proporcionar Com a Lei 9504/97 passou a haver a exigência de que 30% das candidaturas sejam femininas. O Tribunal Superior Eleitoral definiu a aplicação de 30% dos recursos de financiamento de campanha e de horários de propaganda gratuita para as candidatas mulheres.

direitos materiais para garantir a reversão de Para o grupo Mulheres do Brasil, a inidesvantagens históricas das mulheres na partici- ciativa desse projeto significaria marcante repação não apenas na política, mas em todos os trocesso no reconhecimento da função essensetores da sociedade.

cial da mulher nas esferas de poder.

A ação afirmativa garantiu, nas últimas Segundo o organismo internacional Ineleições, um aumento de 5% na representatividade das mulheres no Senado e na Câmara dos ter-Parliamentary Union, o Brasil já está muito aquém dos demais países quanto à questão Deputados.

de representatividade política. A revogação

O grande problema é que, apesar da lei, da cota de 30% seria o declínio de uma políos partidos não têm registrado chapas com o nú- tica que garantiu 5 pontos percentuais a mais mero adequado de mulheres.

na participação feminina no Congresso, pas Ocorre atualmente investigação sobre sando de 10 para 15% em 2018. o lançamento de “candidaturas laranjas”, en Entretanto, o que se vê é que a reprevolvendo candidaturas femininas que teriam sentatividade política da mulher continua sensido utilizadas para desviar recursos dos fun- do ínfima tanto no Senado quanto na Câmara dos eleitoral e partidário nas eleições de 2018. dos Deputados. Numa tentativa de burlar a exigência, alguns partidos têm registrado candidaturas de mulheres apenas para cumprir a obrigatoriedade da Lei, sem um estímulo à efetiva participação das mulheres. Além disso, tem ficado evidente o uso de mulheres para arre-

3.3 DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER A Comunidade Internacional dos Direi- as violações dos direitos civis (vida, proprietos Humanos define violência como: “Todas dade, liberdade de ir e vir, de consciência e de 16

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Vade Mecum. São Paulo: Editora Saraiva, 2018. p.11.

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culto); políticos (direito de votar e ser votado, como prover o sustento seu e dos filhos, por ter participação política); sociais (habitação, vergonha ou por medo, acaba por não denunsaúde, educação e segurança); econômicos ciar seu agressor. (emprego e salário) e cultura (direito de man Ainda mais grave é a constatação de ter e manifestar sua própria cultura).”17 que a violência contra a mulher, que transcor A Convenção Interamericana para Preve- re dentro do ambiente familiar, acaba por banir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica con- nalizar a violência de maneira geral. A criança, ceitua a violência contra a mulher como: “qual- logo ao nascer, se acostuma com a violência quer ação ou conduta baseada no gênero, que praticada no lar, o que a leva a achar normal o cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual uso da força física para resolver problemas. E ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como consequência vivenciamos uma escalacomo no privado”18 da da violência na sociedade, que aterroriza a Já a Lei Maria da Penha, em seu Artigo 5º, todos. estabelece que a violência doméstica e familiar contra a mulher é:

A violência doméstica, na Justiça, era englobada nas “causas cíveis de menor com[...] qualquer ação ou omissão baseada no plexidade e infrações penais de menor potengênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento cial ofensivo”, enquadradas nas causas sujeifísico, sexual ou psicológico e dano moral ou tas à competência dos Juizados Especiais. patrimonial: A violência doméstica, ainda que arraiga-

No âmbito da unidade doméstica, com- da no seio da família, não era tipificada como cripreendida como o espaço de convívio perma- me previsto no Código Penal. nente de pessoas, com ou sem vínculo fami A Lei Maria da Penha é o resultado da luta liar, inclusive as esporadicamente agregadas; No âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

de Maria da Penha Maia Fernandes para obtenção de justiça contra seu marido e agressor Marco Antonio Heredia Viveros, em razão das repetidas agressões e intimidações sofridas durante a convivência conjugal. Na vigência do casamento, por anos, tanto Maria da Penha quanto suas filhas se sujeitaram a inúmeras agressões.

Em qualquer relação íntima de afeto, na Com a edição da Lei Maria da Penha, a qual o agressor conviva ou tenha convivido violência doméstica contra a mulher deixou de com a ofendida, independentemente de coa- ser julgada em juizados especiais criminais, resbitação.”19 ponsáveis por “crimes de menor potencial ofensivo”, e passou a ser tipificada como violação dos

A violência contra a mulher é considedireitos humanos, e tais casos passaram para as rada um modelo de violência próprio, baseado Varas Criminais. no gênero, causador de dano, sofrimento psi As alterações criadas pela Lei Maria da cológico, físico ou sexual e morte à mulher. A violência doméstica, vista às vezes com tons de apoio da sociedade para as agressões, sempre utilizando como desculpas afirmações populares como “em briga de marido e mulher, não se mete a colher” ou “mulher gosta de apanhar”, que escondem na realidade o fato de que a mulher, por temer não ter

Penha, foram determinantes para as mulheres em situação de risco, conforme veremos. Ocorreu a alteração da competência dos crimes de violência doméstica, pois antes da vigência da Lei 11340/2006, os crimes de violência doméstica obedeciam a competência estipulada pela Lei 9.099/95, ou seja, eram julgados pelos Juizados Especiais Criminais, que respondem

17 SERASA, GUIA CONTRA VIOLÊNCIA. Violência. Disponível em: <http//www.serasa.com.br/guiacontraviolencia/violência.htm> Acesso em: 10 mar.2008 18 Decreto 1973/96 apud DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p.35. 19 DIAS, Maria Berenice. Op.cit. p. 205-6.

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pelos crimes de menor potencial ofensivo e que permitiam que os agressores fossem penalizados com multas e doação de cestas básicas, permitindo-se a transação. Passou a ser vedada a aplicação “de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa”.20 Com a edição da Lei Maria da Penha, a competência para tais julgamentos foi determinada para os Juizados Especializados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Tais Juizados, além da defesa da mulher em situação de risco, cuidam de demandas cíveis, tais como divórcio, pensão, guarda dos filhos, etc.

vítima de violência doméstica terá direito aos serviços de contracepção de emergência, profilaxia das doenças sexualmente transmissíveis e outros procedimentos médicos necessários. A Lei Maria da Penha foi alterada em maio de 2019 pela Lei 13.827/19. Essa nova medida protetiva reflete mais uma proteção à mulher em situação de violência doméstica e familiar. A própria polícia pode promover o afastamento do agressor do lar, domicílio ou local de convivência sem que haja necessidade de determinação judicial.

Antes da edição da Lei Maria da Penha, não era prevista para o agressor, prisão preventiva ou em flagrante, o que passou a ser regra conforme o artigo 129, § 9º do Código Penal. A mulher, antes da edição da Lei Maria da Penha, poderia desistir da denúncia já na Delegacia. Com o advento da Lei, a mulher só poderá desistir da proposição da ação perante o Juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, e ouvido o Ministério Púbico.

As penas aplicadas à violência doméstica, antes da vigência da Lei Maria da Penha, poderiam limitar-se a fornecimento de cestas básicas e multas. Atualmente tais penas são proibidas no âmbito das relações domiciliares. Até a edição da Lei Maria da Penha, não havia como distanciar a mulher vítima de agressão do convívio com o seu agressor, ou seja, quem denunciava seu companheiro ficava sujeita a novas agressões. Com a edição da lei em comento, o Juiz pode retirar o agressor do convívio familiar e determinar seu afastamento da residência da vítima e, inclusive, proibi-lo de manter contato com a vítima. A Lei Maria da Penha trouxe assistência às mulheres vítimas de violência doméstica, visando proteger as mulheres que dependem financeiramente de seus companheiros, ficando a critério do Juiz, a possibilidade de inclusão em programas de assistência governamentais, como o Bolsa Família, além da obrigatoriedade da prestação de alimentos. - Estabelece ainda a Lei que a mulher 20

DIAS, Maria Berenice. Op.cit. p.211.

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CONCLUSÃO A história da humanidade confunde-se com a de seus partícipes – o homem e a mulher – e, apesar dos avanços na busca pela igualdade de gênero e de oportunidades, ainda são gritantes as diferenças de tratamento e oportunidades. Ainda vigora a visão machista da sociedade, que leva à exclusão da mulher como ser capaz de tomar decisões. Analisando as inúmeras conquistas e os fracassos na evolução de políticas para a equiparação de direitos concedidos às mulheres, identificamos alguns pontos no decorrer da pesquisa que se sobressaem como perspectivas a serem alcançadas.

ainda não foi implantado nas escolas do Brasil. Também é necessário destacar que os espaços no plano institucional não são dedicados às mulheres, e a participação da mulher é exígua nas esferas de poder. Quantas ministras há? Qual é a representatividade dessas ministras? Quantas mulheres ocupando cargos de destaque na administração do país? Mesmo no segundo escalão do governo, quantas mulheres ocupam cargos? Às mulheres não é dado papel que lhes permita demonstrar suas capacidades e, portanto, não lhes é possibilitado representar nosso povo. A Lei Maria da Penha, considerada uma das três melhores do mundo no enfrentamento à violência doméstica, tem exposto o quanto o homem continua violento, levando-se em conta as estatísticas da violência. Além da violência, o número de feminicídios é assustador.

As diferenças de gênero só irão acabar quando a educação for levada a sério no Brasil, pois as escolas não cumprem seu papel de educar e preparar os meninos brasileiros. O ensino de gênero nas escolas ainda não foi estabelecido e existem correntes totalmente Necessária seria uma opostas a esse ensino. É primordial investir maior disponibilização de políticas públicas em educação e estabelecer o ensino de gêneem defesa da mulher, e através da educação, ro já na fase do ensino fundamental. Apesar a desconstrução do machismo. das recomendações da Organização dos Estados Americanos (OEA), o ensino de gênero

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TRÁFICO DE MULHERES: COMÉRCIO ILEGAL DE MULHERES PARA FINS SEXUAIS E O DESRESPEITO À DIGNIDADE HUMANA Rita de Cássia Barbuio Especialista em Direito Público pela Faculdade de Direito de Bauru ITE. Estudou na Faculdade de Direito de São Carlos (FADISC). Estuda na Instituição e Ensino Mestrado UNESP. Professora de Direito na Faculdade Marechal Rondon. Professora na Faculdade Galileu – Botucatu. Coordenadora de Comissão de Advogado de Direito Penal da OAB de Botucatu. Advogada. E-mail: rita.barbuio@gmail.com Bianca Dias Soares Bacharelanda em Direito – cursando o 9º semestre de Direito na Faculdade Marechal Rondon, de São Manuel/SP. E-mail: biancadias161@gmail.com SUMÁRIO Resumo Abstract 1 Introdução 2 Tráfico de Mulheres ao Longo da História 2.1 Origem da Prática Delituosa no Brasil 2.2 Tráfico Interno e Internacional de Mulheres 3 Aspectos Gerais Sobre o Tráfico de Mulheres para Fins Sexuais 3.1 Causas do Tráfico de Mulheres no Brasil 3.2 Prostituição 3.3 Lenocínio 3.4 Turismo Sexual 3.5 Perfil da Vítima 3.6 Perfil dos Aliciadores 3.7 Forma de Favorecimento do Tráfico de Mulheres Para Fins Sexuais 4 Legislação Internacional Acerca do Tráfico de Mulheres 4.1 Protocolo de Palermo 5 Legislação Brasileira Acerca do Tráfico de Mulheres 5.1 Código Penal Republicano De 1890 5.2 Código Penal De 1940 5.3 Anteprojeto de Reforma da Parte Especial do Código Penal 5.4 O Tráfico Internacional De Pessoas Na Legislação Brasileira Com O Advento da Lei Nº 13.344/16 6 O Tráfico De Mulheres E O Desrespeito À Dignidade Humana 7 Considerações Finais Referências Bibliográficas

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RESUMO O tráfico de mulheres para fins de exploração sexual vem crescendo drasticamente e, mesmo com tamanha dimensão, ainda é um tema invisível perante a força da legislação e do Estado. A dimensão deste crime se dá por diversos elementos, como a descriminalização, vulnerabilidade, pobreza, globalização, desigualdade social, entre outros. Como uma forma moderna de escravidão, o tráfico de mulheres para fins sexuais fere os direitos e garantias fundamentais do ser humano, violando a liberdade, a segurança, o direito à vida e à dignidade da pessoa humana. Para facilitar o entendimento e dar clareza ao assunto, foi realizada uma pesquisa doutrinária e bibliográfica buscando dados atualizados sobre o problema, inclusive na internet. O trabalho apresenta, por fim, um breve histórico da evolução da legislação brasileira sobre o tema e um adendo apontando a legislação internacional que traz a devida definição do tráfico de mulheres em seu Protocolo de Palermo.

PALAVRAS-CHAVE Exploração sexual. Tráfico de mulheres. Vítima.

ABSTRACT Trafficking in women for the purpose of sexual exploitation has been growing drastically and, even with such a large dimension, it is still an invisible issue under the force of legislation and the State. The dimension of this crime is due to several elements, such as decriminalization, vulnerability, poverty, globalization, social inequality, among others. As a modern form of slavery, trafficking in women for sexual purposes violates the fundamental rights and guarantees of human beings, violating freedom, security, the right to life and the dignity of the human person. To facilitate understanding and clarify the subject, a doctrinal and bibliographic research was carried out, seeking updated data on the problem, including on the internet. Finally, the paper presents a brief history of the evolution of Brazilian legislation on the subject and an addendum pointing to the international legislation that defines the trafficking of women in its Palermo Protocol.

KEYWORDS Sexual exploitation. Traffic of women. Victim.

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1. INTRODUÇÃO Por duzentos anos, milhares de africanos foram raptados e transportados para outros países; dentre eles haviam mulheres e crianças que eram submissas aos seus captores. Eram exploradas, sendo obrigadas a ficarem nuas e os servirem de diversas maneiras, inclusive de forma sexual. O tráfico de mulheres para fins sexuais não é novo, trata-se de uma forma moderna de escravidão. É visto como o terceiro crime mais lucrativo do mundo, haja vista que são notórios o baixo risco inerente ao negócio e a sua alta rentabilidade. Esse crime organizado vem crescendo dia após dia e apesar de toda sua dimensão ainda passa despercebido perante o Estado. São vários elementos que contribuem para essa máfia criminosa, elementos estes que estão ligados à dificuldade econômica, alto índice de desemprego, fragilidade e vulnerabilidade da mulher, alfabetização, desigualdade social, globalização, descriminalização, entre outros.

tos ao indivíduo pela Constituição Federal, cabendo ao Estado o dever de protegê-lo. A vítima do crime de tráfico de mulheres para fins sexuais em geral tem baixo grau de escolarização e buscam realizar os sonhos de uma carreira como modelos, outras já estão engajadas no mercado do sexo como prostitutas, e ainda tem aquelas que buscam estabilidade financeira. Já os aliciadores normalmente são pessoas de alto grau de escolarização, muitas vezes são da alta sociedade, com ótimo posicionamento econômico e social. Diante desse cenário observaremos as variáveis formas de favorecimento, tais como a globalização, as agências de modelos, as fronteiras e a internet, entre outras. O artigo apresenta as opiniões divergentes dos autores, posteriormente apresenta a legislação brasileira e a legislação internacional como meio de repressão e recrutamento ao crime de tráfico de mulheres para fins sexuais.

O crime infringe os princípios e garantias fundamentais do ser humano, violando sua dignidade, liberdade (inclusive a sexual) e identidade, princípios esses que são interpos-

2. TRÁFICO DE MULHERES AO LONGO DA HISTÓRIA Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU)1 “o tráfico de pessoas é o terceiro crime mais lucrativo do mundo, depois do tráfico de drogas e de armas”.

as mulheres são iludidas por aliciadores que fazem parte de um esquema de exploração sexual, movimentando bilhões de dólares anualmente.

Dentro dessa modalidade, destaca-se o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, que é o crime mais frequente de escravidão no século XXI. Em virtude dela, realiza-se atividade ilícita no âmbito interno e internacional, tratando-se de um crime parasita que se alimenta da vulnerabilidade, pois

Levando-se em consideração esses aspectos, o Protocolo de Palermo traz a definição internacionalmente aceita de tráfico de seres humanos como sendo o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento de pessoas utilizando-se de ameaça, uso da força, formas de coação e abuso de autoridade

1 ONU – ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Tráfico de pessoas fatura pelo menos 32 bilhões de dólares por ano, alerta ONU. 2013. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/trafico-de-pessoas-fatura-pelo-menos-32-bilhoes-de- dolares-por-ano-alerta-onu/> Acesso em: 29/08/2019.

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sobre situações de vulnerabilidade para fins no art. 149-A “Dos Crimes Contra a Liberdade de exploração. Pessoal”. O crime foi inserido por meio da Lei n° 13.344, de 6 de outubro de 2016. Nesta esteira, Jesus também destacou que “essa definição ampla tem, portanto, algumas qualidades incontestáveis. Ela procura, em primeiro lugar, garantir que as vítimas do tráfico não sejam tratadas como criminosas, mas sim como pessoas que sofreram sérios abusos” (JESUS, 2003)2. De acordo com o Código Penal Brasileiro3 o crime de tráfico de mulheres está previsto

2.1 ORIGEM DA PRÁTICA DELITUOSA NO BRASIL Jesus (2003, p. 15)4 afirma que “o problema do tráfico não é novo. É uma forma moderna de escravidão que persistiu durante todo o século XX, esse problema antigo que o mundo democrático ocidental pensava extinto. ”

delituosa se deu através do tráfico dos navios negreiros que ocorreu entre os séculos XV e XIX. Os portugueses traficavam os africanos para o Brasil com a finalidade de trabalho escravo e exploração sexual, tratando-se de um negócio lucrativo.

Conforme Jesus (2003)5 em sua obra Tráfico Internacional de Mulheres e Crianças Guilherme Nucci também mencionou o no Brasil, o tráfico de seres humanos faz par- tráfico dos navios negreiros como origem da te da nossa história. O Brasil foi o último país prática delituosa. ocidental a promover a abolição do trabalho Por 200 anos, milhares de africanos focompulsório, em 1888, tendo resistido por déram raptados ou comprados e transportados cadas. para o Hemisférico Oeste para serem usaOs navios negreiros transportaram, du- dos como escravos. Durante os transportes rante 300 anos, milhões de pessoas, homens, nos navios de escravos, estes sofriam níveis mulheres e crianças, para o trabalho agrícola. extremados de abusos. As mulheres e garoO trabalho era a base da exploração, que tam- tas africanas eram forçadas a ficar nuas, perbém se estendia à servidão doméstica, à ex- mitindo aos seus captores fácil acesso aos ploração sexual e às violações físicas. seus corpos a qualquer momento (NUCCI, 2015, p.112)6. O autor ressaltou que a origem da prática 2

JESUS, D. Tráfico internacional de mulheres e crianças. São Paulo. Saraiva, 2003.

3 BRASIL. Lei 13.344 de 06 de outubro de 2016. Dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas; altera a Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); e revoga dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13344.htm> Acesso em: 29/08/2019. 4

JESUS, D. Tráfico internacional de mulheres e crianças. São Paulo. Saraiva, 2003.

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JESUS, D. Tráfico internacional de mulheres e crianças. São Paulo. Saraiva, 2003.

6 NUCCI, G. S. Prostituição, lenocínio e tráfico de pessoas. Aspectos Constitucionais e Penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.

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Passaram-se os anos, viraram-se os sé- de, privando-as de viver dignamente, destruinculos e essa prática delituosa continua com do seus sonhos e objetivos de vida, violando toda força e a todo vapor. o princípio da dignidade da pessoa humana, que é um dos direitos básicos que garantem Diante das opiniões dos autores, hoje os a igualdade, tais como o direito de ir e vir, o navios negreiros foram substituídos por aviões direito à vida, à segurança e à liberdade. e não se explora somente o trabalho por meio de ameaça ou da força, e sim o corpo, mantendo a vítima em lugares de alta insalubrida-

2.2 TRÁFICO INTERNO E INTERNACIONAL DE MULHERES As rotas de tráfico se direcionam por vá- ças traficadas para a Europa (JESUS, 2003, p. rios estados brasileiros (interno) e diversos pa- 72)10. íses (internacional). De acordo com os dados da Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil tem 241 rotas de tráfico de pessoas para fins sexuais, sendo 110 de tráfico interno e 131 de tráfico internacional, destacando-se as regiões Norte (76), Nordeste (69), Sudeste (35), Centro-Oeste (33) e Sul (28) (COSTA, 2012)7. Nos últimos 100 anos, o Brasil passou da condição de país de destino para a de país fornecedor do tráfico internacional de mulheres e crianças (JESUS, 2003)8. Segundo os dados da Organização das Nações Unidas (ONU)9 o tráfico de pessoas transporta e recruta cerca de 2,5 milhões de vítimas em todo o mundo para exploração sexual e fatura 32 bilhões de dólares anualmente. De acordo com a Fundação Helsinque para os Direitos Humanos, o Brasil é o principal país da América Latina que contribui para o tráfico internacional de mulheres. Dados apontam setenta e cinco mil mulheres e crian7 COSTA, R. Brasil tem 241 rotas de tráfico de pessoas, diz ONU. Jornal O Estado de São Paulo. Edição eletrônica 06 de novembro de 2012. Disponível em: <https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-tem-241-rotas-de-trafico-depessoas-diz-onu-imp-,956103> Acesso em: 29/08/2019. 8 JESUS, D. Tráfico internacional de mulheres e crianças. São Paulo. Saraiva, 2003. 9 ONU – ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Na ocasião do dia mundial contra o tráfico de pessoas o que precisamos saber. 2017. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/artigo-na-ocasiao-do-dia-mundial-contra-o-trafico-depessoas-o-que-precisamos-saber/> Acesso em: 29/08/2019. 10

JESUS, D. Tráfico internacional de mulheres e crianças. São Paulo. Saraiva, 2003.

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3 ASPECTOS GERAIS SOBRE O TRÁFICO DE MULHERES PARA FINS SEXUAIS 3.1 CAUSAS DO TRÁFICO DE MULHERES NO BRASIL São diversos os motivos que levam a mulher ao tráfico. Enquanto não houver igualdade social no mercado de trabalho, na educação, moradia ou até mesmo perante a sociedade, o crime organizado do tráfico de mulheres irá crescer e ter cada vez mais, como alvo principal, o sexo feminino.

Como descrito por Jesus (2003, p. 114)12, a causa do tráfico de mulheres no Brasil está ligado à dificuldade econômica do país, números altíssimos de desemprego, desigualdade social, pouco oportunidades de emprego e nível baixo de alfabetização, ressaltando ainda que as mulheres, infelizmente, são inferiores aos homens no mercado de trabalho, tanto em cargos quanto Do ponto de vista de Marcos Rolim, Deputa- em salários. do Federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e membro da Comissão de Direitos Humanos da Nucci13 ainda se refere à exploração sexual, Câmara dos Deputados, a causa do tráfico de afirmando que mulheres é a desigualdade entre homens e muExplorar é uma conduta de variados siglheres ainda existente no mercado de trabalho.

nificados, contendo em seu universo desde uma simples procura ou estudo, passando por uma pesquisa, até chegar à condição de tirar proveito de alguém ou algo. E, neste último sentido, pode-se fazê-lo de maneira honesta ou desonesta. O modo desonesto abrange a má-fé, envolvendo o abuso da ingenuidade O tráfico de mulheres para fins sexuais é alheia, enganando ou ludibriando para, então, resultado da globalização e fragilidade dos Es- tirar proveito ou lucro, em prejuízo do explotados perante este ato ilícito, ressaltando a desi- rado (p.101). Contudo, ressaltou que esse tipo de situação enseja uma série de comportamentos delituosos, cujo objetivo é suprir as oportunidades que lhe foram negadas. Inúmeras vezes é consentido por ser tão difícil o acesso às oportunidades no Brasil (JESUS, 2003, p. 128)11.

gualdade de gênero e raça.

3.2 PROSTITUIÇÃO A prostituição é a mais antiga das profissões, tendo em vista que já era praticada nos primórdios da civilização e, desde tal época, é vista como aberração para algumas pessoas. No Brasil, a prostituição não é considerada uma prática delituosa, mas tirar proveito da prostituição alheia é considerado crime, assim como rufianismo e lenocínio, práticas que são punidas perante o Código Penal brasileiro. Diferentemente do

Brasil, outros países consideram a prostituição como crime, assim como a China, que pune até mesmo a prostituição individual, pois para o país tal prática viola os direitos da personalidade da mulher (p. 85)14. Nucci caracterizou a prostituição como um comércio do próprio corpo para sexo com fins lucrativos, um comércio de sexo que acaba se tornando costumeiro, com finalidade de obter renda

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JESUS, D. Tráfico internacional de mulheres e crianças. São Paulo. Saraiva, 2003.

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JESUS, D. Tráfico internacional de mulheres e crianças. São Paulo. Saraiva, 2003.

13 NUCCI, G. S. Prostituição, lenocínio e tráfico de pessoas. Aspectos Constitucionais e Penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. 14 NUCCI, G. S. Prostituição, lenocínio e tráfico de pessoas. Aspectos Constitucionais e Penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.

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e sustento à família (p. 71)15. Na visão de Nucci, existem dois tipos de prostituição: a direta, com a desigualdade social onde classes menos favorecidas tem como tendência o aspecto da prostituição, vender o corpo para fins sexuais, por dinheiro, para o próprio sustento e o da família. E a prostituição indireta, que ocorre em relacionamentos mais duradouros como namoro, casamento, união estável. Trata-se de homens ricos econômica e politicamente que se relacionam com mulheres com idade para ser sua neta, e o pagamento não é em dinheiro vivo, porém como forma de pagamento usa- se joias, carros, casas e outros ganhos (p. 59)16.

Mulher, 45 anos: “a prostituição é uma atividade difícil, mas de rápida rentabilidade. Pretendo continuar até conseguir formar a minha filha, já que o outro filho se encontra preso” (p. 261)17. Neste caso exposto, trata-se de prostituição direta. O fato da mulher se prostituir está ligado à desigualdade social, desemprego e ao meio de sobrevivência, quando a mulher se submete a prostituir-se para fins do sustento da família.

Mulher, 46 anos: “já me apaixonei por um de meus primeiros clientes. Embora o perfil não me agradasse, o papo era bom e o carinho era recíproco. O cliente chegou a conhecer os meus filhos e até me ajudou financeiramente. Acabei me apaixonando e permaneci por 8 anos sem me relacionar com ninguém mais (p. 262)18. O texto acima trata-se de prostituição indireta pelo fato de existir um relacionamento duradouro e os meios de pagamento envolvem a ajuda financeira, entre outros. Independentemente de a prostituição não ser crime no Brasil, é necessária a atenção do Estado perante tal ato, já que a mesma contribui para a rede de favorecimento do crime de tráfico de mulheres. Quando a prostituta utiliza seu corpo para fins sexuais ela não percebe a dimensão do problema, pois não é só o corpo, são os princípios que norteiam a dignidade da pessoa humana; assim, como já estão engajadas no mercado do sexo, acabam facilmente caindo nas mãos dos aliciadores.

3.3 LENOCÍNIO Do ponto de vista de Nucci19, o crime ocorre quando alguém induz ou contribui para que outrem pratique a prostituição ou outra forma de exploração sexual. O autor argumentou que o Código Penal não pune a prostituta por se prostituir, por si só, mas sim pune aquele que induz ou facilite a prostituição de alguém. Lenocínio significa favorecer, de qual-

quer modo, a libidinagem alheia, com ou sem proveito pessoal, constituindo o gênero de outras condutas, denominadas de proxenetismo (crime definido pela prática de obrigar, induzir ou incentivar alguém a se prostituir lucrando ou não com essa ação ou prática), alcovitice (aquele que é intermediário em relação amorosa, o que engana as mulheres) e

15 NUCCI, G. S. Prostituição, lenocínio e tráfico de pessoas. Aspectos Constitucionais e Penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. 16 NUCCI, G. S. Prostituição, lenocínio e tráfico de pessoas. Aspectos Constitucionais e Penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. 17 NUCCI, G. S. Prostituição, lenocínio e tráfico de pessoas. Aspectos Constitucionais e Penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. 18 NUCCI, G. S. Prostituição, lenocínio e tráfico de pessoas. Aspectos Constitucionais e Penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. 19 NUCCI, G. S. Prostituição, lenocínio e tráfico de pessoas. Aspectos Constitucionais e Penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.

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rufianismo (forma de lenocínio que consiste em viver parasitariamente, à custa do ganho das prostitutas). Chamava-se o comércio sexual na língua romana lenocinium e era geralmente considerado como uma das formas mais infamantes de prostituição. A própria lei dava-lhes a qualificação de infames, sem que, todavia, os incomodasse no exercício da sua atividade. Leno, em latim, quer dizer em romance, o mesmo que alcoviteiro, o que engana as mulheres, instigando-as a fazer maldades com seus corpos (NUCCI, 2014, p. 97)20. O Código Penal (dos crimes contra a vida) em seu capítulo V, do título VI, descreve e pune os crimes tipificados, referindo-se ao tráfico de pessoas para fins sexuais e ao lenocínio; tratam-se de delitos que violam a dignidade sexual (p. 97)21:

lascívia de outrem: Pena - reclusão, § 2º - Se o crime é cometido com emprego de violência, grave ameaça ou fraude: Pena - reclusão, de dois a oito anos, além da pena correspondente à violência. § 3º - Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa. Nucci exemplificou que a conduta de um rufião (cafetão) é ilícita pelo fato de cometer lenocínio e obter lucro com a prostituição. É uma pessoa que agrega o mercado do sexo, se responsabilizando por garotas que trabalham na rua ou em determinado local de sua responsabilidade e, após o trabalho com o corpo, ele lucra com uma porcentagem que pode chegar até cinquenta por cento (p. 98)22.

Art. 227 - Induzir alguém a satisfazer a

3.4 TURISMO SEXUAL O Brasil é um país mundialmente conhecido por suas praias, seus costumes e tradição. Utiliza-se muito a imagem da mulher para mostrar as belezas naturais do país, porém, infelizmente, muitas vezes acabam expondo-a de uma maneira vulgar, despida ou portando seu biquíni fio-dental na praia paradisíaca de Copacabana. Vende-se uma imagem estimulante à prática do ato sexual, o que acaba por sua vez contribuindo para a realidade da exploração sexual. Esses

fatores, associado à falta de conhecimento sobre a realidade do país, faz com que os turistas procurem o Brasil como meio de se aventurar sexualmente, explorando as mulheres. Quanto ao turismo sexual, os doutrinadores divergem sobre alguns aspectos, conforme podemos analisar a citação de Nucci23 e de acordo com as citações de Regina Célia Marinez e José Ailton Garcia em sua obra Direito e Turismo. Nucci24 denomina turismo sexual como uma

20 NUCCI, G. S. Prostituição, lenocínio e tráfico de pessoas. Aspectos Constitucionais e Penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. 21 BRASIL. Lei 13.344 de 06 de outubro de 2016. Dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas; altera a Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); e revoga dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13344.htm> Acesso em: 29/08/2019. 22 NUCCI, G. S. Prostituição, lenocínio e tráfico de pessoas. Aspectos Constitucionais e Penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. 23 NUCCI, G. S. Prostituição, lenocínio e tráfico de pessoas. Aspectos Constitucionais e Penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. 24 NUCCI, G. S. Prostituição, lenocínio e tráfico de pessoas. Aspectos Constitucionais e Penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.

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viagem empreendida por alguém com a intenção de buscar conhecimentos de lugares ou pessoas que lhe possam satisfazer a lascívia. Relata que o turista sexual tem como objetivo buscar lugares mais acessíveis e baratos para se prostituir, em outras dimensões buscam-se também lugares concentrados em shows eróticos de entretenimento adultos (p. 157). Em relação ao turismo, é importante ser ressaltada a questão do tráfico de pessoas e da exploração sexual. Isso porque o profissional dessa área pode ter contato com a prática em apreço e deve ter condição de identificar a situação.

prostituição foi a oportunidade conferida pelo turista. Foi uma forma fácil pela qual obtive dinheiro e, portando, vi nisso uma boa oportunidade. Ao retornar à São Paulo, passei a frequentar saunas e fazer programas (NUCCI, p. 269)25. O turismo sexual estimula a prática da exploração sexual e do tráfico de pessoas e é um problema histórico no país, o qual demanda uma grande atenção dos legisladores, tendo em vista suas graves repercussões.

Homem, 24 anos: “o que me levou à

3.5 PERFIL DA VÍTIMA Apesar da desigualdade social, baixa escolaridade e pouca oportunidade no mercado de trabalho, estas não são exclusivamente o perfil das vítimas. Existem vários aspectos relacionados que levam à prática da exploração. Há uma alta vulnerabilidade ao se tratar de mulheres, que podem ser vulneráveis emocionalmente e socialmente. Dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC)26 para o Relatório Global sobre tráfico de pessoas de 2018, apontam que nos últimos anos houve um aumento no número de vítimas de tráfico de pessoas para fins sexuais. Esses dados ressaltaram que os aliciadores têm como alvo principal as meninas e mulheres, estimando que 83% são mulheres, 72% meninas, 27% meninos e 10% são homens.

diferentes: mulheres com formação em nível médio para cima, com trajetória de emprego anterior e, muitas vezes, com expectativa de retorno breve ao Brasil, acabando nas mãos de quadrilhas internacionais (p. 127)27. Jesus conclui que existem dois tipos de vítimas, sendo a primeira aquela que viaja em busca de um emprego estável, com bom salário, mas que, na verdade, se deixa levar às falsas promessas, já que o propósito do trabalho é a exploração sexual; e a segunda vítima é aquela que já estava engajada na prostituição, antes mesmo de viajar para o exterior (2003, p.129)28.

As mulheres, em geral, têm baixo grau de escolarização e passam por dificuldades de ordem financeira. Muitas vezes já estão engajadas no sexo comercial. Mas há relatos de mulheres com perfis completamente 25 NUCCI, G. S. Prostituição, lenocínio e tráfico de pessoas. Aspectos Constitucionais e Penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. 26 UNODC – United Nations Office on Drugs and Crime. Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas 2018. ed. 19, v. 2. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil//Topics_TIP/Publicacoes/TiP_PT.pdf.>. Acesso em: 25/09/2019. 27 UNODC – United Nations Office on Drugs and Crime. Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas 2018. ed. 19, v. 2. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil//Topics_TIP/Publicacoes/TiP_PT.pdf.>. Acesso em: 25/09/2019. 28

JESUS, D. Tráfico internacional de mulheres e crianças. São Paulo. Saraiva.

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3.6 PERFIL DOS ALICIADORES O tráfico de mulheres pode envolver um ou mais indivíduos, denominados aliciadores, que podem ser homens ou mulheres. Praticam o ato ilícito quando retiram a vítima, com ou sem consentimento, do seu ambiente, cidade ou país, para submetê-la à exploração sexual e privá-la de seus direitos e deveres como pessoa (JESUS, 2003)29.

A gente era obrigada porque a gente tinha que pagar a comida, os remédios, tudo que a gente consumia lá a gente tinha que pagar era dessa forma31. A vítima relatou também que os aliciadores “prometem meio mundo, mas na hora não é nada disso, é só sofrimento e só trauma”. Durante toda a entrevista, a mulher se emocionou e lembrou de detalhes de quem tentava fugir: “umas morreram queimadas, outras foram degoladas”, disse.

Muitas vezes os aliciadores são pessoas conhecidas da família, homens ou mulheres engajadas e com um posicionamento econômico e social elevado. Tais características fazem com que passem despercebidos e acabam facilitanAtravés desse depoimento, podemos do o recrutamento de mulheres para exploração identificar a dimensão do problema que o trásexual.

fico de mulheres traz à dignidade da pessoa Segundo o Conselho Nacional de Jus- humana, através de represálias, coerção, fortiça (CNJ) os aliciadores, homens e mulhe- ça. res, são, na maioria das vezes, pessoas que Fica cada vez mais difícil de apontar dafazem parte do círculo de amizades da vítidos específicos de vítimas, já que as mesmas ma ou de membros da família. São pessoas com quem as vítimas têm laços afetivos. preferem não realizar denúncias por inseguNormalmente apresentam bom nível de es- rança e medo. É importante ressaltar que a colaridade, são sedutores e têm alto poder função do Estado é tomar uma posição em de convencimento. Alguns são empresários relação ao delito, protegendo a vítima e seu que trabalham ou se dizem proprietários de direito de ir e vir. casas de show, bares, falsas agências de encontros, matrimônios e modelos. As propostas de emprego que fazem geram na vítima perspectivas de futuro, de melhoria da qualidade de vida30. Em análise ao depoimento de uma vítima para o G1, Jornal Nacional, a mulher que prefere não se identificar foi vítima do tráfico, durante dois anos, na Guiana Francesa, levada às falsas promessas, como segue: Pensei que ia trabalhar como cozinheira ou no que eu achava que era um supermercado e chegando lá era para me prostituir. 29

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30 CNJ – CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. O que é tráfico de pessoas? 2015. Disponível em: <https:// www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/assuntos-fundiariostrabalho-escravo-e-trafico-de-pessoas/trafico-de-pessoas/> Acesso em: 30/08/2019. 31 G1 – Globo Notícias. Paraense vítima de tráfico humano fala sobre os traumas da exploração. 2013. Disponível em: <http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2013/01/paraense-vitima-de-trafico-humanofala-sobre-os-traumas-da-exploracao.html> Acesso em: 29/08/2019.

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3.7 FORMA DE FAVORECIMENTO DO TRÁFICO DE MULHERES PARA FINS SEXUAIS O crime organizado de tráfico de mulheres tem várias formas e métodos de favorecimento para realizarem o processo de recrutamento. Damásio mencionou a globalização como rede de favorecimento. Para o autor, é um grande estímulo ao tráfico de mulheres a facilidade do uso de tecnologias de comunicação (p. 20)32.

Os grupos de criminosos escolhem o tráfico de seres humanos por causa dos altos lucros e baixo risco inerente ao “negócio”. Traficar pessoas, diferentemente de outras “mercadorias”, pode render mais, pois elas podem ser usadas repetidamente. Além disso, esse tipo de crime não exige grande investimento e se apoia na aparente cegueira com que muitos governos lidam com o problema da imigração internacional, de um lado, e com o problema da exploração sexual comercial, de outro” (JESUS, 2003, p. 14)33. As agências de modelo também se destacam como forma de favorecimento pela facilidade de levar a vítima a acreditar nas propostas de trabalho como modelo. Destacam-se, também, as boates, bares, casas de prostituição, book rosa, ficha rosa, entre outros meios

que facilitam a prática delituosa. Podemos citar as fronteiras que ligam o Brasil a outros países como meio de favorecimento ao crime de tráfico de mulheres. O crime é silencioso e tem sua gravidade onde as pessoas conseguem passar pelas fronteiras sem qualquer tipo de identificação. O processo imigratório também é visto como um meio comum de favorecimento ao crime. Isso porque a vítima imigra ilegalmente através de terceiros para outro país e não consegue regressar para o país de origem, portanto, fica nas mãos dos aliciadores, que se aproveitam da vulnerabilidade da vítima pelo fato de estar em um país estranho e sem documentos válidos que preencham os requisitos exigidos para permanecer legalmente no país. Trata-se de vários meios, acessos e vantagens, e cada vez mais é escasso o meio de proteção e segurança. As vítimas, em sua grande maioria formada por mulheres, saem em busca de melhoria de vida, tanto no âmbito social como profissional, e acabam expostas à exploração sexual e o que era sonho torna-se pesadelo.

4 LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL ACERCA DO TRÁFICO DE MULHERES 4.1 PROTOCOLO DE PALERMO Diante de toda demanda do crime organizado voltado para o tráfico de mulheres para fins sexuais, inúmeros países têm tomado atitudes no sentido de ter uma visão mais ampla em relação ao problema. Contudo, têm sido criados meios específicos para o combate ao tráfico de seres humanos, tais como relatórios, legislações, convenções e protocolos que estão em processo de ratificação pelos países para combater esse crime que, infelizmente, tem se expandido cada vez mais.

O tráfico pode envolver um indivíduo ou um grupo de indivíduos. O ilícito começa com o aliciamento e termina com a pessoa que explora a vítima (compra-a e a mantém em escravidão, ou a submete a práticas similares à escravidão, ou ao trabalho forçado ou outras formas de servidão). O tráfico internacional não se refere apenas e tão-somente ao cruzamento das fronteiras entre países. Parte substancial do tráfico global reside em mover uma pessoa de uma região para ou-

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tra, dentro dos limites de um único país ob- forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a 36 servando-se que o consentimento da vítima servidão ou a remoção de órgãos (BRASIL, 2004) . em seguir viagem não exclui a culpabilidade O Protocolo de Palermo, em primeiro ludo traficante ou do explorador, nem limita o gar, procurou definir o que é o tráfico de pessodireito que ela tem à proteção oficial (p. 07)34. as, ressaltando o recrutamento e o transporte Diante disso, Jesus (2003)35 ressaltou que e a transferência. Tais atos são realizados por o tráfico ocorre a partir do aliciamento e tem meio da coerção, do abuso de poder de uma por finalidade a exploração da vítima para prá- pessoa sobre a outra, restinguindo seus direitica sexual, laboral e outros meios de servidão. tos e submetendo a vítima a vários meios de Trata-se de um crime que cruza fronteiras in- exploração. ternacionais ou até mesmo estados internos.

Salienta, ainda, que o consentimento da vítima não exclui a culpabilidade do aliciador, pois a maior parte das vítimas consente em ir para outro país até mesmo como pessoas engajadas no mercado do sexo, mas não sabem que ao chegar lá a demanda é maior e o lucro é baixíssimo; perdem seus direitos de ir e vir, sua dignidade sexual, vivem em estado de calamidade, são obrigadas a usar drogas e consumir álcool, tudo isso através do uso da coerção pelos aliciadores, do engano e das falsas promessas. O Protocolo para Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, especialmente Mulheres e Crianças, que suplementa a Convenção da ONU organização das nações unidas contra o Crime Organizado Transnacional, adotada em novembro de 2000, trouxe a primeira definição internacionalmente aceita de tráfico de seres humanos: A expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços

a) O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a) do presente Artigo será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea a). Contudo, na alínea “b” o Protocolo de Palermo procura garantir que as vítimas do tráfico não sejam tratadas como criminosas e sim como vítimas, mesmo que tal tenha consentido, pois sofreram diversos abusos e exploração. O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de uma criança para fins de exploração serão considerados “tráfico de pessoas” mesmo que não envolvam nenhum dos meios referidos da alínea a) do presente Artigo; O termo “criança” significa qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos12.

Em análise, a alínea “c” e “d” do Protocolo de Palermo destacam o tráfico de crianças para tentar prevenir e dar uma atenção especial às crianças. Os objetivos do presente Protocolo são os seguintes: Prevenir e combater o tráfico de pessoas,

34 BRASIL. Decreto nº 5.017 de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004- 2006/2004/Decreto/ D5017.htm> Acesso em: 05/11/2019. 35

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36 BRASIL. Decreto nº 5.017 de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004- 2006/2004/Decreto/ D5017.htm> Acesso em: 05/11/2019.

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prestando uma atenção especial às mulheres vulnerabilidade da vítima, o Protocolo de Palermo se atentou para o combate do crime organizado e às crianças;

e, para Jesus (2003)37 tudo revela que o tráfico Proteger e ajudar as vítimas desse tráfico, engloba a prostituição ou outro tipo de trabalho respeitando plenamente os seus direitos hu- sexual, trabalho forçado, casamento forçado, adoção ilegal ou outra relação privada. Segundo manos; e o autor, os traficantes de pessoas também opePromover a cooperação entre os Estados ram em outras formas de crime transnacional.

Partes de forma a atingir esses objetivos.

Preocupado com a expansão do crime e a

5. LEGISLAÇÃO BRASILEIRA ACERCA DO TRÁFICO DE MULHERES 5.1 CÓDIGO PENAL REPUBLICANO DE 1890 O tráfico de mulheres para fins sexuais encontra-se criminalizado no Brasil desde o Código Penal republicano de 189038. Esse código trazia em seu artigo 278, primeira parte:

Art. 278 – Induzir mulheres, quer abusando de sua fraqueza ou miséria, quer constrangendo-as por intimidações ou ameaças a empregarem-se no tráfico da prostituição. (...) Penas – de prisão celular, por um a dois anos, e multa de 500$000 a 1.000$000. O artigo traz como elementos a vulnerabilidade da mulher, ou seja, o abuso da fraqueza, miséria, o uso da força e constrangimento por qualquer outro meio de coação.

qualquer mulher menor, virgem ou não, mesmo com o seu consentimento; aliciar; atrair ou desencaminhar, para satisfazer as paixões ou lascívias de outrem, qualquer mulher maior, virgem ou não, empregando para esse fim ameaça, violência, fraude, engano, abuso de poder, ou qualquer outro meio de coação; reter, por qualquer dos meios acima referidos, ainda mesmo por causa de dívidas contraídas, qualquer mulher maior ou menor, virgem ou não, em casa de lenocínio, obrigála a entregar- se à prostituição: Penas – as do dispositivo anterior.

§ 2.º Os crimes de que tratam este artigo e o seu §1.º serão puníveis no Brasil, ainda que Quando o artigo menciona a fraqueza da um ou mais atos constitutivos das infrações mulher, não se tratava de força física e sim a neles previstas tenham sido praticados em própria condição do sexo feminino, o que revela país estrangeiro. um grau relativo de discriminação legal (JESUS, 2003)39.

A Consolidação das Leis Penais40, de 1932, de forma indireta tratou do assunto nos §§ 1.º e 2.º do artigo 278:

§ 1.º Aliciar, atrair ou desencaminhar, para satisfazer as paixões lascivas de outrem, 37

O dispositivo legal trouxe várias situações; umas mais graves, como a ameaça, a violência, e outra menos grave, como o consentimento, porém dando-lhes pena idêntica. O título VII que abrigava o artigo 278 denominava-se “dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor” (JESUS, 2003, p. 77)41.

JESUS, D. Tráfico internacional de mulheres e crianças. São Paulo. Saraiva, 2003.

38 BRASIL. Decreto nº 847 de 11 de outubro de 1890 – Promulga o Código Penal. Disponível em: < http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm> Acesso em: 05/11/2019. 39 JESUS, D. Tráfico internacional de mulheres e crianças. São Paulo. Saraiva, 2003. 40 BRASIL. Consolidação das Leis Penais. 1932. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/bibliotecadigital/DominioPublico/72115/pdf/72115.pdf> Acesso em: 05/11/2019. 41

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5.2 CÓDIGO PENAL DE 1940 É notório toda modificação na parte especial lher que vá exercê-la no estrangeiro. do Código, porém o delito de tráfico de mulheres O Código Penal de 1890 e o Código Pepara fins sexuais permaneceu intacto, ou seja, em relação aos seus elementos típicos, no que nal de 1940 permitem uma análise comparatise refere à sanção punitiva (JESUS, 2003, p. va e algumas observações. 77)42.

Continuou a lei brasileira a restringir a O Código Penal vigente (Dec. – Lei n. tutela penal ao sexo feminino; 2.848, de 7 de dezembro de 1940, alterado, O Código Penal de 1890 não criminalina sua Parte Geral, em 1984, pela Lei n. 7.209, zava a conduta quando havia consciência e criminalizou o tráfico de mulheres para fins seconsentimento da vítima, salvo se tivesse por xuais em seu artigo 231, da seguinte forma: propósito o lucro e, nesse caso, não fazia refeArt. 231. Promover ou facilitar a entrada, rência específica ao tráfico (p. 77-78). no território nacional, de mulher que nele venha exercer a prostituição, ou a saída de mu-

5.3 ANTEPROJETO DE REFORMA DA PARTE ESPECIAL DO CÓDIGO PENAL O Anteprojeto de Reforma da Parte Especial do Código Penal foi remetido ao Presidente da República em março de 1998. No Anteprojeto, o tráfico recebe a mesma moldura típica da legislação do Código Penal de 1940, e, o que o diferencia é a abrangência, onde não se limita somente à mulher e sim a qualquer pessoa que, por fim, passa a ser sujeito passivo do delito (JESUS, 2003)43.

cominação penal, a pena sofreu um decréscimo, pois passou de oito anos, no código de 1940, para seis anos, de acordo com o anteprojeto (JESUS, 2003)44.

Art. 178. Aumenta-se a pena até o dobro, nos crimes definidos neste Capítulo, sem prejuízo da pena correspondente à violência, se: – A vítima é menor de dezoito anos ou

No título que trata dos crimes contra a dig- incapaz de consentir; nidade sexual, a de número II, que por sua vez, - A vítima está sujeita à autoridade do abriga o Capítulo II – Da exploração sexual, pode-se encontrar o dispositivo que criminaliza o agente com ele mantém relação de parentesco. tráfico:

– O agente comete o crime com o fim de Art. 177. Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha lucro; exercer a prostituição, ou sua saída para exer– O agente abusa de estado de abandocê-la no estrangeiro: Pena – reclusão, de três no ou de extrema necessidade econômica da a seis anos, e multa. vítima. Observa-se que a descrição típica é igual – O agente emprega violência, grave à do Código Penal de 1940, porém com exceção ao fato de que qualquer pessoa possa figu- ameaça ou fraude. rar como sujeito passivo do delito. Em relação à Com exceção ao inciso IV, todas as cau42

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sas de aumento de pena já estavam previstas no Código Penal de 1940.

5.4 O TRÁFICO INTERNACIONAL DE PESSOAS NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA COM O ADVENTO DA LEI Nº 13.344/16 Várias são as legislações no brasil que tratam do tráfico de mulheres em especial nossa Constituição Federal. Anteriormente à Lei n° 13.344/16, o Código Penal brasileiro criminalizava o tráfico de pessoas em seus artigos 231 e 231-A, porém só punia na modalidade para exploração sexual. Com a nova Lei n° 13.344/16, os artigos 231 e 231-A foram revogados, dispondo que o tráfico de pessoas é um crime que deve ser punido em outras modalidades, tais como tráfico de órgãos, trabalho escravo, adoção ilegal e exploração sexual. Com a nova lei em vigor, é notória a preocupação do legislador em relação à repressão, atentando-se às vítimas para o combate desse delito que era invisível pela falta de força e forma correta de tipificação legal. O legislador simplificou o processo em seu artigo 149-A que traz outras formas de exploração.

texto de exercê-las; - O crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência; - O agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou - A vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional. § 2º A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não integrar organização criminosa.

Ainda assim, mostra-se necessária um aperfeiçoamento de nossa legislação, para punir a prática legislativa com maior rigor, tenArt. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, tando coibir essa prática delitiva e punir com transportar, transferir, comprar, alojar ou aco- rigor aquele que vier a infringir a lei. lher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: - Remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; - Submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; III - submetê-la a qualquer tipo de servidão; IV - Adoção ilegal; ou V - Exploração sexual. Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. § 1º A pena é aumentada de um terço até a metade se: - O crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pre134


6. O TRÁFICO DE MULHERES E O DESRESPEITO À DIGNIDADE HUMANA Direitos e garantias fundamentais são os básicos, elementares, primários, alicerces de todos os demais que se pode erguer num sistema normativo regente da vida em sociedade. Deles não se pode afastar o Estado de modo algum, sob pena de excluir a sua denominação de Democrático (p. 30-31).

reitos Humanos define como dever do governo operar de modo a promover a devida proteção e o respeito aos direitos humanos e às liberdades de grupos ou indivíduos. Alexandre de Moraes, em sua obra Direitos Humanos Fundamentais, salientou que “o direito humano fundamental à vida deve ser entendido como direito a nível de vida adequado com a condição humana, ou seja, direito à alimentação, vestuário, assistência médico-odontológica, educação, cultura, lazer e de condições vitais” (2007, p. 80)48. E salienta ainda que:

A dignidade da pessoa humana está prevista no artigo 1°, inciso III da Constituição Federal de 1988. O termo dignidade traz seu devido significado como sendo a “ação de respeitar os próprios valores, amor próprio ou decência” e aduz ainda alguns sinônimos como a honra, honestiO Estado deverá garantir esse direito a dade, integridade, aquilo que é digno e valioso, um nível de vida adequando com a condição entre outros (DICIO, 2019)45. humana, respeitando os princípios funda-

Os desastres humanos das guerras, especialmente aquilo que assistiu o mundo no período da Segunda Guerra Mundial, trouxe, primeiro, a dignidade da pessoa humana para o mundo do Direito como contingência que marcava a essência do próprio sistema sociopolítico a ser traduzido no sistema jurídico (ROCHA, 2004, p. 22)46.

mentais da cidadania, dignidade da pessoa humana e valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e ainda, os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil de constituir uma sociedade livre, justa e solidária, garantindo o desenvolvimento nacional e erradicando-se a pobreza e a marginalização, reduzindo, portanto, as desigualdades sociais e regionais (MORAES, 2007, p. 81)49.

Dessa forma, nascem os interesses em A doutrina é majoritária no que concerne ao proteger os direitos e garantias fundamentais princípio da Dignidade da pessoa humana nesse da pessoa humana e são criados os inúmeros tipo de situação, como expõe de modo brilhante meios de defesa, como os pactos internacionais Ingo Sarlet: e a Organização das Nações Unidas (ONU).

A qualidade intrínseca e distintiva de cada Ser Humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa Diante disso, o Direito Internacional dos Di- tanto contra todo e qualquer ato de cunho de-

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), os “direitos humanos incluem o direito à vida e à liberdade, à liberdade de opinião e expressão, o direito ao trabalho e à educação, entre muitos outros. Todos merecem esses direitos, sem discriminação” (ONU, 2019, p. 1)47.

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DICIO. Dicionário Online. 2019. Disponível em: < https://www.dicio.com.br/>. Acesso em 05/11/2019.

46

ROCHA, C. L. A. O direito à vida digna. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004.

47 ONU – ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. O que são os Direitos Humanos? 2019. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/>. Acesso em 06/11/2019. 48 MORAES, A. Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2007, p. 80-1. NUCCI. G. S. Manual de Direito Penal, 2015. São Paulo: Saraiva, p.112. 49 MORAES, A. Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2007, p. 80-1. NUCCI. G. S. Manual de Direito Penal, 2015. São Paulo: Saraiva, p.112.

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gradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET, 2002, p. 62)50.

o indivíduo.

Diante disso, o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual desrespeita o preceito da dignidade da pessoa humana e se dá através de diversos elementos como o desrespeito, a coação, a descriminalização, a escravidão, servidão e exploração (principalmente A ênfase na explicação do autor é de sexual), entre outros. supra importância no que se diz a respeito do A vítima aliciada é submetida a situações tráfico de mulheres para fins sexuais, ressalde exploração sexual, humilhação e servidão, tando que cada ser humano tem seu direito e garantia a ser respeitado e protegido pelo privando-a de seus direitos e garantias funEstado. Cada ser humano deve ser considera- damentais, como liberdade, segurança e até do pelo ordenamento jurídico sem exceção ou mesmo o direito à vida. distinção. Aduz ainda que é dever do Estado bem como da sociedade respeitar e proteger

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS O Tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, apesar de toda sua dimensão, ainda se torna invisível perante o Estado, a sociedade e suas legislações. Existe uma barreira ao se tratar desse crime complexo. Ao realizar a pesquisa deste trabalho, deparou-se com algumas dificuldades ao fazer o levantamento de dados, notícias, telejornais ou outros programas em relação a detalhes como meio de prevenção, proteção e repressão ao crime, pois existem poucas informações para este assunto. Existe ainda um total desinteresse da sociedade pelo tema, o qual, de certa forma, vem crescendo drasticamente e alimentando a máfia criminosa. Não se trata apenas de conhecimento e sim de repressão, porém o assunto não é abordado, nem por telejornais, comerciais, jornais, revistas, internet, enfim, por vários meios de comunicação que, nesse ensejo, acabam por perder o poder.

A Lei nº 13.344/2016 mostrou-se eficaz e positivo, para o tratamento do crime no Brasil, pois trouxe ao país as normas estabelecidas pelo Protocolo de Palermo, do qual é signatário, aprimorando o enfrentamento ao tráfico de pessoas no Código Penal. Tornou-se, então, uma legislação mais rigorosa, trazendo penalidades e incluindo medidas de atenção e proteção às vítimas. Não bastam as diversas políticas para o enfrentamento do tráfico se não tiver ação. Deve-se reforçar ainda mais as fronteiras, divulgar o crime, tratá-lo como um sério problema. Os órgãos que investigam, protegem e reprendem o crime devem estar mais atentos, ter mais interesse pelo tema e realizar investigações mais profundas.

Não há dados suficientes sobre o assunto e sempre que se trata do crime tráfico de mulheres para fins sexuais, os dados são levantados a cada três anos sendo, portanto, irregular o controle de seu crescimento. 50 SARLET, I. W. Dignidade da Pessoa Humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2 ed, revista e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2002.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Código Penal. Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm> Acesso em: 05/11/2019. BRASIL. Consolidação das Leis Penais. 1932. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/bibliotecadigital/DominioPublico/72115/pdf/72115.pdf> Acesso em: 05/11/2019. BRASIL. Decreto nº 847 de 11 de outubro de 1890 – Promulga o Código Penal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm> Acesso em: 05/11/2019. BRASIL. Decreto nº 5.017 de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004- 2006/2004/Decreto/D5017.htm> Acesso em: 05/11/2019. BRASIL. Decreto Lei 2.848 de 07 de dezembro de 1940 – Código Penal. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm> Acesso em: 29/08/2019. BRASIL. Lei 13.344 de 06 de outubro de 2016. Dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas; altera a Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); e revoga dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13344.htm> Acesso em: 29/08/2019. CNJ – CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. O que é tráfico de pessoas? 2015. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/assuntos-fundiarios- trabalho-escravo-e-trafico-de-pessoas/trafico-de-pessoas/> Acesso em: 30/08/2019. COSTA, R. Brasil tem 241 rotas de tráfico de pessoas, diz ONU. Jornal O Estado de São Paulo. Edição eletrônica 06 de novembro de 2012. Disponível em: <https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-tem-241-rotas-de-trafico-de- pessoas-diz-onu-imp-,956103> Acesso em: 29/08/2019. DICIO. Dicionário Online. 2019. Disponível em: < https://www.dicio.com.br/>. Acesso em 05/11/2019. G1 – Globo Notícias. Paraense vítima de tráfico humano fala sobre os traumas da exploração. 2013. Disponível em: <http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2013/01/paraense-vitima-de-trafico-humanofala-sobre-os-traumas-da-exploracao.html> Acesso em: 29/08/2019.

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RESPONSABILIDADE CIVIL NOS CASOS DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA NO BRASIL Bianca Eduarda Barcaça de Oliveira Técnica em Contabilidade, Bacharel em Direito pela Faculdade Marechal Rondon, este artigo é um resumo do seu Trabalho de Conclusão de Curso, sob a orientação da Professora Ms. Juliana Maria Corvino de Araújo.

Tainá Mariano Enfermeira obstétrica no hospital estadual de Botucatu, formada pela Faculdade Marechal Rondon, especialização na UNINGÁ, especialização em pré-natal pela UNIFESP, tutora da residência da enfermagem obstétrica da UNESP.

SUMÁRIO Introdução Noções Gerais De Violência Obstétrica Reconhecimento Da Violência Obstétrica E Suas Definições Práticas Obstétricas Negligenciadas Noções Gerais Da Responsabilidade Civil Espécies De Responsabilidade Civil Responsabilidade Civil E Responsabilidade Penal Responsabilidade Subjetiva e Objetiva Responsabilidade Contratual e Responsabilidade Extracontratual Elementos Essenciais Da Responsabilidade Civil Conduta Humana Culpa Genérica Ou Lato Sensu Dano Ou Prejuízo Nexo De Causalidade Da Responsabilidade Civil Do Profissional Médico Obstetra Espécies De Danos Indenizáveis Decorrentes Da Violência Obstétrica Ministério Da Saúde Veta Uso Do Termo “Violência Obstétrica” Conclusão Referências 140


RESUMO A violência obstétrica é uma espécie de violência de gênero que atinge diversas mulheres, e o presente trabalho tem como objetivo esclarecer suas variadas formas. Para que isso seja possível, primeiro serão apresentados breves fatos da história da pratica obstétrica e intervenções relacionadas, analisando também o conceito de violência obstétrica, através da revisão de estudos e marcos legais referentes à temática. Apresenta-se também as noções gerais da responsabilidade civil, observando as suas espécies e os elementos essenciais para surgir o dever de reparar. Desta forma, indicamos as condutas que violam as normas e as leis vigentes do direito à gestante e, consequentemente, o enquadramento do instituto da responsabilidade civil nos casos de violência obstétrica, com o objetivo de ter seus danos reparados.

PALAVRAS CHAVE Danos indenizáveis; Responsabilidade civil; Violência obstétrica;

ABSTRACT Obstetric violence is a kind of gender violence that affects many women, and the present work aims to clarify its various forms. To make this possible, first brief facts of the history of obstetric practice and related interventions will be presented, also analyzing the concept of obstetric violence, through the review of studies and legal frameworks related to the theme. It also presents the general notions of civil liability, observing their species and the essential elements to emerge the duty to repair. Thus, we indicate the conduct that violates the rules and laws in force of the right to pregnant women and, consequently, the framework of the institute of civil liability in cases of obstetric violence, with the purpose of having their damages repaired.

KEYWORDS Civil responsability. Obstetric violence. Damages

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1. INTRODUÇÃO O presente trabalho pretende analisar a ocorrência da responsabilização civil nos casos de violência obstétrica, podendo entendê-la como uma das espécies de violência de gênero, se manifestando através de caracterizadores psicológicos, físicos, sexuais e institucionais, podendo resultar em traumas físicos e emocionais significativos para o resto da vida das mulheres que a sofrem.

mulher, com vasta disputa no campo das políticas de saúde pública.

Dentre esses aspectos que se destacam, a responsabilidade civil e a área da saúde se apresentam hodiernamente como uma das esferas mais mostradas nos tribunais pelas ações de caráter indenizatório, pois a ótica da responsabilidade civil representa a lesão que, devido a certo evento, sofre uma pessoa, conViolência obstétrica é uma expressão tra a sua vontade, em qualquer bem ou inteque agrupa as formas de violência e danos resse jurídico patrimonial ou moral. originados no cuidado obstétrico profissioA temática da responsabilidade é, definal, o termo “violência obstétrica” foi criado nitivamente, muito ampla, inesgotável. É um pelo Dr. Rogelio Pérez D’Gregorio presidente instituto dinâmico e flexível, sempre evoluinda Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia da do para atender as necessidades sociais que Venezuela, e desde então nomeou as lutas do surgem no transcorrer do tempo. movimento feminista pela eliminação e punição dos atos e procedimentos tidos como Portanto, o presente artigo traz como violentos realizados durante o atendimento e objetivo esclarecer as diversas formas de vioassistência ao parto. lência obstétrica, abordar os princípios bioéticos que são negligenciados e a violação dos A violência infringida nos corpos feminidireitos das mulheres. Evidenciar a falta de nos fere categorias universais de direitos huprofissionais que valorizam a dignidade humamanos como: igualdade, dignidade, respeito e na, reconhecer a necessidade da mudança sovalor da pessoa humana, trazendo um tipo de cial de paradigmas dessa violência. Com isso, violência de gênero num contexto de políticas demonstrar o reconhecimento da responsabipúblicas e direitos humanos sobre a violênlidade civil e suas formas de indenização. cia obstétrica, um conflito de discurso médico-cientifico vigente com o protagonismo da

1. PRIMEIRO CAPITULO 1.1 NOÇÕES GERAIS DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA Analisando a história do parto no Brasil, nota-se que houve um aperfeiçoamento sobre o período gestacional, pois, antigamente o parto era realizado por parteiras, e que obtinham apenas as experiências passadas de geração a geração. Os partos eram realizada em espaços domésticos de forma íntima e privada.

lheres como fatalidade, algo que não se podia fugir e com apoio de outras mulheres havia a tentativa de trazer conforto para parturiente, em um processo de solidariedade envolvendo o nascer.1

No século XX, na década de 40, a instituição médica foi intensificada e consolidou seu controle no processo reprodutivo. Isso Durante o século XIX o parto, bem como ocorreu por conta da necessidade de revertudo que nele ocorria, era aceito pelas mu- ter as altas taxas de mortalidade materna e 1 ALVARENGA, Sarah Pereira; KALIL, José Helvécio. Violência Obstétrica: como o mito “parirás com dor” afeta a mulher brasileira. Revista da Universidade Vale do Rio do Verde, Três Corações, v. 14, n. 2, p. 641-649, ago/dez. 2016.

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infantil na época, e, por conta disso, houve a introdução da medicina preventiva, passando a ser vivenciado em instituições de saúde com a presença de vários atores conduzindo este período. Assim, a tecnologia substituiu o lugar de parteiras e o parto tornou-se um acontecimento hospitalar.2

sões físicas, verbais e falta de respeito com o direito e a decisão por parte das parturientes, sendo certa que, essa violência destacam-se, na maioria dos casos, através de procedimentos invasivos e dolorosos sem autorização da paciente.3

Esse momento especial da vida de uma mulher tem sido alvo, muitas vezes, de agres-

1.2 RECONHECIMENTO DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E SUAS DEFINIÇÕES A violência contra a mulher é caracteri- momento do parto, colocando a mulher à subzada por ato ou conduta causando dor, dano missão do profissional de saúde.5 ou sofrimento de ordem física, sexual ou psiDessa forma, a VO é considerada uma cológica.4 violação dos direitos das mulheres no procesEntende-se por violência obstétrica qual- so de parto, que inclui perda da autonomia e quer ato exercido pelo profissional da saúde decisão sobre seu próprio corpo.6 ao processo reprodutivo da mulher, referente ao seu corpo, através de uma atenção desumanizada, abusos de ações intervencionistas, medicalização e transformação patológica do processo de parturição. A expressão Violência obstétrica (VO), é utilizada para descrever diversas formas de violência durante a prática obstétrica profissional e nela estão presentes procedimentos desnecessários e danosos. O exercício do poder e da autoridade do profissional de saúde, promove uma anulação do direito da mulher, profissionais obstetras com suas técnicas intervencionistas e sua soberania coíbem as escolhas das mulheres no 2 GOMES, Ana Rita Martins et al. Assistência de enfermagem obstétrica na humanização do parto normal. Revista Recien - Revista Científica de Enfermagem, São Paulo, v. 4, n. 11, p. 23-27, 10 ago. 2014. 3 PEREIRA, Jéssica Souza et al. Violência Obstétrica: ofensa à dignidade humana. Brazilian journal of surgery and clinical research - BJSCR, Belo Horizonte, v. 15, n. 1, p. 103-108, jun./ago. 2016. 4 ANDRADE, Briena Padilha; AGGIO; Cristiane de Melo. Violência Obstétrica: a dor que cala. In: Anais do III Simpósio Gênero e Políticas Públicas, 2014. Anais. Londrina 5 RODRIGUES, Diego Pereira et al. O descumprimento da lei do acompanhante como agravo à saúde obstétrica. Texto e Contexto – Enfermagem, Florianópolis, v. 26, n. 3, 21 ago. 2017. 6 ZANARDO, G.L.P; CALDERÓN, M.; NADAl, A.H.R.; HABIGZANF, L.F. Violência Obstétrica no Brasil: uma revisão narrativa. 2017.

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1.3 PRÁTICAS OBSTÉTRICAS NEGLIGENCIADAS Segundo D’Gregorio (2010) citado por (Sena e Tesser, 2017, p. 211)7 a violência obstétrica estaria presente em diversas praticas, como:

Enema; Ocitocina sintética; Jejum de comida e agua; Exames de toques frequentes usados para conferir dilatação e a descida do bebe e Amniotomia.

a) Proibir a mulher de ser acompanhada Todas as práticas citadas em uso abusipor seu parceiro ou outra pessoa de sua famí- vo do poder sem justificativa e consentimento lia ou círculo social; da mulher se enquadram na categoria de crime contra a integridade física da mulher, ou b) Realizar qualquer procedimento sem seja, lesão corporal, art. 129 do Código Penal previa explicação do que é ou do motivo de Brasileiro, sendo considerada violação do diestar sendo realizado; reito humano das mulheres a sua dignidade c) Realizar qualquer procedimento sem e a sua integridade corporal.8 anuência previa da mulher; Enquadram-se também neste conceito os atos praticados pela medicina já superados, os quais não tem comprovação cientifica de seu benefício, porém ainda muito utilizados, sendo a Episiotomia; Manobra de Kristeler;

2. SEGUNDO CAPÍTULO 2.1 NOÇÕES GERAIS DA RESPONSABILIDADE CIVIL A palavra responsabilidade tem origem no verbo latino respondere que para o direito é o surgimento de uma obrigação derivada, significando que alguém deve assumir consequências variadas de um fato jurídico, responder pela atividade vinculada.9 Segundo Gagliano e Pamplona Filho: A noção jurídica de responsabilidade pressupõe a atividade danosa de alguém que, atuando a priori ilicitamente, viola uma norma jurídica preexistente (legal ou contratual), subordinando-se, dessa forma, as consequências do seu ato (obrigação de reparar).

A ideia de responsabilidade é muito ampla, e de fato com o avanço da sociedade esse instituto está em constante evolução, buscando um equilíbrio para os prejuízos causados pela atuação do homem e atendendo as necessidades sociais que são cada vez mais notórias.10 Para Dias (1994): “Toda manifestação da atividade humana traz em si o problema da responsabilidade. ” Analisando o desenvolvimento das teorias da responsabilidade civil, é importante entender a evolução desse pensamento, tra-

7 SENA, Ligia Moreiras; TESSER, Charles Dalcanale. Violência Obstétrica no Brasil e o ciberativismo de mulheres mães: relato de duas experiências. Revista Interface, Florianópolis, v. 21, n. 60, p. 209-20, 2017. 8 MARIANI, Adriana Cristina; NETO, José Osório do Nascimento. Violência Obstétrica como violência de gênero e violência institucionalizada: Breves considerações a partir dos direitos humanos e do respeito à mulheres. Revista UNIBRASIL, Curitiba, v. 2, n. 25, p. 48-60, jul/dez. 2016. 9 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Direito civil: Responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. 10 SOUZA, Lennon Marcus da Silva. Responsabilidade civil nos casos de violência obstétrica. 2017. 68 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Centro Universitário Toledo, Araçatuba, 2017.

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zer algumas considerações gerais sobre esse instituto, a qual gerou tanto aprofundamento e discussões no quais nem sempre foram tão precisos.11

2.2 ESPÉCIES DE RESPONSABILIDADE CIVIL O instituto da responsabilidade civil, em vejamos algumas diferenciações de conceitos função de algumas peculiaridades dogmáticas, básicos. costuma ser classificado pela culpabilidade e pela norma jurídica violada. Em razão disso,

2.3 RESPONSABILIDADE CIVIL E RESPONSABILIDADE PENAL No período romano não havia uma distinção entre responsabilidade civil e responsabilidade penal, foi com a Lei Aquiliana que se iniciou essa distinção. Entretanto, não se restringe apenas ao Direito Civil a concepção da responsabilidade, aplica-se também aos outros campos do Direito, como na esfera penal, administrativa e tributária. O Direito serve para atuar de forma a prevenir os interesses públicos, contudo, vale lembrar que o direito penal se baseia em princípios e fundamentos distintos dos outros ramos e é utilizado apenas em ultima ratio, decorrente de seu caráter fragmentário, enquanto o direito civil não é usado como ultima ratio, pois aqui viola o interesse particular, privado.12

pecuniária. É preciso, que essa distinção entre civil e penal seja feita, pois para a responsabilidade penal independe de prejuízo para que seja aplicada a punição, onde o sistema é repressivo e preventivo, tirando o delinquente da sociedade e o privando de sua liberdade, enquanto na responsabilidade civil é necessário o prejuízo para que seja aplicada a sanção e realizado o reparo do dano, aqui o sistema tem o intuito de reintegrar o prejudicado a sua situação anterior.13

De fato, a responsabilidade civil busca o status quo ante, onde o ofensor tem a obrigação de reparar o dano causado, se não for possível reparar, será a obrigação convertida para o pagamento de uma indenização ou de uma compensação, enquanto, na responsabilidade penal o ofensor sofrera aplicação de uma cominação legal, podendo ser privativa de liberdade, restritiva de direitos ou mesmo 11 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Direito civil: Responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. 12 SOUZA, Lennon Marcus da Silva. Responsabilidade civil nos casos de violência obstétrica. 2017. 68 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Centro Universitário Toledo, Araçatuba, 2017. 13 HILÁRIO, Ligia Ottonelli. Responsabilidade civil decorrente de erro médico em cirurgia plástica. 2012. 85 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.

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2.4 RESPONSABILIDADE SUBJETIVA E OBJETIVA Com base na ideia de culpa, nasce a teoria clássica da responsabilidade civil, conhecida também como teoria da culpa, ou subjetiva, em face da teoria clássica a culpa era fundamento da responsabilidade. O pressuposto principal que acarreta o dever de indenizar é o fato culpa, mas, a responsabilidade civil subjetiva decorre tanto do dano causado pelo ato culposo quanto doloso..

Coelho (2012) citado por Souza (2017, n.p)15 que:

Contudo Hilario (2012), diz que há uma grande dificuldade em demonstrar a culpa do agente ou da antijuridicidade de sua conduta para ensejar a sua responsabilidade civil, ou seja, a vítima poderá obter sua reparação desde que prove a culpa do agente. Logo, como relatado pelo código civil de 1916 e mantido pelo de código civil de 2002 não basta que o dano seja por conduta humana, mas, que o mesmo tenha sido causado com intenção de causar prejuízo ou que o ato demonstre violação de um dever de cuidado, tornando então necessária obrigação de reparação que vem expressa no artigo 927 do Código Civil de 2002, que relatam o seguinte:

O código civil de 2002 acrescentou a teoria da responsabilidade civil objetiva, que se baseia na chamada teoria do risco, no código civil de 1916 a regra era a teoria da responsabilidade civil subjetiva, mas com as mudanças a responsabilidade civil objetiva foi acrescentada. Ambas as teorias são aplicadas, a responsabilidade subjetiva será aplicada quando a responsabilidade objetiva não tiver disposição legal expressa, ou seja, a responsabilidade objetiva não substitui à subjetiva, mas, fica circunscrita aos seus justos limites (HILARIO, 2012).

A responsabilidade civil subjetiva é a obrigação derivada de ato ilícito. O sujeito que incorre na ilicitude é devedor da indenização pelos prejuízos decorrentes de sua conduta e o prejudicado, o credor. A prestação é a entrega de dinheiro em valor correspondente aos prejuízos patrimoniais e compensadores dos Conforme primeira parte do art. 159 do extrapatrimoniais. Código Civil de 1916 “Aquele que, por ação Ato ilícito, recorde-se, é a conduta culou omissão voluntária, negligência, ou impruposa violadora de direito que causa prejuízo a dência, violar direito, ou causar prejuízo a ououtrem (CC, art. 186). Corresponde a comportrem, fica obrigado a reparar o dano”. Regra tamento repudiado pela sociedade, proibido está mantida pelo código civil de 2002 em por lei. seu art. 186 “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar Segundo Gonçalves (2012)16 citado por direito e causar dano a outrem, ainda que ex- Souza (2017, p. 56) a doutrina majoritária clusivamente moral, comete ato ilícito”. Atre- brasileira filiou-se a teoria subjetiva, segundo la-se a teoria da culpa com o comportamento fundamentação no artigo 186 do Código Civil do agente, que caminhando inverso da lei, ao já mencionado, surgindo então o dever e obricausar dano terá o dever de indenizar o preju- gação de reparação decorrentes do dolo e da dicado.14 culpa.

Conforme trás o art. 927 §único:

Art. 927, parágrafo único. Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obriga- Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos do a repara-lo. 14 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Direito civil: Responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2003 15 SOUZA, Lennon Marcus da Silva. Responsabilidade civil nos casos de violência obstétrica. 2017. 68 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Centro Universitário Toledo, Araçatuba, 2017. 16

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Responsabilidade civil. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

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especificados em lei, ou quando a atividade GLIANO; PAMPLONA FILHO, 2003). normalmente desenvolvida pelo autor do Cavalieri Filho (2009) citado por Hilario dano implicar, por sua natureza, risco para os (2012, p. 23)19: direitos de outrem. A aplicação da responsabilidade objetiHistoricamente, a partir da segunda meva se fundamenta na teoria do risco. Risco é tade do século XIX foi que a questão da resperigo, é probabilidade de dano, importando, ponsabilidade objetiva tomou corpo e apareisso, dizer que aquele que exerce uma ativiceu como um sistema autônomo no campo da dade perigosa deve-lhe assumir os riscos e responsabilidade civil. (GONÇALVES,2017)17. reparar o dano dela decorrente. Todo prejuízo Quando o assunto é responsabilidade civil deve ser atribuído ao seu autor e reparado por objetiva não é necessária à caracterização de quem o causou, independentemente de ter ou culpa, é irrelevante aqui o dolo ou a culpa do não agido com culpa. agente causador do dano, tendo em vista necessariamente apenas um elo de causalidade Para a teoria do risco, toda pessoa que entre o dano e a conduta do agente para que exerce alguma atividade gerara um risco de então surja o dever de indenizar (GAGLIANO; dano para terceiros, e deverá reparar o dano PAMPLONA FILHO, 2003)18. se assim houver, mesmo que sua conduta seja isenta de culpa, pois é deslocada aqui a noção Carlos Roberto Gonçalves (2017, n.p) de culpa para a ideia de risco. afirma: Induz Glagiano e Pamplona Filho (2003)20 A lei impõe, entretanto, a certas pessoas, que: em determinadas situações, a reparação de um dano independentemente de culpa. Quando Todas essas considerações vêm em deisso acontece, diz-se que a responsabilidade é corrência de violação ao preceito fundamental legal ou “objetiva”, porque prescinde da culpa de que ninguém deve ser lesado pela conduta e se satisfaz apenas com o dano e o nexo de alheia, todavia, a situação se torna mais grave causalidade. Esta teoria, dita objetiva, ou do quando o prejuízo decorre de um descumpririsco, tem como postulado que todo dano é mento de uma obrigação espontaneamente indenizável, e deve ser reparado por quem a assumida pelo infrator, em função da celebraele se liga por um nexo de causalidade, inde- ção de um negócio jurídico. pendentemente de culpa. Como já visto, a responsabilidade civil O que irá fundamentar, portanto a teoria surge em face de um descumprimento obriobjetiva será a relação entre o dano e o nexo gacional e com o intuito de obter um retorno de causalidade, logo, independente de culpa o de reparação, decorre este do inadimplemendano será indenizável, razão pela qual se fala to culposo ou doloso, de obrigação legal ou em responsabilidade independente de culpa. contratual. Dessa forma, divide-se a responCom base nessa teoria o agente responderá sabilidade em dois ramos: responsabilidade pelo dano objetivo, levando em conta que ele contratual e responsabilidade extracontratual assumiu certo risco ao praticar determinada (HILARIO, 2012)21. conduta, sem intenção de causar dano (GA17

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Responsabilidade civil. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

18 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Direito civil: Responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2003 19 HILÁRIO, Ligia Ottonelli. Responsabilidade civil decorrente de erro médico em cirurgia plástica. 2012. 85 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. 20 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Direito civil: Responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2003 21 HILÁRIO, Ligia Ottonelli. Responsabilidade civil decorrente de erro médico em cirurgia plástica. 2012. 85 f.

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2.5 RESPONSABILIDADE CONTRATUAL E RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL O instituto da responsabilidade civil do vínculo de uma relação jurídica entre as pode ser fichado de acordo ao fato gerador, partes; do ônus da prova quanto a culpa; e a seja em contratual ou extracontratual (SOU- diferença quanto à capacidade. ZA, 2017)22. Justamente por isso é que na responsaÉ notória a dificuldade para demonstrar bilidade contratual quando se discorre sobre a culpa do agente ou da antijuricidade de sua o onus probandi a culpa é presumida, inverconduta que ensejara sua responsabilização. tendo-se o ônus da prova, cabendo ao credor Contudo, está dificuldade reduz quando a comprovar apenas que a obrigação fixada não conduta ensejadora da responsabilização é re- foi cumprida e restando ao devedor provar, sultado de um descumprimento de um dever ante o inadimplemento, a inexistência de sua contratual, pois, em tese presumisse-a culpa culpa ou presença de qualquer excludente do tendo em vista que a parte se obrigou direta- dever de indenizar, se assim o fizer estará demente a obrigação e não cumpriu (GAGLIA- sobrigado da obrigação de reparar o prejuízo NO; PAMPLONA FILHO, 2003). causado a vítima. Por outro lado, vemos que na responsabilidade extracontratual o onus Nota-se que a partir de uma relação jurídiprobandi caberá a vítima, deverá a culpa do ca obrigacional é que surge a responsabilidade agente ser provada pela vítima. civil contratual, onde o dano é decorrente de um dever especial acordado entre as partes e Cavalieri Filho (2000) citado por Gagliafixado em contrato, sendo uma obrigação pre- no e Pamplona Filho (2003, p.18) (peguei do existente. Enquanto, na responsabilidade civil art. 16) ilustra: essa presunção de culpa não extracontratual também chamada de aquiliana resulta do simples fato de estarmos em sede não existe uma relação anteriormente fixada, de responsabilidade contratual. O que é decinão há vínculo entre as partes. Entretanto, sivo é o tipo de obrigação assumida no conhouve o prejuízo decorrente de uma violação trato. Se o contratante assumiu a obrigação de dever fundado em algum princípio geral de de alcançar um determinado resultado e não direito (SOUZA, 2017)23. conseguiu, haverá culpa presumida, ou, em alguns casos, até responsabilidade objetiva; se Ressalta-se que tanto na responsabilidaa obrigação assumida no contrato foi de meio, de contratual quanto na extracontratual havea responsabilidade, embora contratual, será rá violação de um dever jurídico pré-estabelefundada na culpa provada. cido, mas com diferenciações que surgem da essência desse dever, sendo esta de um conPor fim, a quem critique essa duplicidatrato fixado anteriormente ou de um preceito de nas formas, defendendo a tese unitária ou geral de direito (SOUZA, 2017). monista, dando ênfase de que não importa as bases sob a qual a responsabilidade civil no Gagliano e Pamplona Filho (2003)24 suscenário jurídico se apresente, mas, sim que tentam que os elementos diferenciadores seus efeitos são uniformes, dando por fim dessas formas de responsabilização decorrem uma essência igualitária para a configuração Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. 22 SOUZA, Lennon Marcus da Silva. Responsabilidade civil nos casos de violência obstétrica. 2017. 68 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Centro Universitário Toledo, Araçatuba, 2017. 23 SOUZA, Lennon Marcus da Silva. Responsabilidade civil nos casos de violência obstétrica. 2017. 68 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Centro Universitário Toledo, Araçatuba, 2017. 24 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Direito civil: Responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2003

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da responsabilidade (SOUZA, 2017)25.

2.6 ELEMENTOS ESSENCIAIS DA RESPONSABILIDADE CIVIL Quanto aos elementos da responsabilidade civil não há uma generalidade doutrinária, pois, vai de cada doutrinador (TARTUCE, 2017).

Rodolfo Pamplona Filho que apresentam apenas três elementos essenciais para que se dê o dever de indenizar, sendo: a) conduta humana (positiva ou negativa), b) dano ou prejuízo e c) nexo de causalidade, entendendo que, a culpa Alguns doutrinadores se diferenciam do genérica seria apenas um elemento acidental que a doutrina tradicionalmente traz, que seda responsabilidade civil (TARTUCE, 2017). ria quatro pressupostos essenciais, incluindo a culpa genérica como dever de indenizar, temos como exemplo Pablo Stolze Gagliano e

2.7 CONDUTA HUMANA A conduta humana nada mais é do que o comportamento do agente através da ação (conduta positiva) ou omissão (conduta negativa) que venha causar dano a outrem (TARTUCE, 2017)26. Stoco (2007, p. 131) citado por Souza (2017, p. 44)27 observa: [...] um comportamento do agente, positivo (ação) ou negativo (omissão), que, desrespeitando a ordem jurídica, cause prejuízo a outrem, pela ofensa à bem a direito deste. Esse comportamento (comissivo ou omissivo) deve ser imputável à consciência do agente, por dolo (intenção) ou por culpa (negligên-

cia, imprudência ou imperícia), contrariando, seja um dever geral do ordenamento jurídico (delito civil), seja uma obrigação em concreto (inexecução da obrigação ou de contrato) Observa-se que o comportamento do agente é que vai classificar se a conduta foi positiva ou negativa, tendo em vista que a primeira delas diz respeito quanto a um comportamento ativo gerando o dano, enquanto a segunda trata-se de uma abstenção, conduta não praticada, e que por conta disso também causou danos a outrem (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2003)28.

2.8 CULPA GENÉRICA OU LATO SENSU Mediante a descrição de culpa voluntá- ro. ria apontada no art. 186 do Código Civil, está O grau de culpa restará disposto nos configura-se como dolo. Definiremos dolo, no artigos 944 e 945 do Código Civil, momento que concerne a responsabilidade civil, como pelo qual o dano se apresenta consumado. A a vontade e a realização de prejudicar tercei25 SOUZA, Lennon Marcus da Silva. Responsabilidade civil nos casos de violência obstétrica. 2017. 68 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Centro Universitário Toledo, Araçatuba, 2017. 26 TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 7. ed. São Paulo: Forense, 2017. 27 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Direito civil: Responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2003 28 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Direito civil: Responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2003

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verificação do grau de culpa tem como intuito a avaliação para a respectiva indenização dada a responsabilidade civil do autor.

2.9 DANO OU PREJUÍZO Dano ou prejuízo é elemento essencial, Para que o dano seja indenizável é nee não poderia se falar em indenização se não cessário destacar alguns pressupostos: a) é houvesse o mesmo (SOUZA, 2017)29. imprescindível a violação de um interesse, b) o dano deve ser certo e efetivo, c) o dano deve Para Diniz (2003) citada por Souza (2017, subsistir, quer dizer, se o dano for reparado, p. 45) “o dano é a lesão (diminuição ou desperde-se o interesse da responsabilidade civil. truição) que, devido a certo evento, sofre uma pessoa, contra a sua vontade, em qualquer bem ou interesse jurídico, patrimonial ou moral”.

2.10 NEXO DE CAUSALIDADE O nexo de causalidade é o vínculo da res- determinado resultado é imputável ao agente; ponsabilidade civil (TARTUCE, 2017)30. que relação deve existir entre o dano e o fato para que este, sob a ótica do Direito, possa ser Para que se admita a obrigação de indeconsiderado causa daquele. nizar, é muito importante que se exista o nexo de causalidade, que nada mais é que uma rePortanto, conclui-se que pode o dano lação entre o prejuízo sofrido e o comporta- existir, mas, se não houver o nexo causal não mento (ação ou omissão) que o causou, pois há de se falar em responsabilização (SOUZA, não haveria prejuízo sem a conduta do agente 2017). (SOUZA, 2017)31. Cavalieri Filho (2003) citado por Souza (2017, p. 47) afirma: Não basta que o agente tenha praticado uma conduta ilícita, tampouco que a vítima tenha sofrido um dano. É preciso que esse dano tenha sido causado pela conduta ilícita do agente, que exista entre ambos uma necessária relação de causa e efeito. Em síntese, é necessário que o ato ilícito seja a causa do dano, que o prejuízo sofrido pela vítima seja resultado desse ato, sem o quê a responsabilidade não correrá a cargo do autor material do fato. Daí a relevância do chamado nexo causal. Cuida-se, então, de saber quando um 29 SOUZA, Lennon Marcus da Silva. Responsabilidade civil nos casos de violência obstétrica. 2017. 68 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Centro Universitário Toledo, Araçatuba, 2017. 30 TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 7. ed. São Paulo: Forense, 2017. 31 SOUZA, Lennon Marcus da Silva. Responsabilidade civil nos casos de violência obstétrica. 2017. 68 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Centro Universitário Toledo, Araçatuba, 2017.

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3. DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO PROFISSIONAL MÉDICO OBSTETRA Conforme estudado anteriormente acerca da responsabilidade civil em geral, há várias formas de responsabilização, por isso passaremos agora ao estudo sobre a responsabilidade do médico obstetra.

da ou pública. Pois, conforme entendimento doutrinário e jurisprudencial, se a relação jurídica que se estabelece entre o médico e a paciente se deu nos preceitos de direito privado, trata-se de modalidade contratual. Diferentemente da esfera de direito público, pois a relaNenhuma profissão está livre de, por ção jurídica estabelecida decorre diretamente quaisquer situações vir incorrer em resultado de lei. (SOUZA, 2017). danoso ao que se esperava. Por isso não se diferenciando, a medicina também se encaiTratando-se de relação jurídica na esfera xa nesse quadro, e a visão da medicina não se privada, segundo o art. 951, do Código Civil, resume apenas em procedimentos curativos e a responsabilidade civil do médico será averidiagnósticos, mas também em prevenir males guada mediante a sua culpa: a saúde humana (THOMAZ JÚNIOR). Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 Segundo Stoco (2017, p. 112) citado por e 950 aplica-se ainda no caso de indenização Souza (2017, p. 51)32, aquele que sofrer um devida por aquele que, no exercício de atividano, seja físico ou moral, ocorrido com o des- dade profissional, por negligência, imprudêncumprimento de seus direitos, seguramente cia ou imperícia, causar a morte do paciente, poderá recorrer a responsabilidade civil para agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilise ver ressarcido. tá-lo para o trabalho. Com isso, nota-se que o melhor meio de restabelecer a violência obstétrica é a responsabilidade civil, pois entende-se que não deve revigorar apenas a integridade física, psicológica e moral, mas também garantir uma reparação mediante ressarcimento. (SOUZA, 2017).

Portanto, o agente deverá mostrar que o profissional contribuiu culposamente para com o prejuízo não sendo suficiente apenas que o mesmo alegue o erro e o prejuízo, de forma que não se utilizou dos meios adequados disponíveis da ciência medica, sendo assim, para que o profissional se responsabilize, os prejuízos suportados pelo paciente Para verificar se houve responsabilidadevem decorrer de culpa quando da realizade civil é preciso verificar sobre a conduta do ção do tratamento médico, da identificação profissional. A responsabilidade civil do médide imperícia, negligencia ou imprudência. co surge como surge a responsabilidade civil de qualquer profissional ou de quem quer que, Nesse entendimento Fabrício Zamprogpor ação ou omissão voluntária, negligencia na Matielo (1998, p.66) citado por Mariana ou imprudência, violar direito, ou causar pre- Pretel34 traz que: juízo a outrem, conforme traz o artigo 159 do No que concerne à responsabilidade civil Código Civil (THOMAZ JÚNIOR)33. dos médicos, segue-se a regra geral da imprescinAntes de mais nada, devemos também dibilidade da demonstração da culpa do agente, averiguar se a relação se deu em esfera priva- amenizadas as exigências quanto à prova inarre32 SOUZA, Lennon Marcus da Silva. Responsabilidade civil nos casos de violência obstétrica. 2017. 68 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Centro Universitário Toledo, Araçatuba, 2017. 33

JÚNIOR, Dimas Borelli Thomaz. Responsabilidade civil do médico. 2012.

34 MARIANI, Adriana Cristina; NETO, José Osório do Nascimento. Violência Obstétrica como violência de gênero e violência institucionalizada: Breves considerações a partir dos direitos humanos e do respeito à mulheres. Revista UNIBRASIL, Curitiba, v. 2, n. 25, p. 48-60, jul/dez. 2016.

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dável e profunda de sua ocorrência ante os termos consignados na legislação, quando a natureza da demanda ou as circunstâncias concretas apontarem para a responsabilidade mediante a produção de elementos de convicção mais singelos. (...) Em princípio, a contratação não engloba qualquer obrigação de curar o doente ou de fazer melhorar a qualidade de vida desfrutada, porque ao profissional incumbe a tarefa de empregar todos os cuidados possíveis para a finalidade última – e acima de tudo moral – de todo tratamento, ou seja, a cura seja alcançada. Todavia, a pura e simples falta de concretização do desiderato inicial de levar à cura não induz a existência da responsabilidade jurídica, que não dispensa a verificação da culpa do médico apontado como causador do resultado nocivo.

corps, a conspiração do silêncio, a solidariedade profissional, de sorte que o perito, por mais elevado que seja o seu conceito, não raro, tende a isentar o colega pelo ato incriminado. tor:

Diante dessa circunstância, conclui o au-

[...] deve o juiz estabelecer quais os cuidados possíveis que ao profissional cabia dispensar ao doente, de acordo com os padrões determinados pelos usos da ciência, e confrontar essa norma concreta, fixada para o caso, com o comportamento efetivamente adotado pelo médico. Se ele não o observou, agiu com culpa. Essa culpa tem de ser certa, ainda que não necessariamente grave. Essa é a fórmula irreprochável proposta pelo insigne Min. Ruy Rosado de Aguiar Jr. em seu magníVale ressaltar a grande dificuldade da fico artigo sobre a “Responsabilidade civil do vítima de violência obstétrica de comprovar a médico”, na RT 718/38 (CAVALIERI FILHO, culpa do profissional de saúde. 2003, p. 373). Sérgio Cavalieri Filho (2003, p. 372) citaPortanto, para que se possa ser resdo por Souza (2017, p. 54)35 comenta: ponsabilizado civilmente, faz-se necessário Em primeiro lugar porque os Tribunais comprovar o nexo de causalidade entre a são severos na exigência da prova. Só se de- conduta do agente e o dano causado. Nessa monstrando erro grosseiro no diagnóstico, na medida, conclui-se que as intervenções que medicação ministrada, no tratamento desen- caracterizam a violência obstétrica causam, volvido, ou, ainda, injustificável omissão na dano a mulher, mas, nem todos poderão se assistência e nos cuidados indispensáveis ao enquadrar na esfera da responsabilidade cidoente, tem-se admitido a responsabilização vil do profissional, visto que os pressupostos do médico. Em segundo lugar porque a maté- do instituto e os danos a que foi submetida, ria é essencialmente técnica, exigindo prova sejam morais ou físicos, devem ser compropericial, eis que o juiz não tem conhecimento vados pela vítima. (SOUZA, 2017)36. científico para lançar-se em apreciações técnicas sobre questões médicas. E, nesse campo, lamentavelmente, ainda funciona o escript de

3.1 ESPÉCIES DE DANOS INDENIZÁVEIS DECORRENTES DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA Como estudado, surge a obrigação de 2017). indenizar quando o indivíduo causa a outrem Para Sérgio Cavalieri Filho (2003, p. 88) um dano moral ou patrimonial, decorrente de citado por Souza (2017, p. 57) “o dano é, sem uma ação ou omissão voluntária que implidúvida, o grande vilão da responsabilidade cique descumprimento de um direito (SOUZA, 35 SOUZA, Lennon Marcus da Silva. Responsabilidade civil nos casos de violência obstétrica. 2017. 68 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Centro Universitário Toledo, Araçatuba, 2017. 36 SOUZA, Lennon Marcus da Silva. Responsabilidade civil nos casos de violência obstétrica. 2017. 68 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Centro Universitário Toledo, Araçatuba, 2017.

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vil. Não haveria que se falar em indenização, nem em ressarcimento, se não houvesse o dano. Pode haver responsabilidade sem culpa, mas não pode haver responsabilidade sem danos”. Com base nisso, um dos principais pilares que resguarda as vítimas de violência obstétrica é o princípio da dignidade da pessoa humana que traz reflexos sobre o direito à vida, a integridade física e psíquica, o respeito a intimidade e a privacidade, entre outros. O mesmo está expresso no artigo 1°, inciso III da Constituição Federal: (SOUZA, 2017).

Processual civil. Alegação de deficiente atendimento médico-hospitalar ao paciente. Legitimidade dos pais da vítima para integrar o polo ativo. Danos morais indiretos ou reflexos. Precedentes do STJ. Exclusão do processo afastada. Agravo retido provido. Responsabilidade civil. Parto cirúrgico (cesariana). Quadro infeccioso pós-operatório. Perícia que, apesar de demonstrar tratar-se de risco inerente ao procedimento, não vinculou o quadro a agentes exógenos contidos em outro ambiente, nem em momento algum o imputou a reação do próprio organismo da paciente (fatos endógenos). Responsabilidade afeta à cadeia de fornecimento. Indenização por danos físicos, estéticos e morais devidas. Redistribuição dos encargos sucumbenciais. Apelo dos autores provido em parte. (TJ-SP - APL: 00280647620068260562 SP 002806476.2006.8.26.0562, Relator: Claudio Godoy, Data de Julgamento: 18/11/2014, 1ª Câmara de Direito

Privado, Data de Publicação: 19/11/2014). Art. 1º A República Federativa do Brasil, Cita-se também a manobra de Kristeller, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui- que como a episiotomia não são procedimen-se em Estado Democrático de Direito e tem tos recomendados por especialistas e órgãos responsáveis, pois são intervenções que pocomo fundamentos: dem ocasionar danos tanto a gestante quanIII - a dignidade da pessoa humana; to ao nascituro. Há o dever de reparação das Esse princípio lança reflexos sobre o di- complicações oriundas da manobra de Krisreito à vida, a integridade física e psíquica, o teller, seja pelo profissional da saúde ou pelo respeito a intimidade e a privacidade, bens hospital responsável, a depender do caso concomponentes desse direito fundamental. creto. (SOUZA, 2017). A vista disso, são incontestáveis os sentimentos de repudia ocasionados em decorTais praticas obstétricas causam sofrimento as vítimas, e o danos decorrentes disso rência dos procedimentos que violam a esfera são diversos. Muitas vezes as gestantes são obstétrica em detrimento dos direitos da musubmetidas a procedimentos sem ser infor- lher, procedimentos e sentimentos estes que madas ou consultadas. Conforme demonstra- perpetuarão ao longo de sua existência. do no decorrer do trabalho a mulher deve ser Urge consignar, ainda, o art. 5°, inciso a protagonista da gestação e tem o direito de III da Constituição Federal, que assegura que escolha. “ninguém será submetido à tortura nem a traObservamos anteriormente que episio- tamento desumano ou degradante” (BRASIL, tomia é uma das diversas práticas obstétricas, 1988). Ora, nada mais desumano do que aproprática esta que pode comprometer o períneo veitar-se da vulnerabilidade da mulher em da parturiente causando dores e consequen- processo gestacional, em especial, aquela que temente um sofrimento tanto físico como mo- esta submissa ao sistema público de saúde, ral, havendo então uma barreira para se levar muitas vezes lançada em um ambiente hospiuma vida normal sem constrangimento, sendo, talar desumano, para subordiná-la a intervenportanto, uma demonstração de violação aos ções sem o seu consentimento e qualquer tipo direitos sexuais e morais da mulher, atingindo de informação, realizar comentários ofensivos a diretamente, podendo a vítima pleitear in- e discriminatórios ou privá-la de direitos que denização pelo dano moral sofrido. A episio- lhe são devidos. tomia pode deixar também sequelas no corpo MINISTÉRIO DA SAÚDE VETA USO DO da mulher, podendo pleitear também a inde- TERMO “VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA” nização pelo dano físico (estético), conforme O Ministério da Saúde emitiu um desentendeu o Tribunal de Justiça de São Paulo: pacho em que defende abolir de políticas 153


públicas e normas o uso do termo “violência obstétrica”, citado frequentemente para definir casos de violência física ou psicológica praticados contra gestantes na hora do parto. A expressão passou a ser considerada “impropria” pelo Ministério da Saúde, que alega agora que tanto o profissional de saúde, quanto os de outras áreas não tem a intencionalidade de prejudicar ou causar dano a outrem. Para a médica Sônia Lansky, que foi uma das coordenadoras regionais da pesquisa Nascer no Brasil, da Fiocruz, excluir o uso do termo pode soar como uma forma de censura institucional. Nesse mesmo entendimento, Débora Diniz, do Instituto Anis Bioética, Direitos Humanos e Gênero traz que o novo posicionamento do ministério representa uma tentativa do governo de negar a existência do problema, onde a retirada da palavra de uma política de governo é uma tentativa de silenciar o que acontece nesse momento da vida das mulheres. Portanto, notamos o retrocesso por parte do nosso país, enquanto em alguns países a busca para que a violência obstétrica reduza e o respaldo seja ainda maior, no Brasil, buscam vetar o termo, recomendando que a expressão não seja utilizada.

4. CONCLUSÃO O termo violência obstétrica, de acordo com as pesquisas revisadas, não tem um conceito único, nem definido em termos legais devido à falta de instâncias específicas que penalizem os maus-tratos e processos desnecessários aos quais a maioria das mulheres brasileiras é submetida.

O presente trabalho teve como objetivo a verificação da ocorrência da responsabilidade civil nos casos de violência obstétrica e diante de tudo o que foi apresentado neste trabalho, não há como negar que a violência obstétrica é uma ameaça à integridade física da gestante.

Dessa forma, seus direitos e autonomia são minimizados e a violência não pode ser denunciada ou mesmo criminalizada. Nesse sentido, destaca-se a necessidade de uma conceituação de violência obstétrica (inclusive em termos de descritores), preferencialmente em documentos legais que a definam e a criminalizem, fato que auxiliará na identificação e enfrentamento dessas situações.

Como pode ser observado, a violência obstétrica ocorre há muito tempo, uma vez que as relações entre profissional da saúde e paciente são hierarquizadas, retirando o protagonismo da mulher em seu processo gestacional, afetando sua moral e intimidade. Tal violência acarreta responsabilidade civil aos profissionais da saúde envolvidos no procedimento, gerando a obrigação de repa-

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rar os danos causados à vítima, a qual deve pleitear a indenização moral e material pelos inúmeros danos causados pela pratica obstétrica violenta durante a assistência ao parto, como ficou possível notar nos relatos de vítimas que sofreram a violência obstétrica para demonstrar o quanto, infelizmente, são corriqueiros esses procedimentos.

um despacho onde defende que a expressão “violência obstétrica” não seja mais utilizada, em uma tentativa de silenciar e ignorar esse problema, como se o mesmo não existisse.

Em que pese alguns países da América do Sul, como a Argentina e a Venezuela, decorrerem diretamente sobre a temática da violência obstétrica para combater e assegurar à gestante sua autonomia durante todo o processo reprodutivo, no Brasil, ainda não temos uma legislação específica sobre o assunto, a exemplo dos países supramencionados, mas é de suma importância que reconheça a existência dessa prática violenta por meio de uma lei federal, visando, através de programas e políticas públicas garantir e investir na humanização da assistência ao parto, evitar que essas formas de violências persistam presentes em nossa sociedade. Devido ao desconhecimento do tema por boa parcela da sociedade e à ausência de interesse do poder público em legislar sobre, ainda não há instrumentos próprios para identificar e notificar os casos de violência, o que colabora para que o problema continue invisível tanto na esfera social quanto jurídica. Nota-se uma necessidade de promover um entorno de saúde mais adequado tanto para as usuárias como para os profissionais, no qual os procedimentos sejam mais regularizados, claros e organizados, e propiciem um ambiente mais seguro. Vem sendo incorporado nas políticas de saúde, em áreas de conhecimento e prática de intervenção uma assistência que priorize a qualidade do cuidado, respeito a natureza do ser humano. Contudo, os profissionais atendem demandas de acordo com sua experiência e as ferramentas que são proporcionadas pelos órgãos de saúde, que por vezes são insuficientes para a quantidade de usuários e problemas que devem resolver. Por isso, essas mudanças nas práticas assistenciais vigentes devem ser feitas para reduzir as intervenções desnecessárias. Contudo, o Ministério da Saúde emitiu 155


GAROTAS DE PROGRAMA E O TRABALHO ESCRAVO ANÁLOGO Bianca Nogueira Santos

Conselheira Tutelar, Bacharel em Direito pela Faculdade Marechal Rondon, completou dois anos de estágio na Primeira Vara do Trabalho de Lençóis Paulista, este artigo é um resumo do seu Trabalho de Conclusão de Curso, sob a orientação do Prof. Ms. Fabio Luiz Angella.

SUMÁRIO Resumo Abstract Introdução 1. Sistemas Da Prostituição 1.1 Sistema Do Regulamentarismo 1.2 Sistema Do Abolicionismo 1.3 Sistema Do Proibicionismo 2. Prostituição Nos Dias Atuais, Leis E Outras Diretrizes 2.1 Teoria Da Cegueira Deliberada 2.2 Trabalho Escravo Análogo Conclusão Referências

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RESUMO Esse trabalho tem o objetivo de apresentar o trabalho dos profissionais do sexo além do que às pessoas acham que sabem sobre a profissão, pois tal atividade não se resume apenas em ficar parada em uma esquina esperando que algum potencial cliente pare para contratar os serviços, vai além disso. A prostituição pelo que se sabe sempre existiu, mas precisou que teorias, sistemas fossem criados para que chegassem ao que se tem hoje sobre a profissão no Brasil e no mundo, sendo assim será analisado cada aspecto de todas as faces da ocupação, fazendo uma análise mais detalhada principalmente das leis Brasileiras existentes sobre o assunto para concluir inclusive se o trabalho das garotas pode ser considerado trabalho escravo análogo ou não.

PALAVRAS-CHAVE Garotas de Programa, Prostituição, Trabalho escravo análogo, Dignidade da Pessoa Humana

ABSTRACT This paper aims to introduce the work of sex workers beyond what people think they know about the profession, as such activity is not just about standing around a corner waiting for some potential client to stop to hire services, it will Besides that. Prostitution for what is known has always existed, but it needed theories, systems to be created so that we could reach what we have today about the profession in Brazil and in the world, so that every aspect of all faces of occupation will be analyzed, making an analysis more detailed above all of the existing Brazilian laws on the subject to conclude including whether girls’ work can be considered analogous slave labor or not.

KEYWORD Call Girls, Prostitution, Working with Analog, Human Dignity.

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INTRODUÇÃO A sociedade por uma questão ideológica, cultural, religiosa e por outros N motivos que não convém ficar questionando aqui julga e condena como se fosse júri e executor as garotas de programa. É humano que as pessoas condenem o que não entendem isso porque se você não é contra o que a maioria das pessoas são você pode ser considerada uma pessoa de índole duvidosa ou algumas pessoas deduzem que você faz parte daquilo simplesmente porque a opinião da maioria sempre prevalece, o que é justo, já que vivem em uma sociedade democrática e é assim que constitui nossas leis e nossos governantes. Mas nem sempre todo julgamento é correto poderia citar como exemplo Jesus Cristo que para os crédulos foi julgado injustamente e já que se toca no assunto ainda se tem Maria Madalena onde a história coloca como ter sido salva por Jesus do apedrejamento por ser considerada Adultera, essa é uma prova de que esse assunto já é polêmico desde os primórdios dos tempos e de que ele é tão relevante que está inclusive na bíblia, o que acaba sendo um tanto de hipocrisia quando as pessoas usam a igreja para condenar essas mulheres, já que o papel da igreja é acolher entender e ajudar e não de criticar ofender e nem julgar esse tipo de escolha, esse trabalho pode até não ser digno, mas não é desonesto, muito pelo contrário elas não fazem mal a ninguém além de si mesma.

se as garotas de programa não estão fazendo mal ou envergonhado a família, todavia imaginem o desespero ao ver os seus filhos e outros dependentes perdurar na miséria e deixar que passem fome só para que não sofram com a ignorância alheia. Se uma garota de programa for estuprada, agredida fisicamente ou se vê em condições análogas a da escravidão dirão que ela procurou por isso ou ainda pior que ela mereceu, esse infelizmente é o pensamento pequeno da sociedade em que se vive. Contudo nem todos têm esse pensamento, sendo assim, esse trabalho não tem o objetivo de estimular para que as pessoas se tornem garotas de programa e sim tem o objetivo de que as mulheres que tiverem que se submeter a esse tipo de vida tenha o mínimo de dignidade que é inclusive um princípio e um direito básico que a nossa constituição garante.

Algumas pessoas podem até questionar

1. SISTEMAS DA PROSTITUIÇÃO Para analisar cada um desses sistemas precisa primeiro deixar muito claro o significado da profissão garota de programa, ou seja, esse trabalho consiste na comercialização do corpo com o intuito da atividade do sexo, mas o que importa nessa pratica é a forma com que ela se desenvolve, já que se a profissional do sexo trabalha sozinha ou com alguém a gerenciando isso surte diferentes efeitos a depender do país e da teoria que ele adota. Ba-

seado nisso foi criado três diferentes modelos para melhor atender a demanda da sociedade. Durante as duas centúarias do milênio passado, surgiram três diferentes modelos os sistemas de abordagem jurídicas do fenômeno da prostituição, a saber: o sistema regulamentacionista (que enfatizava um controle sanitário e administrativo da atividade), o sistema abolicionista (que, sem torná-la ilegal crimina-

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lizava seu entorno, com vistas à sua erradicação) e o sistema proibicionista (o qual utilizava com mais vigor o Direito Penal, descrevendo como delito a quase totalidade dos atos a ela relacionados, notadamente criminalizando sua demanda) (ESTEFAM, 2016, p. 120).

existentes que são o regulamentarismo, o abolicionismo e o proibicionismo foram criadas para ajudar a regulamentar as leis e os limites de trabalho de um profissional do sexo. Passasse a analisar cada uma delas.

Sendo assim cada uma das três teorias

1.1 SISTEMA DO REGULAMENTARISMO O Regulamentarismo é uma das teorias mais conhecidas, pois já foi utilizada em vários países como mostra o livro Homossexualidade, Prostituição e Estupro neste trecho: “O regulamentarismo predominou em diversos países no Mundo no final do século XIX e início do século XX”(ESTEFAM, 2016, p. 120). O surgimento do referido sistema foi um marco na história, já que devido a propagação de doenças venéreas se fez necessário um efetivo controlo e o regulamentarismo foi a solução encontrada na época. Referido sistema surgiu em 1802, na França, sendo adotado por primeiro em Paris, quando Napoleão, preocupado com a saúde de suas tropas durante a conquista imperial, construiu ferramentas para prevenir e controlar as doenças venéreas (ESTEFAM, 2016, p. 92).1 Nela o profissional do sexo e o dono do local de trabalho do agente não são punidos pelo estado, muito pelo contrário, para quem adota essa ideia esse é um trabalho lícito para quem pratica e agencia, todavia ainda sim demanda cuidados, já que a depender do país exames ginecológicos podem ou não ser exigidos do profissional com o objetivo de controle sanitário. “Seu objetivo era o controle sanitário de doenças sexualmente transmissíveis e se caracterizava por exigir o cadastra-

mento das prostitutas, impondo até mesmo a compulsória realização de exames médicos” (ESTEFAM, 2016, p. 109). Aqui então há uma maior liberdade, mesmo com algumas restrições prevista, não só para quem exerce a atividade, bem como também para o terceiro de boa-fé que agencia o local ou o empregador se for o caso. É claro que o país que segue essa teoria pode alterar esses aspectos para melhor se adequar a sua lei, podendo mudar a obrigatoriedade de exames periódicos, por exemplo, esse é o caso da Alemanha e Holanda. Já no Regulamentarismo, como diz a palavra, a profissão é reconhecida e regulamentada. Para as profissionais, há vantagens e desvantagens. Estas são umas regulamentações muito conservadoras e exigências descabidas, como a de que a mulher se submeta a exames periódicos, o que não é exigido para outras profissões ou a de que só exerça a atividade em locais determinados. Entre as vantagens, a possibilidade de ter um contrato de trabalho, seguridade social, inclusive aposentadoria, garantias legais etc. Uruguai, Equador, Bolívia e outros países Sul – Americanos adotam esse sistema, assim como Alemanha e Holanda. No caso europeu, não há exigência de exame de saúde. O Brasil já foi Regulamentarista e as prostitutas eram fichadas pelas delegacias (SILVA, 2019, p. 5).2

1 ESTEFAM, Andre;Promotor de justiça mestre e doutor em direito penal pela PUC SÃO PAULO. Professor do Damásio Educacional. Autor de diversas obras pela Editora Saraiva. 2 SILVA, Thais Campos Prostituição e direito do trabalho. Belo Horizonte: Ed RTM 2017. Advogada, mestre em direito privado pela Pontifica Universidade Católica Minas Gerais com ênfase na linha de pesquisa Direito do trabalho, modernidade e democracia. Professora de Direito processual do trabalho. Autora da obra Prostituição e Direito do Trabalho: desafios e possibilidades. Autora de diversos artigos. Graduada pela Faculdade Milton Campos. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito do Trabalho, Processo do Trabalho, Direito Civil (Obrigações, Família e Sucessões), Direito do Consumidor e Processo Civil.

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Neste trecho se pode observar vários aspectos do regulamentarismo, a principal característica aqui é possibilidade do profissional de ter um empregador, algumas pessoas podem se perguntar se isso realmente seria uma vantagem já que outra pessoa auferiria renda de um trabalho pessoal e com isso poderia até cobrar mais desempenho como é direito e dever de um chefe comum. Mas se analisar por outro ângulo hoje, aqui no Brasil, e no mundo, o direito do trabalho sofreu e vem sofrendo várias mudanças, dentre elas está o trabalho autônomo onde o trabalhador exerce uma determinada atividade para a empresa e por facilitar ou fornecer produtos para o trabalho este teria direito a uma porcentagem do lucro, como exemplo pode-se citar a Uber, já que tal aplicativo ficou tão conhecido em tudo mundo pela praticidade e também pelo fato de que não há reconhecimento do vínculo de emprego na atividade porque é o motorista que escolhe o dia e a hora que quer trabalhar, com isso à falta de dois dos requisitos do conceito de empregado que é a habitualidade e a subordinação, então quem dirigi, por óbvio, só tem direito ao que realmente prática, não cabendo a ninguém exigir dele uma carga horária mínima e nem resultados, o que ocorre nesse caso é uma parceria entre quem dirige e o aplicativo, assim todos saem ganhando.

um empregador ou um local específico para o trabalho ao contrário do que diz a legislação vigente, uma delas foi o Projeto de Lei 4.211/ 2012 da autoria do Deputado Jean Wyllys que foi arquivado nos termos do Artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados em 31/01/2019 pelo fim da legislatura do mandato do mesmo. Art. 3º - A/O profissional do sexo pode prestar serviços: I - como trabalhador/a autônomo/a; II - coletivamente em cooperativa. Parágrafo único. A casa de prostituição é permitida desde que nela não se exerce qualquer tipo de exploração sexual. (BRASIL, 2019).3

Esse não era o único ponto importante que não são debatidos geralmente pela sociedade e nem estão presentes na nossa legislação, já que a lei é omissa sobre essa atividade, mas fato é que esse projeto faria grandes mudanças na visão que se tem hoje aqui no Brasil sobre esse assunto, pois para começar a teoria adotada aqui é o abolicionismo, como se vê em momento oportuno e pra se ter um empregador entre outros benéficos trabalhistas precisaria novamente adotar o regulamentarismo, tal mecanismo já foi usado uma vez e nada impediria que fosse utilizado novamente, a respeito das prostitutas é preciso “[..] considerá-la um mal necessário, regulamentando a atividade”(ESTEFAM, 2016, p. 87)4 isso teria Seguindo essa linha de raciocínio algu- acontecido se tais leis tivesse tido êxito.

mas leis tentaram ser emplacadas no Brasil para que um profissional do sexo possa ter

1.3 SISTEMA DO ABOLICIONISMO O sistema abolicionista como observaram Na França, surgiu um movimento de muna citação a seguir, nasceu com a intenção de lheres que se opunha à polícia de costumes acabar com a atividade do sexo, isto porque es- e ao cerco às prostitutas. Na Inglaterra, um tava se detectando que o regulamentarismo não grupo de senhoras de classe média, capitane-

era tão eficaz e as mulheres à época não ado por JosefineButler, travou uma verdadeiqueriam que a profissão se fortalecesse. ra cruzada internacional contra a regulamen3

Jean Wyllis de Matos Santos, jornalista, professor universitário e poílítico brasileiro.

4 ESTEFAM, Andre;Promotor de justiça mestre e doutor em direito penal pela PUC SÃO PAULO. Professor do Damásio Educacional. Autor de diversas obras pela Editora Saraiva.

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tação da prostituição, dando azo ao sistema 2016, p. 141). abolicionista (assim denominado por pretenO Brasil como vem anteriormente neste der erradicá-la) (ESTEFAM, 2016, p. 98). mesmo capítulo se utiliza deste sistema atuOutro motivo para sua criação foi a ideia almente, sendo assim, para se adequar a tais da purificação social, “o abolicionismo fomen- procedimentos se teve que avançar de ideias tou campanhas de purificação social contra retrógadas como as profissionais do sexo ter os bordéis, trabalho nas ruas e a cultura da que se fixar na polícia para exercerem a ativipornografia (ESTEFAM, 2016, p. 179). Tal dade, evoluindo para criação de leis que pupurificação acabaria com a imoralidade que nam criminalmente a comercialização do sexo por um terceiro. permeia a profissão até hoje. O abolicionismo, devido a uma grande comoção social, ganhou tamanha força que hoje é o sistema mais adotado em todo mundo inclusive no Brasil e com isso as legislações atuais prevêem medidas de criminalização para proteção da mulher e também atender a demanda da sociedade como se observa no trecho a seguir. Tal sistema é, atualmente, o mais adotado no mundo. Sua característica central, conforme já, expusemos, reside em criminalizar o entorno da prostituição; consideram-se infrações penais, nesse cenário, atos como o lenocínio, a casa de prostituição, o rufianismo e o tráfico de mulheres para fins de prostituição (ESTEFAM, 2016, p. 152). Esse sistema, então, reside em três características principais que visam ceder com restrições para que, com o tempo, haja um conformismo ou uma erradicação, são elas: (I) a prostituição não é considerada ato ilícito, embora padeça de regulamentação; (II) punem-se comportamentos que intervém sua prática; (III) admite-se (implicitamente) a prostituição, desde que desempenhada como atividade autônoma (isto é sem qualquer tipo de intermediação por terceiros) (ESTEFAM,

O Brasil aderiu a esse sistema em 1890, com o Código Penal republicano, o qual, de maneira inédita, criminalizou o lenocínio, reforçando essa postura em 1940 (arts. 227 a 231), a qual até hoje se mantém, a despeito da nova realidade constitucional e das reformas legislativas adotadas no setor (Leis n. 11.106/2005 e 12.015/2009) (ESTEFAM, 2016, p. 180). Verdade é que alguns pontos desse sistema são benéficos para os profissionais, todavia exige cuidado, pois as leis criadas até hoje pelo menos aqui no Brasil, visam mais uma proteção mínima relacionada a direitos humanos do que a profissão em si, já que há um índice abusivo na contribuição do INSS DE 20% sobre a renda e nenhuma fiscalização trabalhista sobre a profissão, sendo assim pela falta de leis mais especifica não há uma proteção de fato apenas de direito e isso muito se dá para tentar acabar com a atividade, “esse modelo confere à meretriz, em verdade, um único direito subjetivo, o de deixar a profissão”(ESTEFAM, 2016, p. 164). O que vem se mostrando falho já que uma das profissões mais antigas do mundo persiste e só aumenta.

1.4 SISTEMA DO PROIBICIONISMO O proibicionismo para quem segue essa teoria visa erradicar e proteger a sociedade em geral, sendo que “esse sistema encara a prostituição como verdadeiro “câncer social” a ser extirpado” (ESTEFAM, 2016, p. 125), assim sendo, nesta visão a medida mais coerente para combater o trafico de mulheres, tra-

fico sexual, o aumento da prostituição ilegal, clandestina, a prostituição infantil, a proteção das mulheres prostituídas, o encorajamento da compra dos serviços sexuais e as doenças sexualmente transmissíveis é proibir todo é qualquer ato sexual mediante remuneração.

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O sistema proibicionista constitui a versão extremada do combate à prostituição, tornando o comportamento ilegal e criminalizando sua demanda. Pode-se considera-lo como uma exacerbação do abolicionismo (ESTEFAM, 2016, p. 85).

ela acha que o homem é um “predador” que precisa ser punido pelo Estado que ainda segundo ela é o patrocinador da indústria sexual quando torna legal a profissão, as duras palavras da ativista só mostra a falta de tolerância para com a profissão mais antiga do mundo.

Todavia na realidade a proibição para Por outro lado um ponto positivo do controle disso tudo só se mostra um tanto fa- proibicionismo é que apesar de sua visão exlacioso já que não há dados reais que compro- tremista ele consegue ver e tratar de um dos vem o sucesso do que é proposto. maiores perigos da prostituição que são as formas modernas de escravidão dos profisComo citado à cima tal sistema é o exsionais do sexo, sobre tudo das mulheres, já tremo entre as duas pontas, ou seja, ele enque na indústria do sexual há grandes perigos cara todo e qualquer mal existente em torno como o trafico de mulheres. da profissão como culpa da legalização, sendo assim, a cura para o mal seria proibir como O discurso “trafiquista”, isto é, que busuma forma de inibição criminal. Mas será que ca equiparar a prostituição a uma das formas proibir é mesmo o caminho? O uso de drogas modernas de escravidão e aquele que auxilia é proibido aqui no Brasil, no entanto quantos e o profissional em seu deslocamento territorial quantos traficantes de drogas existem no país ao “novo” traficante de escravos, acaba por e são presos todos os dias por esse crime? Ou respaldar uma postura xenofobista, adotada ainda um exemplo mais pratico sobre o tema por muitos países economicamente desené que em alguns lugares dos Estados Unidos a volvidos, que vêem tais imigrantes como inprostituição é proibida e ainda sim ela persiste desejados e, para não propagar um discurso neste locais e com crimes ainda mais perigos politicamente incorreto, que os coloca como em seu entorno como o trafico humano. o alvo do rechaço forja a linguagem de que são “vítimas” de “traficantes” e, em verdade, Outrossim, mostrar-se-ia inócua a tentaao recusá-los e persegui-los estão a defentiva de sufocá-la, pois ela apenas migraria de dê-los (ESTEFAM, 2016, p. 143). um ambiente em que se submete a normas e a controle para um cenário de clandestinidaA conclusão que se tira de tudo isso de, desprotegendo os elos mais fracos dessa é que o simples fato de proibir não protege cadeia produtiva (ESTEFAM, 2016, p. 85). como deveria principalmente no que diz respeito aos profissionais do sexo. A proibição da A ideologia de restrição desse modeprostituição na verdade pode ser muito pelo tornasse ainda mais claras nas citações da rigosa, pois imaginem isso na realidade, uma ativista engajada no movimento feminista e mulher não teve muitas condições na vida e membro da Coalizão contra o tráfico Internacom isso se viu obrigada, ainda que seja proicional de Mulheres e árdua defensora desse bido, a se prostituir, um cliente sabendo que modelo Janice Raymond informa que“em vez ela não poderá fazer muito a respeito porque de abandonar as mulheres na indústria sexual se não poderá ser presa abusa sexualmente da para a prostituição patrocinada pelo Estado, profissional forçando a fazer coisas das quais as leis deveriam ser endereçadas ao predador ela não permite e não quer essa pessoa que que compra a mulher para o sexo prostituifoi abusada com o proibicionismo ainda que do” (ESTEFAM, 2016, p. 148). Ou ainda“Em resolva denunciar e sofrer as sanções penais vez de punir a prostituição, os Estados deveimpostas tem uma grande chance de não ser riam focar na demanda, penalizando o homem atendida por ter “procurado” ou “favorecido” que compra mulheres para praticar o sexo em essa situação de alguma maneira e o real criprostituição” (ESTEFAM, 2016, p. 184). me nesse caso que foi o estupro não será puPara Janice, a mulher que se prostitui nido. Não é difícil imaginar esse desfecho já precisa ser salva das suas próprias escolhas, que com leis para prevenir esse resultado isso 162


acontece, sem nenhuma, só reforçaria essa possibilidade.

2. PROSTITUIÇÃO NOS DIAS ATUAIS, LEIS E OUTRAS DIRETRIZES Para iniciar tal tópico precisa primeiro saber que existe uma classificação que segundo as ideias que se tem hoje sobre a prostituição estabelece normas e ritos a serem seguidos que é o mais próximo de uma lei sem ser pelo âmbito penal.

TRABALHO, 2019, p. 2).

Condições gerais de exercício. Trabalham por conta própria, em locais diversos e horários irregulares. No exercício de algumas das atividades podem estar expostos à intempéries e a discriminação social. Há ainda riscos de contágios de dst, e maus-tratos, violência de rua e morte (MINISTÉRIO DO

Na pratica isso acaba por não ocorrer já que poucas garotas aderem e pelo fato do estado não dar o suporte necessário para tanto. A Classificação ainda regulamenta algumas regras que as profissionais precisam seguir para se organizar, se prevenir e ainda desempenhar o trabalho da melhor forma

Notasse que a própria CBO já prevê o fato da discriminação da prostituição por essa ser considerada uma profissão imoral, e ainda fala dos riscos iminentes que as garotas de programa correm todos os dias até mesmo Assim sendo, seguindo essa linha de como morte e ainda sim isso é o mais próxipensamento a instituição que regulamentou mo de uma regulamentação que tem aqui no os limites e as regras dos profissionais do sexo Brasil. na atualidade foi a Classificação Brasileira de Como já mencionado anteriormente nesOcupações (CBO), que tem por finalidade sese mesmo trabalho à profissão teve um grangundo o próprio conceito: de avanço que foi a conquista dos profissioA Classificação Brasileira de Ocupações nais do sexo poderem se cadastrar no INSS - CBO, instituída por portaria ministerial nº. mediante o código que a CBO prevê que é o 397, de 9 de outubro de 2002, tem por finali- seguinte segundo o próprio órgão: ”5198-05 dade a identificação das ocupações no merca- - Profissional do sexo - Garota de programa, do de trabalho, para fins classificatórios junto Garoto de programa, Meretriz, Messalina, aos registros administrativos e domiciliares. Michê, Mulher da vida, Prostituta, Trabalhador Os efeitos de uniformização pretendida pela do sexo” ao se declarar com tal dispositivo Classificação Brasileira de Ocupações são de a pessoa recebe o encargo de recolher 20% ordem administrativa e não se estendem as sobre o total da renda um valor alto, mas relações de trabalho. Já a regulamentação da com isso elas recebem benefícios que outras profissão, diferentemente da CBO é realizada profissões não têm como, por exemplo, o por meio de lei, cuja apreciação é feita pelo afastamento do trabalho em caso de doenças Congresso Nacional, por meio de seus Depu- sexualmente transmissíveis, mas para isso o tados e Senadores, e levada à sanção do Pre- trabalhador do sexo precisa de experiências sidente da República. (MINISTÉRIO DO TRA- para ingressar na profissão, quais sejam: BALHO, 2019, p. 3) Formação e experiência. Para o exercício profissional requer-se que os trabalhadores partiResta claro que a CBO5 foi à responsável pela delimitação de tal profissão por está não ter cipem de oficinas sobre sexo seguro, o acesso uma relação de emprego, se tratando por tanto à profissão é restrito aos maiores de dezoito de trabalho autônomo registrado junto ao INSS anos; a escolaridade média está na faixa de como se vê a seguir, com isso as condições des- quarta a sétima séries do ensino fundamental (MINISTÉRIO DO TRABALHO, 2019, p. 3). sa atividade segundo a CBO é a seguinte:

5 CBO: Classificação Brasileira de Ocupações é um documento que retrata a realidade das profissões do mercado de trabalho brasileiro. Foi instituída com base legal na Portaria nº 397, de 10.10.2002. A CBO tem o reconhecimento no sentido classificatório da existência de determinada ocupação e não da sua regulamentação.

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possível. São elas:

D - ACOMPANHAR CLIENTES

A - BUSCAR PROGRAMA

D.1 - Acompanhar cliente em viagens

A.1 - Agendar o programa

D.2 - Acompanhar cliente em passeios

A.2 - Produzir-se visualmente

D.3 - Jantar com o cliente

A.3 - Esperar possíveis clientes

D.4 - Pernoitar com o cliente

A.4 - Seduzir o cliente

D.5 - Acompanhar o cliente em festas

A.5 - Abordar o cliente DES

B - MINIMIZAR AS VULNERABILIDA-

B.1 - Negociar com o cliente o uso do preservativo B.2 - Usar preservativos água guro

E - PROMOVER A ORGANIZAÇÃO DA CATEGORIA E.1 - Promover valorização profissional da categoria E.2 - Participar de cursos de autoorganização

B.3 - Utilizar gel lubrificante à base de

E.3 - Participar de movimentos organizados

B.4 - Participar de oficinas de sexo se-

E.4 - Combater a exploração sexual de crianças e adolescentes E.5 - Distribuir preservativos

B.5 - Identificar doenças sexualmente transmissíveis (dst)

E.6 - Multiplicador informação

B.6 - Fazer acompanhamento da saúde E.7 - Participar de ações educativas no integral campo da sexualidade B.7 - Denunciar violência física B.8 - Denunciar discriminação

7).

(MINISTÉRIO DO TRABALHO, 2019, p.

A organização profissional que a CBO prevê é muito interessante e até mesmo imB.10 - Administrar orçamento pessoal portante para a prevenção de doenças e segurança de quem pratica a profissão, todavia C - ATENDER CLIENTES mais uma vez cai no desuso da norma, já que C.1 - Preparar o kit de trabalho (preser- a regra existe, mas sem nenhuma fiscalização ou leis mais efetivas que dê o suporte para vativo, acessórios, maquilagem) tanto. C.2 - Especificar tempo de trabalho Tem-se ainda para estar apito para a proC.3 - Negociar serviços fissão algumas competências profissionais que a CBO julgam necessárias. São elas: C.4 - Negociar preço B.9 - Combater estigma

C.5 - Realizar fantasias sexuais C.6 - Manter relações sexuais C.7 - Fazer streap-tease C.8 - Relaxar o cliente C.9 - Acolher o cliente

Z - DEMONSTRAR COMPETÊNCIAS PESSOAIS Z.1 - Demonstrar capacidade de persuasão Z.2 - Demonstrar capacidade de comunicação Z.3 - Demonstrar capacidade de realizar

C.10 - Dialogar com o cliente 164


fantasias sexuais

Z.12 - Manter sigilo profissional

Z.4 - Demonstrar paciência

9).

Z.5 - Planejar o futuro

(MINISTÉRIO DO TRABALHO, 2019, p.

Com isso na teoria haveria uma seguranZ.6 - Demonstrar solidariedade aos ça tanto para o profissional bem como para o colegas de profissão cliente, entretanto o que se vê na pratica é toZ.7 - Demonstrar capacidade de ouvir talmente o oposto havendo ainda um grande caminho de evolução legislativa e doutrinaria Z.8 - Demonstrar capacidade lúdica sobre o assunto a ser percorrido. Z.9 - Demonstrar sensualidade Z.10 - Reconhecer o potencial do cliente Z.11 - Cuidar da higiene pessoal

2.1 TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA A Teoria da Cegueira Delibera ou Teoria do avestruz nada mais é do que a ideia de que o agente enfia a cabeça embaixo da terra assim como um avestruz para não querer enxergar o ato ilícito que se mostra a sua frente, “entende-se por cegueira deliberada o grupo de casos em que o agente opta deliberadamente por ignorar certos dados penalmente relevantes e sua conduta acaba por realizar um resultado ilícito” (GEHR, 2019, p. 15) essa teoria ainda segundo a autora é de origem inglesa e foi adotada em países como Estados Unidos e na Espanha.

mesmo público, e público não só para o cliente, mas para qualquer passante, inclusive a polícia – que tantas vezes bate, apalpa, extorque, humilha (SILVA, 2016, p. 268).

Note que a crítica na citação é forte, contudo a inércia do Estado em relação à falta de leis, de fiscalização e até mesmo de uma coação e ato ilegal de seus agentes levam essa questão à impunidade de crimes sérios como o tráfico humano, agressão, estupro e ainda a falta dignidade da pessoa humana para esse tipo de trabalho que não está sendo levado em conta já que muitas vezes a atividade Tal entendimento é em regra utilizado é exercida em condições degradantes ou de para definir conduta ilegal de pessoas ou em- forma coagida. Sobre isso ainda pelo mesmo presas, mas se pode entender que no que se autor se tem o seguinte: refere ao trabalho dos profissionais do sexo Buscando a efetividade dos princípios essa teoria também se estenderia ao ente púconstitucionais, especialmente o da dignidablico e seus agentes, pois como já elucidado de da pessoa humana, verifica-se que alguma nesse trabalho por vezes autoridades poliatitude precisa ser tomada para modificar a ciais entre outros vinculados ao Estado sabem realidade das profissionais do sexo. Ser prosonde funcionam casas de prostituição e nada tituta não é deixar de ser pessoa (SILVA, 2016, fazem para impedir o funcionamento apesar p. 225). de uma lei penal especifica que vai contra tal prática. Assim sendo, assegurar os mínimos direitos é mais que necessário é fundamental, Além de fria e insensível, a lei é hipócrinão se pode deixar levar pela ilusão de que o ta, já que, por não proteger, desprotege; faz ganho elevado da atividade para alguns prode conta que está neutra, ausente, mas no fissionais compensa o risco. fundo, por isso mesmo, legitima e reforça as discriminações. Ao deixar a prostituta entreO trabalho deve ser aquele capaz de asgue à sua sorte, sinaliza que o seu corpo é segurar os direitos fundamentais; o trabalho 165


além disso, outros benefícios para o próprio Estado seriam sanados com leis especificas, já que com direitos também vem deveres como, por exemplo, o de recolher impostos seja pela própria trabalhadora que não adere ao INSS ou pelo estabelecimento que ela trabalha caso essa pratica passe a ser licita, com isso todas as partes poderiam ser beneficiadas, fora o fato de que também poderia haver um controle das profissionais no que tange a doenças É pacífico que esse ainda é um trabalho sexualmente transmissíveis o que geraria uma lícito e por escolha do próprio Estado, cumeconomia para o Estado com remédios entre pre então a ele assegurar direitos e deveres de outros gastos que tal situação causa. qualquer outro tipo de trabalhador, podendo inclusive responder nas esferas competentes Outra medida que poderia ser tomada caso não o faça, com isso, mudar de atitude e para o controle da situação é o proibicionisregulamentar a profissão não é ser conivente mo, pois forçaria a extinção da prostituição, ou querer que ela aumente ou continue e sim o que também precisa de um apoio especial é respeitar um dos pilares e fundamentos pre- do Estado já que seus agentes fingem que não vistos na própria constituição que é o Princi- sabem onde a atividade funciona e isso não pio da Dignidade da pessoa humana. poderia mais ser aceitável caso essa medida fosse tomada, além disso, precisaria também Manter a profissão à sombra da legalipunir quem adquiri os serviços dos profissiodade, negando direitos e regulamentação, só nais do sexo, visto que se há quem pague pelo contribui pra que se trabalhe em um ambienserviço vai haver quem o forneça. Para adotar te de violência, exploração, segregação. Além ainda tal teoria seria preciso um efetivo resdo mais, já passou da hora de sermos vistas – paldo do Ente publico na transição de quem nós, meretrizes – como cidadãs responsáveis se encontra na profissão para conseguir outra por nossas escolhas e donas de nossas vidas ocupação e com isso não cresceria ainda mais (SILVA, 2016, p. 152). a taxa de desemprego no país. Isso mostra que as próprias meretrizes querem a regulamentação da atividade, já que ter direitos é necessário para o bem estar, protegido não é o que se aufere ganhos salariais mais altos; não se pode mensurar economicamente a violação dos direitos fundamentais e, por consequência, entender que maiores salários compensam a situação de abandono da prostituição. A coexistência da atividade com o estigma que ela carrega também são empecilhos para o avanço (SILVA, 2016, p. 245).

2.2 TRABALHO ESCRAVO ANÁLOGO A falta de regulamentação como já tra- tes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregatado em tópicos anteriores, trás serias preo- dor ou preposto: cupações e a que merece maior relevância é o Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além perigo do trabalho escravo análogo, pois este da pena correspondente à violência (BRASIL, 2019, p. 45)6. é o mais baixo nível que qualquer pessoa pode Cumpre ressaltar que para tipificar nesse ser submetida em uma determinada atividade, esse perigo segundo o artigo 149 do Código artigo o conceito de trabalho escravo análogo vai além do que é trazido no dispositivo, Penal tem o seguinte significado: pois depende da analise de cada caso conArt. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jor- creto, por obvio nem todas as profissionais nada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradan- do sexo são coagidas, forçadas ou trabalham 6 Código Penal brasileiro: O código penal vigente no Brasil, foi criado pelo decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 pelo então presidente Getúlio Vargas durante o período do Estado Novo, tendo como ministro da justiça Francisco Campos.

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em condições degradantes, exemplo disso são IV - adoção ilegal; ou as prostitutas de luxo que muitas vezes são V - exploração sexual. pagas apenas para acompanhar homens em grandes eventos, restaurantes, entre outros, Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) contudo há as profissionais que sofrem todos anos, e multa. os dias com o descaso da profissão e estas sim (BRASIL, 2019, p. 45). estão submetidas a essa pratica. A prática ilícita existe, é perigosa e pode Há que se lembrar ainda que se o trabalho for exercido em jornadas exaustivas, em envolver inclusive outros fatores, como por ambientes sem condições mínimas de higiene, exemplo, o trafico de drogas, já que muitas com violações que atinjam os direitos huma- vezes as casas de prostituição também fornenos e fundamentais, poder-se-á entender pela cem o entorpecente inclusive para as meretriexistência de trabalho em condições análogas zes para que elas possam encarar a realidade à escravidão, autorizando seja a profissional do dia a dia. retirada desse ambiente e imputando crime Muitas vezes, as prostitutas envolvem-se tipificado no artigo 149 do Código Penal, “re- com drogas ilícitas e cometem muitos delitos. dução a condição análoga à de escravo (SILVA, Tal fato talvez tenha ligação com à clandesti2016, p. 152). nidade e a ilegalidade em que a prostituição é Isso tudo acontece porque prostituição exercida, o que permite fácil acesso às drogas; é um mercado muito lucrativo, o que acaba por outro lado, os delitos constantemente atraindo pessoas que querem se aproveitar de deixam de ser relatados às autoridades (SILforma ilícita de outras inocentes e submeter VA, 2016, p. 152). à força e de forma coagida que se prostitua através de ameaça ou ainda o que é pior pelo tráfico humano, onde alguém é levado a acreditar que ao mudar de país, estado ou município terá uma vida melhor, um trabalho digno, todavia quando chega ao local não era nada daquilo e ai percebe que foi iludido sendo obrigado a prestar os serviços exigidos, tudo isso parece uma cena de ficção, mas não é, prova disso é que o próprio código penal pátrio em seu artigo 149-A trás expressamente a questão do tráfico de pessoas com o intuito de comercialização do sexo com a seguinte redação: Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;

O fato da falta de relatos desses e de outros crimes para as autoridades muito se dá pelo preconceito em torno da profissão, assim sendo a sociedade ainda que não perceba acaba por ser conivente com tal prática e mais uma vez a resposta para tais delitos é a regulamentação da atividade, pois com a vigilância correta precauções podem ser tomadas e direitos concedidos inclusive no que tange ao direito do trabalho, já que será concedido indenização para que os familiares ou para a própria pessoa quando a prática da atividade resultar na falta de cumprimento de obrigações ou em acidente grave como foi o caso do Acórdão 41.719/2013-PATR que julgou procedente o reconhecimento do vínculo de uma mulher que trabalhava em uma boate e em serviço caiu da janela do quarto de um prédio ficando tetraplégica, neste caso a justiça foi feita e isso é necessário para não caracterizar trabalho escravo análogo.

Considerar que a ilicitude do objeto, por II - submetê-la a trabalho em condições possível exploração da prostituição, obstaria análogas à de escravo; o reconhecimento do contrato de trabalho importaria em odioso enriquecimento sem causa III - submetê-la a qualquer tipo de servido empregador. Certamente o efeito seria redão; verso: estimularia a exploração do corpo hu167


mano e permitiria trabalho na condição análo- a título de aluguel. O que ocorre é que esses ga à de escravo (TRT 15, 2019, p. 234) lugares são degradante o que acaba por ferir as condições de trabalho digno e seguro. A nobre ministra ainda trás outros pontos muito importantes trazidos nesse trabalho Embora os ganhos sejam tão elevados, como a impossibilidade a pesar da morte da a estrutura oferecida é extremamente precámeretriz do seu filho melhor de idade poder ria e desumana. Alguns hotéis só têm banheifazer uso do beneficio do INSS “no presente ros coletivos, outros têm apenas uma bacia caso, com patente prejuízos a menor, filho da plástica nos quartos ou um vaso sanitário ao falecida reclamante, que não contaria sequer lado da cama. Os quartos não são bem ilucom a proteção previdenciária” (TRT 15, 2019, minados, nem arejados. Muitas profissionais p. 234) Tais fatos são recorrentes no nosso co- reclamam ainda do abandono do estabelecitidiano, todavia na grande maioria das vezes mento no que se refere à segurança e à pronão são se quer divulgados justamente pelo teção contra eventuais clientes agressivos preconceito e imoralidade da profissão, mas (SILVA, 2016, p. 185). isso precisa ser combatido, pois “ser prostituPor fim o que fica de tudo isso é que a ta não é deixar de ser pessoa” (SILVA, 2016, maioria dos problemas poderiam ser evitados p. 132). E assim como todas as mulheres elas ou pelo menos diminuídos com a regulamentambém merecem proteção. tação da atividade e a fiscalização principalOutra coisa que merece destaque em re- mente no que diz respeito ao direito do tralação ao trabalho escravo é que o consenti- balho, já que no direito penal há leis que tem mento ao aceitar praticar a profissão do sexo a previsão de punir os delitos cometidos no ainda sim não dá o direito de que o local de tra- entorno da profissão, mas para que tais leis balho seja em condições degradantes e sobre surtam maiores efeitos uma mudança de poscarga horária exaustiva, entre outros aspectos tura se faz necessária. desumanos, visto que os direitos humanos fundamentais não podem ser renunciáveis. O tráfico de pessoas, quando tem por fim a escravidão de qualquer nível, independe do consentimento da vítima, pois é inviável aceitá-lo para gerar escravidão, visto serem irrenunciáveis os direitos humanos fundamentais (SILVA, 2016, p. 112). Sendo assim, ainda que a mulher se sinta envergonhada pela profissão e não queira exercer os seus direitos básicos previstos pela constituição, ela não o poderá fazer, caso isso ocorra cabe ao Estado as protegerem de si mesmas e impedir a propagação de crimes como o trabalho escravo análogo ou o trafico de pessoas e punir os agentes causadores. Outro ponto mostrado pela pesquisa foi às condições de trabalho desumanas que a maioria exerce sua atividade, já que existem também pontos específicos que as meretrizes levam seus clientes e tal local se exime da responsabilidade de eventual vínculo de emprego por apenas ceder o espaço para ser pratica a atividade mediante um valor remuneratório 168


CONCLUSÃO A pergunta que fica de tudo isso é de quem é a responsabilidade pelas condições desumanas, de maus tratos, coação, violência e até mesmo de forma análoga a da escravidão? Das próprias meninas que na maioria das vezes são obrigadas a encarar a atividade do sexo por falta de escolha, dos cafetões que vêem uma oportunidade de se aproveitar do desespero alheio ou do Estado que permite que desde coisas ruins até as mais simples do entorno da profissão se propague pelo fato de fechar os olhos para o que ele quer que acabe. Verdade é que não há um único culpado, todos nós ao julgar com grande imoralidade a prostituição somos um pouco culpados ainda que não admita, fingir que uma coisa não existi ou criticar quem se vê nessa condição de nada adianta para mudar tal realidade, essa como já mostrado é conhecida como a profissão mais antiga do mundo, não vai acabar porque a sociedade quer que acabe, mas alguns maus podem ser evitados com a regulamentação e principalmente fiscalização correta, não fazer nada para impedir também é ser conivente com cada agressão e estupro sofridos, com cada coação feita, com cada pessoa aprisionada, com cada escravidão análoga praticada e até mesmo com cada caso que resultada em morte.

tituição, restando apenas a regulamentarista para apartar os males que permeiam a profissão, visto que ela é a única que permite conceder segurança a trabalhadora que por livre e espontânea vontade quer exercer a pratica do sexo e ainda possibilita o Estado a gerir os lucros provenientes da profissão bem como atuar no combate de doenças sexualmente transmissíveis impedindo que quem tem comprovadamente o vírus da AIDS, por um exemplo, continue na atuação do serviço. A conclusão então que se tira de tudo isso é que ter leis que ajudem na organização estatal nunca fez mal a qualquer profissão e nem relação que seja muito pelo contrario, desde a época do descobrimento do Brasil se viu que se não houver um regulamento a ser seguido a sociedade vira um caos, essa mesma lógica deveria ser aplica as garotas de programa para que o caos na profissão também cesse ou pelo menos diminua, mas para que isso aconteça o grande tabu da imoralidade da sociedade precisa ser superado, caso contrario leis que tentarem ser emplacadas sobre o tema não passaram de um projeto como já aconteceu por vezes ou ainda que fossem aprovas não surtiriam efeito e cairiam no desuso e nada aconteceria para mudar os males que já existem.

Essa não é uma profissão fácil e que ninguém deseja para um ente querido, contudo muitas vezes é atrativa pelo ganho elevado e ainda pela possibilidade de mudar de vida, mas ocorre que também há na grande maioria das vezes o lado obscuro de uma mulher se submeter a essa atividade e a partir dai é obrigação do Estado garantir o mínimo de dignidade da pessoa humana, de respeito e de sobrevivência, pois essa ainda é uma profissão legal e a falta de regulamentação não fará com que ela desapareça como quer a teoria abolicionista, já que ela já está em vigor a tantos anos e a prostituição não diminuiu e nem tomou um rumo melhor, motivo pelo qual ela se mostra falha, contudo a resposta para sanar tais elementos não parece ser o proibicionismo, pois nos países que essa teoria é adotada também não se tem grande êxito em combater a pros169


REFERÊNCIAS BRASIL. Projeto de Lei que regulamenta a atividade das profissionais do sexo. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsesioni d=EE77E91AED774BB80FADE164F076A014.proposicoesWebExterno1?codteor=101282 9&filename=Tramitacao-PL+4211/2012> Acessado em 28 nov 2019. BRASIL. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decret o-lei/del2848.htm> Acessado em 28 nov 2019.

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TRT 15. TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO 15. Acórdão 41.719/2013-PATR. Processo TRT/SP 15ª Região 0006700-15.2009.5.15.0137. Disponível em:<https://portal. trt15.jus.br/documents/124965/2647700/R+49-2016.pdf/b4ca35c3-5e3d-4d0d-bef7-016149982d51> Acessado em 08 nov 2019.

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ASPECTOS DA SELETIVIDADE PENAL DO CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS E O ENCARCERAMENTO FEMININO

Bruno Machado da Silva Advogado, formado em 2016 pela Faculdade Anhanguera Educacional

SUMÁRIO Resumo 1. Introdução 2. O Consumo de Drogas na Humanidade 3. O Combate às Drogas no Brasil 4. A Seletividade Criminal 5. O Encarceramento em Massa das Mulheres 6. Conclusão Referências

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RESUMO A famigerada lei de drogas, desde sua edição, trouxe aspectos de inovação para a legislação brasileira. Entretanto, sua aplicabilidade tem se demonstrado temerária, sobretudo por ter criado aspectos de seleção criminal de indivíduos, transcendendo o combate às drogas e criando-se, em verdade, uma guerra contra às pessoas. Sob essa perspectiva, surge o encarceramento feminino, problemática pouca enfrentada pelas autoridades, que têm sido indiferente diante das necessidades específicas das mulheres, fora e dentro das penitenciárias. A legislação processual penal (em especial as regras de bangkok) caminha para a garantia dos direitos humanos das mulheres, sendo, porém, necessário que se volte os olhares para essa realidade.

PALAVRAS-CHAVE Lei de drogas – seletividade - encarceramento feminino

ABSTRACT The notorious drug law, since its edition, brought aspects of innovation to Brazilian legislation. However, its applicability has been shown to be reckless, mainly because it created aspects of criminal selection of individuals, transcending the fight against drugs and creating, in truth, a war against people. From this perspective, female incarceration arises, a little problem faced by the authorities, who have been indifferent to the specific needs of women, outside and inside the penitentiaries. Criminal procedural legislation (especially bangkok rules) is aimed at guaranteeing the human rights of women, however, it is necessary to look at this reality.

KEYWORDS Drug law - selectivity - female incarceration

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1. INTRODUÇÃO A política criminal brasileira voltada ao combate às drogas, desde seu começo, está fadada ao fracasso pela absoluta impossibilidade material de fiscalizar a oferta de drogas e refrear a demanda de consumo num país territorialmente vasto e muito populoso. Diante de uma frágil (ou inexistente) análise criminológica, em que o nexo causal entre o consumo de drogas e a criminalidade é presumido, e não cientificamente aferido, como deveria ser, buscou-se criminalizar a venda e o porte de drogas, como um atalho para o combate à criminalidade.

Questões ligadas a históricos de violência familiar, maternidade e aleitamento, perda da capacidade financeira, ou tão somente opção e uso de drogas revelam que as mulheres em situação de prisão têm necessidades bastante específicas, demandando, portanto, maior atenção do Estado.

Este trabalho fará menção a diversos aspectos normativos e criminalísticos em torno da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006), realizando apontamentos sobre as primordiais questões que circundam o tema, com foco naquele que foi eleito o “inimigo do Estado”. Em especial, serão trazidas à lume discusSob um falho discurso de protecionismo sões focadas na situação do encarceramento à saúde pública e a coletividade, criou-se, em de mulheres e as condições das prisões onde verdade, um arquétipo com clara evidência cumprem suas penas. lombrosiana de indivíduos que, segundo seus aspectos físicos, morais e sociais, entre outras nuanças, têm tendência à pratica de crimes e por isso devem ser segregados. Isso, em decorrência de clara orientação legislativa inspirada no modelo norte-americano, o qual buscou-se importar sem maiores ponderações. Nesse cenário, merece destaque o encarceramento de mulheres, fenômeno que teve aumento substancial nos últimos tempos, sobretudo relacionado com a atual Lei de Drogas.

2. O CONSUMO DE DROGAS NA HUMANIDADE O modelo de política criminal adotado Na verdade, o tema relacionado a drogas pelo Brasil de combate às drogas tem trazido não é novo. Já há muito o ser humano se utiliconsequências letais à sociedade, sobretudo za de variadas substâncias capazes de alterar pela desinformação sobre o assunto. seu estado de lucidez, quer por motivos religiosos, medicinais, afrodisíacos, ou, simplesA mídia, que por sua vez tornou-se granmente, para satisfazer um desejo interno de de especuladora e, estando aliada ao Estado subterfúgio da realidade que vive, um escape. de Polícia (em prejuízo ao Estado de Direito, ignorando, por exemplo, a presunção de inoNa era Moderna, incentivada pela práticência), guarda pouco ou nenhum dado objeti- ca capitalista, algumas substâncias passaram vo, científico ou social acerca dessa realidade1. a ser vistas como possíveis mercadorias2. Tra1 BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. In: Revista Discursos Sediciosos. Rio de Janeiro: Revan, n. 5 e 6, 1998, p. 77-94. Disponível para download em: <https://www.academia.edu/16082676/_Artigo_Pol%C3%ADtica_criminal_com_derramamento_de_sangue_-_Nilo_Batista_1_> Acesso em: 28.01.20. 2 CÁRCERES ARGUELLO, Katie Silene, STEGEMANN DIETER, Vitor. 2011. Política Criminal das Drogas: O proibi-

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ta-se, realmente, de uma relação de consumo, já que fortemente ligadas às leis de oferta e de procura. Fácil perceber o acesso as drogas, já que podem ser encontradas em esquinas de grandes centros; em comunidades (precariamente) (des)providas de recursos de saneamento básico, educação e incentivo ao trabalho digno; como também podem ser encontradas em quartéis militares3 ou ainda, sob a guarda e posse de pessoas cuja ascensão social são mais favoráveis e, por isso, possuem variedade e qualidade diferenciada; sem nos esquecermos que, inclusive, podem ser encontradas dentro das penitenciárias4. Traduz-se em um verdadeiro mercado que independe de definição de uma ‘geolocalização’ para alcance. Com o passar do tempo, as drogas foram submetidas a várias formas de controle, tanto social, quanto reguladora, proibida e, tradicionalmente, desapreciada moralmente. A análise a que se pretende neste espaço não é a de descriminalização, liberação, legalização ou ideia equivalente, mas sim, um rompimento para com o conceito criminológico tradicional (e, em alguns pontos, ultrapassados), apontando a necessidade de estudo crítico acerca das estatísticas criminais como produto de encarceramento em massa, sobretudo que atinge o encarceramento de mulheres.

ponível na economia sempre está sob a mesa, dadas as prementes necessidades da população que carece de itens básicos para sobrevivência. E o dito combate às drogas, está longe de apresentar algum resultado efetivo, e, ao contrário, revela que a incidência desses delitos na sociedade não regride. Em que pese as ações estatais voltadas ao enfraquecimento do crime organizado dentro dos estabelecimentos prisionais ou alterações legislativas que tornem as penas mais rígidas, não se avista um quadro melhor adiante. Em verdade, a descorrelação entre o número de prisões relacionadas a drogas e a incidência criminal observada na sociedade, é assunto tradicionalmente negligenciado por diversos setores acadêmicos e estatais, os quais, tomam uma presunção como verdade absoluta, quiçá, adotando um discurso eufemístico que se sustenta, intrinsicamente, em premissas de ordem lombrosianas, como adrede já foi dito.

Recorde-se que a tipificação de condutas relacionadas ao tráfico de drogas apenas tornou-se mais focada em solo nacional no ano de 1940, com a promulgação do Código Penal. A maconha, por exemplo, àquela época, era considerada uma droga extremamente danosa à saúde pública que merecia dura repreensão, embora não se tivesse estudos 5 Desde 1940 , passou-se ao encarcera- devidamente fundamentados acerca de sua mento em massa de pessoas, em nome da nocividade. “guerra às drogas”. A demanda por tais subsHoje, a maconha já está legalizada em tâncias apenas fez aumentar a oferta, o que vários lugares do globo, para fins recreativos refletiu em aumento no número de prisões, e medicinais, e não havendo mais justifica formando um ciclo infinito. para severa reprimenda penal, em muitos paO quadro agrava-se quando inserimos o íses, inclusive em várias localidades nos prócomponente econômico. Num país de baixa prios Estados Unidos da América, tido como renda, como o Brasil, a possibilidade de de- precursor no combate às drogas, o enfrentasenvolver qualquer atividade econômica dis- mento a essa questão tem se demonstrado cionismo e seu bem jurídico. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=7a70c831f7cd4077> Acesso em: 03.02.20. 3 SANTOS, Rafa. 2020. Posse e uso de drogas em quartel foi o crime mais julgado pelo STM. Disponível em: <https://www. conjur.com.br/2020-jan-06/posse-uso-drogas-quartel-foi-crime-julgado-stm> Acesso em: 03.20.20. 4 Por G1 Vale do Paraíba e Região. Editorial sem nome autoral. 2018. SAP faz apreensão recorde no Pemano ao barrar 26 kg de droga e mais 600 itens eletrônicos. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2018/10/29/sap-faz-apreensao-recorde-no-pemano-ao-barrar-26-kg-de-droga-e-mais-de-600-itens-eletronicos.ghtml> Acesso em: 03.20.20. 5 “[...] somente a partir da década de 40 é que se pode verificar o surgimento de política proibicionista sistematizada.” CARVALHO, Salo. A política criminal de drogas no Brasil: Estudo criminológico e dogmático. 3. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 12.

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positivo, quer na perspectiva social, quer na econômica6. No Brasil, o tema encontra-se prestes a entrar na pauta do Supremo Tribunal Federal, que está em vias de julgar o Recurso Extraordinário 635.659, que trata sobre a descriminalização de pequenas quantidades de drogas.

Do contingente carcerário que está submetido a condições absurdas de convivência e sem nenhuma forma real de ressocialização, notamos que, no que se refere ao público feminino, grande parte lá estão em decorrência de delitos relacionados às drogas, conforme adiante será detidamente tratado.

Hodiernamente, a droga dita ilícita mais comum e com grande potencial de produzir danos à saúde das pessoas é o crack. O principal argumento do endurecimento da legislação proibitiva são os danos que essa droga causa às pessoas e à sociedade, tal como ocorrido na década de 40 com a maconha. Cabe aqui uma reflexão: a fórmula legislativa que não funcionou para a maconha há 80 anos atrás, funcionará agora para outras drogas?

3. O COMBATE ÀS DROGAS NO BRASIL A tipificação de condutas relacionadas ao tráfico de drogas apenas tornou-se mais focada em 1940, com a promulgação do Código Penal. Posteriormente, em 1973, o Brasil aderiu ao Acordo Sul-Americano sobre Estupefacientes e Psicotrópicos e três anos depois foi aprovada a Lei nº 6.368/1976, que fixou as condutas de tráfico de drogas e porte de drogas para consumo próprio. Em 1988, o tráfico de drogas aparece no artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal como delito assemelhado aos crimes hediondos, os quais viriam a ser propriamente elencados em 1990, com a edição da Lei nº 8.072. Atualmente, vigora entre nós a famigerada Lei nº 11.343/2006, conhecida como a Lei de Drogas, considerada, em certos aspectos, um avanço, por se esforçar em individualizar condutas e penas, de forma mais proporcional, vis a vis, com legislações anteriores.

Na tentativa de legitimar a guerra contra às drogas, oficializou-se quatro parâmetros: o moral, sanitarista, de segurança pública e segurança internacional. No plano sanitarista, busca-se tutelar o bem jurídico da saúde pública, o que em verdade, não representa uma real necessidade, já que as políticas públicas voltadas à essa área não contempla a população vulnerável, sendo mais constante o investimento financeiro em material bélico, com a efetiva militarização da segurança pública como ferramenta de política criminal7. A propósito, o fracasso da política criminal de combate às drogas tal como representada hoje pelo Brasil é fruto de uma herança norte-americana, que há muito encontra-se presente, a ponto de Joaquim Nabuco, em 1905, nomeado primeiro chefe da embaixada brasileira em Washington, ter assegurado que o Brasil “verá sempre os Estados Unidos

6 WELLE, Deutsche. Canadá arrecada US$ 139 milhões com venda de maconha. 2019. Disponível em: <https://g1.globo. com/mundo/noticia/2019/06/19/canada-arrecada-us-139-milhoes-com-venda-de-maconha.ghtml> Acesso em: 05.02.20. O Canadá recentemente enfrentou a questão da legalização da maconha. COM BLOOMBERG, O Globo. Nome autor não divulgado. 2017. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/economia/canada-enfrenta-problema-inusitado-com-drogas-falta-de-maconha-21512090> Acesso em: 05.02.20. 7 PEDRINHA, Roberta Duboc. 2008. Notas sobre a política criminal de drogas no Brasil: elementos para uma reflexão crítica. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/salvador/roberta_duboc_pedrinha.pdf> Acesso em: 05.02.20.

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tomar as grandes iniciativas na direção do nosso comum ideal americano, com o mesmo interesse continental e a mesma seguridade nacional que até hoje”(VALOIS, 2019, p. 66). O ‘até hoje’ indica, de fato, até a nossa mais recente história, que acabou por estigmatizar pessoas vulneráveis como inimigos do Estado, chamadas de traficantes. Necessário mencionar, sem nos aprofundarmos, que os Estados Unidos sofreu grande derrota para a tentativa de controle ao álcool através da lei seca. É, pois, nessa sucessão de ruínas, que o Brasil se alicerça e “estrutura” o combate às drogas.

te é tido como o do jovem, afrodescendente, pobre, sem nenhuma ou pouca alfabetização. E, ainda, nos últimos anos, o encarceramento de mulheres por tráfico de drogas aumentou, o que acrescenta outro problema social e em especial, às famílias pobres.

O Brasil chegou a marca, em julho de 2019, de pelo menos 812.564 presos, segundo o Banco de Monitoramento de Prisões, do Conselho Nacional de Justiça. Os dados mostrar que, desse total, 41,5% são presos provisórios. Esses dados ainda revelam que, casos envolvendo drogas, o perfil do trafican-

4. A SELETIVIDADE CRIMINAL A seletividade penal do sistema de justiça criminal confirma, apenas, que a criminalidade é assentada em determinados comportamentos e de determinadas pessoas; uma atribuição de status a determinados indivíduos, feita por uma seleção dupla: primeiro, se seleciona “bens protegidos penalmente, e dos comportamentos ofensivos que provém destes bens”, que são os tipos penais; depois é feita a “seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam infrações a normas penalmente sancionadas”, a partir do que se obtém o resultado de que a criminalidade é distribuída desigualmente, conforme hierarquia e faixa de interesse fixada pelo sistema sócio-econômico, e conforme a desigualdade social que existe entre os indivíduos (BARATTA, 2002, p. 161).

cria-se um Estado de Polícia em detrimento do Estado de Direito. Nesse ponto, quem passa a indicar se a conduta de um indivíduo pego com poucas gramas de droga é traficante ou usuário, é o próprio policial, o qual está muitas vezes cegamente induzido a obedecer uma sistemática pouca efetiva de combate às drogas e que se orienta exatamente pelos critérios morais estereotipados. Na grande maioria das vezes, ignorando ferramentas e técnicas investigativas e pautados tão somente por denúncias anônimas desprovidas de elementos iniciais que indiquem, com mínimo grau de certeza, tratar-se de conduta verdadeiramente afrontosa à sociedade, indicando como autores de tráfico de drogas, ao final, o sempre e mesmo indivíduo pobre, de cor negra e baixa classe social.

Disso, nasce a grande problemática enNesse Estado de Polícia, o juiz passa a torno da criminalidade, que é socialmente ser apenas um figurante dentro de uma ação construída orientada por processos de defini- penal (VALOIS, 2019, p. 369-374). Não é inções e reações morais. comum encontrarmos decisão que se mantém prisão preventiva ou que fixa-se pena em senAinda sobre os critérios de seletividade, tença condenatória baseada unicamente em

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depoimentos de testemunhas policiais8 e, ao final, remetendo o decisum a uma necessária garantia da ordem pública, ignorando princípios constitucionais e a própria aplicação da lei, tornando-se um juiz-agente de segurança. Claro que esse problema decorre da própria fragilidade da lei quando incorpora ao seu texto conceitos genéricos e subjetivos, abrindo janela a situações absurdas de condenações com elevadas penas, mesmo a despeito de tratar-se, na maioria das vezes, de crime sem ameaça ou violência. A mídia, nesse ponto, tem forte contribuição para a formação do estereótipo a que se reporta. Noticiários recheados de jornalismo sensacionalista acerca de prisões relacionadas a drogas são frequentes na televisão aos finais da tarde. Curioso perceber que esse mesmo tipo de jornalismo conta, muitas vezes, com estruturas bastante onerosas, aparelhadas por helicópteros que não rara as vezes capta cenas vistas do alto de vendas de dro-

gas em comunidades justamente de onde o Estado está distante, revelando muitas vezes condições precárias de sobrevivência humana. E é justamente nesse cenário que a guerra às drogas é bastante incisiva. Para além dos problemas estruturais que o sistema penitenciário brasileiro apresenta, devemos nos lembrar que as prisões foram arquitetadas com o propósito de conter homens e sua violência, e por isso, as muralhas e as grades (VALOIS, 2019, p. 628). Sequer foram pensadas para encarcerar pessoas envolvidas com a prática de crimes sem violência, como casos de crimes relacionados às drogas (não obstante não se desconsiderar o crime organizado e armado), quanto mais para encarcerar mulheres. Porém, o caos que as mulheres encarceradas vivem está além de simples condições que desconhecem gênero.

5.O ENCARCERAMENTO EM MASSA DAS MULHERES Em meio a esse cenário caótico, muito semelhante as condições subumanas vistas em filmes e seriados de TV, a realidade em terras brasileiras dão conta de notícias como a de que mulheres presas têm de usar miolo de pão como absorvente9, presas grávidas dão luz algemadas10, fazendo com que desconheçamos atentado maior a saúde pública que a Lei de Drogas diz proteger. No mundo real, soa como utópica a Lei nº 13.257/2016, conhecida como Marco Legal de Atenção à Primeira Infância, que traz princípios e diretrizes para a formulação e implementação de

políticas públicas voltadas para este momento da vida, além de alterar o artigo 318 do Código de Processo Penal para determinar a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar em três hipóteses: gestantes, mulheres com filho de até 12 anos de idade incompletos e homens que sejam os únicos responsáveis pelos cuidados do filho de até 12 anos incompletos. Vê-se que, apesar dessa disposições legais, ainda temos relatos de que “há enorme resistência por parte da magistratura e do Ministério Público em reconhecer a situação particular das mulheres presas e os impactos que a prisão tem no desenvolvimento integral das crianças”11.

8 O STF tem mantido o posicionamento de que a prova testemunhal exclusivamente formada por policias é válida. “EMENTA: PROCESSUAL PENAL. TESTEMUNHA POLICIAL. PROVA: EXAME. I – O Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento no sentido de que não há irregularidade no fato de o policial que participou das diligências ser ouvido como testemunha. Ademais, o só fato de a testemunha ser policial não revela suspeição ou impedimento. (...) III – H.C. indeferido (HC 76557, Relator p acórdão: Min. Carlos Velloso, 2ª Turma. J. em 04/08/1998). 9 BONATO, José. Por falta de material higiênico, presas improvisam miolo de pão como absorvente no interior de SP. 2015. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/01/24/por-falta-de-material-higienico-presas-improvisam-miolo-de-pao-como-absorvente-no-interior-de-sp.htm>. Acesso em: 05.02.20. 10 HASHIMOTO, Érica Akie. Em SP, presas dão à luz algemadas. 2011. Disponível em: <https://www.ibccrim.org.br/noticia/ 13917-Em-SP-presas-dao-a-luz-algemadas> Acesso em 05.02.20. 11 De acordo com o relatório “Mães Livres: A maternidade invisível no sistema de Justiça”, projeto lançado pelo Instituto de Direito a Defesa do Direito – IDDD, informações disponíveis em: < http://www.iddd.org.br/index.php/iddd-lanca-documentario-e-

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A exemplo, cite-se as diversas constataSegundo o Ministério da Justiça, de 2000 a ções que a Comissão de Defesa dos Direitos da 2016 a população carcerária feminina brasileira Mulher encontrou em estabelecimentos prisio- havia crescido 698%. Mais de 40% dessas munais no Pará e no Ceará: lheres não haviam sido condenadas e 64% respondiam por crimes relacionados ao tráfico de “[...] foram identificadas outras situações dedrogas, crime sem violência e sem vítima. Entre gradantes, como ausência de material de higiene, alimentos estragados, falta de água, de vestimenta os estados, São Paulo era o que concentrava e de medicamentos. Havia, no presídio feminino do maior população absoluta de presas, respondenPará, contingente maior de agentes homens do que do por 39% desse contingente. Ainda, 63% das de agentes mulheres – situação proibida e muito co- mulheres presas no país, àquela ocasião, eram mum nas prisões femininas brasileiras. Além disso, negras e apenas 34% delas detinham mais que cerca de 45% das presas estavam em situação pro- o ensino fundamental completo. visória, sem acesso à Justiça – algumas há mais de um ano”12

Após resoluções editadas por vários órgãos das Nações Unidas ao longo de 30 anos, surgiram as Regas de Bangkok com o propósito de unificar esses textos. O principal objetivo é a necessidade de se considerar as inúmeras e distintas necessidades das mulheres presas. Com efeito, estabeleceu-se regras de ingresso, de higiene pessoal, cuidados especiais com gestantes, lactantes e seus bebês, estrangeiras, minorias, povos indígenas e deficientes, cuidados com a saúde mental, prevenção acerca de doenças sexualmente transmissíveis, foco nas relações sociais e assistenciais posterior ao encarceramento, e mais. O governo brasileiro teve forte engajamento nas negociações para a elaboração das Regras de Bangkok, porém, no âmbito da realidade do dia a dia, pouco tem sido feito para aplicação dessas diretrizes. Um estudo nacional sobre as audiências de custódias demonstrou que, em 30% dos casos, as mulheres não foram perguntadas se estavam grávidas e, entre aquelas que foram questionadas, 50% tiveram a prisão preventiva decretada13.

É de fácil percepção o fracasso da política repressiva no que diz respeito aos objetivos que se declara, além dos graves e irreparáveis danos que representa para os direitos humanos. E essa situação logicamente tem reflexo na vida familiar. Enquanto homens presos continuam a receber visitas de suas companheiras, as quais, na grande maioria das vezes é quem tem de buscar o controle familiar após a prisão do companheiro, provendo os filhos com o mínimo necessário, tendo de lutar pela manutenção daquela estrutura humilde e fragilizada; estas, por sua vez, quando estão em situação de cárcere, raramente são lembradas e visitadas por seus companheiros. Quando as mães são presas, os filhos são entregues para familiares ou posto em alguma instituição do Estado (VALOIS, 2019, p. 631). Tornar aplicável as Regras de Bangkok trata-se de compromisso internacional cujo o Brasil aderiu e que não pode mais ser adiado. A propósito, tratando-se de norma internacional, o uso de controle de convencionalidade pode ser uma forma de adequar as normas internas aos tratados e convenções internacionais de Direitos Humanos. É, inclusive, medida que já deveria ser mais amplificada.

Segundo dados do DEPEN14, 34% dos estabelecimentos femininos possuem dormitório adequado para gestantes, enquanto nos estabeVê-se, portanto, que o problema de enlecimentos penais mistos 6% possuem tais departamentos; e 5% dos estabelecimentos femini- carceramento no Brasil, sobretudo voltada a nos possui creche. população feminina, representa graves viola-

-relatorio-do-projeto-maes-livres/> Acesso em: 05.02.20. 12 Editorial da Câmara dos Deputados, 2019. Violações de direitos humanos em presídios femininos são denunciadas na Câmara. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/noticias/626777-violacoes-de-direitos-humanos-em-presidios-femininos-sao-denunciadas-na-camara/> Acesso em: 06.02.20. 13 IDDD promove mutirão carcerário para a redução do número de mulheres gestantes e mães presas provisoriamente em SP. 2017. Disponível em: <http://www.iddd.org.br/index.php/iddd-promove-mutirao-carcerario-para-a-reducao-do-numero-de-mulheres-gestantes-e-maes-presas-provisoriamente-em-sp/> Acesso em: 05.02.20. 14 DEVITTO, Renato Campos Pinto (coord.). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN – Mulheres, 2014, p. 19.p. 18-19.

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ções ao direitos humanos, que inclusive po- dignidade dessas mulheres. dem sofrer outras sanções por parte de organismos internacionais. E, para além disso, fulmina de morte a

6. CONCLUSÃO O Estado tem realizado travado um com- são minimamente essencial. bate à criminalidade, via combate às drogas, É passada a hora de uma verdadeira e que tem se mostrado inglório, custoso e ineabsoluta racionalização no que se refere ao ficiente ao longo dos anos. O maior custo, é o Estado de Direito, para que se observe e se custo humano. cumpra não mais que as regras já existentes, A revisão da abordagem normativa sobre em respeito a quem legitimamente detém o a questão é premente. Obviamente, não se poder: o povo. advoga aqui pelo simples abolicionismo. No Nesse ínterim, a mulher, que é o núcleo estado atual de coisas, a abertura controlada da sociedade, deve ser respeitada. do acesso à drogas de recreação deve ser paulatina. Nessa esteira, temos que o enorme contingente carcerário, sobretudo aquele que atinge a população feminina, tem-se revelado como sendo o de maior índice no que diz respeito à questões ligadas as drogas. Em decorrência da estigmatização fruto da desinformação a respeito do tema, e que é ancorada pelas mídias – de forma irresponsável, na grande maioria das vezes, diga-se de passagem -, tem se promovido, em verdade, uma guerra declarada às pessoas. Pessoas têm sido esmagadas por um sistema falho de controle, embora se tenha diretrizes e legislações condizentes com condições dignas de sobrevivência – ainda que no cárcere. Essa guerra tem atingido fatalmente as mulheres, seja na condição de presa, seja na condição de quem muitas vezes é a única responsável pelo lar e cuidado com filhos e família. Na condição de presa porque, como se viu, estão longe de serem atendidas em suas necessidades únicas dentro dos estabelecimentos prisionais e, na condição de chefe do lar porque, não rara as vezes, são as únicas a verdadeiramente se empenharem nas questões familiares em decorrência das prisões de seus companheiros, e não encontram apoio de entidades governamentais que se engajem na preparação e qualificação social e profissional para que possam prover com aquilo que lhes 180


REFERÊNCIAS BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 3. ed. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002, trechos extraídos do sítio eletrônico disponível em: < http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=7a70c831f7cd4077> Acesso em. fev. 2020. BATISTA, Nilo. Política Criminal com derramamento de sangue. In: Revista Discursos Sediciosos. Rio de Janeiro: Revan, n. 5 e 6, 1998, p. 77-94, disponível para do wnload em: Disponível para download em: <https://www.academia.edu/16082676/_Artigo_Pol%C3%ADtica_criminal_com_derramamento_de_sangue_-_Nilo_Batista_1_> Acesso em. jan. 2020. BRASIL. Decreto, Regulamenta o disposto no art. 199 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 - Lei de Execução Penal, nº 8.858/2019. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20152018/2016/Decreto/D8858.htm> Acesso em: fev. 2020. BRASIL. Decreto-Lei Federal, Código Penal, nº 2.848/1940. Disponível em:< http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm> Acesso em fev. 2020. BRASIL. Decreto-Lei Federal, Código de Processo Penal, nº 3.689/1941. Disponível em: < http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm> Acesso em fev. 2020. BRASIL. Lei Federal, Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências, nº 11.343/2006. Disponível em: < http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm> Acesso em. fev. 2020. BRASIL, Lei Federal, Dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, a Lei nº 11.770, de 9 de setembro de 2008, e a Lei nº 12.662, de 5 de junho de 2012, nº 13.257/2016. Disponível em: < http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm> Acesso em: fev.2020. VALOIS, Luís Carlos. O Direito Penal da Guerra às Drogas. 3ª ed. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019.

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DIREITO DAS MULHERES – RESPEITO AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE/LIBERDADE Carla Matuck Borba Seraphim Advogada Militante. Mestre e Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2009). Atualmente é pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora capacitada da Fundação Getúlio Vargas – SP. Professora Titular da UNIP - Universidade Paulista. Professora convidada da UFMT – Especialização em Direito Civil. Professora da Escola Superior da Advocacia. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Civil e Biodireito. Membro do IBDC - Instituto Brasileiro de Direito Constitucional. Relatora do 20º. Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP (2008/2018). Assessora da 4ª. Câmara Recursal OAB/SP (2019/2021). Mediadora Capacitada pelo Instituto Paulista da Magistratura – IPAMC. Palestrante. Autora de livros jurídicos. Artigos Publicados. Irma Pereira Maceira Mestre e Doutora em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Advogada e Professora Universitária. Coordenadora e Professora da Escola Superior de Advocacia. Coordenadora do Curso de Pós-graduação em Direito de Família e Sucessões na ESA-SBC. Vice-Presidente Nacional da ADFAS. Membro associado da União de Juristas Católicos de São Paulo–UJUCASP. Membro consultivo das Comissões de Direito de Família e do Idoso da OAB/SP. Membro da Associação Iberoamericana de Derecho de Família y de las Personas. Membro da 4ª. Câmara Recursal da OAB/SP (2019-2021). Conselheira Secional OABSP. Membro Efetivo Regional da Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões da OAB/SP (2019-2021). Membro Integrante da Comissão Especial dos Direitos da Pessoa Idosa (2019-2021). Palestrante. Autora de livros jurídicos. Artigos publicados.

SUMÁRIO. 1. Introdução. Evolução histórica. 2 Autonomia econômica – Liberdade – Igualdade – Solidariedade.3 O Trabalho: emprego e renda como forma de empoderamento.4 Considerações Finais. Referências Bibliográficas.

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RESUMO O presente trabalho objetiva uma reflexão em torno da dos direitos – deveres da mulher, enquanto pessoa humana sem adentrar à trajetória épica de lutas e inverdades ditas e nos milênios de humilhações por ela sofridas através dos tempos. A história da mulher, escrita pelos homens devem ser moldadas aos reais avanços da humanidade, apesar de que o futuro pouco se diferencia do presente. Os encargos da maternidade e a dedicação aos trabalhos domésticos vem se reproduzindo, dia após dia, perpetuada ao longo dos séculos, quase sem modificações. As concepções teóricas integrantes dos direitos fundamentais permanecem no plano das teorias, continuam vigentes as raízes das desigualdades. As mulheres sempre foram sacrificadas e exploradas, tidas como criatura inferior, impura pela própria natureza, culpada de todos os males que afligem o gênero humano, por ter atraído sobre ele o pecado original. A mulher somente será considerada igual, se as suas diferenças forem preservadas, caso contrário permanecerá sendo o “segundo sexo”, a face oculta da lua, esquecida da humanidade.

PALAVRAS CHAVE Deveres. Fundamentais. Mulher. Humilhação. Diferenças.

ABSTRACT The present work aims at a reflection around the rights – duties of women, as a human person without entering the epic trajectory of spoken struggles and untruths and in the millennia of humiliation suffered by her through the ages. The history of women, written by men, must be shaped to the real advances of humanity, although the future differs little from the present. The burden of motherhood and dedication to domestic work has been reproducing, day after day, perpetuated over the centuries, almost without modifications. The theoretical conceptions integral to fundamental rights remain in terms of theories, remain in force with the roots of inequalities. Women have always been sacrificed and exploited, regarded as inferior creature, unclean by nature itself, guilty of all the1 evils that afflict humans, for having attracted upon it the original sin. The woman will only be considered equal if her differences are preserved, otherwise it will remain the “second sex”, the hidden face of the moon, forgotten of humanity.

KEYWORDS Duties. Fundamental. Woman. Humiliation. Diferences.

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NTRODUÇÃO A tarefa, para o regular reconhecimento dos direitos das mulheres e porta de entrada para as mudanças sociais nos mais diversos setores da sociedade, foi e continua sendo de “formiguinha”. Ao mudarem a própria realidade, se organizaram e passaram a atuar diretamente nas comunidades, levando informações e encorajamento às mulheres destituídas de informação e conhecimento dos seus direitos mais elementares. No mundo que se diz moderno, a mulher ainda é um problema mal resolvido. O homem tornou-se o senhor e dono absoluto da terra, sendo, apesar disso, incapaz de fazer evoluir paralelamente sua organização em nível social e político. Dentre os inúmeros problemas que sopesam sobre o mundo e ainda não foram resolvidos, encontramos a manutenção da desigualdade entre homens e mulheres, num verdadeiro atentado à integridade do gênero humano, comprovando que os seres humanos que tantas maravilhas fizeram, não conseguiram modificar a si mesmos. Hoje, como ontem, a história da mulher continua sendo uma história de exploração e opressão. A questão feminina não é uma questão qualquer. É uma questão que envolve a metade da humanidade.2 Esqueceu-se, entretanto, que assim como a família é a célula materda sociedade, a mulher é a base da família e é a partir dela que emanam as diversas formações familiares que se encontram espelhadas na sociedade, de variadas feições e com protagonistas diversificados. A grande parte da sociedade feminina conhece apenas e tão somente os deveres, porque lhes são ensinados desde o nascimento. Grande parcela, ainda hoje, desconhece os direitos adquiridos ao longo da história.

diferenciada com que foram educados meninos e meninas. Em decorrência dessa sistemática, tal violência atinge mulheres de todas as classes sociais e não apenas as de baixa renda, como idealizamos, inferindo um sofrimento indescritível, só conhecido pelas pessoas que passaram por experiência semelhante e, segundo comprovam os estudos já realizados, a violência dificulta e chega até mesmo a impedir-lhes os desenvolvimentos físico e mental. Na França, Paris, em 1791, ainda mesmo sem sequer terem conquistado o direito de votar, por não serem consideradas cidadãs, as mulheres representadas pelo inconformismo de Olympe de Gouges, mulher letrada, achava que as mulheres tinham sido esquecidas pela Revolução. Redigiu uma Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, que estipulava em seu artigo 1º. “A mulher nasce livre e vive igual ao homem em direitos”. Sua luta custou-lhe e a vida em 1793. A declaração foi rejeitada sendo completamente ignorada política e academicamente e Olympe de Gouges ficou quase desconhecida de pesquisas até ser republicada em 1986 por BenoîteGroult. O primeiro país a reconhecer o direto das mulheres de votar foi a Nova Zelândia, em 1893. Entre 1914 e 1939, as mulheres adquiriram o direito ao voto em mais 28 países, entre eles os EUA, em 1920, e o Brasil. Em 1927, a professora Celina Guimarães Viana conseguiu seu registro para votar no município de Mossoró, no Rio Grande do Norte. O Estado foi pioneiro na inclusão do voto feminino. Em âmbito nacional, o voto feminino só foi aprovado em 1932 e concretizado em 1933, na eleição para a Assembleia Constituinte. Em função da ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945), porém, as mulheres só voltaram a votar em 1946.

A violência contra a mulher, difundida comoviolência doméstica, constitui-se em problema A punição da violência contra mulher é oureal enfrentado há muitas gerações por milhares de pessoas, iniciando-se na família pela forma tra conquista que ainda precisa de avanços. 2 ALAMBERT. Zuleika. Mulher. Uma trajetória épica. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado (IMESP), 1997, p.19. “(...) O contingente populacional feminino já produz 1/3 dos bens necessários à sobrevivência humana e sua contribuição cultural em todas as épocas, tem sido enorme. Para ilustrar esse fato, lembramos o trabalho da filosofa alemã Luise F. Pusk, de Hanover. Ela, em 1982, adquiriu um computador e começou a desenvolver um trabalho para acabar com a “eterna autossuficiência do homem na história”. Hoje, ela dispõe de um banco de dados que considera o mais completo do mundo. São nomes e informações sobre 20.500 mulheres que se destacaram na literatura, nas políticas, nas ciências, nas artes etc.; trata-se daquela parte da humanidade que mais duramente foi penalizada, que maior ônus pagou por seus avanços.

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Diante da desigualdade, no Brasil vários grupos surgiram contra e violência e em defesa dos direitos da mulher. A violência atinge seu algeno momento em que as mulheres afirmam o seu desejo de independência ou de separação nos relacionamentos ou casamento. Normalmente são sacrificadas em nome da honra masculina, como se elas não tivessem honra. Num primeiro momento a mulher é situada como vítima, certamente por questões extremamente trágicas. Uma série de assassinatos nas camadas médias porque as mulheres de camadas pobres sempre foram mortas por seus maridos ou companheiros e nunca tiveram visibilidade. Ex. Angela Diniz, em 1980.3

atenção sobre a “cumplicidade” dos homens em relação a uma ética da violência.4

Em Seminário Nacional sobre Violência contra a mulher analisou-se: “sob a ótica de inúmeras áreas como Antropologia, Psicanálise, Direito, Psicologia onde proliferam o discurso de mulheres vítimas de violência, a intensa complexidade das relações intersubjetivas que se dão no espaço de uma relação amorosa/familiar. Embora reconheçamos que o termo “cumplicidade” seja a ponte para uma dimensão de envolvimento das mulheres, nesta relação complexa entre os sexos, acho que o termo tem uma conotação extremamente complicada e valeria um esforço, por parte dos intelectuais, das academias, das cientistas sociais e das psicanalistas, de tentarem cunhar um termo que pudesse culpabilizar menos as mulheres. Parece que este termo “cumplicidade” arroga para as mulheres um grau de responsabilidade sobre as relações em que estão envolvidas que parece neutralizar, de alguma maneira, o papel que, afinal de contas, cabe ao sexo masculino, de agressor. Não estou querendo dizer que as mulheres são naturalmente boas. Realmente esta ilusão, se algum dia a tive, já perdi. Também não acho que os homens são igualmente maus, só estou chamando a atenção de que homens e mulheres são capturados por relações sociais que se distribuem de maneira desigual entre os sexos – há uma codificação de papéis de gênero. O termo “cumplicidade” implicaria, também, em chamarmos a

“(...)enquanto vivermos numa sociedade onde os percursos e as condições de vida, as necessidades e oportunidades forem diferentes para os homens e para as mulheres, é obvio que as leis afetam uns e outros de forma diferente. O silêncio acentua ainda mais a desigualdade e a injustiça, independentemente da intenção do legislador. É, esta complexa articulação do direito com a vida que a investigação no domínio do Direito das Mulheres tenta apresentar e compreender, no intuito especial de contribuir para uma verdadeira igualdade e libertação(...).”

No ordenamento jurídico vigente as mulheres alcançaram o direito à igualdade, mas a mesma lei foi capaz de impedir, na realidade, as práticas discriminatórias, produzindo efeitos e resultados desiguais e injustos, tanto no plano individual quanto no plano coletivo. Para um melhor entendimento, necessário se faz uma avaliação do Direito para além da letra e do espírito da Lei, ou seja: as consequências que traz para os indivíduos. que:

Nas lições de TOVE STANG DAHL5, temos

Importante salientar que para que haja uma proximidade em igualdade, a Mulher necessita de rendimento próprio, condição fundamental para participar e usufruir da vida, quer pública, quer privada, uma vez que a falta de dinheiro provoca em qualquer pessoa pouca liberdade de movimentos e uma sensação de impotência. É o que encontramos nas mulheres sustentadas, total ou parcialmente. A situação de vulnerabilidade se agrava nas mulheres donas de casa em tempo integral, pois segundo o padrão masculino, o rendimento pessoal é angariado através do trabalho prestado fora do lar, permanecendo o padrão feminino caracterizado pela dependência econômica. Logo, afirmar que homens e mulheres são iguais, é simplesmente desconhecer a realidade fática, verdadeira utopia.

3 HEILBORN, Maria Luiza. SEMINARIO NACIONAL. Violência contra a mulher.São Paulo: Síntese, 1994, p. 21/23 4 HEILBORN, Maria Luiza. SEMINARIO NACIONAL. Violência contra a mulher.Op. Cit. p.24/25 5 DAHL, TOVE ESTANG. O Direito das Mulheres – Uma introdução à teoria do Direito Feminista. UNIVERSITETSFORLAGET as, 1987, Oslo, Noruega (Trad. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1993), p. 4.

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No campo filosófico Hebermas6 ao discorrer sou a ser buscada, exatamente, na fuga destas sobre o futuro da natureza humana, enfatiza: regras, tentando-se, com criatividade e liber-

“Entendo o comportamento moral como uma resposta construtiva às dependências e carências decorrentes da imperfeição da estrutura orgânica e da fragilidade permanente da existência corporal. A regulamentação normativa das relações interpessoais pode ser compreendida como um poroso invólucro de proteção contra certas contingências, às quais o corpo vulnerável e a pessoa nele representada estão expostos. (...) Depender dos outros é uma circunstância que merece a vulnerabilidade do indivíduo em relação aos outros. A pessoa fica exposta de forma completamente desprotegida a ferida em relações das quais ela geralmente depende para o desdobramento de sua identidade e para a defesa de sua integridade. (...)”

dade, construir um estilo próprio, um modo de ser no mundo exclusivo e diferenciado do masculino, ou daquilo que os homens esperam da mulher.” A própria visão de mundo da mulher encontra-se maculada pela visão patriarcal vigente, sendo-lhe negada a possibilidade de ver com a realidade com os olhos de uma feminilidade descomprometida, tendo em vista que os valores masculinos e as expectativas dos homens em relação a mulher estão tão introjetados nela que sequer consegue perceber o condicionamento, dificultando sobremaneira o rompimento do paradigma de dominação.8 Em pleno século XXI as mulheres continuam submissas, controladas, obedientes, desvalorizadas e vitimizadas; verdadeiros sacos de pancada. O índice de violência familiar (mulheres vítimas desde o nascimento, exatamente por serem do sexo feminino), são inúmeros. As poucas mulheres fortes independentes, passam a vida sozinhas, porque sabem seu valor e querem alguém ao lado que as respeitem. Tiveram a coragem e a audácia de sair em busca de seus sonhos e da felicidade, contrariando avós, pais, irmãos,e quem quer que seja. Mostraram a que vierem nesse mundo, ser alguém.

Indubitavelmente, o fato de a mulher encontrar-se desprotegida e, muitas vezes, por ela mesma. Há urgente necessidade de mudança cultural pois as mulheres por séculos foram vistas como “do lar”, cuidado invisível do trabalho doméstico e do cuidado com os membros da família. Nunca foi remunerada e tampouco paga, mas que tem um valor econômico considerável que não lhe é repassado, A grande maioria dos homens não consepor quem quer que seja. Não há interesse no avanço social da mulher. Quem cuidará dos guem conviver com mulheres independentes porque não aceitam sequer a igualdade, possuem homens? sentimento de superioridade pois, foram criados No entender de Vera Lucia da Silva Sapko7, para proteger o sexo frágil.

“(...) O homem não se preocupa em saber o que é ser homem, mas em ser homem suficiente para assim ser reconhecido, em sua masculinidade. Já a identidade da mulher, baseia-se no questionamento do que é ser mulher, já que as normas da feminilidade foram estabelecidas pelos homens, como paradigma e instrumento de dominação, reservando-se eles o direito de julgá-las e reconhecê-las como tal. Com isto, a identidade feminina pas-

Há de se consignar ainda que a mulher sofre sob o pacto do silêncio. É proibida de externar o sofrimento do qual padece, até mesmo como forma de preservação de maior agressividade. Maria Berenice Dias9, salienta:

“O homem não odeia a mulher, ele odeia a si mesmo. Muitas vezes foi vítima de abuso ou agressão e tem medo, precisa ter o controle da situação para se sentir seguro. A forma de se compensar é agredir. A sociedade

6 HABERMAS, Jurgen. O futuro da natureza humana.São Paulo: Ed. WMFMartins Fontes, 2016, p. 47/48 (Trad. Karina Jannini) 7 SAPKO. Vera Lucia da Silva. Do direito à paternidade e maternidade dos homossexuais. Curitiba: Juruá Editora, 2008, p.40/41. 8 BOURDIEU, Pierre. Observações sobre a história das mulheres. In. DUBY, Georges; PERROT, Michele (Coords.) As Mulheres e a História. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Dom Quixote, 1995, p. 57-59. 9 DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre Justiça e os crimes contra mulheres. Violência e o pacto do silêncio. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 1ª. Ed. 2004, p. 61-62

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protege a agressividade masculina, constrói a imagem de superioridade do homem. (...)Mas o silêncio não gera nenhuma barreira. A falta de um limite faz com que a violência se exacerbe. O homem testa seus limites de dominação. Quando a agressão não gera reação, aumenta a agressividade. O vitimizador, para conseguir dominar, para manter a submissão, exacerba na agressão. A ferida sara, os ossos quebrados se recuperam, o sangue seca, mas a perda da autoconfiança, a visão pessimista, a depressão, essas feridas que não curam. Por isso é preciso romper o pacto de silencio, não aceitar sequer um grito, denunciar a primeira

agressão. É a única forma de estancar o ciclo da violência da qual a mulher é a grande vítima.” Contudo, aos poucos, vamos caminhando e abrindo espaços para mudanças e exigir nossos direitos, já que o temos expressos na legislação constitucional e infraconstitucional. Basta, apenas e tão somente, colocá-los em prática. A sociedade conspira a nosso favor aumentando nossa autoconfiança, senso de liberdade e independência.

2 AUTONOMIA ECONÔMICA – LIBERDADE – IGUALDADE = SOLIDARIEDADE Estamos diante do preâmbulo da Carta rá, certamente, na extensão do conceito de liberdade. (...) Nessa trajetória, pode dizer-se que o Preâmbulo expandiu Magna de nosso país, que define como docu- o espírito de uma sociedade fraterna, pluralista e sem premento de intenções e proclamação de princí- conceitos, fundada na harmonia social. (...)” pios (define conjunto de princípios que se pro Ao lecionar o tema Direito e Justiça, o jetam sobre os preceitos e não de preceitos). filósofo Alf Ross12 sintetiza a ideia da justiça Traça diretrizes ideológicas, filosóficas, políticomo virtude supremae acrescenta: cas da Constituição da República, a saber: “(...). Este pensamento foi formulado “(...) destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, segurança, o bem-estar, no século IV a.C. pelos pitagóricos, que simo desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores bolizaram a justiça com o número quadrado, supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na no qual o igual está unido ao igual. A ideia da ordem interna e internacional, com a solução pacífica das justiça como igualdade,desde então, tem se controvérsias (...)”10 apresentado sob inúmeras variantes. (...) Se Vivemos sob o manto de um Estado De- a igualdade é tomada num sentido absoluto, mocrático, como princípio do direito, a justiça significa que todos, quaisquer que sejam as delimita e harmoniza os desejos, pretensões circunstâncias, deverão encontrar-se exatae interesses conflitantes na vida social da co- mente na mesma posição que os demais. (...) O requisito de igualdade encerra unicamente a munidade. A justiça é igualdade. exigência de que ninguém, de forma arbitrária Paulo de Barros Carvalho11 leciona que: e sem razão suficiente para isso, seja subme“(...) Nenhuma regulação de comportamentos inter- tido a um tratamento que difere daquele que pessoais torna-se possível sem atinência a esse primado se dá a qualquer outra pessoa. (...) A exigência estruturante que está na raiz das demais prerrogativas de igualdade contida na ideia de justiça não é indicadas no Texto Supremo. Eis, aí a liberdade alçada à condição de princípio dos princípios, de sobreprincípios, dirigida a todos e a cada um, mas a todos os consagrada como valor fundamental da ordem jurídica membros de classe determinados por certos brasileira, de tal modo que qualquer dos direitos mencio- critérios relevantes. (...)Atualmente as mulhenados na redação magnifica deste preâmbulo, com toda a energia e determinação de sua força prescritiva, repousa- res exigem com frequência uma remuneração 10 Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, 11 CARVALHO, Paulo de Barros. A Respeito da Liberdade. Direito empresarial, Direito do espaço virtual e outros desafios. Homenagem ao professor Newton de Lucca. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 91/95 12 ROSS, Alf. Direito e Justiça – trad. Edson Bini. EDIPRO: Bauru/SP, 2000.

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igual a dos homens pelo mesmo trabalho. (...) Todas as pessoas que pertencem a esta classe, tanto as mulheres quanto os homens, têm assim o direito de reivindicar a mesma remuneração. (...) Pois bem! Como valores supremos de uma sociedade fraterna temos a igualdade e a justiça. Consoante a disposição contida no artigo 1º, III da CF, encontra-se a dignidade da pessoa humana. O texto constitucional fala em “pessoa”, logo temos um valor moral e espiritual inerente à pessoa humana, enquanto ser humano. Não há alusão ao homem ou à mulher, independe de sexo. Estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário.

homem. Particularmente entendo que deveria ser unânime a utilização da terminologia direitos humanos. Desta forma englobaria todas as pessoas, independentemente do sexo. Com o objetivo de ver sedimentada a PAZ na sociedade, João XXIII teceu considerações sobre a DIGNIDADE HUMANA. A encíclica sustenta que todos são iguais em natureza, em nobreza e em dignidade. Baseados diretamente nesta natureza humana estão os direitos universais e inalienáveis. O reconhecimento e o respeito tanto da dignidade da pessoa como desses direitos universais é o único fundamento certo para um mundo justo e pacífico. E as exigências específicas de dignidade humana chamam-se direitos. Direitos, portanto, são valores que constituem as condições necessárias para a realização do valor fundamental, que é a dignidade humana. É o princípio básico, do qual defluem os demais princípios fundamentais do ser humano.14

Immanuel Kant, de forma inovadora afirma que o homem não deve jamais ser transA paz na sociedade somente existirá formado num instrumento para a ação de ou- quando homens e mulheres forem iguais em trem. direitos e obrigações conforme estatuídos na Lei Maior. Enquanto persistir a violência dePara Kant13, corrente da herança cultural que, mesmo nos (...) embora os homens tendam a fazer dias de hoje, o ser humano cultiva a ideia de dos outros homens instrumentos ou meios posse e propriedade em relação à pessoa do para suas próprias vontades ou fins, isso é uma outro. afronta ao próprio homem. É que o homem, Nas lições de Miguel Reale15, ao prelesendo dotado de consciência moral, tem um valor que o torna sem preço, que o põe acima cionar a teoria dos valores, temos que: de qualquer especulação material, isto é, colo“Pessoa não é senão o espírito na autoca-o acima da condição de coisa. (...) Por con- consciência de seu pôr-se constitutivamente ter essa dignidade, esse valor intrínseco, sem como valor. (...) A pessoa além de ligar-se direpreço e acima de qualquer preço, que faz dele tamente à noção de valor, liga-se, também, à pessoa, ou seja, um ser dotado de consciência liberdade. Já que só há possibilidade de escoracional e moral, e por isso mesmo capaz de lha quando existe liberdade, e o ato de “valoresponsabilidade e liberdade. rar” é parte integrante-essencial do exercício E prossegueno inciso IV do artigo 3ºdo da liberdade. (...) Não haveria valor se não houvesse no ser humano a possibilidade de livre mesmo diplomalegal: escolha entre as alternativas imanentes à proIV – Promover o bem de todos, sem pre- blemática axiológica, nem poderíamos falar de conceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e liberdade, se não houvesse a possibilidade de quaisquer outras formas de discriminação. opção e participação real dos valores e das vaTanto a Carta Magna quanto a doutrina lorações.(...) É a característica da liberdade, a majoritária se utilizamda expressão direitos do possibilidade de escolha que dá ao homem sua 13 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafisica dos costumes. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 1999, p. 130-140 (Coleção os Pensadores) 14 FREITAS JUNIOR, Roberto Mendes de. Direitos e garantias do idoso: doutrina, jurisprudência e legislação. São Paulo: Atlas, 3ª. Ed., 2015, p. 6/7. 15 REALE, Miguel. O direito como experiência. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 196.

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dignidade, entendida como especificidade: “A dignidade da pessoa encontra-se centralizada na sua liberdade, que a independentiza e diferencia em relação aos demais comportamentos”. Como se vê, a dignidade do ser humano iguala-se à liberdade. Se possui a liberdade, tem a possibilidade de, ao menos teoricamente, determinar o seu “dever-se”. É essa possibilidade de escolha que deve ser respeitada e considerada.A essência da dignidade do ser humano é o respeito mútuo e essa possibilidade de escolha. A especificidade é sua liberdade.16

Constata-se que o tratamento igualitário integra não só o no ordenamento jurídico como vontade de caminhar juntos sob o manto do respeito e está centrado na dignidade da pessoa humana e na solidariedade social. Todos temos o dever de respeito para com o outro. Inadmissível, portanto, que a mulher continue a ser vilipendiada no exercício de direitos. Infelizmente a nossa sociedade produz, a cada instante, mais e mais oprimidos, sem sequer vislumbrar uma luz no fim do túnel. Não devemos permitir a continuidade de atos opressivos, escravismo caseiro. Não devemos permitir o retrocesso jamais.

Precisamos mudar a realidade social, começando por nós mesmas deixando de lado o ser inferior, por herança cultural, que habita dentro de cada uma de nós. Construímos a imagem da mulher ideal, mas estamos longe de ser uma delas. A solidariedade deve ser um Referido princípio tem sua origem no imperativo constante. A criatividade do direiprincípio da solidariedade social e pode ser to está sempre escondida em nome da seguobservado sob seus ângulos interno e exter- rança jurídica. no. Se for observado externamente, pode-se Corroborando com tais assertivas Paulo dizer que cabe ao Poder Público, assim como Luiz Netto Lôbo aduz: à sociedade civil, a promoção de políticas públicas que garantam o atendimento às neces“Assim, podemos afirmar que o princípio sidades familiares dos pobres e excluídos. da solidariedade é o grande marco paradigmático que caracteriza a transformação do Reafirma a Lei Maior no inciso IV do artiEstado liberal e individualista em Estado dego 2º promover o bem de todos, sem preconceimocrático e social, com suas vicissitudes e detos de origem, raça, sexo, cor, idade e qualquer safios, que o conturbado século XX nos legou. outra forma de discriminação. É a superação do individualismo jurídico pela No que concerne aos direitos fundamen- função social dos direitos.” tais o legislador constituinte no artigo 5º, a CF E conclui afirmando que: “A solidariedaadotou o princípio da igualdade em direitos e de instiga a compreensão da família brasileiobrigações, prevendo a igualdade de aptidão, ra contemporânea, que rompeu os grilhões de possibilidades virtuais, onde todos os cidados poderes despóticos – do poder marital e dãos têm direito a tratamento idêntico pela do poder paterno, especialmente – e se vê lei. Pelo princípio da isonomia devemos tratar em estado de perplexidade para lidar com a os iguais com igualdade e os desiguais com liberdade conquistada.”17 desigualdade, à medida que se desigualam, Mutatis mutandis, a família é a célulamaterconforme o conceito de Justiça. (art. 7º, XXX da sociedade, a mulher é a base da família e é CF – Proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão a partir dela que emanam as diversas formações por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil. familiares que se encontram espelhadas na sociedade, de variadas feições e com protagonis– Decreto 4377/2002) A Constituição Federal de 1988, passou a reger as relações familiares e trouxe insculpido no inciso I, do artigo 3º. O princípio da solidariedade familiar ao enfatizar a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

tas diversificados.

16 17

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de Filosofía do Direito.8. ed. São Paulo:Atlas, 2010, p. 557 LOBO. Paulo Luiz Netto. O Direito de família e a Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 2009 p.5.

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Em se tratando de Liberdade temos queLiberdadedesigna exatamente a ausência de oposição. Entretanto considero temerária a conceituação em razão de diferentes características pessoais, modos de agir dependente do livre arbítrio. A liberdade é regra no Estado Democrático de Direito e a restrição à liberdade, é a exceção, que deve ser excepcionalíssima.18

Segundo Hobbes19 “nos casos nos quais o soberano não prescreveu nenhuma regra, o sujeito tem a liberdade de agir ou de abster de acordo com a sua própria discricionariedade”. Tentar tornar o outro como simples objeto, patrimônio ou coisa, é absurdo e nada significa, eis que pertencemos ao mesmo gênero humano, apesar das diferenças decorrentes do sexo.

3 O TRABALHO: EMPREGO E RENDA COMO FORMA DE EMPODERAMENTO De conformidade com o artigo 5º, I, da CF/88, homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações assegurando, portanto, a igualdade. No mesmo diploma legal, art. 7º, XX, temos: Proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específico, nos termos, da lei”.

do vínculo de emprego a quem sequer solicitou essa providência está proporcionando a muitos trabalhadores uma visita gratuita ao inferno, onde, ao ingressarem na sala do Juízo final, são contemplados com a redução de sua remuneração, o que lhe impinge uma realidade que jamais desejaram. O restante do bônus que recebem A CLT traz algumas vedações para que vem em forma de “direitos”, que em regra não não configure discriminação no trabalho da mu- compensam os outros “direitos econômicos”, que lher, uma vez que a discriminação se visualiza perderam.21 na contratação ou no decorrer do contrato no que concerne à exigência de atestado ou exa Em se tratando de mulher facilmente seria me, de qualquer natureza, para comprovação de demitida, ante a ideia de que ao homem é resesterilidade ou gravidez. Não será considerada guardada a obrigação de sustento da família e discriminação, entretanto, se o empregador exi- a capacidade de transformação, enquanto o sagir da mulher teste de gravidez por ocasião do lário ou remuneração para a mulher não passa rompimento do vínculo empregatício. Pois caso de colaboração ou aumento de renda familiar. ela esteja grávida o contrato de trabalho deverá Ignora-se a sua necessidade de subsistência, de ser mantido. ganhar o pão de cada dia. A discriminação também poderá ser configurada, além dos relativos a sexo, cor, religião, raça, estado civil é o capital humano, isto é, em razão do seu papel de mãe e seus encargos domésticos, as mulheres dão preferência nos cargos que não exijam muito do seu tempo, sendo excluídas dos cargos de maior e melhor qualificação profissional, dando azo à diferença salarial. Sendo assim, cabe ao Estado propiciar meios adequados para que torná-la, cada vez mais, profissional em condições de desenvolver o trabalho e a maternidade.20 Mas nem tudo são flores. Infelizmente, ainda que silenciosamente, está ocorrendo a volta aos meados do século XIX, quando ainda reluzia o trabalho subumano. A imposição unilateral 18 19 20 21

Denota-se que a mulher sempre ficou em segundo plano. Era, literalmente, fadada aos afazeres domésticos, sem qualquer renda. As empregadas domésticas, na grande maioria, auferiam míseras remunerações sob a afirmativa de que tinham moradia, uniformes e alimentação. Apesar de sua energia e potencialidade criadora, a mulher permanece, ainda hoje, já que seu destino não mudou de rumo. Enquanto os homens, criam, se projetam, se dignificam, ela segue pela vida afora como parte invisível ainda não descoberta. Eis que, como sabemos, é a metade do céu. A própria história escrita pelos homens a ignora. Os heróis cantados em verso e em prosa sempre foram do gênero masculino. Por isso, são eles que aparecem no dinheiro, nos selos, nos artigos de jornais que lembram fatos

MORAES. Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada. São Paulo: Atlas, 2003, p. 132 HOBBES, Thomes. Leviathan, II, 21, p. 143 COMPORTO, Roberto. Estudo elementar do Direito do Trabalho. São Paulo: EIJUR,2013, p. 328-338 PASTORE, Eduardo. O Trabalho sem emprego. São Paulo: LTr, 2008, p. 29

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importantes.22

E, mesmo diante de tantas falhas, desconsiderações e ausência de apresentação de soluções para alguns dos mais graves problemas, aí está ele impondo aniquilando, manipulando, dizimando e, mesmo assim, se sente como um Deus, um herói, autor de grandes façanhas. Rejeita as ricas experiencias recolhidas pela mulher em milênios de existência, a sabedoria adquirida em séculos de observação. Rejeita a contribuição de quem, habituada a dar a vida, está sempre disposta a defendê-lo.

foram deixadas de lado, não passaram decorrentes ideológicas. Continuam vigentes as raízes das desigualdades. O ser humano, dependente economicamente, continua em situação de inferioridade. Apesar do trabalho constante e da remuneração que muitas auferem pelo trabalho fora, ainda assim, uma grande parcela permanecem ao lado do agressor em razão dependência econômica, emocional e até mesmo o preconceito existente em nossa sociedade em relação à mulher separada ou sozinha.

Tais conquistas traduzidas nos direitos fundamentais na conquista da democracia,

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS As diferenças entre homem e mulher existem desde que o mundo é mundo. Os conflitos fazem parte da vida, somos diferentes. Porém temos que combater os conflitos da forma mais pacífica possível. A violência não é forma de solução. Se respeitarmos e formos capazes de conviver com os mais diversos posicionamentos, evitaremos a violência, pois não somos melhores e nem piores que o outro. As pessoas devem recuperar sua identidade e seus valores, repensar suas escolhas e desenvolver a educação íntima para equilibrar a educação externa. Cada um deve fazer a sua parte, sem perder tempo responsabilizando o outro, empurrando a culpa ao invés de buscar soluções. Inexiste relação de poder que não seja a dominação, exploração e exclusão. O afastamento do ser humano dotado de tais atitudes devem ser traduzida em realidade imediata, apesar das dificuldades em romper com a situação.

competia. As mulheres, ainda que tenham agressividade e vontade de convertê-la em agressão, não o fazem devido à contenção a que são levadas pelo cerceamento da sociedade, o que não ocorre com o homem, já que a agressividade masculina é bem vista quando convertida em agressão. Precisamos ensinar e orientar as mulheres a um repensar para que possa vislumbrar novas possibilidades de agir consigo mesma e interagir com os outros. A violência é um comportamento aprendido e não natural. Importante aprender e ensinar outras maneiras de resolver os conflitos. Há necessidade urgente da retomada dos valores morais. Inconcebível nos dias de hoje compactuarmos com atitudes agressivas contra a mulher. Se todos são iguais em obrigações, deve ser também em direitos conforme a prescreve a magna carta.

As mulheres são desrespeitadas de sen Inegavelmente, muitas sofrem violência tido amplo, independente de classe social, de pelo descumprimento das expectativas criaprofissão – da faxineira ao mais alto escalão das. Expectativas essas traduzidas em obedi(seja Diretora ou Presidente de empresa), de ência, feito ou deixado de fazer algo que lhes raça ou de cor. Todas seguem o mesmo desti22

ALAMBERT, Zuleika. Op. Cit. P. 30

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no, o de ser humilhada pelo sexo oposto. Os parceiros inteligentes valorizam e respeitam as mulheres fortes e independentes, em qualquer tipo de relação, seja romântica, familiar, social ou de trabalho. Nada compra a liberdade e a felicidade se não ser controlada e dirigida, como se não tivéssemos cérebro. Somos mestras de nossas próprias vidas, sabemos escolher com quem queremos viver. Todos somos iguais não somente perante lei, mas perante tudo e todos.

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REFERÊNCIAS ALAMBERT. Zuleika. Mulher. Uma trajetória épica. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado (IMESP), 1997 BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de Filosofía do Direito.8. ed. São Paulo: Atlas, 2010 BOURDIEU, Pierre. Observações sobre a história das mulheres. In. DUBY, Georges; PERROT, Michele (Coords.) As Mulheres e a História. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Dom Quixote, 1995. CARVALHO, Paulo de Barros. A Respeito da Liberdade. Direito empresarial, Direito do espaço vir-

tual e outros desafios. Homenagem ao professor Newton de Lucca. São Paulo: Quartier Latin, 2018 COMPORTO, Roberto. Estudo elementar do Direito do Trabalho. São Paulo: EIJUR,2013

DAHL, ToveEstang. O Direito das Mulheres – Uma introdução à teoria do Direito Feminista. UNIVERSITETSFORLAGET as, 1987, Oslo, Noruega (Trad. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1993). DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre Justiça e os crimes contra mulheres. Violência e o pacto do silêncio. Porto Alegre: Livraria do Advogado-Ed., 2004 FREITAS JUNIOR, Roberto Mendes de. Direitos e garantias do idoso: doutrina, jurisprudência e legislação. São Paulo: Atlas, 3ª. Ed., 2015, p. 6/7. HABERMAS, Jurgen. O futuro da natureza humana.São Paulo: Ed. WMFNartins Fontes, 2016 (Trad. Karina Jannini) HOBBES. Thomas. Leviathan, II, 21 LOBBO, PauloLuiz Neto.O Direito de família e a Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 2009

MORAES. Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada. São Paulo: Atlas, 2003. PASTORE, Eduardo. O trabalho sem emprego. São Paulo: LTr, 2008 SALLES, Raimundo Taraskevicius. Trabalho, emprego e renda. São Paulo: INOP EDITORA. SAPKO. Vera Lucia da Silva. Do direito à paternidade e maternidade dos homossexuais. Curitiba: Juruá Editora, 2008 ROSS, Alf. Direito e Justiça – trad. Edson Bini. EDIPRO: Bauru/SP, 2000.

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# METOO: O PAPEL DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NAS MÍDIAS DIGITAIS EM DEFESA DOS DIREITOS DAS MULHERES Davi Bertozo Bezerra da Silva Diretor na Full Soluções Web, Bacharel em Sistemas de Informação, MBA em Marketing USP-SP, Docente no Centro Paula Souza curso de Desenvolvimento de Software ETEC Rodrigues de Abreu.

Luiza Ribeiro Mattar Advogada. Especialista em Direito Empresarial. Mestre em Mídia e Tecnologia em Direitos Humanos nas Mídias Digitais pela UNESP/FAAC. Professora da Pós-Graduação em Gestão Pública pela UNIFESP. Docente do Ensino Técnico em Serviços Jurídicos e Transações Imobiliárias pela ETEC Centro Paula Souza. Especializanda em Gestão de Negócios pela USP/Esalq. E-mail: luiza. mattar@etec.sp.gov.br

SUMÁRIO Resumo Abstract 1. Introdução 2. Desenvolvimento 3. Considerações finais Referências

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RESUMO Defender direitos na sociedade em rede, representa a nova característica dos movimentos sociais. O ativismo hashtag (#hashtivism) desenvolvido nas mídias digitais permitem a difusão instantânea, viral e democrática de lutas e defesas pelos direitos humanos. A voz de uma ou várias mulheres ecoam de maneira global exigindo mudanças nos setores institucionais e nos poderes dominantes. O espaço digital ocupado por cidadão midiatizados, netizens, possibilitam o apoio aos movimentos sem participar de uma organização e da retaliação do grupo preponderante. Os movimentos sociais se unem frente a injustiças, explorações e violações de direitos. Com o movimento #metoo não foi diferente. Mulheres cansadas dos abusos e violência sexual praticados impunimente sob a proteção da indústria cultural denunciaram a brutalidade, cinismo e a impunidade através das mídias digitais. Este trabalho através da pesquisa exploratória, bibliográfica e de estudo de caso buscou demostrar o poder das mídias digitais na defesa dos direitos humanos, e em específico, das mulheres.

PALAVRAS-CHAVE Movimentos sociais; ativismo digital; direitos humanos; direito das mulheres.

ABSTRACT Defending rights in the network society represents the new characteristic of social movements. The hashtag activism (#hashtivism) developed in digital media allows the instantaneous, viral and democratic diffusion of struggles and defenses for human rights. The voice of one or more women echoes globally, demanding changes in institutional sectors and dominant powers. The digital space occupied by mediatized citizens, netizens, makes it possible to support movements without participating in an organization and the retaliation of the preponderant group. Social movements unite in the face of injustice, exploitation and rights violations. The #metoo movement was no different. Women tired of the sexual abuse and violence practiced with impunity under the protection of the cultural industry denounced brutality, cynicism and impunity through digital media. This work, through exploratory, bibliographic and case study research, sought to demonstrate the power of digital media in the defense of human rights, and specifically, of women.

KEYWORDS Social movements; digital activism; human rights; women’s rights.

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1. INTRODUÇÃO Na era digital a comunicação deixou de ser de um para um ou um para todos e passou de todos para todos. A conectividade, a mobilidade e fluidez das mídias digitais permitiram que novos atores pudessem participar das novas praças públicas disponibilizadas pelas redes. A produção de conteúdo, a co-criação e possibilidade de compartilhar histórias, fotos, imagens, vídeos e principalmente depoimentos modificou a visibilidade, o controle, a divulgação e a concentração da informação. Com um smartphone em mãos os netizens, o cidadão digital, elimina as barreiras sociais, demográficas, geográficas, econômicas e de controle do poder emitindo opiniões, flagrando crimes, denunciando abusos, divulgando informações e contribuindo para posts, virais, memes, lives e directs (KOTLER, 2017)1. As mulheres, os jovens e os netizens, segundo Kotler (2017)2, são os grupos mais influentes das redes digitais. As mulheres por atuarem como coletoras de informações (acrescentam tags as páginas da web), criadoras (elaboram conteúdo online) e críticas (postam comentários e avaliações) utilizam as mídias digitais como plataformas de luta por direitos e igualdade de condições. A mídia digital favorece a união e a aproximação de diferentes culturas, faixas etárias, condições sociais e ideologias no enfrentamento da violência sexual e do assédio em um click. A voz abafada e ignorada das mulheres pelo patriarcado, pelas condições sociais e econômicas e pela mídia tradicional (jornais/televisão/revistas) encontra eco nas mídias digitais e interferem nas estruturas de poder da sociedade. Para a compreensão dos conceitos estru-

turais abordados nesse trabalho, entende-se por violência sexual o ato ou a tentativa de contato sexual não desejado através da coação moral e física, como também, comentários e investidas agressivas ao corpo da vítima. O tráfico sexual de mulheres para casamentos forçados ou prostituição é caracterizado como violência (ETIENNE; DAHLBERG; ZWI et al., 2002) 3. A coação pode ser física ou moral como ameaças, chantagens e intimidações. A legislação brasileira caracteriza o estupro como todo o constrangimento por grave ameaça ou violência a prática forçada de conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso. Já o abuso sexual, definido como assédio sexual, é o constrangimento com o intuito de obtenção de vantagem ou favorecimento sexual dentro das relações de trabalho, ou seja, o superior hierárquico se prevalecendo de sua condição de poder e decisão exige contato sexual para a manutenção do emprego ou para a promoção (BRASIL,2020 online) 4. Recentemente, as importunações e investidas ofensivas a liberdade sexual que embora inadequadas socialmente não eram consideradas crime de estupro passaram a ser consideradas criminosas pela tipificação da importunação sexual (BRASIL,2020 online)5 . A violência sexual tem grande impacto na saúde física e mental das mulheres que se caracterizam pelos suicídios, abortos, as doenças sexualmente transmissíveis, assassinatos, ostracismo social, estigmatização e o sentimento de injustiça. Embora a legislação brasileira avance na proteção os comportamentos, a cultura e machismo ainda são fatores de resistência aos direitos das mulheres (ETIENNE; DAHLBERG; ZWI et al., 2002)6. Esta violência, é fruto da sociedade patriarcal e reflete em suas causas, justificativas e en-

1 KOTLER, P. Marketing 4.0. Rio de Janeiro: Sextante, 2017. 2 KOTLER, P. Marketing 4.0. Rio de Janeiro: Sextante, 2017. 3 ETIENNE, G.K. L; DAHLBERG, J.A.M; ZWI, A. B. LOZANO, R. Relatório mundial sobre violência e saúde. Disponível em: https://www.academia.edu/7619294/Relat%C3%B3rio_mundial_sobre_viol%C3%AAncia_e_sa%C3%BAde. Acesso em: 02 fev. de 2020 4 BRASIL. Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 02 fev. de 2020. 5 BRASIL. Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 02 fev. de 2020. 6 ETIENNE, G.K. L; DAHLBERG, J.A.M; ZWI, A. B. LOZANO, R. Relatório mundial sobre violência e saúde. Disponível em: https://www.academia.edu/7619294/Relat%C3%B3rio_mundial_sobre_viol%C3%AAncia_e_sa%C3%BAde. Acesso em: 02 fev. de 2020.

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frentamentos. O patriarcado é uma estrutura social onde o masculino detêm o poder e o controle sobre família, sociedade, propriedade e a mulher. Através, do reforço de superioridade masculina que a violência contra a mulher é caracterizada como algo banal e próprio das relações sociais (ETIENNE; DAHLBERG; ZWI et al., 2002).7. A ideologia patriarcalista do direito sexual masculino através da convicção que as mulheres não podem negar as investidas sexuais violentas e abusivas perpetuam a impunidade e a crença na legitimidade do uso da força para satisfação dos desejos sexuais (ETIENNE; DAHLBERG; ZWI et al., 2002)8. Como contrapoder o feminismo, segundo Castells (1999) 9, é o movimento social de luta por transformação social através da igualdade. O feminismo é o compromisso de pôr fim a dominação masculina com a redefinição da identidade da mulher pela afirmação de igualdade entre os gêneros levando em conta as diferenças

e reestruturando os papéis sociais em relação ao patriarcado. O poder do patriarcado e o contrapoder do feminismo encontram nas mídias digitais novos campos de batalhas que não exigem organização formal, líderes e estruturas. As plataformas móveis como palco dos processos de indignação e lutas por direitos humanos caracterizam-se em sujeitos coletivos de mobilização e liderança sem pertencimento a nenhum partido político ou estrutura hierarquizada o que permite a maior integração e participação. Este artigo, através da pesquisa exploratória e bibliográfica, busca demostrar como as mídias digitais contribuíram para o ativismo político dos movimentos feministas por liberdade sexual analisando como estudo de caso o movimento #metoo (eu também- tradução nossa) ocorrido na rede social Twitter.

2. DESENVOLVIMENTO A mídia digital acessível, democrática, ins- forma, depõem contra as leis e os direitos básitantânea e global permite ao cidadão midiatizado cos de igualdade, liberdade e dignidade humana compartilhar suas emoções, sentimentos, ideo- (MARTHE; BERGAMASCO, 2017) 11. logias e informações de forma horizontal sem filSegundo Castells (2013)12, a mídia digital tros e censuras. representa um novo poder ao influenciar sobre a O ativismo hashatag (#hashativism) confe- opinião pública e divulgar informações. Ao postar riu poder aos grupos minoritários até então ex- ou compartilhar conteúdos na internet o cidadão cluídos nas grandes mídias. Através da lingua- midiatizado difunde na nova praça pública as lugem da máquina uma denúncia, uma ação, uma tas sociais por igualdade e proteção de direitos informação, um acontecimento tornam-se virais criando redes, grupos e páginas de apoio e proem segundos (JENKINS, 2009) 10. moção. O poder fulminante das mídias digitais trouxe poder as mulheres para denunciarem condutas, ações, publicidades, figuras públicas e anônimas, filmes, shows, exposições de arte e instituições públicas e privadas, que, de alguma

Cansadas de não terem seus direitos reconhecidos e suas denúncias não serem levadas a sério por autoridades, sociedade e pelas próprias mídias tradicionais as mulheres através das redes sociais passaram a promover suas próprias

7 ETIENNE, G.K. L; DAHLBERG, J.A.M; ZWI, A. B. LOZANO, R. Relatório mundial sobre violência e saúde. Disponível em: https://www.academia.edu/7619294/Relat%C3%B3rio_mundial_sobre_viol%C3%AAncia_e_sa%C3%BAde. Acesso em: 02 fev. de 2020. 8 ETIENNE, G.K. L; DAHLBERG, J.A.M; ZWI, A. B. LOZANO, R. Relatório mundial sobre violência e saúde. Disponível em: https://www.academia.edu/7619294/Relat%C3%B3rio_mundial_sobre_viol%C3%AAncia_e_sa%C3%BAde. Acesso em: 02 fev. de 2020. 9 CASTELLS, M. O poder da identidade. 3 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 10 JENKINS, H. Cultura da convergência. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2009. 11 MARTHE, M.; BERGAMASCO, D. O poder fulminante das redes sociais. O caso do jornalista William Waack, afastado da Globo depois de ser flagrado dizendo uma frase racista, mostra a força instantânea do mundo digital. Veja, São Paulo, 2556. ed., n. 46, 15 nov. 2017. 12 CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

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lutas através do ativismo hashatag (CASTELLS, dos, denunciados ou não, as autoridades com2013)13. petentes. O movimento #metoo iniciado pelas atrizes Ashley Judd com uma postagem em seu twitter trouxe abaixo a badalada indústria do cinema americana. Em sua postagem a atriz comentava um episódio de abuso sexual sofrido e convidava seus seguidores a fazer o mesmo. O post viralizou alcançando engajamento mundial e o título de personalidade do ano de 2017 pela Revista Times (AGENCE FRANCE PRESSE, 2017)14. Um simples tweet trouxe a público o assédio sexual no ambiente de trabalho e os estupros realizados dentro dos estúdios de Hollywood que até então vinham constantemente sendo ignorados e silenciados por acordos de confidencialidade e ameaças de demissão. Nos bastidores do show biz o produtor americano Harvey Weinstein, altamente renomado e considerado pelo indústria cultural, teria abusado sexualmente das atrizes Ashley Judd, Jessica Barth, Katherine Kendall, Rose McGowan, Florence Darel, Judith Godreche, Emma de Caunes, Alice Evans e Lysette Anthony, Dawn Denning e Tomi-Ann Robert, Angelina Jolie, Gwyneth Paltrow, Cara Delevingne e Lea Seydoux (AGENCE FRANCE PRESSE, 2017) 15. Através da repercussão promovida pelas redes sociais as vítimas conseguiram voz e finalmente justiça com a acusação formal do produtor na justiça americana (OGLOBO, 2019)16. O movimento ganhou versões mundiais e espalhou como fumaça através da globalização e democratização da internet com grupos, fanpage, páginas e perfis nas redes sociais. Ao ingressar nas páginas, nos grupos e nos sites do movimento #metoo nas redes sociais a mulher, em alguns, homens também, encontram um espaço privado e protegido para compartilhar e relatar experiências de abusos sexuais sofri-

Nesse ambiente protegido as vítimas encontram respaldo e informações necessárias para a defesa, proteção e os caminhos de denúncia. Através do compartilhamento de dores e esperanças pela mídia digital as mulheres se unem superando o medo e as emoções paralisantes do desestímulo e da violência institucionalizada do machismo, cinismo social e cultural e do vazio social de defesa de direitos (CASTELLS, 2013) 17 . Da segurança dos grupos da internet as mulheres passam a ocupar os espaços públicos para reivindicar direitos e proteções em verdadeiros movimentos sociais. Os movimentos iniciados na internet espalham-se de forma rápida, viral e mundial atingindo e agregando defensores e manifestações públicas de apoio. A pressão social exercida pelo grupo faz com que as instituições públicas e privadas tomem a iniciativa que outrora vinham se negando. As comunidades nas redes digitais são baseadas na proximidade. A proximidades é um mecanismo psicológico para superar o medo. O medo é uma barreira para a atitude ativista. Ele impede a participação e o engajamento as reivindicações. Superar o medo é essencial para o sucesso de um movimento social. Ocupar um espaço público, no caso a internet, permite ao cidadão midiatizado participar do movimento sem aderir a organização o que amplia o seu campo de atuação e evita perseguições aos líderes e membros dos grupos (CASTELLS, 2013)18. Os movimentos sociais são essenciais para mudanças de valores e ideologias dentro de uma sociedade por exercerem o contrapoder. E dentro das redes digitais encontram o espaço de autonomia para a recuperação de direitos de representação e apropriação das instituições políticas de forma instantânea e transformadora

13 CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. 14 AGENCE FRANCE PRESSE. Modelo cria campanha e compartilha denúncias de assédio sexual na indústria da moda.... Rio de Janeiro: G1. Globo, 16 nov. 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/modelo-cria-campanha-e-compartilha-denuncias-de-assedio-sexual-na-industria-da-moda.ghtml. Acesso em: 07 dez. 2017. 15 AGENCE FRANCE PRESSE. Modelo cria campanha e compartilha denúncias de assédio sexual na indústria da moda.... Rio de Janeiro: G1. Globo, 16 nov. 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/modelo-cria-campanha-e-compartilha-denuncias-de-assedio-sexual-na-industria-da-moda.ghtml. Acesso em: 07 dez. 2017. 16 OGLOBO. Caso Harvey Weinstein: Julgamento de abuso sexual é marcado para maio. Disponível em: https://g1.globo. com/pop-arte/noticia/2019/01/09/caso-harvey-weinstein-julgamento-de-abuso-sexual-e-marcado-para-maio.ghtml. Acesso em: 29 jan. de 2019. 17 CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. 18 CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

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(CASTELLS, 2013)19.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS A violência contra a mulher encontra no ativismo hashtag voz, proteção e denúncia. A segurança do espaço digital favorece a união no enfrentamento do medo e da falsa inquietação de estar sozinho. O movimento #metoo, presente desde 2017 na maioria das redes sociais, demostrou que as mídias digitais podem ser poderosas ferramentas de difusão, proteção e promoção dos direitos das mulheres. O escândalo que mudou a gestão empresarial e a cultura organizacional da indústria do cinema americano não teria sido global, autônomo e viral, muito menos teria resultado na punição e demissão do agressor contumaz, sem o uso da tecnologia da informação e da comunicação.

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CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

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REFERÊNCIAS AGENCE FRANCE PRESSE. Modelo cria campanha e compartilha denúncias de assédio sexual na indústria da moda.... Rio de Janeiro: G1. Globo, 16 nov. 2017. Disponível em: https:// g1.globo.com/pop-arte/noticia/modelo-cria-campanha-e-compartilha-denuncias-de-assedio-sexual-na-industria-da-moda.ghtml. Acesso em: 07 dez. 2017. ALVES, M. Como escrever teses e monografias: um roteiro passo a passo. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. BRASIL. Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 02 fev. de 2020. CASTELLS, M. O poder da identidade. 3 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999. __________. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. ETIENNE, G.K. L; DAHLBERG, J.A.M; ZWI, A. B. LOZANO, R. Relatório mundial sobre violência e saúde. Disponível em: https://www.academia.edu/7619294/Relat%C3%B3rio_mundial_sobre_ viol%C3%AAncia_e_sa%C3%BAde. Acesso em: 02 fev. de 2020. JENKINS, H. Cultura da convergência. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2009. KOTLER, P. Marketing 4.0. Rio de Janeiro: Sextante, 2017. MARTHE, M.; BERGAMASCO, D. O poder fulminante das redes sociais. O caso do jornalista William Waack, afastado da Globo depois de ser flagrado dizendo uma frase racista, mostra a força instantânea do mundo digital. Veja, São Paulo, 2556. ed., n. 46, 15 nov. 2017. OGLOBO. Caso Harvey Weinstein: Julgamento de abuso sexual é marcado para maio. Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2019/01/09/caso-harvey-weinstein-julgamento-de-abuso-sexual-e-marcado-para-maio.ghtml. Acesso em: 29 jan. de 2019.

TOMBLESON, B.; WOLF, K. Rethinking the circuit of culture: How participatory culture has transformed cross-cultural communication. Public. Relations Review, v. 43, n. 1, p. 14-25, 2017. Disponível em: ww.periodicos.capes.gov.br/?option=com_pmetabusca&mn=88&smn=88&type=b&base=aHR0cDovL2J1c2NhZG9yLnBlcmlvZGljb3MuY2FwZXMuZ292LmJyL1Y%2FZnVuYz1maW5kLWRiLTEtdGl0bGUmaW5zdGl0dXRlPUNBUEVTJnBvcnRhbD1OT1ZPJm5ld19sbmc9UE9SJnR5cGU9YiZtb2RlPXRpdGxlcyZhemxpc3Q9TiZzY2FuX3V0Zj0mdGlwb0J1c2NhPW9uJnNlYXJjaF90eXBlPWNvbnRhaW5zJnJlc3RyaWN0ZWQ9dW5yZXN0cmljdGVkJng9MCZ5PTA%3D&scan_start=SCOPUS+%28Elsevier%29. Acesso em: 02 dez. 2017.

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DA VIOLÊNCIA PATRIMONIAL Gabriela Cristina Gavioli Pinto Especialista pela Universidade do Sul de Santa Catarina em Novo Direito Civil, para Mercado de Trabalho e Exercício do Magistério Superior. Especialista pela Universidade Potiguar em Direito Público com Ênfase em Direito Processo Civil e Especialista pela Instituição Toledo de Ensino em Direito Civil, Direito Processual Civil, Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho. Advogada. Presidente da Comissão da Valorização dos Honorários Advocatícios da OAB de Bauru/SP. Coordenadora da 21ª Coordenadoria Regional da Mulher Advogada.

Taís Nader Marta Doutoranda em Direito pela USP (Universidade de São Paulo) de São Paulo/SP. Mestre em Direito – Sistema Constitucional de Garantia de Direitos – pela ITE (Instituição Toledo de Ensino) de Bauru/SP. Advogada. Coordenadora da Escola Superior da Advocacia (ESA) de Bauru/SP. Professora do Curso de Direito da UNINOVE-Bauru, em cursos de Pós-graduação e da Escola Superior da Advocacia. Associada e integrante da Diretoria da ABMCJ (Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica)/SP.

SUMÁRIO 1. Introdução 2. Da Violência De Gênero 3. Das Violências De Gênero Previstas Na Lei Maria Da Penha 3.1 Da Violência Psicológica 3.2 Da Violência Moral 3.3 Da Violência Física 3.4 Da Violência Sexual 4. Da Violência Patrimonial 4.1 Conceito 4.2 Formas De Violência Patrimonial Considerações Finais Referências “O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades”. Hannah Arendt

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RESUMO Dentre as diversas violências de gênero previstas na Lei Maria da Penha existe a violência patrimonial: uma violência complexa de se combater posto que muitas vezes é aceita pela própria mulher que a suporta ou não a identifica fazendo com que essa agressão aumente e até evolua para outros tipos de violência, razão pela qual ela deve ser denunciada e guerreada.

PALAVRAS-CHAVE Violência de gênero; violência patrimonial; vulnerabilidade da mulher.

ABSTRACT Among the various gender-based violence foreseen in the Maria da Penha Law, there is patrimonial violence: a complex violence to fight since it is often accepted by the woman who supports it or does not identify it, causing this aggression to increase and even evolve for other types of violence, which is why it must be denounced and waged.

KEYWORDS Gender violence; patrimonial violence; vulnerability of women.

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1. INTRODUÇÃO A violência patrimonial é qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos. Na esfera familiar normalmente é exercida pelo agressor de uma maneira sutil, quase

imperceptível motivo que muitas vezes dificulta a sua identificação. É dever do Estado e dos Operadores do Direito identificar essa violência para proteção da mulher e para que se evite a ocorrência de outras violências.

2. DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO A Constituição Federal de 1988, após longo período ditatorial, é o grande marco para os direitos das mulheres, contribuindo, para tanto, os movimentos de mulheres, conhecidos no período constituinte como o Lobby do Batom. Dentre diversas demandas dos movimentos de mulheres incorporadas ao texto constitucional, cabe destacar os dispositivos que tratam do princípio da igualdade entre homens e mulheres em todos os campos da vida social (art. 5º, I), inclusive na sociedade conjugal (art. 226, § 5º) e, também, a inclusão do art. 226, § 8º, por meio do qual “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”1. A inserção desse artigo atribui ao Estado a obrigação de intervir nas relações familiares para coibir a violência intrafamiliar, bem como de prestar assistência às pessoas envolvidas. Contudo, houve reações contrárias a essa iniciativa do movimento de mulheres, sob o argumento de que as mulheres “gostam de apanhar”.2 Importante ressaltar, também, que “Em

relação à violência contra as mulheres, duas Convenções ganham destaque: A Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW - sigla da Convenção em inglês), adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1979 e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará, adotada pela Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1994 e ratificada pelo Brasil em 1995”. 3 No ano seguinte, em 1993, a Assembleia Geral da ONU, pela Resolução 48/104, de 20/12/1993, adota a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, definindo essa violência como sendo qualquer ato de violência, baseado no gênero, que resulte ou possa resultar em dano físico, sexual ou psicológico ou em sofrimento para a mulher, inclusive as ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrária da liberdade, podendo ocorrer na esfera pública ou privada. A partir dessa declaração, a violência contra as mulheres é compreendida como uma violação de direitos humanos.4

1 SENADO. Dialogando sobre a Lei Maria da Penha. Disponível em: https://saberes.senado.leg.br/mod/book/ view.php?id=45066&chapterid=94845. Acesso em 5/5/2020. 2 PIMENTEL, Silvia. Violência Doméstica. (Áudio). Comissão de SegurançaPública e Combate ao Crime Organizado (Seminário). Câmara dos Deputados. 2003. Disponível em:<http://imagem.camara.gov.br/internet/audio/exibeaudio. asp?codGravacao=21156&hrInicio=2003,11,11,15,30,14&hrFim=2003,11,11,16,17,21&descEvento=Comissão%20de%20 Segurança%20Pública%20e%20Combate%20ao%20Crime%20O...&diffDataFinal=103&ultimoEleme nto=false >. Acesso em 28/03/2016. 3 SENADO. Dialogando sobre a Lei Maria da Penha. Disponível em: https://saberes.senado.leg.br/mod/book/ view.php?id=45066&chapterid=94845. Acesso em 5/5/2020. 4 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional. 10 ed. Rev. Atual. São Paulo: Saraiva, 2009,

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A violência doméstica contra a mulher vem afetando diariamente muitas vítimas, independentemente da cor, idade, ou grupo social a que pertencem, podendo se desenvolver em diferentes ambientes e pelos mais diversos agentes. A grande maioria dos casos ocorre no próprio ambiente familiar da vítima, onde o marido, namorado, companheiro, filho, neto, dentre outros membros da família, desempenha o papel de agressor.5

cito os autores e nem os acórdãos para poupar seus protagonistas de constrangimento).

Por outro lado, não é necessário falar, aqui, da legítima defesa da honra, tese que, até há pouco tempo, vicejava no Tribunal do Júri. Desnecessário, também, lembrar que a mulher era dispensada do serviço do Júri, em face dos afazeres domésticos. Tampouco, precisamos repisar julgamentos recentes acerca Sobre os aspectos socioculturais e jurí- da violência contra a mulher (e contra crianças) dicos que justificam uma lei específica para as e o modo como o gênero feminino é tratado...! mulheres em situação de violência, Lenio Streck aduz:

(...) A Lei Maria da Penha, votada democraticamente pelo Parlamento brasileiro, discutida no âmbito da esfera pública, não sofre de vício de inconstitucionalidade. E isso por várias razões. Trata-se de uma Lei que preenche um gap histórico, representado por legislações anteriores que discriminavam as mulheres e, se não as discriminavam explicitamente, colocavam o gênero feminino em um segundo plano. Isso pode ser visto no velho Código Penal de 1940, em que, até há pouco tempo, o estupro era considerado “crime contra os costumes”. Somente nos últimos anos passou-se denominá-lo “crime contra a dignidade sexual” (pode ser também “crime contra a liberdade sexual”). Destaque-se, neste mesmo sentido, que o imaginário dos juristas continua a sustentar legislação de cunho discriminatório, eis que parte da doutrina penal ainda considera que o “marido tem o direito de obrigar a mulher a praticar, em ele, o ato sexual”. Claro que isso pode se dever ao fato de que alguns penalistas – cujos Manuais ainda tratam desse modo a matéria – não corrigiram sua doutrina após o advento da Constituição de 1988. Mas, de todo modo, sempre resta uma questão: o fato, inconteste, de que em algum momento, os Tribunais brasileiros sufragaram a tese da violência institucionalizada no sexo de um casal (não

E o que dizer dos meios de comunicação, que historicamente incentivam esse tratamento infamante à mulher? Quem não lembra da personagem vivida pela atriz Cristiane Torloni, que na novela Mulheres Apaixonadas, dizia, em um dos primeiros capítulos, que sua vida estava um tédio, que queria mesmo “é sair”, “levar uns tapas”... tudo em rede nacional, com audiência de mais 70% dos aparelhos ligados. Outra novela – e é importante citar o exemplo desses tipos de folhetim pela sua penetração/incorporação pelo imaginário social – que tratou da temática de modo similar foi A Próxima Vítima. No folhetim, o personagem vivido por José Wilker, Marcelo, em face do adultério de Isabela (vivida pela atriz Cláudia Ohana), corta-lhe o rosto, produzindo uma profunda cicatriz, o que fazia com que a personagem, no restante da novela, andasse com o rosto coberto pelos longos cabelos. Pois bem. Procurado pela polícia, Marcelo reúne-se com suas três filhas e lhes relata o acontecido. Ao que uma de suas filhas diz: não se preocupe, papai – “ela mereceu”. È necessário dizer algo mais para fundamentar a necessidade de leis específicas para desigualar a desigualdade?6 Para melhor compreender os tipos de violência contra a mulher existente em nosso ordenamento jurídico, em especial na Lei nº 11.340/2006, conhecida popularmente como Lei Maria Da Penha, faz-se necessário com-

passim. 5 ANDRADE, L. F.; BARBOSA, S. F. A lei Maria da Penha e a implementação do grupo de reflexão para homens autores de violência contra mulheres em S.P. Seminário Internacional Fazendo Gênero: “Construindo novas relações de gênero: a presença feminina nos territórios do saber”. Florianópolis: 2008. 6 STRECK, Lenio Luiz. Lei Maria da Penha no contexto do Estado Constitucional: desigualando a desigualdade histórica In: CAMPOS, Carmem Hein de. (Org.) Lei Maria da Penha: comentada em uma Perspectiva jurídico-Feminina. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 99-100.

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preender o que é violência de gênero. Isso porque, compreendendo a violência de gênero, seu conceito e aplicação, torna-se mais simples a compreensão das leis penal que tratam das questões do gênero feminino. A violência de gênero decorre dos papéis sociais diversos atribuídos culturalmente aos homens e mulheres, sendo que a supervalorização do gênero masculino inferioriza o feminino, acarretando a violência de gênero contra a mulher, o que foi muito bem apontado pela Alice Bianchini, Mariana Bazzo e Silvia Chaklian: A violência de gênero, por sua vez, envolve uma determinação social dos papéis masculino e feminino. Toda sociedade pode atribuir diferentes papéis ao homem e à mulher. Até aí tudo bem. Isso, todavia adquire caráter discriminatório quando a tais papéis são estabelecidos pesos e importâncias diferenciadas. Quando a valoração social desses papéis é distinta, há desequilíbrio, assimetria das relações sociais, o que pode acarretar violência. No caso da nossa sociedade, os papéis masculinos são supervalorizados em detrimento dos femininos, trazendo prejuízos para as mulheres que, em sua dimensão mais acentuada, chegam à violência contra a mulher.7 A violência de gênero ocorre nas relações em que o agressor utiliza da violência a fim de impor à mulher um papel social de submissão e obediência, privando-a do convívio familiar e social, da sua intimidade e liberdade, demonstrando a existência de poder no âmbito familiar.

- “Convenção de Belém do Pará”, ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995, reconhece essa violência como ofensa a dignidade da pessoa humana, como uma forma de violação dos direitos humanos, nos termos do artigo 1º, abaixo transcrito:

Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada. 8 Não é possível deixar de mencionar a Recomendação nº 35, antiga Recomendação nº 19, do Comitê CEDAW (Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Anexo A), de 1992, decorrente da Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Anexo B), que foi adotada pela Assembleia Geral da ONU em 18/12/1979 e ratificada pelo Brasil em 01/02/1984.9 A Recomendação nº 35, em seu Preâmbulo item 1, traz o conceito de violência de gênero, o que foi definido quando da elaboração da Recomendação Geral nº 19 (1992), como sendo aquela que “é dirigida contra uma mulher porque ela é mulher ou que afeta as mulheres desproporcionalmente”, constituindo, assim, uma violação dos direitos humanos, direito este que também é previsto e assegurado pela Constituição Federal de 1988.

Portanto, toda a violência contra a mulher, hoje prevista na Lei nº 11.340/2006, Lei Maria da Penha deve ser estudada e tratada a partir do entendimento do conceito da Violência de Gênero, bem como pelas disposições apresentadas pelo Comitê CEDAW, bem como pela Convenção de Em razão da existência da violência de gêBelém do Pará. nero, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher

3. DAS VIOLÊNCIAS DE GÊNERO PREVISTAS NA LEI MARIA DA PENHA As violências de gênero previstas na Lei tudos e de Convenções Internacionais que já Maria da Penha decorrem de décadas de es- vinham se preocupando e regulamentando a 7 BIANCHINI, Alice; BAZZO, Amriana; CHAKIAN, Silvia. Crimes Contra Mulheres. São Paulo: JusPodivm, 2019, p.20. 8 Disponível em: http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/m.Belem.do.Para.htm. Acesso em 10/02/2020. 9 Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/769f84bb4f9230f283050b7673aeb063.pdf. Acesso em 16/02/2020.

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existência de Violência Contra a Mulher.

insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; (Redação dada pela Lei nº 13.772, de 2018) (grifo nosso)

Assim sendo, a partir da análise da Convenção de Belém do Pará, nota-se que a violência contra a mulher é aquela abrangida pela violência física, sexual e psicológica, não incluído em seu artigo 2º, a violência patrimoIII - a violência sexual, entendida como nial e moral, conforme referido artigo abaixo qualquer conduta que a constranja a pretranscrito: senciar, a manter ou a participar de relação Entende-se que a violência contra a mu- sexual não desejada, mediante intimidação, lher abrange a violência física, sexual e psico- ameaça, coação ou uso da força; que a indulógica: za a comercializar ou a utilizar, de qualquer a. ocorrida no âmbito da família ou modo, a sua sexualidade, que a impeça de unidade doméstica ou em qualquer relação usar qualquer método contraceptivo ou que interpessoal, quer o agressor compartilhe, te- a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto nha compartilhado ou não a sua residência, ou à prostituição, mediante coação, chantaincluindo-se, entre outras formas, o estupro, gem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais maus-tratos e abuso sexual; e reprodutivos; (grifo nosso) b. ocorrida na comunidade e coIV - a violência patrimonial, entendida metida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortu- como qualquer conduta que configure retenra, tráfico de mulheres, prostituição forçada, ção, subtração, destruição parcial ou total de seqüestro e assédio sexual no local de traba- seus objetos, instrumentos de trabalho, dolho, bem como em instituições educacionais, cumentos pessoais, bens, valores e direitos serviços de saúde ou qualquer outro local; e ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; (grifo c. perpetrada ou tolerada pelo Estado nosso) ou seus agentes, onde quer que ocorra.10 V - a violência moral, entendida como As formas de violência doméstica e fa- qualquer conduta que configure calúnia, difamiliar contra a mulher estão previstas no arti- mação ou injúria11.(grifo nosso) go 7º, da Lei 10.340/2006 (Lei Maria da Pe No entanto, estas formas de violência nha), vejamos: doméstica e familiar contra a mulher não são Art. 7º São formas de violência domés- tipos penais. Logo, não é possível que uma tica e familiar contra a mulher, entre outras: mulher em estado de violência possa realizar I - a violência física, entendida como Boletim de Ocorrência decorrentes destas qualquer conduta que ofenda sua integridade formas de violência. ou saúde corporal; (grifo nosso) O artigo 7º da Lei Maria da Penha, porII - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, 10 11

tanto, não criou tipo penal, razão pela qual, cada um desses ilícitos, deve ser correlacionado aos tipos penais previstos no Código Penal.

A fim de melhor compreensão da ausência de tipo penal no artigo ora em comento, importante relembrar que o tipo penal, além da descrição da conduta proibida, também apresenta a penalidade que será aplicada

Disponível em: http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/m.Belem.do.Para.htm. Acesso em 16/02/2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em 16/02/2020.

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em caso de realizar a conduta proibida.

dos pelo artigo 7º, mas sim em grandes grupos de espécies de violências, os quais justa No entanto, a Lei Maria da Penha, nas mente se traduzem em inúmeros ilícitos civis alíneas do artigo 7º, se limita a descrever quais e penais já devidamente previstos em lei12. são as formas de violência, mas não atribui Assim sendo, passaremos a estudar o qualquer penalidade para aqueles que praticarem os atos descritos no citado diploma le- conceito de cada um dos tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher que esgal tão previstos na Lei Maria da Penha, sendo Neste sentido, Alice Bianchini, Mariana que será apresentado um estudo mais detaBazzo e Silvia Chaklian, vejamos: lhado sobre a Violência Patrimonial. Em face do princípio da tipicidade, não há que se falar em novos crimes estabeleci-

3.1 DA VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA Conforme acima transcrito, a violência pleno desenvolvimento; psicológica esta prevista no inciso II, do artigo Condutas que degrade suas ações; 7º, da Lei Maria da Penha: Condutas que controle suas ações; Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: Condutas que controlem seu comportamento; (...) Condutas que controlem sua crença; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano Condutas que controlem suas decisões. emocional e diminuição da autoestima ou No entanto, para que estas condutas que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou contro- sejam consideradas como violência doméstica lar suas ações, comportamentos, crenças e e familiar contra a mulher, elas devem ser pradecisões, mediante ameaça, constrangimen- ticadas, mediante: to, humilhação, manipulação, isolamento, Ameaça; vigilância constante, perseguição contumaz, Constrangimento; insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do Humilhação; direito de ir e vir ou qualquer outro meio que Manipulação; lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; (Redação dada pela Lei Isolamento; nº 13.772, de 2018) (grifo nosso) Vigilância constante; A partir da leitura do inciso acima transPerseguição contumaz; crito, podemos verificar que são sete as condutas que causam a violência psicológica, Insulto; quais sejam: Chantagem; Condutas que lhe cause dano emocional Violação de sua intimidade; e diminuição da autoestima; Condutas que prejudique e perturbe o 12 p.71.

Ridicularização;

BIANCHINI, Alice; BAZZO, Amriana; CHAKIAN, Silvia. Crimes Contra Mulheres. São Paulo: JusPodivm, 2019,

208


Exploração;

lência psicológica praticada no âmbito doméstico e familiar, depende de condutas correlaLimitação do direito de ir e vir; cionadas a forma em que efetivamente são Ou qualquer outro meio que lhe cause praticadas. prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação. Assim sendo, a caracterização da vio-

3.2 DA VIOLÊNCIA MORAL Igualmente, o conceito de violência mo- anos, e multa. ral, está previsto no artigo 7º da Lei Maria da Difamação Penha, mas no inciso V, vejamos: Art. 139 - Difamar alguém, imputandoArt. 7º São formas de violência domés-lhe fato ofensivo à sua reputação: tica e familiar contra a mulher, entre outras: Pena - detenção, de três meses a um (...) ano, e multa. V - a violência moral, entendida como Injúria qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. (grifo nosso) Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Este dispositivo legal relaciona o conceito da violência moral aos conceitos pre Pena - detenção, de um a seis meses, vistos nos dispositivos do Código Penal, que ou multa.13 versam sobre os crimes de calúnia, injúria e A partir dos conceitos acima transcridifamação, vejamos: tos, verifica-se que a diferença entre a vioCalúnia lência psicológica e a violência moral é muito pequena, já que a injúria, difamação e calúnia Art. 138 - Caluniar alguém, imputandosão formas de diminuição da autoestima da -lhe falsamente fato definido como crime: vítima. Pena - detenção, de seis meses a dois

3.3 DA VIOLÊNCIA FÍSICA A violência física, cujo conceito enconI - a violência física, entendida como tra-se previsto no inciso I, do artigo 7º da Lei qualquer conduta que ofenda sua integridade Maria da Penha, é a de maior incidência no ou saúde corporal; (grifo nosso) âmbito doméstico e familiar. O objetivo dessa forma de violência é Importante transcrever o conceito de ofender a integridade ou a saúde do corpo da referido tipo de violência doméstica e familiar, vítima, através de socos, beliscões, puxão de vejamos: cabelo, queimadura, choques elétricos, empurrões, dentre outras formas de ferimentos. Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: 13 16/02/2020.

Disponível

em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm.

209

Acesso

em


3.4 DA VIOLÊNCIA SEXUAL A Lei Maria da Penha também prevê como uma forma de violência contra a mulher, a violência sexual, cujo conceito pode ser conhecido a partir da análise do disposto no inciso III, do artigo 7º, abaixo transcrito:

globa, não apenas o ato em que o agressor força a conjunção carnal não desejada pela vítima, mas também, toda e qualquer conduta que limite ou anule o exercício de seu direito sexual e reprodutivo, além de condutas que constranja a mulher a ver, manter ou particiArt. 7º São formas de violência doméspar de uma relação sexual não desejada. tica e familiar contra a mulher, entre outras: Ainda, em que pese esse rol de condu(...) tas seja amplo, ele não é taxativo, conforme III - a violência sexual, entendida como muito bem observado na obra da Professora qualquer conduta que a constranja a pre- Alice Bianchini: senciar, a manter ou a participar de relação O rol das doze condutas apresentadas sexual não desejada, mediante intimidação, não é taxativo. Havendo uma situação anáameaça, coação ou uso da força; que a induloga, há possibilidade de se enquadrar como za a comercializar ou a utilizar, de qualquer violência sexual de gênero14. modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que Portanto, a violência sexual contra a a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto mulher pode ser praticada das formas mais ou à prostituição, mediante coação, chanta- variadas e diversificadas possíveis, não posgem, suborno ou manipulação; ou que limite suindo uma conduta específica do agressor ou anule o exercício de seus direitos sexuais que a caracterize, mas sempre este ato deve e reprodutivos; (grifo nosso) ser indesejado pela vítima. Esta forma de violência é muito mais abrangente do que se é conhecido, já que en-

4. DA VIOLÊNCIA PATRIMONIAL 4.1 CONCEITO A violência patrimonial, também possui nados a satisfazer suas necessidades; (grifo seu conceito na Lei Maria da Penha, no inciso nosso) IV, do artigo 7º, vejamos: A violência patrimonial está intimamenArt. 7º São formas de violência domés- te ligada ao patrimônio da mulher, sendo que tica e familiar contra a mulher, entre outras: não engloba apenas aqueles que tenham alto valor monetário, mas também aqueles que (...) possuem valor sentimental. IV - a violência patrimonial, entendida De acordo com Ocner Córdova Lópe, em como qualquer conduta que configure reten- seu artigo15 intitulado La violencia económica y/o ção, subtração, destruição parcial ou total de patrimonial contra las mujeres en el ámbito famiseus objetos, instrumentos de trabalho, do- liar, podemos definir violência patrimonial como: cumentos pessoais, bens, valores e direitos “Son las acciones, omisiones o conductas ou recursos econômicos, incluindo os desti14 BIANCHINI, Alice. Lei Maria da Penha. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 53. 15 LÓPE, Ocner Córdova. La violencia económica y/o patrimonial contra las mujeres en el ámbito familiar. PERSONA Y FAMILIA N° 06 2017 Revista del Instituto de la Familia Facultad de Derecho, p. 41. Disponível em: http://revistas.unife.edu.pe/index.php/personayfamilia/article/view/468/295. Acesso em: 04/02/2020.

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que afectan la libre disposición del patrimonio de la mujer; incluyéndose los daños a los bienes comunes o propios mediante la transformación, sustracción, destrucción, distracción, daño, pérdida, limitación, retención de objetos, documentos personales, bienes, valores y derechos patrimoniales. En consecuencia, serán nulos los actos de alzamiento, simulación de enajenación de los bienes muebles o inmuebles; cualquiera que sea el régimen patrimonial del matrimonio, incluyéndose el de la unión no matrimonial” Uma interessante pesquisa retratada no artigo O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA PATRIMONIAL CONTRA A MULHER: PERCEPÇÕES DAS VÍTIMAS16 revela que dentre os tipos de violência notificados pelas mulheres na Delegacia de Polícia Civil, no município de Viçosa, no ano

de 2010, a violência patrimonial, se fez presente em 27 casos notificados, sendo que, 22 eram jovens e 5 eram idosas. Assim, de um total de 306 queixas registradas, 8,8% dos casos de violência contra as mulheres no município era de violência patrimonial. Esse tipo de violência, além de se encontrar nas denúncias isoladamente, também estava conjugado a outras formas que vitimizam a mulher. 17

A partir do momento em que a mulher, dentro do âmbito doméstico, familiar ou em uma relação íntima de afeto, possui um objeto seu destruído, ou um documento retido, ou, ainda, que tenha seus recursos econômicos subtraídos, estaremos diante de uma violência patrimonial contra a mulher, garantida e protegida pela Lei Maria da Penha.

4.2 FORMAS DE VIOLÊNCIA PATRIMONIAL A Lei Maria da Penha prevê quais são - Roubo: artigo 157 do CP os tipos de violência contra a mulher que exis- Destruição ou ocultação de documentem, no entanto, as formas de violência nela tos da vítima: artigo 305 do CP prevista, não são tipos penais, ou seja, embora traga a descrição de um fato ilícito, não há co- Dano: artigo 163 do CP18 minação de uma pena no caso da conduta ser Diante deste cenário, evidente a necessipraticada.

dade das condutas ilícitas previstas no inciso IV, Assim, em face do princípio da tipicida- do artigo 7º da Lei Maria da Penha serem tipifide, não há falar que a violência patrimonial é cadas pelos tipos penais previstos no do Código um novo crime previsto na Lei Maria da Pe- Penal.

nha, sendo certo que este ilícito deve ser apliSubtração de bens, valores e direitos ou cado em conjunto com os crimes já previstos recursos econômicos no Código Penal Brasileiro. O verbo “subtrair” é o tipo penal do fur Neste sentido, Alice Bianchini, Mariana to (artigo 155, do Código Penal), sendo cerBazzo e Silvia Chaklian, trazem, de forma atu- to que, “subtrair” com emprego de violência, alizada até o ano de 2018, um quadro com os neste caso, o tipo penal presente é o do roubo crimes que estão relacionados com a violência (artigo 157, do Código Penal). Vejamos: patrimonial, vejamos: Furto Violência Patrimonial Art. 155 - Subtrair, para si ou para ou- Furto: artigo 155 do CP 16 Oikos: Revista Brasileira de Economia Doméstica, Viçosa, v. 24, n.1, p.207-236, 2013. Disponível em: https://periodicos.ufv.br/oikos/article/view/3653/1929. Acesso em 10/01/2020. 17 Referido estudo aponta ainda que pode-se verificar uma baixa incidência de mulheres idosas que decidem denunciar o seu agressor, esse fato deve-se a agressão geralmente ocorrer no âmbito familiar pelos próprios membros de sua família, com os quais mantém uma relação de dependência, de natureza afetiva e financeira. 18 BIANCHINI, Alice; BAZZO, Amriana; CHAKIAN, Silvia. Crimes Contra Mulheres. São Paulo: JusPodivm, 2019, p.72.

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trem, coisa alheia móvel: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. Roubo Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:

anos, e multa, além da pena correspondente à violência. Ainda, não podemos deixar de mencionar que a conduta “destruir” também está diretamente relacionada com os artigos 151 e 305, do Código Penal, já que este trata da destruição, supressão ou ocultação de documentos e, aquele, da violação de correspondência abrange a sonegação ou destruição de correspondência alheia, conforme abaixo transcrito:

Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.

Violação de correspondência

Art. 151 - Devassar indevidamente o Destruição parcial ou total de objetos, conteúdo de correspondência fechada, dirigiinstrumentos de trabalho e documentos pes- da a outrem: soais Pena - detenção, de um a seis meses,

O verbo “destruir” nos remete ao tipo ou multa. penal do crime de dano, previsto no artigo Sonegação ou destruição de corres163, do Código Penal. Não é demais reme- pondência morar que se houver emprego de violência ou § 1º - Na mesma pena incorre: grave ameaça, o crime será de dano qualificado, in verbis: I - quem se apossa indevidamente de correspondência alheia, embora não fechada Dano e, no todo ou em parte, a sonega ou destrói; Art. 163 - Destruir, inutilizar ou deteriorar Por fim, e não menos importante, no coisa alheia: caso da ocultação ou destruição de documenPena - detenção, de um a seis meses, tos da mulher a impossibilitar de exercer seus ou multa. direitos trabalhistas, também restará configurado o tipo penal previsto no artigo 203 do Dano qualificado Código Penal, vejamos: Parágrafo único - Se o crime é cometiFrustração de direito assegurado por do: lei trabalhista I - com violência à pessoa ou grave Art. 203 - Frustrar, mediante fraude ou ameaça; violência, direito assegurado pela legislação II - com emprego de substância inflamá- do trabalho: vel ou explosiva, se o fato não constitui crime Pena - detenção de um ano a dois anos, mais grave e multa, além da pena correspondente à vio III - contra o patrimônio da União, de Es- lência. (Redação dada pela Lei nº 9.777, de tado, do Distrito Federal, de Município ou de 29.12.1998) autarquia, fundação pública, empresa públi § 1º Na mesma pena incorre quem: (Inca, sociedade de economia mista ou emprecluído pela Lei nº 9.777, de 1998) sa concessionária de serviços públicos; (Redação dada pela Lei nº 13.531, de 2017) I - obriga ou coage alguém a usar mer IV - por motivo egoístico ou com prejuí- cadorias de determinado estabelecimento, para impossibilitar o desligamento do serviço zo considerável para a vítima: em virtude de dívida; (Incluído pela Lei nº Pena - detenção, de seis meses a três 9.777, de 1998) 212


Assim, é possível observar que a aplica II – impede alguém de se desligar de serviços de qualquer natureza, mediante co- ção da violência patrimonial prevista na Lei Maria ação ou por meio da retenção de seus do- da Penha pode estar correlacionada com algum cumentos pessoais ou contratuais. (Incluído dos artigos do Código Penal acima citados. pela Lei nº 9.777, de 1998) Cabe à mulher, portanto, sempre que so-

§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental. (Incluído pela Lei nº 9.777, de 1998) Retenção de bens, valores e direitos ou recursos econômicos A conduta de “reter” bens e valores está diretamente ligada ao artigo 168 do Código Penal, qual seja, crime de apropriação indébita, vejamos: Apropriação indébita Art. 168 - Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção:

frer violência patrimonial no curso do processo de divórcio, dissolução de união estável, partilha de bens ou alimentos, quer pela prática de furto, destruição, apropriação ou retenção de bens ou valores pelo marido, ex-marido, companheiro ou ex-companheiro, comunicar o fato à autoridade policial, seguindo-se a queixa ou representação conforme o caso, para a instauração da competente ação penal. Além das consequências penais, a lei também prevê medidas protetivas ao patrimônio da mulher, tanto no tocante à proteção da meação dos bens da sociedade conjugal, como dos bens particulares, e que poderão ser adotadas em caráter liminar. Essas medidas independem da instauração de ação penal e podem ser postuladas no juízo cível ou mesmo perante a própria autoridade policial, competente para receber a notitia criminis.19

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesse panorama, restou devidamente demonstrado, que a violência patrimonial representa uma violação à Lei Maria da Penha e como conseguinte aos Direitos Humanos do grupo vulnerável das mulheres ao transformar a moradia em um ambiente de temor e dor, com danos não apenas financeiros mas também psicológicos que podem culminar com outros tipos de violência.

19

RÉGIS, Mário Luiz Delgado. A Violência Patrimonial Contra a Mulher nos Litígios de Família. Disponível em:

https://www.lex.com.br/doutrina_27138477_A_VIOLENCIA_PATRIMONIAL_CONTRA_A_MULHER_NOS_LITIGIOS_ DE_FAMILIA.aspx. Acesso em 01/03/2020.

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REFERÊNCIAS ANDRADE, L. F.; BARBOSA, S. F. A lei Maria da Penha e a implementação do grupo de reflexão para homens autores de violência contra mulheres em SP. Seminário Internacional Fazendo Gênero: “Construindo novas relações de gênero: a presença feminina nos territórios do saber”. Florianópolis: 2008. BIANCHINI, Alice; BAZZO, Amriana; CHAKIAN, Silvia. Crimes Contra Mulheres. São Paulo: JusPodivm, 2019. BIANCHINI, Alice. Lei Maria da Penha. São Paulo: Saraiva, 2016. LÓPE, Ocner Córdova. La violencia económica y/o patrimonial contra las mujeres en el ámbito familiar. PERSONA Y FAMILIA N° 06 2017 Revista del Instituto de la Familia Facultad de Derecho. Disponível em: http://revistas.unife.edu.pe/index.php/personayfamilia/article/ view/468/295. Acesso em: 04/02/2020. OIKOS: Revista Brasileira de Economia Doméstica, Viçosa, v. 24, n.1, p.207-236, 2013. Disponível em: https://periodicos.ufv.br/oikos/article/view/3653/1929. Acesso em 10/01/2020. PIMENTEL, Silvia. Violência Doméstica. (Áudio). Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado (Seminário). Câmara dos Deputados. 2003. Disponível em:<http://imagem.camara.gov.br/internet/audio/exibeaudio.asp?codGravacao=21156&hrInicio=2003,11,11,15,30,14&hrFim=2003,11,11,16,17,21&descEvento=Comissão%20de%20 Segurança%20Pública%20e%20Combate%20ao%20Crime%20O...&diffDataFinal=103&ultimoEleme nto=false >. Acesso em 28/03/2016. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional. 10 ed. Rev. Atual. São Paulo: Saraiva, 2009. RÉGIS, Mário Luiz Delgado. A Violência Patrimonial Contra a Mulher nos Litígios de Família. Disponível em: https://www.lex.com.br/doutrina_27138477_A_VIOLENCIA_PATRIMONIAL_ CONTRA_A_MULHER_NOS_LITIGIOS_DE_FAMILIA.aspx. Acesso em 01/03/2020. SENADO. Dialogando sobre a Lei Maria da Penha. Disponível em: https://saberes.senado.leg. br/mod/book/view.php?id=45066&chapterid=94845. Acesso em 5/5/2020. STRECK, Lenio Luiz. Lei Maria da Penha no contexto do Estado Constitucional: desigualando a desigualdade histórica In: CAMPOS, Carmem Hein de. (Org.) Lei Maria da Penha: comentada em uma Perspectiva jurídico-Feminina. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

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AS FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR PREVISTAS NA LEI N. 11.340/2006: ALGUMAS QUESTÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS Geisa Oliveira Daré Advogada / Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Bauru / Mestre em Direitos Humanos pela Universidade do Minho / Autora do livro “Direito ao esquecimento” (ISBN: 9788579173455).

Margarida Santos Doutora em Direito, na especialidade de Ciências Jurídicas Públicas / Professora na Escola de Direito da Universidade do Minho/ Membro Integrado do Centro de Investigação para a Justiça e Governação (Universidade do Minho) e da Unidade de Investigação em Criminologia e Ciências do Comportamento (ISMAI).

SUMÁRIO 1. Introdução 2. A Violência Física 3. A Violência Psicológica 4. A Violência Sexual 5. A Violência Patrimonial 6. A Violência Moral Considerações Finais Referências

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RESUMO O presente estudo trabalha as cinco formas de violência doméstica e familiar descritas na Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006). Ao longo do texto, foram incluídos comentários jurisprudenciais e doutrinários a respeito da definição de cada forma de violência e propostas para resolução de divergências existentes em cada uma. Espera-se, com isso, a uniformização do entendimento de questões controversas e atualização jurídica do tema.

PALAVRAS-CHAVE Violência Doméstica; Direito das mulheres; Lei Maria da Penha.

ABSTRACT The present study works with five forms of domestic and family violence described in the Maria da Penha Law (Law 11.340 / 2006). Throughout the text, legal and doctrinal comments and respect for the definition of each form of violence and proposals for resolving divergences in each one were included. From that, it is expected a uniform understanding for controversial issues and legal updating of the topic.

KEYWORDS Domestic violence; Women’s rights; Maria da Penha Law.

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1. INTRODUÇÃO As formas de violência doméstica e familiar contra a mulher estão – em rol exemplificativo – consagradas no artigo 7º da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006), sendo: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Porém, para obter o real significado do conceito de violência doméstica e familiar contra a mulher é necessário conjugar os artigos 7º e 5º da Lei Maria da Penha.

“As formas de violência doméstica e familiar não precisam estar condicionadas à existência de fato que configure, em tese, ilícito penal”. No mesmo sentido, Maria Berenice Dias assenta que: “[…] o rol de ações descritas como violência doméstica não é exaustiva e nem sempre encontra correspondência em algum delito. […] Embora caracterizada a violência doméstica quando da prática de algum desses crimes, a ensejar a aplicação da Lei Maria da Penha, a recíproca não é verdadeira. A tipificação penal é bastante restrita e exige inúmeros requisitos além da simples violência. Por isso não se justifica restringir o reconhecimento da violência no âmbito das relações domésticas à configuração do tipo penal correspondente”2.

O tipo aberto e aparentemente vago das condutas descritas no artigo 7º da Lei n. 11.340/2006 não torna a lei inconstitucional, uma vez que há clara definição das formas que caracterizarão e enquadrarão cada violência. A exigência de uma descrição específica de cada fato traria prejuízos à efetividade da lei, A seguir, passa-se a estudar especificapois certamente não abarcaria todas as situa- mente cada forma de violência doméstica e ções ocorrentes no cotidiano. familiar prevista na sistemática do artigo 7º da De acordo com o Enunciado n. 37 do FO- Lei n. 11.340/2006, bem como algumas quesNAVID (Fórum Nacional de Juízas e Juízes de tões teóricas e práticas associadas. Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher)1:

2. A VIOLÊNCIA FÍSICA Segundo o artigo 7º, inciso I, da Lei n. 11.340/2006, violência física (ou vis corporalis) é “entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal”. É a mais denunciada por parte das mulheres, representando 56,72% dos relatos de violência, conforme balanço realizado pela Central de Atendimento à Mulher3

de corpo de delito4, uma vez que os delitos normalmente são praticados longe de testemunhas e nem sempre deixam vestígios aparentes na vítima5. Contudo, a decisão que concede medida protetiva de urgência, assim como eventual sentença condenatória, deve ser baseada em outros elementos probantes nos autos (cf. Enunciado 45 do FONAVID).

O princípio da insignificância não é aplicáPara configuração da violência física e con- vel aos casos afetos à Lei Maria da Penha, em sequente concessão de medida protetiva de ur- função de ser naturalmente grave. Inclusive, de gência, não é necessária a realização de exame acordo com a Súmula n. 589, do STJ (3ª Seção, 1 Importante ressaltar que os enunciados não possuem força normativa, mas exprimem o consenso de um encontro de juristas. Logo, servem de referência para os aplicadores do direito, que podem se utilizar dos enunciados para fundamentar suas pesquisas, relatórios e decisões. 2 DIAS, Maria Berenice, A Lei Maria da Penha na Justiça, 5ª ed., Salvador, Editora Juspodivm, 2019, p. 87. 3 GONÇALVES, Aparecida (Org.), Balanço 10 anos – Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher, Brasília, 2015, p. 7, disponível em <http://www.spm.gov.br/central-de-conteudos/publicacoes/publicacoes/2015/balanco180-10meses-1.pdf>[24.01.2019]. 4 Vide Acórdão do TJ/AM proferido em sede de Agravo Interno no proc. n. 0007009-35.2017.8.04.0000, da 3ª Câmara Cível, Relator Desembargador Airton Luís Corrêa Gentil, julgado em 24/09/2018, publicado em 24/09/2018. 5 Vide STJ, RHC 34035 AL 2012/0213979-8, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, julgado em 05/11/2013, DJe de 25/11/2013; STJ, AREsp 1158784 SE 2017/0229061-7, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, julgado em 27/11/2017, DJe de 01/12/2017; Acórdão do TJ/AM proferido em sede de Agravo Interno no proc. n. 000700935.2017.8.04.0000, da 3ª Câmara Cível, Relator Desembargador Airton Luís Corrêa Gentil, julgado em 24/09/2018, publicado em 24/09/2018.

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DJe de 18/09/2017), a reconciliação do casal não para suprimir este crime do âmbito de abrangêngera atipicidade material da conduta ou desne- cia da lei, especialmente em função dos fins socessidade da pena6. ciais a que se destina. Além disso, pode-se enxergar no âmago do conceito do crime de “lesão A lei não faz menção expressa à lesão cor- corporal” a lesão culposa. poral culposa configurar violência física. E, segundo se extrai do artigo 18, parágrafo único, do Quanto ao crime de lesão corporal qualificaCódigo Penal, apenas ocorre a modalidade cul- da, tipificado no artigo 129, § 9º, do Código Penal, posa nos casos expressos em lei. Logo, a ques- o sujeito passivo pode ser homem ou mulher, vez tão traz dúvidas ao enquadramento da lesão cor- que o Código Penal não fez discriminação quanporal culposa na Lei Maria da Penha. to ao gênero7. Cabível a suspensão condicional do processo, nos termos do artigo 89 da Lei n. Vale lembrar que, antes do julgamento so- 8.099/95, desde que o delito não esteja no âmbibre a constitucionalidade do artigo 41 da LMP, na to das relações domésticas (Súmula 536, STJ). ADI 4.424 e ADC 19, pelo Supremo Tribunal Fe- Todavia, inadmite-se a suspensão condicional da deral, os crimes de lesão corporal leve e culposa pena (art. 77 do Código Penal), haja vista que a já estavam abrangidos pela Lei Maria da Penha, pena máxima cominada supera 2 anos. sendo obrigatória a representação das vítimas. Após a decisão do Supremo, não haveria razão

3. A VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA Nos termos do artigo 7º, inciso II, da Lei n. 11.340/2006, violência psicológica (via compulsiva) é “qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação” (g. n.). Infelizmente, é a forma mais recorrente e menos denunciada de

violência doméstica e familiar. A violação da intimidade da mulher como forma de violência psicológica foi introduzida pela Lei n. 13.772, de 19 de dezembro de 2018. Tal lei também inseriu no Código Penal o delito do artigo 216-B, relativo ao registro não autorizado de conteúdo de cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado, cuja pena é de detenção, de 6 meses a 1 ano, e multa. A inovação é importante para combater a violência doméstica e familiar, já que não raramente os homens se utilizam de gravações íntimas para manipular, ameaçar e até punir as parceiras. Doutrinariamente, esse comportamento foi nomeado como “pornografia de vingança”8.

6 STJ, HC 333.195/MS, Processo de origem n. 0000378-23.2012.8.12.0002, Relator Ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 12/04/2016, DJe de 26/04/2016. 7 STJ, Recurso em HC n. 27.622/RJ (2010/0021048-3), Relator Ministro Jorge Mussi, 5ª Turma, DJe 23/08/12. EMENTA: “RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. LESÃO CORPORAL PRATICADA NO ÂMBITO DOMÉSTICO. VÍTIMA DO SEXO MASCULINO. ALTERAÇÃO DO PRECEITO SECUNDÁRIO PELA LEI N. 11.340/06. APLICABILIDADE. DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO DESCRITO NO ARTIGO 129, CAPUT , C/C ART. 61, INCISO II, ALÍNEA “E”, DO CÓDIGO PENAL. NORMA DE APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. RECURSO IMPROVIDO. 1. Não obstante a Lei n. 11.340/06 tenha sido editada com o escopo de tutelar com mais rigor a violência perpetrada contra a mulher no âmbito doméstico, não se verifica qualquer vício no acréscimo de pena operado pelo referido diploma legal no preceito secundário do § 9º do artigo 129 do Código Penal, mormente porque não é a única em situação de vulnerabilidade em tais relações, a exemplo dos portadores de deficiência. 2. Embora as suas disposições específicas sejam voltadas à proteção da mulher, não é correto afirmar que o apenamento mais gravoso dado ao delito previsto no § 9º do artigo 129 do Código Penal seja aplicado apenas para vítimas de tal gênero pelo simples fato desta alteração ter se dado pela Lei Maria da Penha, mormente porque observada a pertinência temática e a adequação da espécie normativa modificadora. 3. Se a circunstância da conduta ser praticada contra ascendente qualifica o delito de lesões corporais, fica excluída a incidência da norma contida no artigo 61, inciso II, alínea “e”, do Código Penal, dotada de caráter subsidiário. 4. Recurso improvido”. 8 BANQUERI, Poliana, Nova lei representa avanço no combate à pornografia de vingança, Revista Consultor Ju-

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No caso do registro da intimidade sexual ser autorizado, mas não haja anuência da pessoa em causa para divulgação daquele conteúdo, não tipificará a conduta do artigo 216-B do Código Penal, mas configurará violência doméstica suscetível de indenização9, porquanto a Lei n. 13.772/2018 incluiu no artigo 7º da Lei Maria da Penha a violação da intimidade como forma de violência psicológica. Assim, visível o acerto do legislador em corrigir um importante lapso legislativo. Voltando à análise da violência psicológica, o bem jurídico tutelado é a integridade mental da vítima, condição sine qua non para o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade. Nas palavras de Maria Berenice Dias: “A violência psicológica consiste na agressão emocional, que é tão ou mais grave que a violência física. […] Trata-se de violência que deixa dores na alma”10. O grande problema é que “o maltrato físico é facilmente identificável e aceito socialmente como um prejuízo à mulher, o abuso não-físico ou psicológico não deixa marcas aparentes e, muitas vezes, é tão sutil que nem a própria vítima é capaz de reconhecê-lo”11.

eclodir na forma de agressão física13. Logo, visível a importância da identificação e desencorajamento precoce da violência psicológica. Uma corrente de doutrinadores, entre eles, Maria Berenice Dias e Ana Luisa Schmidt Ramos Morais da Rosa14, passou sustentar o stress crônico da mulher, causador de consequências físicas por danos psicológicos, como uma forma de violência física. Entretanto, o legislador não faz menção a crime de lesão corporal por dano psíquico, se o quisesse, faria de modo expresso em lei. Por outro lado, o legislador didaticamente distinguiu as formas de violências físicas e psicológicas na Lei Maria da Penha. É natural que o stress cause consequências físicas, já que o corpo é reflexo da mente. Inclusive, o inciso II, do artigo 7º, da Lei Maria da Penha contém a expressão “ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento” para abarcar também a situação do stress crônico.

O professor de psicologia José Navarro Góngora afirma que o abuso psicológico tem quatro objetivos. O primeiro é indício precursor das agressões e pretende a submissão da vítima ao lhe incutir medo ou terror. O segundo, restringe o acesso a recursos materiais e de pessoas que auxiliariam numa eventual fuga. Em terceiro lugar, desqualificar a imagem de competência intelectual e emocional para que, e este é o quarto objetivo, a vítima não considere ser merecedora de atenção12. Esse tipo de abuso provoca um ciclo vicioso difícil de ser detectado e vencido. Conforme Silva, Coelho e Caponi defendem, a violência psicológica é condição da violência doméstica, na medida em que aquela se desenvolve despercebida no núcleo familiar até rídico, 01/10/2018, disponível em <https://www.conjur.com.br/2018-out-01/poliana-banqueri-lei-avanco-pornografia-vinganca> [11.02.2020]. 9 Vide TJ/DFT, Processo n. 0006725-17.2016.8.07.0020, Relator Desembargador Angelo Passareli, 5ª Turma Cível, julgado em 14/03/2018, cf. DIAS, A Lei Maria da Penha na Justiça … Op. cit., p. 94. 10 DIAS, A Lei Maria da Penha na Justiça … Op. cit., p. 92. 11 ROVINSKI, Sonia Liane Reichert, Dano psíquico em mulheres vítimas de violência, Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2004, p. 8. 12 GÓRGORA, José Navarro, Violência em las relaciones íntimas: una perspectiva clínica, Barcelona, Herder, 2015, Cap. 2. 13 SILVA, Luciana Lemos da; COELHO, Elza Benger Salema; CAPONI, Sandra Noemi Cucurulho de, Violência silenciosa: violência psicológica como condição da violência física doméstica, Botucatu/São Paulo, Interface – Comunicação, Saúde, Educação, v. 11, n. 21, jan./abr. 2007, pp. 93-103. 14 Consultar RAMOS, Ana Luisa Schmidt, Dano Psíquico como Crime de Lesão Corporal na Violência Doméstica, Florianópolis, Empório do Direito, 2016.

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4. A VIOLÊNCIA SEXUAL De acordo com o artigo 7º, inciso III, da Lei n. 11.340/2006, a violência sexual é entendida como “qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos”.

parte dos usos e costumes tradicionais em nossa sociedade. Quem casa tem uma lícita, legítima e justa expectativa de que, após o casamento, manterá conjunção carnal com o cônjuge”15. O Código Civil de 1916, revogado pelo Código Civil de 2002, estabelecia que “o marido é o chefe da sociedade conjugal” (artigo 233). A partir disso, Maria Berenice Dias salienta que: “A tendência ainda é identificar o exercício da sexualidade como um dos deveres do casamento, a legitimar a insistência do homem à prática sexual, sendo a resistência da mulher somente uma prova de pureza e recato”16. Por mais que a mudança de paradigma promovida pelo Código Civil de 2002, bem como por parte da Constituição Federal de 1988, tenha instituído a igualdade plena de direitos e deveres entre homens e mulheres, há provas evidentes de que persistem as marcas históricas de uma legislação e cultura patriarcal ainda a pouco sedimentadas. O fato infelizmente contribui para a crença do homem abusador de que tem algum direito sobre o corpo da mulher.

Antes do advento da Lei n. 11.106, de 28 de março de 2005, o entendimento majoritário era de que não havia delitos sexuais no âmbito do casamento, posto que o débito conjugal incluía o dever de manter relação sexual. A lei de 2005 interrompeu essa interpretação, passando a expressamente prever circunstâncias qualificadores e majorantes nos crimes sexuais perpetrados contra cônjuge ou Com o aumento da violência doméstica e companheira. familiar contra a mulher nos últimos anos17, as

leis têm reforçado a tutela penal dos delitos18. Nesse sentido, observa-se o artigo 61, inciso II, alíneas “e” e “f”; artigo 148, § 1º, inciso I; artigo 226, inciso II; artigo 227, § 1º, todos do Código Penal. Inovação trazida pela Lei n. 13.718/2018, acrescentou causas de aumento de pena no artigo 218-C, § 1º; artigo 226, II e IV e artigo 234cônjuges é normal no casamento. É o esperado, A, III e IV, também do Código Penal e incluiu no o previsível. O sexo dentro do casamento faz ordenamento jurídico os crimes de importunação

Todavia, a 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no ano de 2006, teratologicamente decidiu que a falta de relação sexual seria motivo suficiente para anulação do casamento, nos termos abaixo descritos: “a existência de relacionamento sexual entre

15 _______, Marido pode anular casamento por falta de relação sexual, Revista Consultor Jurídico, 21/12/2016, Conjur web, disponível em <https://www.conjur.com.br/2006-dez-21/marido_anular_casamento_falta_sexo> [08.02.2019]. Número do processo ausente por segredo de justiça. 16 DIAS, op. cit., p. 95. 17 Cf. BRASIL, Ligue 180 realizou mais de um milhão de atendimentos a mulheres em 2016, Cidadania e Justiça, Governo do Brasil, 2016, disponível em <www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2017/03/ligue-180-realizou-mais-de-um-milhaode-atendimentos-a-mulheres-em-2016> [24.01.2019]. ABEN-ATLAR, Maria Angélica (Org.), Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 – Relatório 2017, Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, nov. 2018, p. 45, disponível em <http://www.mdh.gov.br/informacao-ao-cidadao/ouvidoria/RelatrioGeral2017.pdf> [24.01.2019]. BRASIL, Relatórios – Ligue 180, Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, s/d, disponível em <http://www.mdh. gov.br/informacao-ao-cidadao/ouvidoria/relatorios-ligue-180> [24.01.2019]. 18 Apesar da linha seguida pelo legislador atualmente, o direito penal deve ser a ultima ratio, utilizado como meio secundário e não como principal instrumento de combate à violência doméstica e familiar. Fernanda Vasconcellos explica que “a lógica penal mantem-se incapaz de dar conta da complexidade e multiplicidades de embates que compreendem os conflitos violentos em âmbito doméstico/familiar”. VASCONCELLOS, Fernanda Bestetti de et. al., Punir, Proteger, Prevenir?: a Lei Maria da Penha e as limitações da administração dos conflitos conjugais violentos através da utilização do direito penal, Tese de Doutoramento, Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015, p. 172.

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sexual (artigo 215-A, CP) e divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia (artigo 218-C, CP).

ças desencontradas. Há julgados que utilizam somente a agravante genérica20, outros optam pela agravante do artigo 226, II, CP, justificando a ocorrência de bis in idem21 e uma corrente mais moderna do Superior Tribunal de Justiça tem reA Lei n. 13.718/2018 passou a consagrar a conhecido simultaneamente as duas majorantes natureza de ação penal pública incondicionada na hipótese de, além do poder familiar, também aos crimes contra a liberdade sexual previstos no existir o poder patronal22. Código Penal à todas as vítimas, independentemente da idade. A redação da Lei n. 12.015/2009 Em geral, o cálculo da pena empregando a determinada a natureza incondicionada apenas agravante genérica do art. 61, II, f, do CP é sigpara pessoas vulneráveis, deficientes e idosas. nificativamente menor do a estabelecida a partir A Lei também retificou o artigo 226, II, CP, para da majorante do art. 226, II, do CP. Disto resulta constar a expressão: “ou por qualquer outro título que a incoerência nos julgamentos afeta o printem autoridade sobre ela” para “ou por qualquer cípio da isonomia e da segurança jurídica. A Lei outro título tiver autoridade sobre ela”, expondo n. 13.718/2018 poderia ter pacificado a questão, que a atualidade do poder sobre a vítima não in- mas não o fez. terfere na tipicidade. Interessante observar que a violência seNo entanto, a Lei n. 13.718/2018 não corrigiu xual é mais ampla do que os crimes existentes algo muito mais substancial: a indefinição quanto no Código Penal, pois compreende a privação da à aplicação da majorante do artigo 226, inciso II, liberdade reprodutiva, tal como obstar a utilizado CP e a agravante genérica do artigo 61, inciso ção de métodos contraceptivos, forçar a mulher II, alínea “f”, do CP19. a contrair matrimônio ou gravidez, e outros. Além disso, referida violência contém uma particulariIsto porque, a lei fez referência à violência dade em relação às outras formas de violência sexual no âmbito doméstico apenas na agravan- doméstica e familiar: é tida como uma violência te genérica do Código Penal e, à vista da inapli- contra a mulher, ou seja, como uma violação dicabilidade da analogia in malam partem em sede reta dos direitos humanos das mulheres23. criminal, a jurisprudência está proferindo senten19 Nos termos do artigo 226, II, do CP: “a pena é aumentada de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tiver autoridade sobre ela”. Já o artigo 61, II, f, do CP, afirma: “são circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime, ter o agente cometido o crime: com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica”. 20 Vide TJ/DFT, Processo n. 0011505-82.2015.8.0004, Relator Des. Jair Soares, 2ª Turma Criminal, julgado em 01/02/2018, DJe de 09/02/2018, que aplicou a agravante do art. 61, II, “f”, do Código Penal ao crime de estupro de vulnerável praticado pelo namorado da mãe da vítima. 21 Ementa: (...) “5. A agravante prevista no artigo no artigo 61, inciso II, alínea f, do Código Penal está pautada no mesmo fundamento previsto na causa de aumento prevista no artigo 226, inciso II, do Código Penal, razão pela qual a aplicação de ambas configura “bis in idem”. 6. Correta a incidência da causa de aumento do artigo 226, inciso II, do Código Penal, pois o apelante era companheiro da tia da vítima (tio por afinidade) e convivia com ela na mesma residência. Assim, valendo-se dos vínculos familiares, afetivos e hierárquicos, exercia sobre ela sua autoridade para praticar os atos libidinosos”. TJ/DFT, Processo n. 0019355-75.2015.8.07.0009, Relator Des. Silvanio Barbosa dos Santos, 2ª Turma Criminal, julgado em 25/04/2019, DJe de 02/05/2019. Consultar também TJ/RS, Apelação n. 70078565884, Relator Des. Lizete Andreis Sebben, 5ª Turma, julgado em 12/09/2018; TJ/MT, HC 0067947-74.2012.8.11.0000, Relator Des. Rondon Bassil Dower Filho, 3ª Câmara Criminal, julgado em 25/07/2012; TJ/SC, Apelação n. 2007.052298-5, Relator Des. Amaral e Silva, 1ª Câmara Criminal, julgado em 18/03/2009. 22 Segundo o STJ, a aplicação concomitante da agravante genérica do art. 61, II, f, do CP e da causa de aumento do art. 226, II, do CP não caracteriza bis in idem se as circunstâncias são diferentes. Quer dizer, a majorante do art. 226, II, do CP, não se restringe ao poder familiar, mas engobla o poder patronal (sempre que por qualquer título tiver autoridade sobre ela). “Não se pode considerar, portanto, que a coabitação tenha sido prevista pelo legislador na causa de aumento em questão, que, repita-se não prevê apenas condições referentes ao pátrio poder”. (STJ, HC 137.719/MG, Relatora Min. Laurita Vaz, 5ª Turma, julgado em 16/12/2010, Dje de 07/02/2011). Consultar também: STJ, Resp. n. 1.645.680/RS, Relator Min. Joel Ilan Paciornik, 5ª Turma, julgado em 14/02/2017; STJ, Resp. n. 1632507/SC, Relator Min. Jorge Mussi, 5ª Turma, julgado em 01/02/2017; STJ, Resp. n. 1.379.478/SP, Relator Min. Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, julgado em 01/022016. 23 DIAS, A Lei Maria da Penha na Justiça … Op. cit., p. 95.

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5. A VIOLÊNCIA PATRIMONIAL A violência patrimonial, nos moldes do artigo 7º, inciso IV, da Lei Maria da Penha, é entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades. Delitos representativos de violência patrimonial são: dano (art. 163, CP), apropriação indébita (art. 168, CP), furto (art. 155, CP), roubo (art. 157, CP), estelionato (art. 171, CP), entre outros. É possível existir também condutas não enquadradas na legislação penal, tais quais: auferir sozinho os frutos, rendas ou valores mobiliários do(s) bem(ns) do casal (ex.: aluguel de imóvel) até a partilha dos bens; negar ou tardar injustificadamente os valores de pensão alimentícia24. Maria Berenice Dias acrescenta o ato do varão recusar prover os meios de subsistência da companheira, que não dispôs por conta própria no exercício da vida em comum, sendo irrelevante que o encargo se encontre estabelecido judicialmente ou no curso de processo de execução25.

ria da Penha. Deve estar presente a intenção de causar dor ou dissabor à vítima26 em função do gênero27. Por um lapso legislativo, a Lei n. 11.340/2006 não afastou da violência doméstica – nomeadamente da forma patrimonial – as imunidades relativas e absolutas referidas nos artigos 181 e 182, ambos do Código Penal28. A jurisprudência diverge quanto a revogação tácita das supramencionadas escusas absolutórias por meio da Lei Maria da Penha. Entretanto, há predomínio do entendimento da não revogação. Nesse sentido, é a ementa da Apelação Criminal n. 00188885920108110042, da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, Desembargador Rui Ramos Ribeiro, in verbis:

“O artigo 181, inciso II, do Código Penal estabelece imunidade penal absoluta ao descendente que pratica crime patrimonial contra ascendente. O advento da Lei 11.340/2006 não é capaz de alterar tal entendimento, pois embora tenha previsto a violência patrimonial como uma das que pode ser cometida no âmbito doméstico e familiar contra a mulher, não revogou quer expressa, quer tacitamente, o artigo 181 do Código Note-se que a simples retenção, subtração Penal”29. ou destruição dos bens do casal não é suficiente Alguns tribunais – dentre eles o Superior Tripara incidência do artigo 7º, inciso IV, da Lei MaSobre a Convenção de Istambul, vide SANTOS, Margarida, Convenção de Istambul, crimes sexuais e consentimento: breves apontamentos, In: SANTOS; GRANGEIA (Coord.), Sobre Novos desafios em torno da proteção da vítima: uma perspectiva multidisciplinar, Braga, Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos/Escola de Direito da Universidade do Minho, 2017. 24 Enunciado 20, do IBDFAM: “O alimentante que, dispondo de recursos econômicos, adota subterfúgios para não pagar ou para retardar o pagamento de verba alimentar, incorre na conduta descrita no art. 7º, inc. IV da Lei nº 11.340/2006 (violência patrimonial)”. Informação disponível em <http://www.ibdfam.org.br/noticias/5819/IBDFAM+aprova+Enunciados> [07.02.2019]. Importa mencionar que a violência patrimonial consistente no atraso injustificado da prestação alimentícia ainda pode configurar crime de abandono material (art. 244, do CP). 25 DIAS, A Lei Maria da Penha na Justiça … Op. cit., p. 100. 26 DIAS, A Lei Maria da Penha na Justiça … Op. cit., p. 99. 27 RÉGIS, Mário Luiz Delgado, A violência Patrimonial Contra a Mulher nos Litígios de Família, Lex Magister, s/d, disponível em <https://www.lex.com.br/doutrina_27138477_A_VIOLENCIA_PATRIMONIAL_CONTRA_A_MULHER_ NOS_LITIGIOS_DE_FAMILIA.aspx> [07/02/2019]. 28 Conforme o artigo 181 do Código Penal, é isento de pena quem comete qualquer dos crimes contra o patrimônio, descritos do Título II, em prejuízo: do cônjuge, na constância da sociedade conjugal (inciso I); de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural (inciso II). Segundo o artigo 182 do mesmo Código, a ação penal é pública condicionada a representação quando os crimes forem cometidos em prejuízo: do cônjuge desquitado ou judicialmente separado (inciso I); de irmão, legítimo ou ilegítimo (inciso II); de tio ou sobrinho, com quem o agente coabita (inciso III). 29 TJ/MT, Proc. n. 0018888-59.2010.8.11.0042, Apelação criminal n. 174995/2014, Relator Des. Rui Ramos Ribeiro, 1ª Câmara Criminal, julgado em 27/10/2015, publicado em 04/11/2015. Consultar também: TJ-DFT, Apelação criminal, Proc. n. 0005158-60.2016.8.07.0016, Relator Des. Roberval Casemiro Belinati, julgado em 26/10/2017, 2ª Turma Criminal, DJE de 03/11/2017.

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bunal de Justiça30 – ainda argumentam que, diante do princípio da proibição da analogia in malam partem, necessária a manutenção das imunidades dos crimes patrimoniais nos casos afetos à violência doméstica e familiar contra a mulher31. Lamentavelmente, diante da inexistência de lei, o pensamento está correto, por mais que prejudique a efetividade da Lei Maria da Penha.

vez que há o explicitamente o afastamento nos artigos 183, inciso III, do Código Penal e artigo 95 do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741, de 1º de outubro de 2003)32.

De outra parte, uniforme a rejeição das escusas absolutórias nos crimes patrimoniais praticados contra os maiores de 60 anos, uma

6. A VIOLÊNCIA MORAL A violência moral é associada aos crimes contra a honra descritos no Código Penal, eis que é entendida como qualquer conduta que configure calúnia (art. 138, CP), difamação (art. 139, CP) ou injúria (art. 140, CP), nos termos do inciso V, do artigo 7º, da Lei n. 11.340/2006. Grosso modo, consiste em ofender a autoestima e o reconhecimento social da vítima. Promove-se a violência moral por meio de desqualificação, inferiorização ou ridicularização33. De todos os crimes contra a honra do Código Penal, a calúnia é a mais grave, consistindo em imputar falsamente a alguém fato definido como crime. É preciso ter o animus caluniandi. Incorre no mesmo crime quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou divulga. Com gravidade intermediária34, o crime de difamação qualifica-se por imputar fato ofensivo à sua reputação, estando presente o animus difamandi. O bem jurídico tutelado em ambos é a honra objetiva do indivíduo, ou seja, a boa fama no meio social. O fato é consumado quando a informação chega ao conhecimento de terceiros35.

O crime de injúria existe quando, por dolo específico de atingir a honra subjetiva, ofende-se a dignidade ou o decoro de alguém (chamado animus injuriandi). A consumação ocorre quando a informação chega ao conhecimento do ofendido, não necessitando chegar ao conhecimento de terceiros. A lei faculta ao juiz deixar de aplicar a pena no caso do ofendido, de forma reprovável, ter provocado diretamente a injúria ou em caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria (cf. art. 140, § 1º, do CP). Nos artigos 138, § 3º, e 139, parágrafo único, ambos do Código Penal, está previsto o instituto processual-penal da exceção da verdade. Este instituto permite afastar os delitos de difamação ou calúnia se houver comprovação de que os fatos narrados são verdadeiros. Inadmite-se a exceção da verdade para o crime de injúria, pois o tipo delitivo pretende a defesa da honra subjetiva, isto é, a imagem que a pessoa conserva sobre si. Muito embora seja comum a simultaneidade da violência moral e psicológica, a violência

30 STJ, Recurso em HC 42.918/RS, Relator Min. Jorge Mussi, 5ª Turma, julgado em 05/08/2014. 31 Portanto, haverá isenção de pena ao marido/companheiro que praticar o crime de apropriação indébita, estelionato, furto, dano ou outro assemelhado, sem violência ou grave ameaça contra sua esposa/companheira. 32 O professor Rogério Sanches Cunha, divergindo de Maria Berenice Dias, que defende a não aplicação dos arts. 181 e 182 do CP à violência patrimonial referida na Lei n. 11.340/2006, assevera que se a lei especial visava afastar as imunidades ao agressor, deveria ter feito expressamente, semelhantemente ao Estatudo do Idoso. Por outro lado, iria de encontro ao princípio da isonomia admitir a escusa absolutória à mulher que furta o marido e não permitr ao marido que furta a mulher. CUNHA, Rogério Sanches, Aplicabilidade das Escusas Absolutórias nos Crimes Patrimoniais contra a mulher no ambiente doméstico e familiar: Posição favorável, Jornal Carta Forense, 01/11/2017, disponível em <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/aplicabilidade-das-escusas-absolutorias-nos-crimes-patrimoniais-contra-a-mulher-no-ambiente-domestico-e-familiar-posicao-favoravel/17937> [12.02.2019]. 33 DIAS, A Lei Maria da Penha na Justiça … Op. cit., p. 102. 34 Os graus de gravidade foram classificados conforme a quantidade de pena atribuída aos crimes de calúnia, difamação e injúria. 35 GRECO, Rogério, Código Penal: comentado, 11ª ed., Rio de Janeiro, Impetus, 2017.

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moral “tem efeitos mais amplos, uma vez que sua configuração impõe, pelo menos nos casos de calúnia e difamação, ofensas à imagem e reputação da mulher em seu meio social”36.

tipo penal não compreende o animus criticandi nem o animus jocandi37. Já a injúria, cuja finalidade é retirar a paz de espírito da vítima, constitui violência psicológica. Portanto, a violência psicológica é subsidiária à violência moral, posto que A injúria, sob o aspecto de violência moral, os requisitos desta são mais específicos do que ocorre quando a intenção do ofensor é insultar, daquela. denegrir, ofender a reputação da mulher, atingindo a imagem que ela construiu de si mesma. O

CONSIDERAÇÕES FINAIS A Lei Maria da Penha define de modo bastante didático as formas de violência doméstica e familiar. O rol é aberto pois seria impossível enquadrar em lei todas as condutas consideradas como violência nas relações privadas. Não há inconstitucionalidade por violação ao princípio da taxatividade do direito penal. Os delitos destacados na Lei Maria da Penha são dotados de certos privilégios e garantias em prol da mulher, justificados na desvantagem histórica e social associada ao gênero. A Lei é constitucional, conforme restou consignado nas ações de controle concentrado de constitucionalidade - ADI 4424 e ADC 19 – julgadas pelo Supremo Tribunal Federal em 09 de fevereiro de 2012. Dentre as garantias, está a atribuição de inerente gravidade aos crimes praticados no âmbito doméstico e familiar, impedindo a incidência do princípio da insignificância.

vos, como foi o caso da Lei n. 13.772/2018, que tipificou o registro não autorizado da intimidade sexual, bem como passou a constar no artigo 7º, inciso II, da Lei n. 11.340/2006, a violação de sua intimidade como forma de violência psicológica. Entretanto, permanece a indefinição quanto à aplicabilidade da majorante do artigo 226, inciso II, do CP e a agravante genérica do artigo 61, inciso II, alínea “f”, do CP. A controvérsia jurisprudencial prejudica a segurança jurídica e afronta o princípio da isonomia, algo que seria facilmente resolvido por meio de lei.

Além disso, o não afastamento expresso das imunidades previstas no Código Penal relativamente aos crimes patrimoniais praticados contra a mulheres em situação de violência, macula a efetividade da Lei Maria da Penha e impede a concretização dos fins sociais pretendida pela norma incriminadora. A jurisprudência admite a palavra da mu- O legislador poderia seguir a mesma linha do lher em detrimento da palavra do ofensor para Estatuto do Idoso, proibindo expressamente a concessão de medidas protetivas e dispensa a incidências das escusas absolutórias. realização de exame de corpo de delito nesEmbora a legislação brasileira tenha detes casos, uma vez que é a integridade física e veras progredido no combate à violência dopsíquica da mulher que está ameaçada, além méstica e familiar, há questões que merecem do que, os delitos são normalmente cometiatenção por parte do legislador brasileiro para dos às escondidas. Obviamente, é necessário que não existam brechas para impunidade. compulsar outros elementos probantes nos A proteção da mulher é, em última análise, autos para eventual condenação do agressor. questão de saúde pública, devendo ser trataO legislador acertadamente tem criado da com seriedade e comprometimento. Não leis para corrigir importantes lapsos legislati- é mais aceitável que as violações continuem, 36 FEIX, Virgínia, Das Formas de Violência Contra a Mulher – Artigo 7º, In: CAMPOS, Carmen Hein de (Org.), Lei Maria da Penha: comentada em uma perspectiva jurídico-feminista, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2011, p. 210. 37 Vide STJ, HC 43955/PA (2005/0075358-5), Relator Min. Paulo Medina, 6ª Turma, julgado em 03/08/2006, publicado em DJ de 23/10/2006, p. 357.

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quanto mais em números alarmantes, mesmo depois da promulgação da Constituição Cidadã de 1988, instituindo a igualdade plena de direitos entre homens e mulheres.

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