Revista Científica da Escola Superior de Advocacia: Direito das Mulheres - Ed. 34

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DIRETORIA OAB SP CAIO AUGUSTO SILVA DOS SANTOS

PRESIDENTE OAB SP

RICARDO LUIZ DE TOLEDO SANTOS FILHO VICE-PRESIDENTE OAB SP

AISLAN DE QUEIROGA TRIGO SECRETÁRIO-GERAL OAB SP

MARGARETE DE CÁSSIA LOPES

SECRETÁRIA-GERAL ADJUNTA OAB SP

RAQUEL ELITA ALVES PRETO DIRETORA TESOUREIRA OAB SP

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CONSELHEIROS EFETIVOS: AILTON JOSÉ GIMENEZ ALESSANDRO BIEM CUNHA CARVALHO ALEXANDRE CADEU BERNARDES ALEXANDRE COTRIM GIALLUCA ALEXANDRE LUÍS MENDONÇA ROLLO ANA AMÉLIA MASCARENHAS CAMARGOS ANA CAROLINA MOREIRA SANTOS ANA CRISTINA ZULIAN ANA LAURA SIMIONATO VICTOR ANE ELISA PEREZ ANTÔNIO CARLOS CHIMINAZZO ANTÔNIO CARLOS DELGADO LOPES CARLOS FERNANDO DE FARIA KAUFFMANN CELSO FERNANDO GIOIA CLARISSA CAMPOS BERNARDO CLÁUDIA PATRÍCIA DE LUNA SILVA CRISTIANO ÁVILA MARONNA DANIELLA MEGGIOLARO PAES DE AZEVEDO DANYELLE DA SILVA GALVÃO DIVA GONÇALVES ZITTO MIGUEL DE OLIVEIRA EDSON ROBERTO REIS FABIANA DAS GRAÇAS ALVES GARCIA FABRÍCIO DE OLIVEIRA KLÉBIS FLÁVIO OLÍMPIO DE AZEVEDO GABRIELLA RAMOS DE ANDRADE MOREIRA GISLAINE CARESIA GLAUCO POLACHINI GONÇALVES GUILHERME MIGUEL GANTUS IRMA PEREIRA MACEIRA IVAN DA CUNHA SOUSA JOÃO EMÍLIO ZOLA JÚNIOR JOSÉ MEIRELLES FILHO JOSÉ PABLO CORTÊS JOSÉ PASCHOAL FILHO JOSÉ ROBERTO MANESCO JULIANA MIRANDA ROJAS JÚLIO CÉSAR FIORINO VICENTE KEILLA DIAS TAKAHASHI VIEIRA LEANDRO SARCEDO LETÍCIA DE OLIVEIRA CATANI LUCIANA GERBOVIC AMIKY LUCIANA GRANDINI REMOLLI LUÍS AUGUSTO BRAGA RAMOS LUÍS HENRIQUE FERRAZ LUIZ EUGÊNIO MARQUES DE SOUZA LUIZ FERNANDO SÁ E SOUZA PACHECO LUIZ GONZAGA LISBOA ROLIM MARCO CÉSAR GUSSONI MARCOS ANTÔNIO DAVID MARCOS RAFAEL FLESCH MARIA DAS GRAÇAS PERERA DE MELLO MARIA HELENA VILLELA AUTUORI ROSA MARIA SYLVIA APARECIDA DE OLIVEIRA MARINA ZANATTA GANZAROLLI MARISA APARECIDA MIGLI MILTON JOSÉ FERREIRA DE MELLO ODINEI ROGÉRIO BIANCHIN ORLANDO CÉSAR MUZEL MARTHO REGINA MARIA SABIA DARINI LEAL RENATA SILVA FERRARA ROBERTO PEREIRA GONÇALVES ROGÉRIO LUÍS ADOLFO CURY RONALDO JOSÉ DE ANDRADE

ROSANA DE SANT’ANA PIERUCETTI ROSANA MARIA PETRILLI ROSELI OLIVA ROSINEIDE MARTINS LISBOA MOLITOR RUBENS ROCHA PIRES SIDNEI ALZÍDIO PINTO SÍLVIA HELENA MELGES SÔNIA MARIA PINTO CATARINO SUZANA HELENA QUINTANA TAYON SOFFENER BERLANGA THIAGO TESTINI DE MELLO MILLER WALFRIDO JORGE WARDE JÚNIOR

PATRÍCIA HELENA MASSA PAULO HENRIQUE DE ANDRADE MALARA PEDRO RENATO LÚCIO MARCELINO PEDRO RICARDO BOARETO PEDRO VIRGÍLIO FLAMÍNIO BASTOS RAFAEL OLÍMPIO SILVA DE AZEVEDO RAQUEL BARBOSA RENATA LORENZETTI GARRIDO RITA MARIA COSTA DIAS NOLASCO RODNEI JERICÓ DA SILVA RODRIGO DE MELO KRIGUER ROSÂNGELA FERREIRA DA SILVA RUBENS EDUARDO DE SOUSA AROUCA CONSELHEIROS SUPLENTES: RUTINALDO DA SILVA BASTOS RUY JANONI DOURADO ACYR MAURICIO GOMES TEIXEIRA SÉRGIO MARTINS GUERREIRO ANA PAULA MASCARO JOSÉ IZZI SÉRGIO QUINTERO ANDRÉ LUIZ SIMÕES DE ANDRADE SIDMAR EUZÉBIO DE OLIVEIRA ANNA LYVIA ROBERTO CUSTÓDIO SIMONE HENRIQUE RIBEIRO STELLA VICENTE SERAFINI ANTÔNIO JOSÉ KAXIXA FRANCISCO SUELI DIAS MARINHA ARNALDO GALVÃO GONÇALVES SUELI PINHEIRO AUGUSTO GONÇALVES SULIVAN REBOUÇAS ANDRADE CARLOS ALBERTO DOS SANTOS MATTAÍSA CINTRA DOSSO (LICENCIADA) TOS THAIS JUREMA SILVA CARLOS EDUARDO BOIÇA MARCONDES THAYS LEITE TOSCHI MOURA THIAGO PENHA DE CARVALHO FERREICÉSAR PIAGENTINI CRUZ RA CLÁUDIA ELISABETE SCHWERZ CAHALI THIAGO RODOVALHO DOS SANTOS CRISTIANO MEDINA DA ROCHA WAGNER FUIN EDUARDO SILVEIRA MARTINS WILLEY LOPES SUCASAS ÉLIO ANTÔNIO COLOMBO JÚNIOR WILLIAM NAGIB FILHO ÉRYKA MOREIRA TESSER EUGÊNIO CARLO BALLIANO MALAVASI FÁBIO GINDLER DE OLIVEIRA MEMBROS HONORÁRIOS VITALÍCIOS: FABRÍCIO AUGUSTO AGUIAR LEME FERNANDO BORGES VIEIRA ANTONIO CLAUDIO MARIZ DE OLIVEIFERNANDO FABIANI CAPANO RA FERNANDO MARIANO DA ROCHA CARLOS MIGUEL CASTEX AIDAR ÍRIS PEDROZO LIPPI JOSÉ ROBERTO BATOCHIO ISABELA GUIMARÃES DEL MONDE JOÃO ROBERTO EGYDIO PIZA FONTES ISABELLA AITA MACIEL DE SÁ LUIZ FLÁVIO BORGES D’URSO JOÃO BATISTA MUÑOZ MARCOS DA COSTA JORGE PINHEIRO CASTELO MARIO SERGIO DUARTE GARCIA JOSÉ LUIZ DA SILVA KÁTIA DE CARVALHO DIAS LEANDRO RICARDO DA SILVA CONSELHEIROS EFETIVOS PAULISTAS LIA PINHEIRO ROMANO DE CARVALHO NO CONSELHO FEDERAL: LIAMARA BORRELLI BARROS LUCIANA ANDRÉA ACCORSI BERARDI ALEXANDRE OGUSUKU LUIZ CARLOS ZUCHINI GUILHERME OCTÁVIO BATOCHIO LUIZ DONATO SILVEIRA GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY LUIZ GUILHERME PAIVA VIANNA BADARÓ MAITÊ CAZETO LOPES MARCEL AFONSO BARBOSA MOREIRA MARCELO KAJIURA PEREIRA CONSELHEIROS SUPLENTES PAULISTAS MARCELO TADEU RODRIGUES DE NO CONSELHO FEDERAL: OMENA MARCOS ANTÔNIO ASSUMPÇÃO CAALICE BIANCHINI BELLO DANIELA CAMPOS LIBÓRIO MARCOS FERNANDO LOPES FERNANDO CALZA DE SALLES FREIRE MARCOS GUIMARÃES SOARES MARIE CLAIRE LIBRON FIDOMANZO MÁRIO LUIZ RIBEIRO MARISTELA SABBAG ABLA ROSSETTI MYRIAN RAVANELLI SCANDAR KARAM NILSON BÉLVIO CAMARGO POMPEU ODILON LUIZ DE OLIVEIRA JÚNIOR OZÉIAS PAULO DE QUEIROZ TRIÊNIO 2019/21

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DIRETORIA ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA DA OAB SP JORGE CAVALCANTI BOUCINHAS FILHO DIRETOR ESA OAB SP

LETÍCIA DE OLIVEIRA CATANI VICE-DIRETORA ESA OAB SP

CONSELHO CURADOR ESA OAB SP EDSON ROBERTO REIS

PRESIDENTE DO CONSELHO CURADOR ESA OAB SP

SUELI APARECIDA DE PIERI

VICE-PRESIDENTE DO CONSELHO CURADOR ESA OAB SP

SILVIO LUIZ DE ALMEIDA

SECRETÁRIO DO CONSELHO CURADOR ESA OAB SP CONSELHEIROS:

MARCOS ANTONIO MADEIRA DE MATTOS MARTINS LUIZ HENRIQUE BARBANTE FRANZE LUCIANO DE FREITAS SANTORO PATRÍCIA ROMERO DOS SANTOS WEIZ REPRESENTANTE DO CORPO DOCENTE

ANA LAURA SIMIONATO VICTOR

COORDENADOR DE CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO

EDUARDO ARANTES BURIHAN

REPRESENTANTE DO CORPO DISCENTE

RICARDO CARAZZAI AREASCO ADRIANO FERREIRA

COORDENADOR GERAL ESA OAB SP

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REVISTA CIENTÍFICA VIRTUAL DIREITO DAS MULHERES

DIRETORIA OAB SP....................................................................... 02 CONSELHO OAB SP...................................................................... 03 DIRETORIA ESA OAB SP.............................................................. 04

Revista Científica Virtual da Escola Superior de Advocacia OAB SP

PREFÁCIO......................................................................................... 07

DIREITO DAS MULHERES

AS DESIGUALDADES NO ACESSO À EDUCAÇÃO DE MULHERES PARA A PREVENÇÃO DA GRAVIDEZ E A EVASÃO ESCOLAR POR GESTAÇÃO PRECOCE.................... 08 VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA............................................................ 16

Coordenação: Taís Nader Marta Nº 34 São Paulo, OAB SP - 2020

PROTEÇÃO ÀS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL ATRAVÉS DA LEI DO MINUTO SEGUINTE............................. 38

Jornalista Responsável: Marili Ribeiro

O DIREITO SOCIAL AO TRABALHO DAS MULHERES NA SOCIEDADE PÓS-MODERNA: DESIGUALDADE E DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO BRASIL........................... 48

Coordenação Geral: Adriano Ferreira

VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E OS OBSTACULOS PARA O ACESSO À JUSTIÇA................................................................... 60 A (SUB)REPRESENTATIVIDADE FEMININA NO PODER PÚBLICO: ESFORÇOS PARA GARANTIA, PROMOÇÃO E AMPLIAÇÃO DOS DIREITOS DAS MULHERES POR MEIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS................................................................... 70 DIREITO DAS MULHERES À IGUALDADE TRIBUTÁRIA (PINK TAX)’....................................................................................... 84 FEMINICÍDIO COMPARADO: BRASIL E ARGENTINA NO COMBATE À MORTE VIOLENTA DE MULHERES...............102 O MACHISMO ENRAIZADO NA SOCIEDADE BRASILEIRA E A INCORPORAÇÃO DA LEI DO FEMICICÍDIO (LEI 13.104/2015) NO ORDENAMENTO JURÍDICO COMO INSTRUMENTO DE PENALIZAÇÃO.......................................116 DIREITOS DAS HUMANAS: O PASSADO IMPERFEITO E O FUTURO DO PRESENTE............................................................134

Coordenação Acadêmica: Erik Gomes Arte e Diagramação: Felipe Lima Fale Conosco Largo da Pólvora, 141 Sobreloja Tel. +55 11.3346.6800 Publicação Trimestral ISSN - 2175-4462. Direitos Periódicos. Ordem Dos Advogados do Brasil Seção São Paulo


A NECESSIDADE DA IGUALDADE E EMPODERAMENTO DA MULHER NA RECOLOCAÇÃO NO MERCADO DE TRABALHO NOS CASOS DE DOENÇAS GRAVES......................................152 AS MULHERES NA ONU - RETRATOS DO CAMINHO......162 A PROTEÇÃO DA MULHER E O PAPEL DO DIREITO DO TRABALHO....................................................................................176 CRIMES CONTRA A HONRA NO ÂMBITO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA..................................................................................192 ASSÉDIO MORAL E SEXUAL NO AMBIENTE DE TRABALHO.............................................................................210

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PREFÁCIO A Revista Científica Virtual é um periódico destinado à divulgação da produção científica da comunidade jurídica da Escola Superior de Advocacia da OAB de São Paulo – ESA OAB-SP, – que registra o crescimento e desenvolvimento da sua produção científica. Esta publicação atesta a seriedade, a maturidade de seu comitê editorial e a senioridade em pesquisa dos seus representantes, que preservam a memória da produção apresentada em seus eventos científicos. Nesta edição, de número 34 da Revista, os conteúdos retratam a produção produzida para o “I Congresso Regional de Direito das Mulheres”, promovido pela “21ª Coordenaria Regional da Comissão da Mulher Advogada” (presidida pela Dra. Gabriela Cristina Gavioli Pinto e composta pelas Comissões da Mulher Advogada da OAB de Agudos, Avaré, Bariri, Barra Bonita, Bauru, Botucatu, Cafelândia, Cerqueira Cesar, Dois Córregos, Ibitinga, Jaú, Lençóis Paulista, Lins, Pederneiras, Pirajuí e São Manuel), com apoio da OAB de Bauru, da Secional Paulista da Ordem, da ESA OAB-SP e da ABMCJ (Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica)/ SP. São temas relevantes sobre o Direito das Mulheres e abrangem os seguintes conteúdos: Sexualidade, Violência - Doméstica, Obstétrica -, Desigualdade, Mercado de Trabalho, Tráfego de Mulheres, Igualdade Tributária, dentre outros. Assim, a Revista oficializa as publicações acadêmico-práticas em torno dos Direitos das Mulheres com o intuito de levar à reflexão dessa temática já que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, conforme diz Simone de Beauvoir, e ainda há muitos preconceitos a serem superados, pois “época triste a nossa, em que é mais difícil quebrar um preconceito do que um átomo” (Einstein). Com essa publicação, a Revista Científica Virtual da ESA SP aproxima suas relações com outros centros de pesquisa, do Brasil e do exterior, através da participação da sua comunidade jurídica e indica o acerto do caminho traçado e, ao mesmo tempo, os compromissos da “21ª Coordenaria Regional da Comissão da Mulher Advogada” com a pesquisa séria e dedicada. Sonhamos e ultrapassamos a meta que nos propusemos. “Para que precisamos de pés quando temos asas para voar? “ (Frida Kahlo) Os artigos foram selecionados, levando-se em consideração o rigor que caracteriza a produção científica da ESA-SP, pertinência com a sua linha editorial, pela qualidade, clareza de ideias, estruturação, abordagem e, ao mesmo tempo, pela relevância científica deles. Todo este esforço é resultado de um processo laborioso da Comissão Editorial e de todos colaboradores, leitores e autores que contribuíram com suas críticas e sugestões. Me. Taís Nader Marta Coordenadora Científica

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AS DESIGUALDADES NO ACESSO À EDUCAÇÃO DE MULHERES PARA A PREVENÇÃO DA GRAVIDEZ E A EVASÃO ESCOLAR POR GESTAÇÃO PRECOCE Geórgia Aparecida de Oliveira Antunes Estudante do 2º ano de Direito na Faculdade Iteana de Botucatu

Nuno Augusto Pereira Garcia Advogado, graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Bauru (ITE), mestrando na Universidade Estadual Julio de Mesquita Filho (UNESP/Botucatu)

SUMÁRIO 1. Introdução 2. Do Direito À Educação 3. A Prevenção da Gravidez na Adolescência 4. Da Evasão Escolar por Gestação Precoce 5. Considerações Finais Referências Bibliográficas

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RESUMO A presente pesquisa busca abordar e analisar as desigualdades no acesso à educação no que tange a prevenção de gravidez precoce e a capacitação das gestantes adolescentes em face da incidência de prenhez na adolescência. A questão da gestação na adolescência gera diversos problemas, demonstrando as adversidades do Poder Público no quesito saúde pública e educação fundamental. Tal crescimento propiciou o caráter de legislação simbólica da norma que trata da aplicação justa e igualitária de ensino a todos. Com isso, o princípio da igualdade de ensino educacional não é atingido pela sociedade brasileira.

PALAVRAS-CHAVE Gravidez na Adolescência. Direito à Educação. Prevenção da Gravidez Indesejada. Acesso à Capacitação.

ABSTRACT This research seeks to address and analyze inequalities in access to education with regard to the prevention of early pregnancy and the training of pregnant adolescents in the face of the incidence of pregnancy in adolescence. The issue of teenage pregnancy generates several problems, demonstrating the adversities of the Public Power in terms of public health and basic education. Such growth provided the character of symbolic legislation of the norm that deals with the fair and equal application of teaching to all. As a result, the principle of equal educational education is not achieved by Brazilian society.

KEYWORDS Teenage Pregnancy. Right to education. Prevention of Unwanted Pregnancy. Access to Training.

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1. INTRODUÇÃO A gravidez na adolescência tem sido um fenômeno com grande crescimento no Brasil, e já demonstra níveis altos de recém-nascidos de mães jovens. Atualmente, vislumbra-se que o Brasil aponta o maior índice de grávidas adolescentes, segundo dados da ONU (Organização das Nações Unidas)1 e, além disso, consoante relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) o país possui 68,4 bebês nascidos de mães adolescentes a cada mil meninas de 15 a 19 anos.2 Segundo a disposição do artigo 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente, considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescentes aquela entre doze e dezoito anos. Dessa forma, nota-se que a gravidez na adolescência tem se tornado um grave problema de saúde pública, educação básica e capacitação de meninas adolescentes. A falta de informação decorrente, como principal causa de gestação precoce, demonstra que as meninas não são educadas de forma justa e igualitária para entender e compreender a melhor forma de se prevenir de uma gravidez indesejada e de doenças sexualmente transmissíveis. Neste contexto, cuidar-se-á da comprovação de que o Artigo 6º da Constituição Fe-

derativa do Brasil que versa sobre os direitos e as garantias fundamentais sobre os direitos sociais da educação se mostra com o caráter de “Legislação Simbólica” dado a falta de efetividade à aplicação da norma em garantir esse direito do cidadão juntamente com o artigo 53 do Estatuto da Criança e do Adolescente que trata do mesmo assunto, visando a proteção da educação e a qualificação de crianças e adolescentes. Por estes motivos acentuados, as meninas são vítimas frequentes, antes mesmo de engravidar, de um déficit de ensino que não as prepara para a vida sexual ativa. Sendo perceptível as falhas do Poder Público em muitos quesitos ao não garantir uma educação de qualidade e igualdade de condições para o acesso à capacitação integral para a prevenção de gravidez indesejada. Além disso, ao ocorrer essa gestação precoce, os dados levantados pelo movimento Todos Pela Educação mostraram que, em 2015, apenas uma em quatro adolescentes que tiveram gravidez precoce retornou aos estudos.3 O estudo realizado se norteará através da legislação vigente, de artigos e revisão bibliográfica.

2. DO DIREITO À EDUCAÇÃO O direito à educação é norma nos con- traz o seguinte texto: siderados direitos sociais, haja vista que este São direitos sociais a educação, a saúde, direito foi considerado entre as garantias funa alimentação, o trabalho, a moradia, o transdamentais do cidadão, consagrado no artigo porte, o lazer, a segurança, a previdência so6º da Constituição Federativa Brasileira, que cial, a proteção à maternidade e à infância, a 1 ONU alerta para alto índice de gravidez na adolescências no Brasil. 2019. Disponível em https://www.metropoles. com/saude/onu-alerta-para-alto-indice-de-gravidez-na-adolescencia-no-brasil. 2 G1. Brasil tem gravidez na adolescência acima da média Latino-Americana, diz OMS. 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/noticia/brasil-tem-gravidez-na-adolescencia-acima-da-media-latino-americana-diz-oms. ghtml. 3 FOLHA HEB. Apenas uma em cada quatro adolescentes grávidas conclui a Educação Básica. 2015. Disponível em: https://folhabv.com.br/noticia/Apenas-uma-em-cada-quatro-adolescentes-gravidas-conclui-a-EducacaoBasica/6964.

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assistência aos desamparados, na forma des- não trabalham, sendo a maioria do sexo fesa Constituição. (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, minino (TPE e PNDA, 2012 e 2013).6 1988). Art 53- A criança e o adolescente têm diLogo, a educação posta como garan- reito à educação, visando ao pleno desenvoltia fundamental a partir deste artigo, cons- vimento de sua pessoa, preparo para o exercítitui uma categoria jurídica voltada para a cio da cidadania e qualificação para o trabalho, proteção da dignidade humana em todas as assegurando-se-lhes: dimensões (ARAUJO e NUNES JÚNIOR, I-igualdade de condições para o acesso e 2014, p.151).4 permanência na escola. Nesse aspecto, os direitos sociais assu(ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOmem uma dimensão institucional, definindo LESCENTE, LEI N. a forma em que o Estado deve ser e atuar para garantir e reconhecer, direta ou indire8.069, 1990). tamente, esses direitos à todos os cidadãos, Entretanto, os direitos sociais presentes para possibilitar melhores condições de vida no artigo 6º da Carta Magna e os direitos à e equalizar as situações sociais desiguais educação no ECA se mostram como legislação (FARIAS, 2017, p.375).5 simbólica no que tange o direito à educação, Sobre este assunto, o artigo 53 do Esta- haja vista os altos índices de pessoas que não tuto da Criança e do Adolescente demonstra possuem educação digna. o mesmo déficit na aplicação da norma, já que os índices demonstram que 1,3 milhão de crianças e adolescentes não estudam e

3. DA PREVENÇÃO DA GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA Conforme salientado acima, a baixa escolaridade está conectada com o alto índice de gravidez na adolescência. De acordo com o estudo realizado pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) publicado em 2018, aponta que a gravidez na adolescência ocorre com maior frequência entre meninas com menor escolaridade e menor renda, o que as torna mais vulneráveis por terem maiores dificuldades no acesso a serviços públicos.7

adolescência, 35,8% moravam no Nordeste e 69% se declaram pretas ou pardas. A média de escolaridade era de 7,7 anos (85% não completaram o ensino médio); somente 20,1 ainda estudavam; 59,7% não estudavam nem trabalhavam; e 92,5% cuidavam dos afazeres domésticos por uma média de 27,1 horas semanais, ou seja, a gestação precoce atinge, em sua grande maioria, adolescentes que possuem baixa escolaridade e não possuem acesso a sua capacitação integral (UOL - Draúzio Varella).8

Dessas meninas que tiveram filhos na

A educação é um dos principais fatores

4 ARAUJO, Luiz Alberto David e NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 19ª Edição, Revista e atualizada até a EC 84 de 2 de dezembro de 2014. 5 FARIAS, Thélio Queiroz. Constituição Federal Interpretada, Atualizada com a Emenda Constitucional nº 93. 6 FOLHA HEB. Apenas uma em cada quatro adolescentes grávidas conclui a Educação Básica. 2015. Disponível em: https://folhabv.com.br/noticia/Apenas-uma-em-cada-quatro-adolescentes-gravidas-conclui-a-EducacaoBasica/6964. 7 Prevenção de gravidez na adolescência é tema de campanha nacional. 2020 Disponível em: https://saude.gov. br/noticias/agencia-saude/46276-prevencao-de-gravidez-na-adolescencia-e-tema-de-campanha-nacional 8 VARELLA, Mariana. Desigualdade social e gravidez na adolescênia. Disponível em: https://drauziovarella.uol. com.br/para-as-mulheres/desigualdade-social-e-gravidez-na-adolescencia/

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da prevenção da gestação precoce. Dessa forma, faz-se necessário abordar a sexualidade e a saúde reprodutiva, juntamente com a aplicação igualitária da educação e acesso à capacitação integral, visando o pleno desenvolvimento de crianças e adolescentes.

adolescentes (Instituto Pensi).10

Dessa forma, destaca-se que, os adolescentes iniciantes na vida sexual ativa não possuem conhecimento nem amparo para que tenham uma relação sexual saudável e protegida, tornando-se assim, desastroso a De acordo com pediatras, a educação prevenção da gravidez precoce e afastando sexual integrada e compreensiva faz parte a capacitação integral de crianças e adolesda promoção do bem-estar dos adolescentes centes nestes quesitos. e jovens, realçando o comportamento sexual Apesar disto, um ponto positivo deste responsável, o respeito mútuo, a igualdade assunto foi a implementação do caput no are equidade de gênero, assim como a protetigo 8º-A pela Lei n.13.798 de 3-1-2019 que ção da gravidez inoportuna, prevenção de inpossui a seguinte redação: fecções sexualmente transmissíveis, defesa contra violência sexual incestuosa e outras Art 8-A- Fica instituída a Semana Nacioviolências e abusos (Guia Prático de Guia nal de Prevenção da Gravidez na AdolescênPrático de Atualização sobre a Prevenção cia, a ser realizada anualmente na semana que da Gravidez na Adolescência, Departamen- incluir o dia 1º de fevereiro, com o objetivo de to Científico de Adolescência da Sociedade disseminar informações sobre medidas preBrasileira de Pediatria - SBP).9 ventivas e educativas que contribuam para a redução da incidência da gravidez na adolesAlém disso, a pesquisa Mosaico 2.0 cência. realizada em 2017, coordenada por Carmita Abdo da Faculdade de Medicina da USP, Parágrafo único- As ações destinadas a consultou mais de três mil internautas entre efetivar o dispositivo no caput ficarão a cargo 18 e 80 anos para analisar o comportamento do Poder Público, em conjunto com organizasexual dos brasileiros, tendo como resulta- ções da sociedade civil, e serão dirigidas priodos a iniciação da vida sexual na faixa entre ritariamente ao público adolescente. (ESTA13 e 17 anos de idade e, também, que o uso TUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, de preservativos é muito baixo e a utilização LEI N.8.069, 1990). adequada é apenas por cerca de um terço de

4. DA EVASÃO ESCOLAR POR GESTAÇÃO PRECOCE A gravidez na adolescência é um obstáculo para a implementação do descrito no artigo 6º da Constituição Federal Brasileira de 1988 em conjunto com o artigo 53 do Estatuto da Criança e do Adolescente, haja vista que é um fator que causa um alto nível de evasão escolar de meninas adolescentes.

abandono dos colégios, ou seja, deixar de frequentar a escola e não acessar a capacitação que é oferecida nas instituições de ensino. Dessa forma, por causa da gravidez precoce, muitas mães adolescentes deixam de frequentar as escolas durante a gestação e não retornam após o parto.

A evasão escolar é qualificada como o

No Brasil, cerca de 75% de adolescen-

9 Medidas Preventivas e Educativas podem reduzir a incidência de gravidez precoce. 2019. Disponível em: https://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/nid/medidas-preventivas-e-educativas-podem-reduzir-a-incidencia-degravidez-precoce/ 10 SETÚBAL, José Luiz. Como prevenir gravidez indesejada na adolescência. 2019. Disponível em: https:// institutopensi.org.br/blog-saude-infantil/gravidez-indesejada-adolescencia/

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tes que têm filhos não frequentam a escola (G1 - Globo)11, além de que entre as meninas e mulheres na faixa etária de 15 a 29 anos, as que deixaram o ensino médio e não têm filhos são 13,7%. As que têm filhos, não completaram o ensino médio e estão fora da escola são 29,6% (Gênero Número).12 Um grande exemplo da evasão escolar de gestantes adolescentes é demonstrado pela chamada “Geração Nem-Nem”, que se refere à população jovem que não estuda e nem trabalha. As meninas representam a maioria entre os adolescentes que não estão nem trabalhando, nem estudando. O que

leva três em cada dez meninas, nessa faixa etária, a abandonar a escola é a maternidade. (G1 - Globo).13 Conforme demonstrado, a gravidez precoce prejudica inúmeras meninas adolescentes que abandonam a escola e sua educação para criar um filho, o que acarreta adversidades a ser enfrentada pelo Poder Público para que assegure uma educação digna e justa a todas após o parto, para que as mesmas não abandonem o ensino.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A educação, quando garantida a todos formação e, dessas mesmas, a evasão escolar de forma justa e igualitária, é a principal aliada após o parto. para a prevenção de gravidez e o melhor meio Portanto, em tese, a falta de capacitação de capacitação integral de crianças e adolesde meninas pela educação tem como consecentes. quência a evasão escolar e altos índices de O presente artigo buscou relacionar o di- gravidez precoce, quadro que precisa ser moreito à educação e os altos índices de gravidez dificado para garantir uma condição melhor na adolescência, já que com a falha em sua ga- de vida de meninas adolescentes. rantia e acesso a todos, faz com que muitas meninas adolescentes não possuam conhecimento à respeito de métodos preventivos de gravidez e de doenças sexualmente transmissíveis. As desigualdades no acesso à educação prejudica, de forma geral, milhares de crianças e adolescentes. Neste trabalho, buscou-se comprovar que as adversidades enfrentadas pelo Poder Público gera, para as meninas e mulheres, falta de capacitação integral. Conforme a falta de implementação do direito à educação e de capacitação de meninas e mulheres, gera um aumento na possibilidade de gravidez precoce por falta de in11 G1. Brasil tem gravidez na adolescência acima da média Latino-Americana, diz OMS. 2018. Disponível em: https:// g1.globo.com/bemestar/noticia/brasil-tem-gravidez-na-adolescencia-acima-da-media-latino-americana-diz-oms.ghtml. 12 FERREIRA, Lola. Meninas são mais que o dobro dos meninos entre jovens que não completaram ensino médio e não exercem atividade remunerada. 2015. Disponível em: http://www.generonumero.media/meninas-sao-mais-doque-o-dobro-dos-meninos-entre-jovens-que-nao-completaram-ensino-medio-e-nao-exercem-atividade-remunerada/ 13 BOM DIA BRASIL. G1. Meninas são maioria da geração “nem-nem”, aponta pesquisa. 2016. Disponível em: http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2016/03/meninas-sao-maioria-da-geracao-nem-nem-aponta-pesquisa.html

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS SARAIVA. Vade Mecum Saraiva. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. ARAUJO, Luiz Alberto David e NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 19ª Edição, Revista e atualizada até a EC 84 de 2 de dezembro de 2014. Obra Completa. FARIAS, Thélio Queiroz. Constituição Federal Interpretada, Atualizada com a Emenda Constitucional nº 93. Obra Completa. RODRIGUES, Daniel Gustavo de Oliveira Conalgo e FERREIRA, Luiz Antônio Miguel. Gravidez na adolescência e direito à educação. 2008. Disponível em https://jus.com.br/artigos/11696/gravidez-na-adolescencia-e-direito-a-educacao/1. Acesso em: 15 fev. 2020. DADOORIAN, Diana. Gravidez na adolescência: um novo olhar. 2003. Disponível em www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932003000100012. Acesso em: 15 fev. 2020.

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ONU alerta para alto índice de gravidez na adolescências no Brasil. 2019. Disponível em https:// www.metropoles.com/saude/onu-alerta-para-alto-indice-de-gravidez-na-adolescencia-no-brasil. Acesso em 15 fev. 2020. MORENO, Ana Carolina e GONÇALVES, Gabriela. No Brasil, 75% das adolescentes que têm filhos estão fora da escola. 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2015/03/no-brasil-75-das-adolescentes-que-tem-filhos-estao-fora-da-escola.html. Acesso em 16 fev. 2020. Medidas Preventivas e Educativas podem reduzir a incidência de gravidez precoce. 2019. Disponível em: https://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/nid/medidas-preventivas-e-educativas-podem-reduzir-a-incidencia-de-gravidez-precoce/. Acesso em 16 fev. 2020. SETÚBAL, José Luiz. Como prevenir gravidez indesejada na adolescência. 2019. Disponível em: https://institutopensi.org.br/blog-saude-infantil/gravidez-indesejada-adolescencia/. Acesso em 16 fev. 2020. VARELLA, Mariana. Desigualdade social e gravidez na adolescênia. Disponível em: https://drauziovarella.uol.com.br/para-as-mulheres/desigualdade-social-e-gravidez-na-adolescencia/. Acesso em 16 fev. 2020. Prevenção de gravidez na adolescência é tema de campanha nacional. 2020 Disponível em:

https://saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46276-prevencao-de-gravidez-na-adolescencia-e-tema-de-campanha-nacional. Acesso

em 17 fev. 2020.

FOLHA HEB. Apenas uma em cada quatro adolescentes grávidas conclui a Eucção Básica. 2015. Disponível em: https://folhabv.com.br/noticia/Apenas-uma-em-cada-quatro-adolescentes-gravidas-conclui-a-Educacao-Basica/6964. Acesso em 17 fev. 2020. G1. Brasil tem gravidez na adolescência acima da média Latino-Americana, diz OMS. 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/noticia/brasil-tem-gravidez-na-adolescencia-acima-da-media-latino-americana-diz-oms.ghtml. Acesso em: 17 fev. 2020. FERREIRA, Lola. Meninas são mais que o dobro dos meninos entre jovens que não comple14


taram ensino médio e não exercem atividade remunerada. 2015. Disponível em:

http://www. generonumero.media/meninas-sao-mais-do-que-o-dobro-dos-meninos-entre-jovens-que-nao-completaram-ensino-medio-e-nao-exercem-atividade-remunerada/. Acesso

em:17 fev. 2020.

BOM DIA BRASIL. G1. Meninas são maioria da geração “nem-nem”, aponta pesquisa. 2016. Disponível em: http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2016/03/meninas-sao-maioria-da-geracao-nem-nem-aponta-pesquisa.html. Acesso em: 17 fev. 2020.

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VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

Isabela de Fátima Miálich Cursando Bacharel em Direito pela Faculdade ITEANA de Botucatu

Juliana Maria Corvino de Araújo Bacharel em Direito pela Faculdade ITEANA de Botucatu, Mestre pela Universidade Estadual Paulista - UNESP, Professora de Sociologia, Filosofia e Antropologia Jurídica da Faculdade ITEANA de Botucatu, Professora de Direito Civil e Direitos Humanos da Faculdade Marechal Rondon

SUMÁRIO 1. Introdução 2. Caracterização da Violência Obstétrica 2.1 Violência Obstétrica e Suas Formas 2.1.1 Violência Obstétrica nas Situações de Abortamento 2.2 Relação entre Violência Obstétrica e Violência Sexual 2.3. Violência de Gêneros 3. Aplicação Constitucional 3.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana 3.2 Princípio da Autonomia da Vontade 3.3 Demais Princípios Aplicáveis 4. Aspectos Legais 4.1 Aspectos Penais 4.2 Demais Legislações 5. Aspectos Sociais e Éticos 5.1 Diferença (Social) Quanto à Rede Pública e Privada de Saúde 5.2 A Ética dos Profissionais de Saúde 6. A Relação Entre o Tipo de Parto com a Violência Obstétrica 7. Conclusão

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RESUMO Violência obstétrica é uma expressão utilizada para conceituar as inúmeras ações de violência durante a prática obstétrica profissional. Sendo caracterizados como violência obstétrica, maus tratos físicos, psicológicos e verbais, e também procedimentos desnecessários e invasivos a mulher, durante a gravidez, no parto e puerpério (logo após o parto) e também no atendimento em situações de abortamento. A violência obstétrica pode ocorrer na forma física, psicológica, verbal, simbólica e/ou sexual, além atos de negligência, discriminação e/ou condutas excessivas ou desnecessárias. Um fator importante para o crescente número de casos de violência obstétrica é a falta de informação às mulheres (gestantes, durante o parto ou em situações de abortamento). São recorrentes as situações de violência obstétrica no Brasil, onde mulheres, gestantes, durante o parto, ou no atendimento em situações de abortamento, sofrem abusos, desrespeito, negligência e maus tratos.

PALAVRAS-CHAVE Violência. Obstétrica. Gestante.

ABSTRACT Obstetricviolenceisanexpressionusedtoconceptualizethenumerousactionsofviolenceduringprofessionalobstetricpractice. Beingcharacterized as obstetricviolence, physical, psychologicaland verbal abuse, andalsounnecessaryandinvasive procedures towomenduringpregnancy, childbirthandpostpartum (soonafterdelivery) andalso in care in situationsofabortion. Obstetricviolencemayoccur in physical, psychological, verbal, symbolicand / or sexual form, as well as actsofnegligence, discriminationand / orexcessiveorunnecessaryconduct. Animportantfactor for theincreasingnumberof cases ofobstetricviolenceisthelackofinformationtowomen (pregnantwomen, duringchildbirthor in abortionsituations). Obstetricviolencesituations are recurrent in Brazil, wherewomen, pregnantwomen, duringchildbirth, or in care in abortionsituations, suffer abuse, disrespect, neglectand abuse.

KEYWORDS Violence. Obstetric. Pregnant.

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1. INTRODUÇÃO O presente artigo tem a finalidade de apresentar e esclarecer sobre as formas de violência obstétrica, bem como abordar sobre a violação dos direitos das mulheres, gestantes. O presente trabalho ainda abordará sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, trazendo também os aspectos legais, bem como aspectos sociais quanto às condutas médicas.

violações e as situações narradas.

A violência obstétrica ocorre de três formas distintas, sendo elas, violência obstétrica física, violência obstétrica psíquica ou violência obstétrica sexual. Os exemplos são diversos como: xingamentos, agressões físicas, torturas psicológicas, comentários abusivos e também discriminação racial, como forma frequente de atos de violência obstétrica coAbordará também sobre tal violência, ou metidos por profissionais de saúde contra as seja, violência obstétrica, sendo um tipo de vítimas. violência de gênero. As vítimas da violência obstétrica são Pode ser caracterizado como violência gestantes e também seus bebês. obstétrica, dentre outras condutas, maus traTal violência pode ocorrer durante a gestos físicos, psicológicos e verbais, e também tação propriamente dita, durante ou logo após procedimentos desnecessários e invasivos a o parto (puerpério), e também em situações mulher, durante a gravidez, no parto e puerde abortamento. pério (logo após o parto) e também atendimento em situações de abortamento. A violência obstétrica pode ser atrelada também, a violência institucional, uma vez As mulheres durante sua gestação, duque é exercida pelos serviços de saúde, e é rante o trabalho de parto ou em situação de caracteriza por negligência e maus-tratos dos abortamento, possuem direitos, sendo que profissionais com os usuários. estes devem ser respeitados por todos os profissionais da área de saúde. A violência obstétrica, também afronta princípios constitucionais, entre outros, o da Existem inúmeras situações recorrentes dignidade da pessoa humana e o da autonode abuso, desrespeito, maus tratos e negligênmia, também quanto aos aspectos sociais, cia vivenciada por gestantes, durante a gestapode-se chegar à conclusão que os casos de ção, durante o trabalho de parto ou durante o violência obstétrica podem ocorrer tanto no atendimento em casos de abortamento. Tais setor público, quanto no setor privado de saúsituações narradas podem ocorrer em qualde. quer período (gestação, parto ou abortamento), durante o parto é comum que as mulheres encontrem-se mais frágeis e susceptíveis as

2. CARACTERIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA A violência obstétrica é caracterizada pela prática de inúmeras violaçõescontra a mulher durante a prática obstétrica profissional. Podem ser caracterizados como violência obstétrica, maus tratos físicos, psicológicos e verbais, e também procedimentos desnecessários e invasivos a mulher, durante a gravidez, no parto e puerpério (logo após o parto) e também atendimento em situações de abor-

tamento. A violência obstétrica envolve os três momentos diferentes durante a realização do atendimento da gestante no serviço de saúde, quais sejam eles,pré-parto, parto e pós-parto. Tem que se levar em consideração os aspectos relevantes, como por exemplo, a possibilidade de participação da mulher no

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processo decisório durante esses três momentos vivenciados, existem estudos que demonstram que a mulher que não foi informada sobre as decisões tomadas, tem o sentimento de insatisfação1. O termo “violência obstétrica” foi criado pelo Dr. Rogelio Pérez D’Gregorio presidente da Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia da Venezuela, e desde então nomeou as lutas do movimento feminista pela eliminação e punição dos atos e procedimentos tidos como violentos realizados durante o atendimento e assistência ao parto2. Ainda segundo Mariani, Neto (2016): Enquadram-se no conceito de violência obstétrica todos os atos praticados no corpo da mulher e do bebê sem o consentimento da mulher, a3lém de procedimentos já superados pela medicina, porém ainda muito utilizados, principalmente no atendimento realizado pelo SUS, como a episiotomia (corte na região do períneo) e a manobra de Kristeler (quando a barriga é empurrada por enfermeiras), o enema (lavagem intestinal) uso da ocitocina sintética (hormônio acelerador das contrações), da anestesia, do fórceps, o jejum de comida e água, exames de toque frequentes (usados para conferir a dilatação e a descida do bebê), o rompimento artificial da bolsa e a posição horizontal da mulher4.

dimentos desnecessários e invasivos como episiotomias, restrição ao leito no pré- parto, tricotomia, ocitocina de rotina e ausência de acompanhante5. Ainda, segundo Pereira; et al (2016), sobre os índices de cesárea no Brasil: O Brasil é um país que apresenta altos índices de cesárea. Segundo Ministério da Saúde, em 2010, aproximadamente 52% dos partos realizados foram cirúrgicos e essa taxa cresce a cada dia, sendo mais prevalente na rede privada. No entanto, pesquisas mostram que a maioria das mulheres que realizam cesáreas não participam do processo de decisão de qual procedimento será utilizado, e ainda afirmam ter preferência pelo parto normal. Muitas são as queixas relatadas sobre os efeitos desse procedimento cirúrgico e sua inadequada realização, e esse fato o torna uma violência contra as mulheres quando os recém nascidos são afastados de suas mães após o procedimento, impossibilitando o estabelecimento de um vínculo mãe - filho após o parto, além de que a anestesia é insuficiente em alguns casos, o que torna o processo em algo traumático para a mulher. Vale lembrar a existência de outras complicações que podem levar a morte tanto da mulher quando da criança6. Sobre a violência obstétrica destaca Mariani e Neto (2016):

A violência obstétrica é aquela que ocorre no período da gestação, durante o trabalho Desta forma caracteriza-se pela interde parto e puerpério (logo após) e também venção institucional indevida, não autorizada pode ocorrer durante o atendimento em situ- ou sequer informada, até mesmo abusiva, soações de abortamento. bre o corpo ou processo reprodutivo da mulher, que violam sua autonomia, informação, A expressão “violência obstétrica” (VO) liberdade de escolha e participação nas decié utilizada para descrever e incluir inúmeras sões sobre o seu próprio corpo. Apresenta-se ações de violência durante a prática obstépela intervenção institucional indevida, não trica profissional. Agrupa maus tratos físicos, autorizada ou sequer informada7. psicológicos, e verbais, assim como proce1 MARIANI, Adriana Cristina; NETO, José Osório Do Nascimento. Violência obstétrica como violência de gênero institucionalizada: breves considerações a partir dos direitos humanos e do respeito às mulheres. 2016. 2 IBIDEM 3 IBIDEM 4 MARIANI, Adriana Cristina; NETO, José Osório Do Nascimento. Violência obstétrica como violência de gênero institucionalizada: breves considerações a partir dos direitos humanos e do respeito às mulheres. 2016. 5 PEREIRA, Jéssica Souza; et al. Violência obstétrica: ofensa a dignidade humana. 2016. 6 IBIDEM 7 MARIANI, Adriana Cristina; NETO, José Osório Do Nascimento. Violência obstétrica como violência de gênero institucionalizada: breves considerações a partir dos direitos humanos e do respeito às mulheres. 2016.

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A violência obstétrica é também considerada como uma violação dos direitos das mulheres grávidas em processo de parto, que inclui perda da autonomia e das decisões sobre seus corpos. No decorrer de toda a gestação e durante o trabalho de parto as mulheres possuem direitos, os quais devem ser respeitados pelos profissionais de saúde para que assim se tenha um atendimento integral e de qualidade. Ou seja, o Ministério da Saúde possui políticas que visam garantir os direitos sexuais, de cidadania e reprodutivos das mulheres, a fim de que elas conheçam seus direitos para que assim possam exigi-los e se prevenirem de abusos e a falta respeito contra a sua dignidade8.

na assistência. A maioria dos integrantes da Rehuna era, reconhecidamente, formada por profissionais da saúde, atuando na implementação de serviços ou na pesquisa acadêmica, especialmente enfermeiras e médicos das áreas da obstetrícia e saúde pública. Assim, embora também estivessem presentes outros atores sociais, o fato de serem os profissionais da saúde os principais envolvidos neste debate fez com que apenas uma pequena parcela da informação a respeito das violentas condições da assistência ao parto chegasse, de fato, às mulheres usuárias dos sistemas de saúde, as quais representam o principal grupo de interessadas, uma vez que são ou poderiam/ deveriam ser as protagonistas do evento do nascimento9.

A humanização do parto também é enOutro ponto sobre a violência obstétritendida como um direito, para que as mães e ca consiste no desrespeito do direito ao acombebês sejam respeitados, desde o pré-natal panhante, o fato de não conferir a gestante o até o pós-parto, com cuidado e acolhimento. direito ao acompanhante, também dificulta o O movimento pela humanização do par- controle da violência obstétrica. to no Brasil se iniciou de maneira descentraA Agência Nacional de Saúde Suplemenlizada, por meio de diferentes iniciativas em tar, através da RN nº 36829, dispõe sobre o diversos Estados brasileiros, todas focadas em direito de acesso à informação das beneficiressignificar a assistência e atuar de acordo árias aos percentuais de cirurgias cesáreas e com diferentes modelos, menos tecnocráticos de partos normais, por operadora, por estabee mais centrados na figura da mulher. Neste lecimento de saúde e por médico, e sobre a contexto, a fundação da Rede pela Humautilização do partograma, cartão da gestante nização do Parto e do Nascimento (Rehuna) e da carta de informação à gestante no âmbipossui papel de destaque, especialmente em to da saúde suplementar. Além disso, a Lei Nº função de sua carta de fundação, a “Carta de 11.108 de 7 de abril de 2005, obriga os serviCampinas”. Este documento representou uma ços de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), forma de denúncia das circunstâncias violenda rede própria ou conveniada, ficam obrigatas da assistência ao parto, caracterizandodos a permitir a presença, junto à parturiente, -as como pouco humanas, constrangedoras de 01 (um) acompanhante, de sua indicação, e marcadas pela ocorrência de intervenções durante todo o período de trabalho de parto, desnecessárias e violentas, que transformava parto e pós- parto imediato. As parturientes, a experiência de parir e nascer em uma vivênainda, devem ser submetidas a procedimentos cia aterrorizante, onde as mulheres se sentiam com requisição prévia de sua opinião, evitanalienadas e impotentes. A atuação da Rehuna do expô-las a sofrimentos desnecessários. O na década de 1990 promoveu debate relevanBrasil desenvolveu algumas políticas públicas, te a respeito da qualidade da assistência ao segundo SPM (Secretaria de Política Públicas parto no Brasil, bem como evidenciou, tanto para as Mulheres), que visam um atendimento entre as diferentes categorias profissionais integral e de qualidade às mulheres durante envolvidas quanto dentro da gestão, a exisa gestação, parto e puerpério de forma a detência de condições degradantes e violentas senvolver ações de prevenção e assistência à 8 PEREIRA, Jéssica Souza; et al. Violência obstétrica: ofensa a dignidade humana. 2016. 9 SENA, Ligia Moreiras;TESSER,Charles Dalcanale. Violência obstétrica no Brasil e o ciberativismo de mulheres mães: relato de duas experiências. 2017.

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saúde10.

cia é o descumprimento da lei 11.108/2005 Lei do acompanhante, que apesar de estar em Observa Mariani e Neto(2016), sobre o vigor é descumprida principalmente no âmbidesrespeito a lei 11.108/2005 na saúde púto da saúde pública11. blica: Outro problema comumente citado pelas mulheres que são vitimas desse tipo de violên-

2.1 VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E SUAS FORMAS São recorrentes as situações de violênViolência obstétrica durante a gestação cia obstétrica no Brasil, onde mulheres, ges- consiste na violência sofrida à mulher, durante tantes, durante o parto, ou no atendimento o atendimento do pré – natal. em situações de abortamento, sofrem abusos, A violência, seja de ordem física, emociodesrespeito, negligência e maus tratos. nal ou simbólica, é produtora de elevado grau Além disso, xingamentos, comentários de sofrimento sendo, por vezes, apresentada abusivos, agressão física, tortura psicológi- de forma tão sútil que chega a ser difícil enca e discriminação racial e socioeconômica xergá-la e, consequentemente, dar maior nosão relatados com frequência pelas mulheres toriedade a temática. Nesse contexto a violênagredidas por alguns profissionais da saúde. cia obstétrica compreende qualquer ação que Procedimentos invasivos como a manobra de produza efeitos negativos de caráter físico e Kristeller, episiotomia, restrição da posição do psicológico durante o processo parturitivo naparto e intervenções de verificação e acelera- tural. Na maioria das vezes, sua materialização ção do parto são classificados como VO12. ocorre por meio de um tratamento desumanizado oriundo dos profissionais de saúde14. Existem diversas formas de violência obstétrica como: abuso físico, cuidado indigA violência obstétrica pode ocorrer como no, abuso verbal, imposição de intervenções uma negligência, e também pode ocorrer nas muitas vezes não consentidas, abandono, ne- formas física, psíquica ou verbal. gligência ou recusa da assistência por parte do A violência obstétrica por negligência é profissional de saúde. Além disso, a violência caracterizada quando há a negação ao atenobstétrica também inclui a recomendação de dimento ou colocar dificuldades para que a cirurgias cesáreas que ultrapassam o limite da gestante receba os serviços que são seus por normalidade13. direito. Essa violência ocasiona uma peregriPode ser caracterizado como violência nação por atendimento durante o pré-natal e obstétrica, dentre outras condutas, maus tra- por leito na hora do parto, diz respeito tamtos físicos, psicológicos e verbais, e também bém a privação do direito da mulher em ter procedimentos muitas vezes considerados um acompanhante. desnecessários e invasivos a mulher, durante O que define a violência obstétrica não a gravidez, no parto e puerpério (logo após o são apenas os procedimentos realizados, parto) e também durante o atendimento em como também a forma como estes são consituações de abortamento. duzidos. 10 PEREIRA, Jéssica Souza; et al. Violência obstétrica: ofensa a dignidade humana. 2016. 11 MARIANI, Adriana Cristina; NETO, José Osório Do Nascimento. Violência obstétrica como violência de gênero institucionalizada: breves considerações a partir dos direitos humanos e do respeito às mulheres. 2016 12 PEREIRA, Jéssica Souza; et al. Violência obstétrica: ofensa a dignidade humana. 2016. 13 IBIDEM 14 CARVALHO, Isaiane da Silva; BRITO,Rosineide Santana. Formas de violência obstétrica vivenciadas por puérperas que tiveram parto normal. 2017.

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A violência obstétrica física ocorre quando há práticas e intervenções na maioria das vezes desnecessárias e violentas, que inúmeras vezes sem o consentimento da mulher. Como exemplo de violência obstétrica física, podemos citar a aplicação do soro com ocitocina, lavagem intestinal, privação da ingestão de líquidos e alimentos, exames de toque em excesso, ruptura artificial da bolsa, raspagem dos pelos pubianos, imposição de uma posição de parto que não é a escolhida pela mulher, não oferecer alívio para a dor, seja natural ou anestésico, episiotomia sem prescrição médica, “ponto do marido”, uso do fórceps sem indicação clínica, imobilização de braços ou pernas, manobra de Kristeller. Outro ponto que deve ser levado em consideração é o parto cesárea, que uma vez realizadosem prescrição médica e sem o consentimento da mulher, é caracterizada como uma prática de violência obstétrica, neste caso a mulher perde a autonomia nas decisões sobre seu parto e submete-se a orientações que não são compreendidas em sua totalidade. VO física: quando são realizadas práticas invasivas, administra-se medicações não justificadas pelo estado de saúde da parturiente ou de quem irá nascer, ou quando não se respeita o tempo ou as possibilidades de parto biológico15. O crescente número de parto cesárea no Brasil indica a relevância da atual discussão a respeito do tema violência obstétrica, principalmente quando se fala na ocorrência de cirurgias cesáreas desnecessárias16.

Segundo ZANARDO; et al (2015) apud Ministério da Saúde (2015): São consideradas desnecessárias aquelas operações que ocorrem quando não há situação que coloque em risco a saúde da gestante ou do bebê e, portanto, exigiriam intervenção através de procedimento. Sem a indicação correta, a realização da cirurgia pode levar ao aumento do risco de complicações graves para a díade17. Já a violência obstétrica psíquica ou violência obstétrica psicológica ocorre com ações verbais ou comportamentais que possam causar na mulher sentimentos de inferioridade, vulnerabilidade, abandono, medo, instabilidade emocional e também insegurança. VO psíquica: refere-se ao tratamento desumanizado, grosseiro, humilhação e discriminação. Além disso, cabe nesta classe a omissão de informações sobre a evolução do parto18. Por outro lado a violência obstétrica verbal se dá quando há comentários constrangedores, ofensivos ou até humilhantes à gestante, quer seja inferiorizando a mulher por sua raça, idade, escolaridade, religião, crença, orientação sexual, condição socioeconômica, número de filhos ou estado civil, quer seja por ridicularizar as escolhas da paciente para seu parto, como a posição em que quer dar à luz.

2.1.1 VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA NAS SITUAÇÕES DE ABORTAMENTO A violência obstétrica, embora seja mais comum nas situações de parto, ocorre com inúmeras mulheres em situações de abortamento também podem ser vítimas de tal violência. Podendo, por exemplo, ocorrer de

diversas maneiras, sendo elas: negação ou demora no atendimento, questionamento e acusação da mulher sobre a possível causa do aborto, procedimentos invasivos sem explicação, consentimento ou anestesia, culpabiliza-

15 PEREIRA, Jéssica Souza; et al. Violência obstétrica: ofensa a dignidade humana. 2016. 16 ZANARDO, Gabriela Lemos de Pinho; et al. Violência Obstétrica No Brasil: Uma Revisão Narrativa. 2015. 17 IBIDEM 18 PEREIRA, Jéssica Souza; et al. Violência obstétrica: ofensa a dignidade humana. 2016.

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ção e denúncia da mulher. Mulheres que necessitam de tratamento por aborto incompleto esperam apoio, privacidade, confidencialidade e respeito durante seu atendimento. Entretanto, principalmente nos países onde o aborto não é permitido, muitas mulheres podem sofrer desrespeito e abusos nos serviços de saúde. Termos como “violência obstétrica”, “tratamento desumano” e “desrespeito e abuso” têm sido utilizados por autores e organizações diversas para caracterizar maus-tratos durante a assistência em saúde. Embora não haja consenso sobre o melhor termo e conceito de violência insti-

tucional, há concordância que esse fenômeno causa sofrimento para a mulher, que influencia negativamente a qualidade do cuidado prestado e que atua como barreira para a utilização do serviço de saúde no futuro. No Brasil, o Ministério da Saúde estabeleceu a definição de violência institucional como sendo “aquela exercida nos/pelos próprios serviços públicos, por ação ou omissão”, englobando tanto atos praticados por profissionais durante a assistência como condições estruturais do sistema de saúde19.

2..2 RELAÇÃO ENTRE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E VIOLÊNCIA SEXUAL A violência obstétrica se constitui como internacionais como exemplo de violação do sendo uma grave violação à autonomia das direito humano das mulheres à sua dignidade mulheres, também aos seus direitos humanos e à sua integridade corporal20. e aos seus direitos sexuais e reprodutivos. A violência obstétrica sexual é toda ação Em que pese o tema ser comumente imposta à mulher que tende a violar sua intiabordado como direito humanos das mulheres midade ou pudor, podendo incidir sobre seu a dignidade e a integridade corporal o tema senso de integridade sexual e reprodutiva, também aborda aspectos dos direitos sexuais podendo ainda ter acesso ou não aos órgãos e reprodutivos. A assistência como tema de sexuais e partes íntimas do seu corpo21. direitos humanos tem sido levada a tribunais

2.3 VIOLÊNCIA DE GÊNEROS A violência obstétrica é definida como um tipo de violência de gênero, uma vez que somente ocorre com mulheres, em situações específicas, ou seja, durante a gravidez, no parto e puerpério (logo após o parto) e também atendimento em situações de abortamento.

tece em todo o mundo e atinge mulheres de todas as idades, raças, etnias, classes sociais com orientação sexual ou não, e é também tratada como violência contra a mulher. O seu principal ponto é ligado ao poder e como isso demonstra o predomínio dos homens sobre as mulheres ou também apenas como uma ideologia dominante, não sendo necessariamente Segundo Queiroz; et al (2017) apud Braentre uma relação de ambos os sexos, mas de sil (2003): posições sociais22. A violência de gênero é algo que acon19 MADEIRO, Alberto Pereira; RUFINO, Andréa Cronemberger. Maus-tratos e discriminação na assistência ao aborto provocado: a percepção das mulheres em Teresina, Piauí, Brasil. 2017. 20 MARIANI, Adriana Cristina; NETO, José Osório Do Nascimento. Violência obstétrica como violência de gênero institucionalizada: breves considerações a partir dos direitos humanos e do respeito às mulheres. 2016. 21 PEREIRA, Jéssica Souza; et al. Violência obstétrica: ofensa a dignidade humana. 2016. 22 QUEIROZ, Thayná Caixeiro; et al. Violência obstétrica e suas perspectivas na relação de gênero. 2017.

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Por ser praticada contra mulheres e tam- detentores de conhecimentos e habilidades bém seus nascituros, a violência obstétrica é técnicas naquela situação específica. também uma violência de gênero23. Segundo Mariani e Neto (2016): A violência de gênero no momento do Em que pese o tema ser comumente parto é tão perpetrada e interligada na estruabordado como direito humanos das mulheres tura social, que muitas mulheres nem sequer a dignidade e a integridade corporal o tema percebem sofrer abuso. É nesse ambiente de também aborda aspectos dos direitos sexuais reconhecimento e maximização dos direitos e reprodutivos. A assistência como tema de humanos que a mulher pode e deve ser prodireitos humanos tem sido levada a tribunais tagonista: cabe a ela decidir sobre seu próprio internacionais como exemplo de violação do corpo. No caso do parto, por exemplo, a escodireito humano das mulheres à sua dignidade lha deve ser dela! Ela é quem deve escolher se e à sua integridade corporal26. vai consentir (ou não) com os procedimentos a serem realizados (ou não) em seu corpo24. Com relação à violência de gênero, esta é tida como a violência física, sexual ou psiA violência obstétrica diz respeito a uma cológica contra a mulher, ela se manifesta por forma específica da violência de gênero, uma meio de relações de poder, histórica e cultuvez que há utilização arbitrária do saber por ralmente desiguais ocorridas entre homens e parte de profissionais da saúde no controle mulheres (Wolff; Waldow, 2008)27. dos corpos e da sexualidade das parturientes. Acerca da violência obstétrica como vioSegundo Queiroz; et al (2017) apud Milência institucional e de gênero, Queiroz; et al nayo (2014): (2017) trazem: O gênero então passa a ser trabalhado Existem vários tipos de manifestações de em um tipo de violência, quando se trata da violência, porém, no presente trabalho, será opressão construída socialmente nas relações abordada uma análise investigativa sobre as de poder dentro de um ambiente institucioquestões de violência institucional e de gênenal. Nesse sentido, a análise a ser estudada é ro, pois estas perpassam diretamente sobre o poder, visto que relações desiguais de poa violência no parto, traduzida como violênder, de gênero e relação profissional de saúde cia obstétrica. A relevância do estudo sobre e paciente estão embutidas na violência instiesse tema é justificada pela necessidade de se tucional25. compreender questões referentes à violência Já a violência institucional obstétrica está institucional e de gênero, com foco na viorelacionada como uma violência praticada por lência obstétrica, para analisar as relações de equipes de saúde e são consentidas pelas mu- gênero, além de avaliar como a humanização lheres durante o trabalho de parto, seja este da assistência ao parto e nascimento contribui cesárea ou parto natural, tal fato esta atrelado para uma mudança nesse contexto28. com vários fatores como: o desconhecimento A violência acarretada nos corpos de mudo processo fisiológico e práticas de assistênlheres acaba gerando traumas, tal violência cia durante o trabalho de parto e parto por acaba também ferindo os direitos humanos, estas mulheres; e também por acreditarem em categorias universais como, por exemplo: que o médico e/ou a equipe de saúde sejam igualdade, dignidade, respeito, justiça e valor 23 MARIANI, Adriana Cristina; NETO, José Osório Do Nascimento. Violência obstétrica como violência de gênero institucionalizada: breves considerações a partir dos direitos humanos e do respeito às mulheres. 2016. 24 IBIDEM 25 QUEIROZ, Thayná Caixeiro; et al. Violência obstétrica e suas perspectivas na relação de gênero. 2017. 26 MARIANI, Adriana Cristina; NETO, José Osório Do Nascimento. Violência obstétrica como violência de gênero institucionalizada: breves considerações a partir dos direitos humanos e do respeito às mulheres. 2016. 27 WOLFF, Leila Regina;WALDOW, Vera Regina. Violência consentida: mulheres em trabalho de parto e parto. 2008. 28 IBIDEM

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da pessoa humana29.

exercendo sua autonomia sexual de acordo com sua autonomia existencial e direito perO direito ao próprio corpo é o ponto de sonalíssimo ao corpo com fundamento na digpartida de uma sociedade democrática que nidade da pessoa humana30. dê aos indivíduos igual valor, assim a mulher pode abster-se da maternidade ou busca-la

3. APLICAÇÃO CONSTITUCIONAL No Brasil existem, além da constituição maternidade. federal, a qual prevê os direitos fundamenO artigo 196 também da Constituição tais em seu artigo 5º, leis que dispõe sobre os Federal, traz a saúde como sendo um direito direitos de gestantes assistidas pelo sistema de todos. único de saúde (SUS). Existem princípios, leis e fundamentos Os direitos fundamentais estão estabeque baseiam as ações médicas, e estes são lecidos na Constituição Federal, e devem ser norteados pelo Código de Ética Médica, os assegurados e protegidos pelo Estado. quais devem respeitar a decisão dos pacientes As garantias fundamentais são uma for- e valorizar a vida dos mesmos. Assim sendo, ma ou um remédio constitucional, os quais os princípios médicos, como o da autonomia, visam garantir tais direitos, para que estes se- beneficência, não maleficência e justiça, emjam colocados em prática. basam as práticas médicas e visam proporcionar a valorização da vida humana31. A constituição Federal traz no artigo 6º, além de outros direitos sociais, a proteção à

3.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA A dignidade da pessoa humana está relacionada aos direitos fundamentais, tais como direito à vida, à igualdade, à integridade física, moral e psíquica, ocorre a violação de tais direitos com a prática de atos que caracterizem a violência obstétrica.

O Ministério da Saúde têm políticas, as quais visam garantir os direitos sexuais, de cidadania e reprodutivos das mulheres, para que assim elas possam conhecer seus direitos para que possam assim exigi-los e se prevenirem de futuros abusos e desrespeito contra a sua dignidade33.

A violência obstétrica também atinge o princípio da autonomia da vontade, uma vez Segundo Mariani e Neto (2016) apud que mulheres não podem tomar decisões Ana Paula Pelegrinello (2014, p. 97-114): sobre seu parto, e também se submetem a O critério para verificação se a mulher orientações quem não conseguem compreentem uma vida digna, é objetivo e se traduz der em sua totalidade32. pela disponibilização de serviços essenciais. A Ainda segundo o mesmo autor: reprodução é fruto da autonomia da mulher e 29 MARIANI, Adriana Cristina; NETO, José Osório Do Nascimento. Violência obstétrica como violência de gênero institucionalizada: breves considerações a partir dos direitos humanos e do respeito às mulheres. 2016. 30 PELLEGRINELLO. Ana Paula. Reprodução humana assistida: a tutela dos direitos fundamentais das mulheres. Curitiba: Juruá, 2014. 31 PEREIRA, Jéssica Souza; et al. Violência obstétrica: ofensa a dignidade humana. 2016. 32 33

PEREIRA, Jéssica Souza; et al. Violência obstétrica: ofensa a dignidade humana. 2016. IBIDEM

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direito da personalidade, qualquer decisão no sentido de interesses estranhos ao da mulher significaria lesão, assim “o direito da mulher – e somente da mulher – de decidir ter filhos se apresenta como um direito da personalidade física e, mais precisamente, como um direito à liberdade corporal” 34.

Cuida-se de conjunto de direitos fundamentais indeterminados; por exemplo, o mínimo existencial e a proteção do Estado a sofrimentos evitáveis. Vale dizer que os direitos fundamentais são plausíveis de renúncia desde que não se ofenda a dignidade dessa pessoa36.

Tal violência afronta também a dignidade Segundo e Neto (2016) apud Ana Paula da pessoa humana, quando, por exemplo, há a Pelegrinello (2014, p. 97-114): realização de procedimentos de natureza inO direito ao próprio corpo é o ponto de vasiva sem a devida indicação e consentimenpartida de uma sociedade democrática que to da mulher. dê aos indivíduos igual valor, assim a mulher No mundo inteiro, são constantes os pode abster-se da maternidade ou busca-la relatos sobre maus-tratos sofridos pelas mu- exercendo sua autonomia sexual de acordo lheres não só durante o parto, mas em todo o com sua autonomia existencial e direito perprocesso da gestação, parto e puerpério, que sonalíssimo ao corpo com fundamento na digviolam a dignidade e respeito a elas35. nidade da pessoa humana37. Nesse sentido, descreve o autor Vasconcelos (2016):

3.2 PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE A autonomia de vontade está ligada à capacidade de autodeterminação, ou seja, diz respeito ao individuo poder decidir de forma livre sobre suas escolhas. A violência obstétrica pode estar atrelada também a escolha das mulheres pelo parto Cesárea, uma vez que a mulher optando por este perde autonomia nas decisões sobre seu parto e submete-se a orientações que muitas vezes não compreendem totalmente.

ticas que visam garantir os direitos sexuais, de cidadania e reprodutivos das mulheres, a fim de que elas conheçam seus direitos para que possam exigi-los e se prevenirem de abusos e desrespeito contra a sua dignidade39. No Brasil existem, além da constituição federal, que prevê os direitos fundamentais em seu artigo 5º, leis que dispõe sobre os direitos de gestantes assistidas pelo sistema único de saúde.

A violência obstétrica, também atinge o princípio da autonomia da vontade, uma vez que mulheres não podem tomar decisões sobre seu parto, e submete-se a orientações quem não conseguem compreender38.

No Brasil, desde 27 de dezembro de 2007, a Lei nº 11.634, em que dispõe sobre o direito da gestante ao conhecimento e a vinculação à maternidade onde receberá assistência no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), e a partir do conhecimento e a vinculaAinda segundo o mesmo autor: ção da maternidade de referência, os serviços Assim, o Ministério da Saúde possui polí- de saúde maternos devem garantir à mulher o

34 MARIANI, Adriana Cristina; NETO, José Osório Do Nascimento. Violência obstétrica como violência de gênero institucionalizada: breves considerações a partir dos direitos humanos e do respeito às mulheres. 2016. 35 PEREIRA, Jéssica Souza; et al. Violência obstétrica: ofensa a dignidade humana. 2016. 36 VASCONCELOS, Clever. Curso De Direito Constitucional. E-book. São Paulo: Saraiva 2016. 37 MARIANI, Adriana Cristina; NETO, José Osório Do Nascimento. Violência obstétrica como violência de gênero institucionalizada: breves considerações a partir dos direitos humanos e do respeito às mulheres. 2016. 38 PEREIRA, Jéssica Souza; et al. Violência obstétrica: ofensa a dignidade humana. 2016. 39 IBIDEM

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leito obstétrico no momento de seu processo suas escolhas pessoais, devam ser tratados parturitivo, evitando a peregrinação durante o com respeito pela sua capacidade de decisão. anteparto e parto40. As pessoas têm o direito de decidir sobre as questões relacionadas ao seu corpo e à sua Segundo Santos (2016) apud CREMESP vida. Quaisquer atos médicos devem ser au(2004, p. 18). torizados pelo paciente41. O princípio da autonomia requer que os indivíduos capacitados de deliberarem sobre

3.3 DEMAIS PRINCÍPIOS APLICÁVEIS O conceito de direitos sexuais e reprodutivos traz à tona os quatro princípios éticos inegociáveis que estes direitos envolvem: a igualdade, a diversidade, a autonomia pessoal ou princípio da pessoalidade, e a integridade corporal. Cada um destes princípios pode ser violado por atos de invasão ou abuso – por governos, médicos, maridos, parceiros ou membros da família – ou resultar da omissão, da negligência e da discriminação42.

entre os cidadãos de gozar de tratamento isonômico pela lei. Por meio de tal princípio são vedadas as diferenciações não justificáveis pelos valores constantes na Constituição Federal, e tem por finalidade limitar a atuação do legislador, do intérprete ou autoridade pública e do particular.

Princípio da igualdade - tal princípio prevê a igualdade de aptidões e de possibilidades

4. ASPECTOS LEGAIS Durante toda a gestação e o trabalho de parto as mulheres possuem direitos que devem ser respeitados pelos profissionais da saúde para que se tenha um atendimento integral e de qualidade. Assim, o Ministério da Saúde possui políticas que visam garantir os

direitos sexuais, de cidadania e reprodutivos das mulheres, a fim de que elas conheçam seus direitos para que possam exigi-los e se prevenirem de abusos e desrespeito contra a sua dignidade43.

4.1 ASPECTOS PENAIS A expressão violência obstétrica elenca três momentos diversos do atendimento no serviço de saúde, os quais sejam eles: pré-parto, parto e pós-parto. Diante de tal

contextoexistemalguns aspectos relevantes podendo citar, por exemplo, que é a possibilidade de participação da mulher no processo decisório durante esses momentos narrados,

40 RODRIGUES, Diego Pereira; et al. A peregrinação no período reprodutivo: uma violência no campo obstétrico. 2015. 41 SANTOS, Rafael Cleison Silva dos; SOUZA,Nádia Ferreira de. Violência institucional obstétrica no Brasil: revisão sistemática. 2015. 42 PROGIANTI, Jane Márcia; ARAÚJO, Luciane Marques de; MOUTA, Ricardo José Oliveira. Repercussões Da Episiotomia Sobre A Sexualidade. 2008. 43 PEREIRA, Jéssica Souza; et al. Violência obstétrica: ofensa a dignidade humana. 2016.

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existe aindaalguns estudos demonstram que o sentimento de a mulher não ser informada e não ter tido a oportunidade de participar nas decisões foram associados à insatisfação por parte da mesma. Também se pode destacar que tal pratica descrita se enquadra na categoria de crime, e existem vários movimentos sociais, principalmente movimentos feministas que tentam demonstrar o caráter violento dos procedimentos acima citados, um exemplo comum é a episiotomia, que realizada na maioria dos casos sem autorização pode ser interpretada como crime contra a integridade física, lesão corporal, artigo 129 do Código Penal brasileiro. Outro ponto que se deve levar em consideração é sobre tal violência agredir os direitos não apenas da mulher, mas também do nascituro que também é tido sujeito de direitos 44. Segundo Mariani e Neto (2016) apud Tim (2012) p. 185-189: As contradições raça/etnia, classe social se conectam com o gênero e majora a vulnerabilidade das mulheres frente à estrutura de poder hierárquica e patriarcal, esse sistema expressa valorização desigual atribuída pela sociedade e legitimada pela cultura patriarcal aos corpos e às subjetividades das pessoas, isso demonstra a estrutura da violência contra mulheres embasadas em modelos patriarcais e desiguais45. Ainda segundo o mesmo autor apud Schraiber; Lilia; D’oliveira, (1999), p. 13-26: Mas é preciso explicar que colocar a mulher como vítima de um tipo penal como a violência de gênero é diferente de vitimá-la: No campo jurídico todas as pessoas em conflito, sejam homens ou mulheres, serão ou réus ou vítimas. Já nas esferas, por exemplo, da saúde, da assistência social ou outras formas de atuação, a tomada de qualquer sujeito na condição de “vitima” é significá-lo de saída como sujeito de “menor potencialidade” dian-

te das suas possibilidades de vir a ser sujeito plenamente potente, isto é, de deter plenamente autodomínio e soberania de decisões, daí que se perpetue a noção da mulher como um sujeito incapaz, à semelhança das crianças, dos doentes... ou dos loucos, em maior grau! Incapaz de decisões, incapaz de pleno domínio de si... então necessitaria de eternos “tutores”! Ora, esta é a própria construção social do feminino denunciada e repudiada pelo movimento de mulheres e que constrói a concepção das mulheres como eternos “dependentes”. Pode do ponto de vista histórico, explicar, sem eticamente justificar, tanto a cultura da “proteção” necessária (passando as próprias mulheres a se conceberem da mesma forma e conceberem seus companheiros como “os provedores”), proteção que não se confunde com “cuidado”, quanto a cultura de que os sujeitos dependentes, sempre infantilizados como sujeitos sociais, precisam de eterna vigilância e educação rigorosa, o que em passado já bem próximo, significava punições físicas e sanções morais, para o aprendizado da adequada conduta social46. No caso de violência obstétrica, cabe também a tipificação prevista no artigo 146 do Código Penal em que diz “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda. Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa”. Ressalta-se também, que neste caso, os direitos sexuais e reprodutivos da mulher constituem, fundamentalmente, direitos humanos. É da mesma forma comum o crime de ameaça previsto no artigo 147 do Código Penal. A ameaça, perpetrada nos casos de violência moral obstétrica, é aquela que visa intimidar e amedrontar as gestantes mediante promessa de causar-lhe mal injusto e grave. O mal injusto é aquele que a vítima não está obrigada a suportar, podendo ser ilícito ou simplesmente imoral. Já o mal grave é o capaz de produzir

44 MARIANI, Adriana Cristina; NETO, José Osório Do Nascimento. Violência obstétrica como violência de gênero institucionalizada: breves considerações a partir dos direitos humanos e do respeito às mulheres. 2016. 45 IBIDEM 46 MARIANI, Adriana Cristina; NETO, José Osório Do Nascimento. Violência obstétrica como violência de gênero institucionalizada: breves considerações a partir dos direitos humanos e do respeito às mulheres. 2016.

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ao ofendido um prejuízo relevante 47. Destaca

Lima e Albuquerque, 2019:

Outra forma comum, nos relatos de violência moral obstétrica, é pertinente aos maus-tratos previsto no art. 136, Código Penal. O crime é de forma vinculada, pois a conduta somente se admite nos modos de execução expressamente previstos em lei, amoldando-se, neste caso, expor a perigo de vida ou saúde da parturiente sob sua autoridade para fim de acompanhamento do processo gestacional, do parto e pós-parto. Além das condutas ex-

pressas, muitas parturientes estão suscetíveis a sofrerem crimes que violem que sua honra, tais como o crime de injúria (art. 140, Código Penal). Manifestam-se das mais diversas maneiras, expondo a paciente a sofrimentos desnecessários e que pode trazer consequências drásticas e irreparáveis a saúde. Constitui, ainda, circunstância que sempre agrava a pena quando não constituem ou qualificam o crime, vez que o crime é praticado contra mulher grávida (art. 61, inciso II, alínea h, CP)48.

4.2 DEMAIS LEGISLAÇÕES Um fator também considerado importante para os casos de violência obstétrica é o impedimento da presença de um acompanhante durante o parto. Tal fator é tido como fundamental, uma vez que os acompanhantes poderiam sinalizar de forma enfática aos profissionais de saúde qual é o estado clínico da paciente, além de dar também apoio emocional à mãe nos cuidados com o bebê e demais necessidades 49. Ainda neste sentido, destaca o mesmo autor:

O desrespeito a lei do acompanhante pode estar atrelado aos casos de violência obstétrica. Muitas vezes essas mulheres estão sozinhas, pois são impedidas de ter um acompanhante, o que fere a Lei Federal nº 11.108/2005, a RDC 36/2008 da ANVISA, as RNs 211 e 262 da ANS e o Estatuto da Criança e do Adolescente, no caso das adolescentes grávidas (DO PRINCÍPIO, R. P., 2012)51.

Lei do acompanhante, lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, com alterações daToda mulher tem o direito, assegurado das pela lei nº11.108, de 7 de abril de 2005. pela Lei n° 11.108/2005, de ter um acompaSegundo Zanardo; et al (2015) apud Dinhante de sua livre escolha no acolhimento, niz e Chacham (2006) Leal et al.(2014); Paspré-parto, parto e pós-parto imediato. Os plache; etal (2010); Tornquist, (2002): nos privados de saúde são obrigados a cobrir as despesas de um acompanhante por todo o A realidade brasileira é caracterizada por período de internação. Porém, ainda que seja um atendimento com abuso de intervenções assegurado por lei, esse direito, muitas vezes, cirúrgicas, muitas vezes humilhante, em que não é respeitado50. há falta de informação às mulheres e até a negação ao direito ao acompanhante, o que O código de ética médica em seu capíé considerado um desrespeito aos direitos retulo V disciplina a relação entre médicos exisprodutivos e sexuais das mulheres, além de tente não somente com os pacientes, como uma violação dos direitos humanos52. também com os familiares. 47 LIMA, Anne Caroline Amaral de;ALBUQUERQUE,Ricardo Tavares de. A Violência Moral Obstétrica No Processo Gestacional, De Parto E Abortamento E O Amparo Da Mulher No Ordenamento Jurídico Brasileiro. 2019. 48 IBIDEM 49 BARROS DE SOUZA, Amandaetal. Fatores associados à ocorrência de violência obstétrica institucional: uma revisão integrativa da literatura. 2016. 50 IBIDEM 51 REDE parto do princípio. Violência obstétrica “parirás com dor”. 2012. 52 ZANARDO, Gabriela Lemos de Pinho; et al. Violência Obstétrica No Brasil: Uma Revisão Narrativa. 2015.

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Há a lei nº 10.778, de 2003, que dispõe como violência obstétrica, como por exemplo, sobre a violência contra a mulher atendida no projeto lei 7.633/2014. setor público ou privado de saúde: No Estado de São PauTambém há a lei 11.634, de 27 de de- lo, há em tramitação o Projeto lei nº zembro de 2007,que dispõe sobre os direitos 1130/2017, onde traz em seu corpo diretrizes que tipificam as condutas caracterizadas das gestantes assistidas pelo SUS. como violência obstétrica, sendo na seara civil Existem alguns projetos lei em andamen- ou criminal to na Câmara dos Deputados. Por sua vez o Estado de Santa Catarina Sendo o projeto lei nº 7.867/2017, que sancionou uma lei contra a violência obstédispõe sobre as medidas de proteção contra a trica em todo seu estado, sendo esta a lei nº violência obstétrica. 17.097, de 2017. Há também o projeto lei nº 8.219/2017, O Estado do Tocantins também se enque dispõe sobre violência obstétrica pratica- quadra na lista de Estados que sancionaram da por médicos e/ou profissionais de saúde leis contra a violência obstétrica (Lei n. 3.385, contra mulheres em trabalho de parto ou logo de 27 de julho de 2018). após o parto. Além de outros projetos leis, que também disciplinam as condutas enquadradas

5. ASPECTOS SOCIAIS E ÉTICOS O Código de ética médica disciplina entre outras matérias, a responsabilidade dos profissionais, sendo que seu artigo primeiro diz respeito aos danos praticados contra o paciente, dentre outras condutas, por ação de tais profissionais. Capítulo III RESPONSABILIDADE PROFISSIONAL É vedado ao médico:

Art. 1º Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência. Parágrafo único. A responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser presumida.

O Código de Ética traz vedação ao médico que desrespeitar o direito do paciente ou de seus familiares de poderem escolher dentre as práticas diagnosticadas ou terapêutica conforme dispõe artigo 31, e em seu artigo 33 consta as situações emergenciais o médico não pode omitir cuidados. Descreve Rede de Parto do Princípio 53 54

(2012) sobre a humanização no atendimento À saúde: A ênfase na humanização do atendimento à saúde integra uma política positivista, de modo que o termo tem sido empregado há muitas décadas, sob diversas perspectivas. A humanização já foi usada, por exemplo, para justificar procedimentos como a narcose, emprego de instrumentos mecânicos, intervenções bioquímicas e fisiológicas e, por fim, procedimentos cirúrgicos de relativa complexidade e risco53. Um atendimento humanizado é aquele que diz respeito a todo um contexto de realidade e a um posicionamento profissional, em que se compreende a gestante, ouvindo sempre o que ela tem a dizer, valorizando assim: suas dúvidas, medos, anseios, desejos e buscando a melhor maneira de oferecer um atendimento respeitoso e de qualidade para a mesma durante toda a gestação e parto54.

REDE parto do princípio. Violência obstétrica “parirás com dor”. 2012. QUEIROZ, ThaynáCaixeiro;et al. Violência obstétrica e suas perspectivas na relação de gênero. 2017.

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A falta de humanização durante o atendimento às gestantesdurante o processo de parto faz com que a experiência seja em suma, traumática e negativa para elas. Nesse contexto a autonomia deixa de ser respeitada, visto que suas decisões e desejos, na maioria das vezes, são ignorados por meio de práticas que não maximizam os benefícios, de forma a não exercer o consagrado “primum non nocere” (primeiro não prejudicar), e ainda o descaso e a impaciência fazem com que o profissio-

nal de saúde não respeite o pudor, e também deixe de respeitara individualidade de cada paciente, deixando assim de entendersuas dificuldades e limitações. Com isso, o médico tem o dever de prestar a integral assistência à paciente, não deixando de esclarecer suas dúvidas e também a de seus familiares, agindo com o máximo de zelo e melhor da sua capacidade profissional, priorizando o bem-estar da parturiente e a valorização da vida55.

5.1 DIFERENÇA (SOCIAL) QUANTO À REDE PÚBLICA E PRIVADA DE SAÚDE Segundo Zanardo; et al (2015): O descaso e o desrespeito com as gestantes na assistência ao parto, tanto no setor público quanto no setor privado de saúde, têm sido cada vez mais divulgados pela imprensa e pelas redes sociais por meio de relatos de mulheres que se sentiram violentadas. Da mesma forma, esses dados têm sido analisados pela ouvidoria do Ministério da Saúde (2012) que computou que 12,7% das queixas das mulheres versavam sobre o tratamento desrespeitoso, incluindo relatos de terem sido mal atendidas, não serem ouvidas ou atendidas em suas necessidades e terem sofrido agressões verbais e físicas. No mesmo sentido, Venturini e colaboradores (2010), através da pesquisa “A mulher brasileira nos espaços público e privado”, mostraram que 25% das mulheres entrevistadas relataram ter sofrido algum tipo de violência nos serviços de saúde durante a atenção ao parto, tanto públicos quanto privados56. Segundo Santos, Souza (2015) apud Wolff e Waldow (2008): A violência institucional obstétrica é relacionada como uma violência praticada pelas equipes de saúde e consentida por mulheres em trabalho de parto, que se submetem a ela principalmente por desconhecerem o proces-

so fisiológico do parto, por não serem informadas pelos profissionais de saúde sobre as melhores práticas de assistência, por temerem pela vida do bebê e pelo mau atendimento, pela condição de desigualdade entre médico e paciente (o médico é o detentor do conhecimento, da habilidade técnica) ou simplesmente por acreditarem que “é assim mesmo”57. Em um estudo realizado, foi apontado como sendo uma das possíveis causas para a ocorrência da violência obstétrica institucional o ritmo de trabalho alienante dos profissionais de saúde, associado à precariedade de recursos, resultando não só no esgotamento físico e emocional de tais profissionais, mas na dificuldade de refletir sobre sua prática (BARROS DE SOUZA; et al, 2016). Segundo Queiroz; et al (2017), apud Aguiar e D’Oliveira, (2011): A violência institucional – mais precisamente sobre as violências ocorridas em maternidades públicas – tem sido um tema bastante discutido em diversos países. A partir disso, as pesquisas vêm demonstrando que, além das questões econômicas e estruturais, os maus tratos sofridos pelas pacientes também têm sido questões vivenciadas nos serviços públicos, observando-se uma prática discriminatória em relação ao gênero, classe social e raça/

55

PEREIRA, Jéssica Souza; et al. Violência obstétrica: ofensa a dignidade humana. 2016.

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ZANARDO, Gabriela Lemos de Pinho; et al. Violência Obstétrica No Brasil: Uma Revisão Narrativa. 2015. IBIDEM

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etnia58.

gados a essa relação também tem sido visto no consumo abusivo das tecnologias, possiSegundo Mariani e Neto (2016), apud bilitando cada vez mais um afastamento enHIRSCH (2014): tre esses agentes e favorecendo um processo De grosso modo é um dado importante hierárquico da assistência61. no estudo de gênero o fato de que no serviço Sobre a humanização da relação profispúblico brasileiro de saúde as mulheres atensional entre os profissionais e usuários de saúdidas são, em sua grande maioria, proveniende, destaca BARROS DE SOUZA; et al (2016): tes de camadas populares e a relação entre Humanizar a relação profissional de saúpaciente e médico, é no mais uma relação de classe, onde o médico acaba adotando uma de-usuário e os serviços de saúde exige proatitude diferente conforme a classe social da fundas transformações da formação e da valorização de novos saberes; aquisição de uma paciente59. postura mais dialógica da equipe com os usuAinda segundo os mesmos autores: ários; rediscussão do modelo excessivamente Nas relações de poder, pode-se perceber biológico da medicina; e adoção de maior resque, dentro dessa hierarquia, os profissionais ponsabilidade política e ideológica dos gesde saúde assumem bastante espaço, porém, tores. Entretanto, o grande desafio, especialdevido às questões culturais que enfrenta- mente no âmbito do Sistema Único de Saúde mos, o médico se enquadra no topo dessa (SUS), tem sido o fomento dos debates acerca pirâmide e obtém não só uma autoridade em da humanização nos processos de reformulafunção do conhecimento científico e tecno- ção curricular, de modo a permitir a formação lógico, mas também em relação à cultura e à de profissionais com uma visão mais abranmoral, dominando muitas vezes a conduta, os gente do processo de promoção, prevenção e valores e as crenças de cada pessoa. Com isso, assistência à saúde [26]. Além da teoria, a hua dependência dos sujeitos passa a ser verda- manização deve ser praticada na relação entre deira, já que estes compreendem que a não professores e alunos e alunos e instituição de obediência a determinada autoridade gerará ensino, assim, é possível não só garantir a humanização na prática, mas também no decoruma consequência desagradável para si60. rer do ensino62. Segundo Queiroz; et al (2017) apud Leão; et al (2013): Cabe ressaltar que um dos aspectos li-

5.2 A ÉTICA DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE Outra explicação para a ocorrência da Segundo Queiroz; et al (2017) apud Ratviolência contra mulheres no atendimento à neer (2009): saúde está atrelada a precária formação ética Humanização diz respeito a uma aposta do profissional que a atende. Primeiramente, ético-estético-política: ética porque implica a haverá a discussão do assunto a partir do curatitude de usuários, gestores e trabalhadores so de ensino superior de saúde (GIL)63. de saúde comprometidos e corresponsáveis; 58 QUEIROZ, Thayná Caixeiro; et al. Violência obstétrica e suas perspectivas na relação de gênero. 2017. 59 MARIANI, Adriana Cristina; NETO, José Osório Do Nascimento. Violência obstétrica como violência de gênero institucionalizada: breves considerações a partir dos direitos humanos e do respeito às mulheres. 2016. 60 IBIDEM 61 QUEIROZ, Thayná Caixeiro;et al. Violência obstétrica e suas perspectivas na relação de gênero. 2017. 62 IBIDEM 63 GIL, SuelenTavares.Breve análise sobre a violência obstétrica no Brasil.

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estética porque relativa ao processo de produção de saúde e de subjetividades autônomas protagonistas; política porque se refere à organização social das práticas de atenção e gestão na rede do SUS64.

e interdependente, que permitem ofertar uma atenção contínua e integral a determinada população, coordenada pela atenção primária à saúde prestada no tempo e no lugar certos, com o custo e a qualidade certos e de forma humanizada, e com responsabilidades O maior desafio dos profissionais que sanitárias e econômicas por esta população66. atuam na área da saúde, sejam eles médicos ou enfermeiros, é o de prestar uma assistênDurante a gestação e também no tracia adequada com intuito de minimizar o so- balho de parto as mulheres possuem direitos frimento das mulheres/ gestantes vítimas da que devem ser respeitados pelos profissioviolência obstétrica, podendo proporcionar a nais de saúde para que assim possa haver um elas uma vivência distinta durante o trabalho atendimento integral e também de qualidade de parto. Outro ponto relevante é a partici- para essas mulheres durante o período acima pação ativa tanto da mulher quanto de seu citado. O Ministério da Saúde possui polítiacompanhante, favorecendo um suporte físi- cas, que tem a finalidade de garantir os direico e emocional com uso de técnicas para alí- tos sexuais, de cidadania e reprodutivos das vio da dor e garantindo também um protago- mulheres, para que assimelas conheçam seus nismo durante toda essa vivência, respeitando direitos e assim possam exigi-los e também se suas escolhas e posicionamentos65. prevenirem de abusos e desrespeito contra a sua dignidade67. O atendimento à mulher deve ser determinado por uma rede de atenção de serviços à saúde, compostas por organizações poliárquicas de conjuntos de serviços de saúde em que todos os pontos de atenção à saúde são igualmente importantes e se relacionam horizontalmente; implica em um continuum de atenção nos níveis primário, secundário e terciário; são vinculados entre si por uma missão única, objetivos comuns e por uma ação cooperativa

6. A RELAÇÃO ENTRE O TIPO DE PARTO COM A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA A violência obstétrica ocorre, dentre outras formas, quando as gestantes sofrem intervenções que em sua grande maioria não são desejadas e nem consentidas por elas, durante o trabalho de parto.

rea. A mulher perde autonomia nas decisões sobre seu parto e submete-se a orientações que não compreende totalmente, o que faz que profissionais esqueçam que é a mulher quem está com dor e que vai parir (Ministério da Saúde, 2001). O parto, então, tornou-se Segundo Zanardo; et al (2015) apud amedrontador para as mulheres e asséptico Aguiar (2010): para os profissionais de saúde. Dessa forma, A violência obstétrica também se rela- a mulher pode se tornar um objeto de maniciona com a escolha das mulheres pela cesá- pulações sem consentimento ou sem a infor64 65 66

QUEIROZ, ThaynáCaixeiro;et al. Violência obstétrica e suas perspectivas na relação de gênero. 2017. IBIDEM RODRIGUES, Diego Pereira; et al. A peregrinação no período reprodutivo: uma violência no campo obstétrico. 2015.

67 PEREIRA, Jéssica Souza; et al. Violência obstétrica: ofensa a dignidade humana. 2016.

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mação suficiente sobre os processos a serem acontece nas maternidades brasileiras é o uso realizados68. indiscriminado dessa técnica, na maioria das vezes realizadas sem o consentimento da parPodem ser questionados os motivos peturiente, que tem seu órgão genital mutilado los quais um médico ou qualquer outro proe enfrenta sequelas físicas e psicológicas por fissional de saúde praticam atos de violência, muitos anos, ou permanentemente. Por vezes, porém não é negável quearealização de váa sutura da episiotomia é feita com o “ponto rios partos cesáreas, por exemplo, é finando marido”, que deixa o canal vaginal mais esceiramente mais interessante do que realizar treito para aumentar o prazer do parceiro dupartos normais. Muitas vezes são atitudes de rante as relações sexuais – justificativa dada profissionais da rede privada de saúde, que por alguns médicos –, enquanto a mulher tem realizam esse procedimento sem o consentisua vida sexual prejudicada, além da saúde70 mento da gestante e sem esta apresentar uma gestação com risco, o que tornaria o partoceAinda segundo Zanardo; et al(2015), sárea viável. apud Diniz &Chacham (2006): Segundo Zanardo; et al (2015), apud MiCom o intuito de aumentar a qualidade nistério da Saúde (2015). da assistência, tem-se medicalizado o parto, utilizando em larga escala procedimentos O crescente número de cesáreas no Braconsiderados inadequados e desnecessários, sil indica a relevância da atual discussão a resque muitas vezes podem colocar em risco a peito do tema, principalmente da ocorrência saúde e a vida da mãe e do bebê, sem avaliade cirurgias cesáreas desnecessárias. São conção adequada da sua segurança e sem base sideradas desnecessárias aquelas operações em evidências71. que ocorrem quando não há situação que coloque em risco a saúde da gestante ou do bebê Sobre a escolha das mulheres ao tipo de e, portanto, exigiriam intervenção através de parto, destaca o mesmo autor: procedimento. Sem a indicação correta, a reA mudança mais recente nessa direção alização da cirurgia pode levar ao aumento do foi a aprovação da Resolução n. 2.144/2016 risco de complicações graves para a díade69. do Conselho Federal de Medicina – CFM, que As intervenções realizadas durante o par- resolve que cesariana a pedido da gestante, to são em sua grande maioria dolorosas, o que nas situações de risco habitual, somente poocasiona para as mulheres o medo do parto derá ser realizada a partir da 39ª semana de vaginal, além de haver pensamentos de que gestação, visando a garantir a segurança do seu trabalho de parto não terá um resultado feto. A medida assegura o direito da mulher positivo. Pode-se citar, que dentre os efeitos de optar pela cesariana, garantindo sua autoindesejados das intervenções podem gerar nomia, desde que a gestante tenha recebido novas cesáreas e episiotomias desnecessárias. todas as informações referentes ao parto vaginal e à cesariana, incluindo seus benefícios e Segundo Gil apud Kondo; Werner, p. 142: riscos. Segundo o CFM (2016), dentre os moO parto natural ou vaginal, por outro tivos para implementação dessa medida estão lado, também é desumanizado. Muitas vezes, o reconhecimento do direito cidadão da muos obstetras fazem uso do fórceps, da mano- lher e sua autonomia ao decidir, juntamente bra de Kristeller e da episiotomia. A necessi- ao médico, pelas opções de tratamento, assim dade desta técnica é discutida há anos e já foi como a reafirmação da necessidade de esclacondenada, quando não apresentada indica- recer e proteger a população, informando o ção precisa, pelo Ministério da Saúde através paciente com base na melhor evidência cienda Portaria nº 1.067 de 2005. Porém, o que tífica, nesse caso desmistificando temores 68 69 70 71

ZANARDO, Gabriela Lemos de Pinho; et al. Violência Obstétrica No Brasil: Uma Revisão Narrativa. 2015. IBIDEM GIL, SuelenTavares.Breve análise sobre a violência obstétrica no Brasil. ZANARDO, Gabriela Lemos de Pinho; et al. Violência Obstétrica No Brasil: Uma Revisão Narrativa. 2015.

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em relação ao parto e assegurando o direito da mulher de escolher a via de parto, sendo necessária concordância entre o médico e a gestante, a explicitação do desejo da mesma e a assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pela dupla, onde constem as informações anteriormente prestadas pelo médico, assim como as vantagens e desvantagens potenciais da operação72.

tais até o pósparto. Questões como o acesso à saúde, a qualidade da assistência e a participação da mulher no processo de cuidado, considerando as informações repassadas às gestantes e seu consentimento (sobre a sua situação de saúde, as condutas e procedimentos com seus ganhos e riscos e ao seu direito de escolha frente a isto) e a garantia do direito de ter um acompanhante nesse processo devem ser foco de uma política de humanização Segundo Zanardo, et al (2015) apud Mido atendimento73. nistério da Saúde (2008, 2014; Portaria n. 1.459/2011). Considerando a prevalência de partos hospitalares e o aumento do número de cesáreas registradas no Brasil, assim como o atual cenário de práticas e intervenções descrito, verifica-se a importância de analisar a assistência à gestação e ao parto, compreendendo todo o período, desde as consultas pré-na-

7. CONCLUSÃO A violência obstétrica se constitui, portanto, como uma violação ao corpo da mulher, podendo ocorrer durante a gestação (no atendimento ao pré natal), durante o processo de parto ou em situações de abortamento. Esta se caracteriza por práticas abusivas e desrespeitosas contra mulheres.A violência obstétrica pode ser considerada uma violência de gênero, uma vez que ocorreapenas mulheres, gestantes, durante o parto, ou no atendimento em situações de abortamento, que são vítimas de tal violência. Contudo podemos concluir que há três formas distintas de violência obstétrica, sendo, violência obstétrica física, violência obstétrica psíquica ou violência obstétrica sexual. Tendo como exemplo, xingamentos, agressões físicas, torturas psicológicas, comentários abusivos e também discriminação racial, como forma frequente de atos de violência obstétrica cometidos por profissionais de saúde contra as vítimas. 72 73

Tal violência também se correlaciona com a violência sexual, uma vez que se constitui como uma grave violação à autonomia das mulheres, também aos seus direitos humanos e aos seus direitos sexuais e reprodutivos. A violência obstétrica, também é entendida como um tipo de violência de gênero vez que ocorre com mulheres, em situações específicas, quer seja a gravidez, no parto e puerpério (logo após o parto) e também atendimento em situações de abortamento. Há também a violência institucional obstétrica que esta relacionada como uma violência praticada pelas equipes de saúde. Os direitos fundamentais estão, portanto estabelecidos na Constituição Federal, e devem ser assegurados e protegidos pelo Estado. As garantias fundamentais são uma forma ou um remédio constitucional que visam garantir tais direitos para que sejam colocados em prática.

IBIDEM ZANARDO, Gabriela Lemos de Pinho; et al. Violência Obstétrica No Brasil: Uma Revisão Narrativa. 2015.

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Portanto, a violência obstétrica ocorre quando as gestantes sofrem intervenções que em sua grande maioria não são desejadas e nem consentidas por elas. As intervenções utilizadas durante o parto são em sua grande maioria dolorosas, o que ocasionando as mulheres o medo do parto vaginal, além de haver o pensamento de que o trabalho de parto não terá resultado positivo. Dentre os efeitos indesejados das intervenções podem gerar novas cesáreas e episiotomias desnecessárias.

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PROTEÇÃO ÀS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL ATRAVÉS DA LEI DO MINUTO SEGUINTE Izabela Aquino Santos Gregório Graduada em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE), concluído em 2019. Aprovada na OAB/SP XXIX. Qualificada em serviços bancários e administrativos. Estágio de direito no Instituto Nacional do Seguro Social de 2015 a 2016. Estágio de direito no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no Departamento Estadual de Execuções Criminais de 2018 a 2019.

Tainá Corrêa Belizario Ferreira Graduada em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE), concluído em 2019. Aprovada na OAB/SP XXIX. Técnica em informática pelo Colégio Técnico Industrial (CTI) concluído em 2016. Estagio de informática na empresa Pack Forte Comércio de Embalagens de 2016 a 2017. Estagio de direito no Ministério Público Estadual de 2017 a 2019. Estágio de direito no Ministério Público Federal de 2019 a 2020.

SUMÁRIO Resumo Abstract 1. Introdução 2. Violência Sexual 3. Lei 12.845/13 4. Maria Da Penha 4.1 Órgãos De Proteção 4.2 Medidas De Proteção 5. Considerações Finais Referências

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RESUMO Os aspectos abordados neste artigo procuram esclarecer o direito das mulheres em situação de violência sexual ao atendimento obrigatório, integral e emergencial em hospitais; com foco na chamada Lei do Minuto Seguinte (Lei nº 12.845/2013) que trouxe algumas inovações ao ordenamento jurídico ao tratar da importância do atendimento emergencial para tratamento das vítimas de violência sexual. Ademais, também são tratados outros direitos inerentes às vítimas de violência sexual, como os previstos na Lei Maria da Penha. E ainda, dos meios e órgãos de proteção dos direitos da vítima, criados para atendê-la em todas as suas particularidades que lhe são essenciais, especialmente nos casos de violência sexual.

PALAVRAS-CHAVE Mulher. Violência. Proteção.

ABSTRACT The aspects addressed in this article seek to clarify the right of women in situations of sexual violence to mandatory, comprehensive and emergency care in hospitals; focusing on the so-called Next Minute Law (Law 12.845 / 2013) that brought some innovations to the legal system when dealing with the importance of emergency care for the treatment of victims of sexual violence. In addition, other rights inherent to victims of sexual violence are also dealt with, such as those provided for in the Maria da Penha Law. And yet, of the means and organs for the protection of the victim’s rights, created to assist her in all her particularities that are essential to her, especially in cases of sexual violence.

KEYWORDS Woman. Violence. Protection.

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1. INTRODUÇÃO Infelizmente, a cada minuto uma pessoa é vítima de agressão sexual no Brasil1. Essa realidade só confirma a necessidade de uma preocupação e proteção especial com essas vítimas que muitas vezes sofrem uma revitimização em consequência da burocratização para que o atendimento hospitalar seja realizado. Para garantia de um atendimento digno, foi criada a Lei 12.845/13, que não era muito conhecida até que foi realizada uma campanha pelo Ministério Público Federal em diversos estados, inclusive em São Paulo em parceria com a Associação Brasileira de Agências de Publicidade para veiculação e divulgação da lei nos meios de comunicação.

médico, psicológico e social, a administração de medicamentos contra gravidez e doenças sexualmente transmissíveis, a coleta de material para a realização do exame de HIV, a facilitação do registro da ocorrência e o fornecimento de orientações sobre seus direitos legais e os serviços sanitários. A conscientização acerca dos direitos assegurados faz com que a vítima saiba como agir, bem como busca assegurar um procedimento humanitário e eficaz nos centros de tratamento, evitando traumas e assegurando a aplicação de todos os medicamentos necessários.

As garantias que a Lei 12.845/13 trouxe não se limitam ao diagnóstico e ao tratamento emergencial de lesões causadas pelo agressor. As vítimas devem ter acesso a um atendimento completo que inclui o amparo

2. VIOLÊNCIA SEXUAL A violência pode ser conceituada como atividade sexual não consentida. ato praticado por uma ou várias pessoas que A violência sexual é fenômeno universal utiliza a força física ou o poder para ignorar, que atinge indistintamente mulheres de todas ofender, humilhar, oprimir, explorar, ferir e até as classes sociais, etnias, religiões e culturas. mesmo matar2. Ocorre em populações de diferentes níveis A violência sexual é definida pela OMS de desenvolvimento econômico e social, em como “todo ato sexual, tentativa de consumar espaços públicos ou privados, e em qualquer um ato sexual ou insinuações sexuais indese- etapa da vida da mulher3. jadas; ou ações para comercializar ou usar de A forma mais comum de atos de assédio qualquer outro modo a sexualidade de uma ou violência em espaços privados, infelizmenpessoa por meio da coerção por outra pessoa, te, ocorre dentro de casa, local onde a vítima independentemente da relação desta com a deveria sentir-se protegida, e o incesto (viovítima, em qualquer âmbito, incluindo o lar e o lência entre parentes) é uma das manifestalocal de trabalho”. ções mais perversas deste tipo de violência, A Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013, em especial quando praticado contra grupos considera violência sexual qualquer forma de extremamente vulneráveis (crianças, adoles1 https://www.osul.com.br/a-cada-minuto-uma-pessoa-sofre-abuso-sexual-no-brasil/ 2 ALBERTON, 2005. 3 Prof. Dr. Jefferson Drezett - texto adaptado de: “PROFILAXIA PÓS-INFECCIOSA DE MULHERES ESTUPRADAS” - apresentado para a IV Conferência Internacional sobre Infecção pelo HIV em Mulheres e Crianças – Rio de Janeiro, abril de 2002. - Medidas e Intervenções para Tratar do Problema - http://www.ipas.org.br/violencia_antes.html

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centes, idosos, pessoas com deficiência) e, mais importante para caracterizar esse crime ainda, quando acompanhado de gravidez pre- é a ausência de consentimento da vítima. Porcoce. tanto, forçar a vítima a praticar atos sexuais, mesmo que sem penetração, é estupro. É importante lembrar que o crime de estupro, nos termos do Código Penal, é qualquer conduta, com emprego de violência ou grave ameaça, que atente contra a dignidade e a liberdade sexual de alguém. O elemento

3. LEI 12.845/13 A Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013, também chamada de Lei do Minuto Seguinte possui apenas quatro artigos, mas que são de suma importância.

virais e não virais devem ser administrados. Assim, a garantia que traz a Lei do Minuto Seguinte ao garantir o atendimento independente do registo de boletim de ocorrência é questão de saúde, de assegurar a aplicação Vigente há sete anos, a Lei garante que dos remédios, bem como dos tratamentos psio atendimento das vítimas de violência sexucológicos. al deverá ser realizado sem a necessidade de boletim de ocorrência ou qualquer outro reEm entrevista para a UOL, Sheylli Caleffi5, gistro da violência sofrida, bastando a palavra coordenadora do grupo de apoio “As Incríveis da vítima. Mulher que vão Morrer Duas Vezes” explica que “o atendimento em delegacias é chamado O objetivo de garantir o atendimento nepor muitas vítimas de “segundo estupro”. Isso cessário à vítima sem a exigência de boletim ocorre porque, muitas vezes, as vítimas pasde ocorrência ocorre para evitar que a vítisam por situações machistas ao ir até a delema passe por situações constrangedoras que, gacia primeiro, pois, na maioria das vezes, são muitas vezes, torna o momento mais difícil de submetidas as perguntas que as levam a penser superado. É por esse motivo que a palavra sar que são culpadas ou que, até mesmo, não da vítima deve ser suficiente. houve estupro e quando acreditam, as fazem Nesse escopo, não basta apenas o aten- provar a prática do estuprador. dimento, mas sim a rapidez e a humanização, Por isso, a Lei do Minuto Seguinte estipois a vítima já passou por um momento traumula que a vítima vá primeiro ao hospital, pois mático e merece um serviço empático e de ela deve priorizar a sua própria saúde. qualidade. O atendimento em 72h é crucial. Existe A legislação assegura assistência emerum protocolo medicamentoso contra doengencial gratuita 24 (vinte e quatro) horas por ças e gravidez e ele deve estar disponível em dia, devendo ser o atendimento imediato e todas as redes do SUS. Isso para evitar que a emergencial. tragédia seja agravada no futuro com uma doA primeira coisa que a vítima deve fazer ença. Isso também dá apoio para a vítima que é procurar o atendimento de saúde, explica a optar por um aborto legal, um direito garanadvogada Ana Lúcia Dskeunecke4. Isso ocor- tido à gestante em caso de estupro, em caso re porque as 72 (setenta e duas) horas após a de risco de vida e anencefalia fetal. Garantir violência são decisivas. É nesse período que o direito do atendimento imediato também os remédios necessários para combater ISTs gera um impacto orçamentário no SUS. É muito mais barato para o Estado e também muito 4 Jus Mulier, 2018 5 https://www.uol.com.br/universa/reportagens-especiais/lei-do-minuto-seguinte/#tematico-2

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menos traumático para a vítima.6 O BO não prova nada, é apenas uma notícia do fato. Não se pode confundir assistência médica com inquérito policial. “Ninguém pede para uma pessoa que foi quase assassinada uma prova de que sofreu tentativa de homicídio. ”José Henrique Torres, juiz de Direito, titular da 1ª Vara do Júri de Campinas/SP7.

taria Política Mulheres, Ministério da Saúde e Justiça) estabelece orientações para a organização e integração do atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança pública e pelos profissionais de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto à humanização do atendimento e ao registro de informações e coleta de vestígios8.

As disposições relativas à prevenção e ao combate à violência sexual são complementadas por outras normas, como, por exemplo, a Lei nº 13.431/2017, que instituiu o “Sistema de Garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência”, demandando a elaboração e implementação de uma política pública específica com tal finalidade. A lei estabelece medidas de assistência e proteção à criança e ao adolescente em situação de violência e cria mecanismos para prevenir e coibir a violência. E a Portaria Interministerial nº 288, 25/03/2015 (Secre-

4. MARIA DA PENHA Conforme a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), configura-se como violência doméstica contra a mulher “[...] qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.”9. Desta forma, a Lei Maria da Penha refere-se apenas à violência baseada no gênero.

coibir a violência no âmbito de suas relações”.

A violência cometida contra a mulher é dada pelas relações de poder e dominação e nas relações de gênero que evidenciam a hierarquia e as desigualdades sexuais. É neste quadro que acontece a violência de gênero, afetando principalmente a mulher, independente de sua classe social, raça, religião, etnia, Sancionada em sete de agosto do ano de grau de escolaridade ou idade. 2006, com o fim de atender milhares de muSão inúmeras as formas de violência colheres que sofrem algum tipo de violência, a metidas contra as mulheres, seja ela física, psiLei nº 11.340, denominada Lei Maria da Pecológica, moral, patrimonial e a sexual. nha, “cria mecanismos para coibir [...] prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher”. Segundo o disposto no Art. 7º da Lei nº 11.340/2006: Esta lei foi criada com respaldo no artigo 226, parágrafo 8º da Constituição Federal A violência sexual, entendida como qualde 1988, que dispõe que “o Estado assegurará quer conduta que a constranja a presenciar, a a assistência à família na pessoa de cada um manter ou a participar de relação sexual não dos que a integram, criando mecanismos para desejada, mediante intimidação, ameaça, co6 https://www.uol.com.br/universa/reportagens-especiais/lei-do-minuto-seguinte/#tematico-2 7 https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/violencias/violencia-sexual/ 8 http://www.leidominutoseguinte.mpf.mp.br/ 9 Lei nº 11.340, 2006, art.5º.

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ação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.

de coagir ou intimidar a vítima, também pratica outros tipos de violência e é assim que surge a importância de um atendimento imediato, emergencial e integral, para que a revitimização e constrangimento posterior da vítima sejam evitados.

A violência sexual não ocorre de forma isolada, o agressor, muitas vezes na tentativa

4.1 ÓRGÃOS DE PROTEÇÃO Os órgãos de proteção de mulheres que são vítimas de violência são as Delegacias especializadas no atendimento policial especializado para mulheres, que desenvolvem atividades de acolhimento à população feminina vítima de violência, e atividades de educação, prevenção, investigação e repressão dos delitos praticados contra a mulher.

e assessoria jurídica. Assim, é garantido a assistência às vítimas em qualquer hospital do Sistema Único de Saúde (SUS), público ou conveniado. É importante salientar que a Lei do Minuto Seguinte também obriga os planos médicos a cobrir os procedimentos necessários em instituições privadas.

Ainda, os centros de referência de atenJá se a vítima for criança ou adolescente, dimento às vítimas de violência sexual, que o hospital é obrigado a apresentar a denúncia são compostos por equipes multidisciplinaao Conselho Tutelar e à Vara da Infância. res, contando com médicos de especialidades próprias para esse atendimento, enfermeiros, farmacêuticos, psicólogos, assistentes sociais

4.2 MEDIDAS DE PROTEÇÃO Uma das formas de coibir a violência e proteger a vítima assegurada pela norma é a garantia das chamadas medidas protetivas. Para as mulheres que sentem-se seguras para denunciar a violência sofrida são oferecidas medidas protetivas, enquanto que, para o agressor, existem medidas punitivas. As medidas para auxiliar e amparar a vítima de violência estão reguladas no art. 23 e 24 da Lei Maria da Penha, como a recondução da ofendida e de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor. Já as medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor estão previstas no artigo 22 da referida lei, como por exemplo, a proibição de contato com a ofendida, seus familiares e

testemunhas por meio de qualquer meio de comunicação. A medida cautelar de afastamento do agressor do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida, visa impedir ou dificultar que as agressões sejam perpetradas ou reiteradas no lar conjugal, bem como afastar as pressões e ameaças contra a vítima e seus dependentes ou familiares. Manter o suposto agressor sob o mesmo teto que a vítima, é uma forma de submeter à mulher a uma constante pressão psicológica e até ao desconforto moral, porque ela corre o risco de ser agredida a qualquer momento, principalmente por ter chegado ao conhecimento do poder público a agressão praticada contra ela. O afastamento

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do lar possibilita que a vítima e os demais familiares se sintam, pelo menos aparentemente, seguros. A saúde física e psicológica é preservada, porque inexistirá o risco iminente de agressão, uma vez que o agressor não estará dentro de casa. O patrimônio da vítima será preservado, já que os objetos do lar não poderão ser destruídos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A violência é um problema que atinge todas as camadas da sociedade, ocorre em todos os lugares, dentro e fora de casa. Assim, é importante que todos tenham consciência dos poderes e dos deveres que possuem ao presenciarem ou tomarem conhecimento de qualquer forma de violência. É fato que atualmente as mulheres sofrem com as diferenças que a sociedade trata seus direitos. Infelizmente, isso decorre de uma questão antiga e cultural, pois todos os direitos e conquistas para as mulheres foram a base e através de lutas e batalhas. Em virtude da diferença de tratamento para com as mulheres seus direitos merecem atenção, pois muitas não os conhecem e por isso deixam de exigi-los. Por essa razão a Lei do Minuto Seguinte se faz tão importante. Ainda, de extrema importância é a conscientização acerca dos direitos e garantias tratados pela lei. A luta é de todas as mulheres. É um dever das mulheres se apoiarem e lutarem ainda mais para garantir a aplicação correta dos direitos conquistados. Devemos ser vozes umas das outras, por isso sempre a voz da mulher deve ser suficiente e a Lei do Minuto Seguinte deve ser rigorosamente aplicada, ensejando o devido tratamento legal para as vítimas de violência sexual de forma imediata e segura.

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REFERÊNCIAS ALBERTON, Mariza Silveira. Violação da infância crimes abomináveis: humilham, machucam, torturam e matam. Porto Alegre: Age, 2005. Disponível em: <https://books.google.com. br/books?id=aumqMgVOP6QC&pg=PA105&dq=viol%C3%AAncia+contra+crian%C3%A7as+e+adolescentes&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwiW49uVxIjcAhUHF5AKHVTMAKwQ6AEITTAI#v=onepage&q=viol%C3%AAncia%20contra%20crian%C3%A7as%20e%20adolescentes&f=false>. Acesso em: 05 fev. 2020. MPF. Lei do minuto seguinte. Ministério Público Federal. Disponível em: <http://www.leidominutoseguinte.mpf.mp.br/>. Acesso em: 05 fev. 2020. ANTUNES, Leda; MARTINELLI, Andréa. O que é a ‘Lei do Minuto Seguinte’ e como ela protege vítimas de violência sexual. Compromisso e atitude. 2018. Disponível em: < http://www. compromissoeatitude.org.br/o-que-e-lei-do-minuto-seguinte-e-como-ela-protege-vitimas-de-violencia-sexual/>. Acesso em: 05 fev. 2020. Fim da violência contra mulheres. ONU Mulheres Brasil. Disponível em: <http://www.onumulheres.org.br/areas-tematicas/fim-da-violencia-contra-as-mulheres/>. Acesso em: 05 fev. 2020. Lei completa 5 anos, mas atendimento no SUS à vítimas de estupro ainda enfrenta problemas. JusMulier. 2018. Disponível em: < https://www.jusmulier.com.br/lei-completa-5-anos-mas-atendimento-no-sus-a-vitimas-de-estupro-ainda-enfrenta-problemas/>. Acesso em: 05 fev. 2020. Violência sexual. Dossiê Violência contra as mulheres. Disponível em: <https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/violencias/violencia-sexual/>. Acesso em 06 fev. 2020. DUARTE, Elisa. Basta a palavra da mulher. UOL. 2018. Disponível em: <https://www.uol.com. br/universa/reportagens-especiais/lei-do-minuto-seguinte/#tematico-2>. Acesso em 09 fev. 2020.

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O DIREITO SOCIAL AO TRABALHO DAS MULHERES NA SOCIEDADE PÓS-MODERNA: DESIGUALDADE E DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO BRASIL Letícia Vieira Mattos Graduada em Direito- UEL; Pós Graduada em Direito do Trabalho e Previdenciário- UNIVEM; Presidente da Comissão da Jovem Advocacia da Subseção de Marília-SP; Vice-presidente da Comissão de Direito Previdenciário da Subseção de Marília-SP; Advogada da Associação de Agentes Penitenciários de Marília-SP;

SUMÁRIO Introdução 1. Desenvolvimento 1.1 O Direito Social ao Trabalho como Direito Fundamental; 1.2 Análise do Princípio da Igualdade e o Gênero na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 1.3 Os Direitos Trabalhistas das Mulheres no Ordenamento Jurídico Brasileiro. 1.4 Reflexões Acerca Da Desigualdade e da Discriminação do Gênero Feminino-Julgados Sobre o Tema Conclusão Referências

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RESUMO A efetivação da garantia ao direito fundamental ao trabalho, conforme consagrado no texto constitucional brasileiro de 1988, representa um importante mecanismo para a garantia dos demais direitos fundamentais. Em relação às questões de gênero, a isonomia assegurada pelo mesmo diploma garante que as mulheres tenham as mesmas condições de ingresso e permanência no mercado de trabalho que os homens. A partir da sua inserção no mercado laboral, vislumbra-se a possibilidade de ampliação da sua participação no espaço público, porque, após romper com as fronteiras do espaço privado e doméstico, passa a atuar como protagonista dos processos de produção, bem como da vida pública. A presente pesquisa em por escopo tecer ponderações acerca da inserção da mulher no mercado de trabalho com a ampliação da sua participação social no espaço público. Para uma melhor compreensão do tema, o trabalho aborda uma retrospectiva do papel da mulher no âmbito privado para, em seguida, apresentar de que forma ocorreu a sua inserção no mercado de trabalho, trazendo o direito ao trabalho como direito fundamental e a igualdade de gênero na Constituição Federal . Por derradeiro, traz um estudo dos principais direitos das mulheres na lei brasileira e reflete acerca da discriminação e desigualdade de gênero com exemplos práticos recebidos pelos tribunais pátrios. Para realização do presente, emprega-se o método de abordagem dedutivo e o método de procedimento analítico, com técnica de pesquisa bibliográfica e documental.

PALAVRA CHAVE

Gênero. Feminino. Trabalho. Mulher

ABSTRACT The implementation of the guarantee of the fundamental right to work, as enshrined in the Brazilian constitutional text of 1988, represents an important mechanism for the guarantee of other fundamental rights. In relation to the questions of gender, the isonomy assured by the same diploma assures that the women have the same conditions of entrance and permanence in the labour market as the men. From their insertion in the labour market, we can see the possibility of expanding their participation in the public space because, after breaking with the boundaries of the private and domestic space, they start to act as protagonists of production processes as well as of public life. The present research by scope weaves reflections about the insertion of women in the labour market with the enlargement of their social participation in the public space. For a better understanding of the subject, the work approaches a retrospective of the woman’s role in the private sphere to then present how her insertion in the labour market occurred, bringing the right to work as a fundamental right and the equality and gender in the Federal Constitution. Finally, it brings a study about women rigths in brazilian law e reflection about the discrimination and inequality of gender with practical examples of the country courts. In order to accomplish the present, the method of deductive approach and the method of analytical procedure is used, with bibliographic and documentary research technique.

KEYWORD

Gender. Female. Work. Woman

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1. INTRODUÇÃO Em que pese a Carta Magna de 1988 preconize o direito social ao trabalho sem qualquer distinção de gênero, trazendo como grandes pilares o Estado Democrático de Direito e Estado Social, na sociedade pós-moderna o cenário se apresenta bem desafiador, com uma realidade diferente, evidenciando uma “ilusão constitucional” perpetuada até os dias atuais, caracterizada por uma desigualdade e sexismo substanciais que é ainda muito latente nas relações laborais.

pensamento dominante acerca do direito social das mulheres ao trabalho no Brasil, ou seja, trata-se de uma cultura jurídica positivista, de inspiração patriarcal e neoliberal que autoriza o discurso da igualdade formal mas não a projeção singular feminina para além da esfera privada, restando claro uma era de inefetividade.

Ante a complexidade e importância da temática de gênero nas relações laborais, mister se faz trazer à baila as origens de tal situação enfrentada há tempos cotidianamente pelas mulheres, buscando-se por meio de dados históricos O direito fundamental ao trabalho e sua onde esta opressão no trabalho à figura feminina efetivação pelas mulheres se depara com um se originou.

enorme hiato nas relações de trabalho da pós-modernidade, podendo ser aferido na prática por situações atinentes ao assédio moral e sexual, direito à maternidade, revista íntima, plano de carreira e de salário, sexualidade, dentre outros, inserindo as mulheres em uma situação depreciativa não apenas vinculada ao quesito direito social ao trabalho, mas sobretudo à dignidade humana, que resta diretamente afetada quando as mulheres se vêem submetidas a certas situações.

Historicamente o papel da mulher sempre fora moldado através da associação à maternidade e ao casamento em espaços públicos, em locais onde havia representação do Estado com a sociedade, sendo representados de maneira majoritária por homens, restringindo a atuação e papel da mulher em relação aos direitos sociais na sociedade.

Em Roma as mulheres desempenhavam atividades diversas: “Os registros mais antigos, como, por exemplo as inscrições tumulares, falam de lavadeiras, bibliotecárias e médicas, parAnte tal celeuma, não remanescem dúviteiras, costureiras, cabeleireiras por todo o mundas de que a efetivação do direito social das do romano” 1.

mulheres ao trabalho necessita da aplicação do princípio da igualdade para além da mera positivação no texto constitucional, tendo por escopo, coibir desigualdades e discriminações injustas, bem como trazer uma contribuição essencial para o reconhecimento das diferenças em franca oposição a concepções igualitárias massificadoras.

Avançando mais a frente na história, nota-se que, enquanto a figura masculina é exaltada, em períodos como os de grandes guerras, descobertas de novos mundos, migrações com finalidades de povoar tais novos mundos, mulheres, ao exemplo de Joana D’Arc, são condenadas a fogueira apenas pelo fato de usar trajes masculinos, ou apenas sendo compreendidas como irreDesta feita, refletir acerca da questão da levantes para a história. desigualdade de tratamento em relação aos As mulheres não se queixavam do excesso gêneros, passa pela tensão que sempre exis- de trabalho, sendo que este era excessivo tendo tiu entre o texto constitucional proposto e o em vista a má distribuição de tarefas. Em nenhum sentido que alcança a sua aplicação em situa- momento era levado em consideração as duplas ções concretas. Isso coloca o Direito diante de jornadas para as mulheres, onde exerciam seus vários caminhos e posturas a serem tomadas, papeis de mães, esposas e donas de casa, o que todas ligadas, no entanto, às condições de implicava em desproporcionalidade em diversos âmbitos: emocional, educativo, médico, doméstiacesso da mulher ao trabalho. co, social e sexual. É precisamente a conjugação da Com o passar dos anos e a tradição judeudesigualdade com a discriminação que define o 1

MILES, Rosalind. A história do mundo pela mulher. Rio de Janeiro: Casa / LTC Livros Técnicos e Científicos, 1989.p 176

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-cristã trouxe a cultura de trancar as mulheres em casa e controlar rigidamente qualquer possibilidade de acesso das mesmas à vida pública 2 . As mulheres passaram a exercer grande parte de suas atividades no ramo doméstico, tendo em vista o patriarcalismo, que se fundamentava nas relações sociais de reprodução, organizadas na família e que designam à mulher o trabalho reprodutivo.

odo colonial a prática de casamentos arranjados era comum, não tendo a mulher direito à escolha. Nos anos de mil e oitocentos, além da abolição da escravatura e o advento da República do Brasil, também se passou a ter mais liberdade, a “escolha” de seu companheiro iniciou a advir do amor.

Nessa época também, como traz a autora, a mulher tem dois “deveres” principais: o primeiro A partir da primeira Revolução Industrial, ser uma mãe dedicada, preocupada com a eduprincipalmente na Europa, temos a introdução da cação de seus filhos, sem mais recorrer às amas mão-de-obra feminina, o que passou a trazer so- de leite e, o segundo, ligado a ser uma esposa brecarga para mulheres. que respeitasse seu marido e que fosse submissa a esse. Em decorrência desta sobrecarga e desigualdade exacerbadas, este período ficou Tais premissas, são necessárias para aponmarcado por manifestações oriundas de movi- tar que, em um primeiro momento, é possível vementos operários do final do século XIX e início rificar que as mulheres passaram por diversas do século XX, nas quais milhares de operárias “fases de trabalho”, encerrando tal explanação entraram em greve em prol de melhores condi- com a confinação do gênero no espaço privado, ções de trabalho, bem como em prol do reco- principalmente a fim de exercerem tarefas donhecimento de sua igualdade material com os mésticas, em seus lares, criando e educando os homens e a busca pelo voto universal, tendo filhos para que estes estejam aptos para o mersurgido inclusive neste período a instituição do cado de trabalho, claro, filhos homens, enquanto dia 8 de março, data comemorativa do Dia Inter- as mulheres eram educadas para, futuramente, nacional das Mulheres. servirem a seus maridos e cuidarem do lar. Analisando a sociedade brasileira, tem-se que, conforme preconizado por Scott 3, no perí-

1.1 O DIREITO SOCIAL AO TRABALHO COMO DIREITO FUNDAMENTAL O direito fundamental social ao trabalho, na teoria jurídica, emana do direito constitucional, inserido na seara dos direitos sociais, e se apresenta com um discurso jurídico consistente mas que, no entanto, revela sua insuficiência pelo que silencia. Ao mesmo tempo em que é um importante direito positivado, é um dos menos efetivados, em especial no que se refere às mulheres. Contudo, as diferentes associações feitas à abrangência do direito social ao trabalho certamente que se vinculam ao princípio da dignidade da pessoa humana, à realização pessoal e, consequentemente, à sobrevivência. O ato de trabalhar é um dos recursos que

favorece o desenvolvimento humano, bem como o seu potencial de superação. Corrobora neste sentido o sociólogo ANTUNES ao afirmar que [...] o trabalho tem a possibilidade de favorecer ao homem o seu desenvolvimento como ser criativo e de desenvolver a sua potência. [...] Pelo trabalho, o ser social produz-se a si mesmo como gênero humano; pelo processo de auto-atividade e autocontrole o ser social salta da sua origem natural baseada nos instintos para uma produção e reprodução de si como gênero humano, dotado de autocontrole consciente, caminho imprescin-

2 MILES, Rosalind. A história do mundo pela mulher. Rio de Janeiro: Casa / LTC Livros Técnicos e Científicos, 1989. P.182 3 SCOTT, Ana Silvia. O caleidoscópio dos arranjos familiares. In: PINSKY, C. B.; PEDRO, J. M. (Orgs). Nova história das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2013, p. 15-42.

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dível para a realização da liberdade. 4 Em um retrospecto dos textos constitucionais tem-se que da Constituição Política do Império do Brasil, de 1824, se destacam os incisos XXIV e XXV do artigo 179, inseridos no Título 8º, que tratava “Das Disposições Gerais, e Garantias dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros”,

sual, sendo estes prescritos nos artigos 136 a 140, contidos no texto da ordem econômica. Na Constituição de 1946, a quinta do Brasil, os direitos sociais trabalhistas foram mantidos no âmbito da ordem econômica e social, e a Justiça do Trabalho foi incorporada ao Poder Judiciário fazendo parte do Título da organização federal, tendo sua estruturação prescrita nos artigos 122 e 123.

[...] Artigo 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos BraziA Constituição de 1967, em relação aos leiros, que tem por base a liberdade, a segu- direitos trabalhistas, praticamente manteve rança individual, e a propriedade, é garantida semelhante redação ao texto da Constituição pela Constituição do Imperio, pela maneira anterior. seguinte. A constituição ora debatida possuía ca[...] ráter autoritário e ditatorial a fim de institucionalizar o golpe militar e legitimar os Atos XXIV. Nenhum genero de trabalho, de Institucionais publicados. Para complemencultura, industria, ou commercio póde ser tar, em 1969 a Emenda Constitucional n. 01 prohibido, uma vez que não se opponha aos – para alguns doutrinadores considerada uma costumes publicos, á segurança, e saude dos nova constituição – concentrou ainda mais os Cidadãos. 5 poderes nas mãos dos militares. Referida constituição fez referências à No que se refere ao âmbito dos direitos liberdade de trabalho e à eliminação das “cortrabalhistas, não houve grandes avanços no porações de ofícios”, cujo contexto foi adapplano constitucional. Entretanto, a legislação tado ao regime escravista, monocultural e lainfraconstitucional proporcionou algumas altifundiário então vigente. terações à CLT, a exemplo, o Decreto-Lei 229 Verifica-se na Constituição da Repúbli- de 1967, que tratava de tópicos como a medica dos Estados Unidos do Brazil, de 1891, a cina do trabalho, equipamento de segurança, implantação de uma democracia meramente carteira de trabalho e normas processuais. “decorativa” haja vista que, através do voto de Fruto de um processo de redemocratizacabresto, o que se instituiu no Brasil foi uma ção do Brasil, a Constituição Federal de 1988, verdadeira oligarquia, dominada pelos Estafora promulgada, alterando por completo o dos de Minas Gerais e São Paulo. sistema de proteção do direito do trabalho em Na Constituição da República dos Esta- seu viés constitucional. dos Unidos do Brasil, de 1934, já sob a influNotou-se por parte do legislador constiência da Constituição de Weimar, de 1919, tuinte uma grande preocupação em proteger houve a inserção de uma democracia social. o trabalho, especialmente, pelo grande númeA nova Constituição outorgada, em 10 ro de dispositivos constitucionais reservados de novembro de 1937, marca uma fase inter- à matéria trabalhista na Carta Magna. vencionista do Estado, decorrente do golpe de Getúlio Vargas. O presente texto constitucional trouxe os Direitos sociais trabalhistas, tanto no âmbito coletivo, individual e proces4 ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo Editoral,

1999, p. 145. 5 BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em 11/02/2020

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1.2 ANÁLISE DO PRINCÍPIO JURÍDICO DA IGUALDADE E O GÊNERO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 As mulheres ao longo da história, conforme já aduzido anteriormente, foram submetidas a uma posição de inferioridade na sociedade. As civilizações baseavam em muitas vezes suas leis em dispositivos discriminatórios e exclusivistas que serviram de instrumento de consolidação da desigualdade e assimetria na relação entre homens e mulheres. As sociedades estabeleceram um patamar de inferioridade e submissão em relação ao homem, não somente na seara doméstica, no direito familiar, mas no cenário público, como, por exemplo, no mercado de trabalho, através do pagamento de remuneração inferior à percebida pelos homens pelo exercício de funções semelhantes ou da dupla jornada de trabalho. A discriminação também foi sentida nos espaços públicos e privados de poder que refletiam a tímida participação política das mulheres, quase sempre limitada ou proibida.

5º, I, que trata da igualdade entre os sexos; do artigo 5º, inciso VIII, que versa sobre a igualdade de credo religioso; do artigo 5º, inciso XXXVIII, que trata da igualdade jurisdicional; do artigo 7º, inciso XXXII, que versa sobre a igualdade trabalhista; do artigo 14, que dispõe sobre a igualdade política ou ainda do artigo 150, inciso III, que disciplina a igualdade tributária. Embora a CRFB/1988 estabelecer expressamente que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, dado o exposto até aqui é evidente a dificuldade de convivência do direito com a cultura estabelecida. Certamente que não se está diante de uma forma unívoca de pensamento ou de práticas jurídicas homogêneas. A questão da discriminação em relação ao gênero feminino é um lugar de debates entre pensamentos e opiniões divergentes com uma histórica e complexa vinculação às diferentes experiências concretas de vida.

Atinente ao ordenamento jurídico atuNos dizeres da professora ALICE MONTEIal dispõe a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º, caput, sobre o princípio RO DE BARROS 7destaca que: Esses posicionamentos refletem uma estrutura cultural arraigada constitucional da igualdade, perante a lei:

em estereótipos sexistas, que atribuem à mulher apenas o “papel” secular de mãe e dona de casa, fortalecendo o mito da fragilidade feminina e o preconceito do homem, no tocante às atividades familiares e domésticas. Frise-se, o sexo não poderá constituir critério para atribuições de encarO princípio da igualdade prevê a igualda- gos à mulher e ao homem na família, no trabalho de de aptidões e de possibilidades virtuais dos e na sociedade; do contrário, a igualdade almejacidadãos de gozar de tratamento isonômico da jamais será atingida. Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.6

pela lei. Por meio desse princípio são vedadas as diferenciações arbitrárias e absurdas, não justificáveis pelos valores da Constituição Federal, e tem por finalidade limitar a atuação do legislador, do intérprete ou autoridade pública e do particular.

O princípio da igualdade na Constituição Federal de 1988 encontra-se representado, exemplificativamente, no artigo 4º, inciso VIII, que dispõe sobre a igualdade racial; do artigo 6 BULOS, Uadi Lammego. Constituição Federal anotada. São Paulo: Saraiva, 2017. 7 BARROS, Alice Monteiro de. Proteção do trabalho da mulher e do menor apud in VOGEL NETO, Gustavo Adolpho (Coord.). Curso de Direito do Trabalho em homenagem ao professor Arion Sayão Romita. Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 311

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1.3 OS DIREITOS TRABALHISTAS DAS MULHERES PREVISTOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Ao analisar os direitos trabalhistas espe- positivos de proteção às trabalhadoras, o que cíficos para as mulheres, se observa que no se passa a estudar adiante. arcabouço jurídico brasileiro há inúmeros dis-

GESTAÇÃO A gravidez, na grande maioria dos casos, não impede a mulher de exercer normalmente suas funções laborais até o início de sua licença-maternidade (salvo casos especiais de gestação ou trabalho).

Toda gestante tem o direito de tirar a licença-maternidade a partir de seu oitavo mês de gestação, sem prejuízo de seu emprego e salários, que devem ser pagos integralmente durante os 120 dias de licença.

A própria constituição brasileira assegura à gestante o direito de estabilidade no emprego, desde a confirmação de sua gravidez até cinco meses após o nascimento da criança. Além disso, a mulher pode ser dispensada durante seu horário de trabalho para a realização de suas consultas médicas e exames.

Caso a empregada receba salário variável, o valor a ser recebido mensalmente será a média de seus seis últimos rendimentos, assim como as vantagens e benefícios inerentes ao cargo. Além disso, empresas que fazem parte do programa Empresa Cidadã (Lei 11.770/08) podem ampliar o período da licença-maternidade por mais 60 dias.

A empregada poderá ser transferida de Mães que adotam crianças também têm função, se for necessário, sendo assegurada a direito garantido à licença-maternidade, assim retomada do posto anterior logo após o retor- como as gestantes, respaldadas pelo Artigo no da licença-maternidade. 71-A da Lei 12873. Para esses casos, licença é pelo período de 120 dias, independentemente A gestação ainda que esteja apenas no da idade do adotado. início — não pode ser um motivo para a negativa de uma admissão. *Licença-maternidade (filho natural ou por adoção)

PERÍODO DE AMAMENTAÇÃO O aleitamento materno é mais um dos ter um local apropriado para que as empregadireitos da mulher garantidos pela lei. A partir das possam dar assistência a seus filhos dudo nascimento da criança até os seus 6 meses rante o período da lactação. de idade (período que pode ser prorrogado a partir de um atestado médico), a funcionária tem direito a dois intervalos de descanso durante a jornada de trabalho, cada um com trinta minutos de duração, para amamentar o bebê. Além disso, nas empresas que possuem a partir de 30 profissionais do sexo feminino acima dos 16 anos de idade, é obrigatório 52


LIMITE DE CARREGAMENTO DE PESO Outra proteção que a lei dá à mulher é o limite de carregamento de peso permitido durante a execução de suas atividades. Por motivos óbvios, uma funcionária do sexo feminino não pode carregar a mesma carga que um homem, devido à diferença de força física entre ambos.

CLT Art. 390 — Ao empregador é vedado empregar a mulher em serviço que demande o emprego de força muscular superior a 20 (vinte) quilos para o trabalho contínuo, ou 25 (vinte e cinco) quilos para o trabalho ocasional.

DESCANSO PARA REALIZAÇÃO DE HORAS EXTRAS Toda empregada tem o direito a um in- do período extraordinário do trabalho. tervalo de 15 minutos antes de iniciar uma O empregador que não cumprir o interjornada extraordinária (hora extra), respaldada valo previsto deverá fazer o seu pagamento pelo artigo 384 da CLT: como hora extra, além de seus reflexos nas CLT Art. 384 — Em caso de prorrogação do demais verbas trabalhistas, que podem ser horário normal, será obrigatório um descanso de bastante significativos, caso o episódio seja 15 (quinze) minutos no mínimo, antes do início recorrente.

APOSENTADORIA No que tange à aposentadoria por idade, as regras de transição. as mulheres antes da Reforma da Previdência Já em relação à aposentadoria por temprecisam ter 60 anos de idade e 15 anos de po de contribuição, antes da reforma a regra tempo de contribuição, os homens 65 anos de era de 30 anos para as mulheres e 35 anos de idade e o mesmo tempo de contribuição. trabalho para os homens, sendo quem no texApós a Reforma, a idade mínima exigida to da reforma não há previsão de continuação passou a ser de 62 anos de idade, observadas desta espécie de aposentadoria.

LICENÇA PARA ABORTO NATURAL ALÉM DA LICENÇA-MATERNIDADE A lei trabalhista também protege os direitos da mulher que sofreu aborto espontâneo ou acidental, garantindo a ela duas semanas de repouso remunerado em razão do problema sofrido. CLT Artigo 395 — Em caso de aborto não criminoso, comprovado por atestado médico oficial, a mulher terá um repouso remunerado de 2 (duas) semanas, ficando-lhe assegurado o direito de retornar à função que ocupava antes de seu afastamento. *A igualdade salarial na CLT

No Brasil, a mulher ganha cerca de 30% a menos que o homem, ainda que execute as mesmas atividades inerentes ao cargo, tenham qualificação profissional equivalente e experiência, o que não justifica a diferença salarial. Para tentar fazer a equiparação salarial, a CLT adotou medidas que reforçam o direito da mulher, com a intenção de coibir os casos de discriminação e aumentar o acesso feminino ao mercado de trabalho, com a proteção à maternidade e assuntos específicos.

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Acerca da igualdade salarial, o artigo 377 Logo, a profissional não pode ter sua da CLT afirma: remuneração reduzida ou inferior ao homem. Empresas que não obedecerem a lei poCLT Artigo 377 — A adoção de medidas de dem ser penalizadas com multas e até mesmo proteção ao trabalho das mulheres é consideracom reclamações trabalhistas. da de ordem pública, não justificando em hipótese alguma, a redução de salário.

1.4 REFLEXÕES ACERCA DA DESIGUALDADE E DA DISCRIMINAÇÃO DO GÊNERO FEMININO- JULGADOS SOBRE O TEMA O Estado Democrático de Direito traz em seu âmago a proposta da superação da igualdade formal rumo à igualdade material, o que implica em assumir a defesa do preconizado na CRFB/1988 para fins do estabelecimento de uma convivência que repousa na superação de práxis desiguais e discriminatórias em relação ao gênero feminino. É precisamente a conjugação da desigualdade com a discriminação que define o pensamento dominante acerca do direito social das mulheres ao trabalho no Brasil, ou seja, trata-se de uma cultura jurídica positivista, de inspiração patriarcal e neoliberal que possibilita apenas o discurso da igualdade formal em relação ao gênero feminino. Sabe-se que a possibilidade de se projetar nos espaços públicos e no trabalho representam fontes de empoderamento para o ser humano, dos quais o gênero masculino logra um histórico de maior participação por conta de práticas desiguais vivenciadas desde a educação até a divisão sexual de trabalho. No que tange à discriminação do gênero feminino, tal conduta consubstancia-se em diferenciar, distinguir e restringir a participação das mulheres no momento da procura por trabalho e no momento da ascensão profissional e financeira nas organizações. Ressalta-se que não é uma prática discriminatória nítida. Nem sempre o motivo é discriminatório, mas sim os meios utilizados para a contratação ou para a promoção de mulheres. A autora traz como exemplos a exigência de disponibilidade para variação de horários, que afeta, geralmente as mulheres, a desigual retribuição para trabalhadores que sejam con-

tratados temporariamente quando tal coletivo é predominantemente composto pelo gênero feminino, bem como a normas que restringem direitos de contratos para tempo parcial de trabalho, já que o público feminino é o maior interessado por conta de demais afazeres cotidiano, em geral atribuídos às mulheres. No tocante à discriminação negativa, esta é o tratamento desigual que cria um desfavor ao indivíduo, negando-lhe o exercício de seus direitos de pessoa humana, o excluindo da vida social, tendo como efeito provocar desigualdades injustificadas. É um fenômeno social, constatado em todas as fases do desenvolvimento das sociedades, mas de relevância significante nas sociedades atuais dada a intolerância com o diferente. Por outro lado, também conhecida como ação positiva, em oposição ao ato negativo de discriminar, a discriminação positiva é concebida como um conjunto de estratégias, iniciativas ou políticas, que buscam favorecer pessoas ou grupos sociais que se encontram em condições desfavoráveis, em razão, geralmente, da prática de discriminação negativa. Entretanto, é medida que deverá ser observada em caráter excepcional, até que se neutralizem os efeitos das desigualdades sociais. Diante do exposto vê-se que a garantia efetiva à igualdade de oportunidades no trabalho sempre exigirá dos poderes públicos proteções legais, além de ações afirmativas, de natureza pública ou privada, que venham a beneficiar aqueles trabalhadores que enfrentam desigualdades sociais. Esses mecanismos terão fundamento no princípio da igualdade, uma vez que seu conteúdo material impõe o

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dever d dispensar tratamento equânime às Mas, apesar das grandes conquistas, as pessoas. ações ajuizadas na Justiça do Trabalho revelam que a mulher moderna ainda enfrenta disContudo, a discriminação é tão antiga criminação no mercado, em relação aos níveis quanto as relações de poder e as exclusões salariais observados nas empresas. São prátisociais. Dessa forma, a visão preconceituosa cas patronais que violam o artigo 7º, XXX, da do exercício do direito social ao trabalho por Constituição Federal, o qual proíbe diferença parte das mulheres é perpetuada pelas forde salários, de exercício de funções e de criças econômica, políticas, sociais e jurídicas, tério de admissão, por motivo de sexo, idafrequentemente monopolizadas pelo gênero de, cor ou estado civil. Colacionam-se alguns masculino, em detrimento do existir do segexemplos de julgados com suas respectivas mento feminino. explanações: A história da discriminação dos direitos das mulheres no Brasil apresenta-se assim segmentada: primeiramente, tem-se o perío*caso da bancária discriminada e do de transição entre a proibição e a proteção dispensada simbolicamente no Dia Indo trabalho da mulher, do início da República ternacional da Mulher-(Processo nº até o Estado Novo (1889-1937); após, num 00917-2011-057-03-00-0-RO-MG) segundo momento, verifica-se o surgimento de certa proteção e vai até algumas tentativas de promoção da igualdade, ainda que somenEste caso fora protocolado na 1ª Vara do te no âmbito formal, período compreendido Trabalho de Divinópolis, pois uma bancária entre o Estado Novo e o início dos trabalhos foi dispensada por justa causa, ou seja, exatados constituintes originários de 1988 (1937- mente no Dia Internacional da Mulher. Após 1988); por fim, num terceiro momento se examinar o conjunto de provas, o juiz decidiu observa, efetivamente, com positivação de que tal situação fazia crer que a dispensa da reinúmeros dispositivos legais que evidenciam clamante exata e simbolicamente em 08/03/11, a orientação para uma concreta promoção da Dia Internacional da Mulher, de fato não foi por igualdade entre o trabalho da mulher e o do acaso, mormente porque, pela tese de defesa, homem que tem início com a CRFB/1988 até poderia a dispensa ter ocorrido antes ou depois. os dias de hoje. Indubitavelmente que as mulheres evo*Trabalhadora impedida de participar de luíram muito em sua trajetória de superação da cultura machista e patriarcal e na conquista seleção interna por ser mulher será indenizado merecido espaço no mercado de trabalho. da- Processo: 0001371-54.2017.5.11.0007TRT 11ª Região Atualmente elas exercem profissões que Neste processo, as empregadas que preantes eram reservadas aos homens, como, por exemplo, as de motorista de caminhão, poli- tendiam participar da seleção interna solicitaciais, segurança e profissionais da construção ram reunião com o superior hierárquico para civil. Essas eram profissões tipicamente mas- questionar os motivos de terem sido preteculinas porque exigem força física e envolvem ridas. Ele teria informado que somente colaviolência. No entanto, cada vez mais a so- boradores do sexo masculino poderiam conciedade se rende à competência profissional correr, pois haveria necessidade de carregar feminina, reconhecendo que a mulher conta paletes (estrados utilizados para organização com armas poderosas, como inteligência, de- e movimentação de carga) com materiais delicadeza, técnica e até, para muitas, um bom feituosos. preparo físico mesmo, para apagar a velha O Tribunal entendeu que os atos de disimagem do sexo frágil. Nesse sentido, a luta criminação no ambiente de trabalho nem da mulher trabalhadora se confunde com a sempre se manifestam de forma direta e eviprópria história do Direito do Trabalho. dente. Às vezes, como no caso em apreço, apre55


sentam-se sutis e velados, quando a empresa ou seus prepostos criam desigualdades em relação a determinado grupo de pessoas, a exemplo das empregadas que desempenham função eminentemente técnica.

sexualidade. Ela foi admitida na empresa em julho de 2013 na função de técnica em eletrônica e dispensada sem justa causa em abril de 2016.

*Mulher na Construção Civil: JT-MG concede indenização a trabalhadora que não tinha acesso a banheiro feminino e sofria assédio sexual A ação julgada pela juíza Maria Irene Silva de Castro Coelho, na 1ª Vara do Trabalho de João Monlevade. Ao analisar os fatos e provas do processo, a julgadora constatou que uma empresa de engenharia não disponibilizava banheiros femininos e em boas condições de higiene nos locais de trabalho e, ainda, que a empregada, operadora de pá carregadeira, sofria assédio sexual por parte de um superior hierárquico. Diante disso, a julgadora condenou a empresa ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$10 mil. A decisão foi confirmada pelo TRT-MG. *Empresa é condenada a indenizar ex-funcionária discriminada por ser mulher-Processo nº 0001172-50.2017.5.11.0001 A Primeira Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 11ª Região - AM/RR (TRT11) fixou em R$ 10 mil a indenização por danos morais a ser paga pela Companhia de Saneamento do Amazonas (Cosama) a uma ex-funcionária que comprovou ter sofrido discriminação por ser mulher. Em julgamento unânime, o colegiado acompanhou o voto da desembargadora relatora Valdenyra Farias Thomé e entendeu que as provas dos autos confirmam o assédio moral praticado por empregado da empresa contra a reclamante e demais mulheres do quadro funcional, configurando discriminação de gênero. Na ação ajuizada em junho de 2017, a autora alegou que o supervisor a ofendia com palavras impróprias e desdenhava da importância de seu trabalho, além de questionar sua competência e fazer insinuações sobre sua 56


CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar dos avanços legislativos e jurisprudenciais, ainda são necessárias políticas públicas e o fortalecimento dos movimentos que buscam a efetivação da igualdade material entre os gêneros, seja no âmbito social, sexual ou trabalhista, proporcionando o desenvolvimento de uma sociedade mais justa, empática e igualitária.

os méritos, regras e procedimentos que determinam a seleção de pessoas para funções de direção e liderança. Devemos desenvolver, ainda, a chamada “democracia paritária”, ou seja, buscar a criação de um modelo político que permita a representação igualitária e eqüitativa de todos aqueles que fazem parte da sociedade: os homens e as mulheres.

O capitalismo atual exige a participação das mulheres no mercado de trabalho e na política. Portanto, deve-se buscar a criação de um pacto, em que os homens e as mulheres, em condições de igualdade real (material, substancial, e não meramente formal), assumam uma repartição eqüitativa e recíproca em todas as espécies de atividades e trabalhos (inclusive, dentro do lar).

Para que essas propostas sejam concretizadas, as mulheres precisam que lhes seja confiado um sistema efetivamente igualitário, marcado pela concessão das mesmas oportunidades de felicidade, se comparado com aquele concedido aos homens, o que apenas se torna possível com a concessão dos mesmos direitos políticos. Deve-se sempre exigir o desenvolvimento de novos espaços políticos onde a participação de todos, ou seja, sem a exclusão de homens e mulheres, seja uma realidade, para que, então, possa-se alcançar ou, pelo menos, promover consensos políticos justos que reduzam a violência e promovam a democracia.

O que se pretende é a criação de um novo pacto político e social em que todos os sujeitos (homens e mulheres) estejam presentes com igualdade de voz e com a mesma autoridade para decidirem sobre os diversos âmbitos de uma vida. Aceitar as mulheres na vida social, política e laboral, sem concedê-las, porém, a participação paritária, seria apenas legitimar as decisões adotadas contra as mulheres, o que colaboraria com a produção de um retrocesso em matéria de igualdade, freando e irracionalizando a luta política e social apresentada pelos movimentos feministas. É necessário explicar as razões pelas quais a mulher sofre constante violência na sociedade, os motivos pelos quais é excluída do mundo do conhecimento e da cultura, apesar de possuir igual, ou até mesmo, superior currículo, se comparado com o dos homens. E, para que isso possa ocorrer, é necessário levar adiante um profundo debate político sobre as instituições que socializam os indivíduos, para despojá-los dos estereótipos “masculino” e “feminino”, ainda presentes (principalmente, perante a família); precisamos aprofundar, ainda, o desenvolvimento do princípio da igualdade de oportunidades, que leva a cabo a correta distribuição dos bens materiais e imateriais necessários para a obtenção de uma vida digna, em tempo de intervir sobre

Avanço na educação também é uma medida que se impõe, como forma legítima de demonstrar aos futuros cidadãos os erros cometidos pela sociedade patriarcal. A sociedade precisa evoluir para que conceitos arraigados sejam, de fato, superados. O papel da educação, nesse contexto, é, no mínimo, fundamental.

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REFERÊNCIAS MILES, Rosalind. A história do mundo pela mulher. Rio de Janeiro: Casa / LTC Livros Técnicos e Científicos, 1989.p 176 BARROS, Alice Monteiro de. Proteção do trabalho da mulher e do menor apud in VOGEL NETO, Gustavo Adolpho (Coord.). Curso de Direito do Trabalho em homenagem ao professor Arion Sayão Romita. Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 311 BULOS, Uadi Lammego. Constituição Federal anotada. São Paulo: Saraiva, 2017. BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em 11/02/2020 ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo Editoral, 1999, p. 145. SCOTT, Ana Silvia. O caleidoscópio dos arranjos familiares. In: PINSKY, C. B.; PEDRO, J. M. (Orgs). Nova história das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2013, p. 15-42.

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VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E OS OBSTACULOS PARA O ACESSO À JUSTIÇA Lívia Navarro Silva Hortelan Estudante de Direito das Faculdades Integradas de Bauru (FIB), matriculada no terceiro semestre do curso. Participou do 19º Congresso Nacional de Iniciação Científica (CONIC), na cidade de São Paulo em 2019, ISSN 2357-8904, com o trabalho “O combate à alienação parental através da guarda compartilhada”.

Maria Cláudia Zaratini Maia Advogada, Professora das Faculdades Integradas de Bauru (FIB), Mestre em Direito pela Instituição Toledo de Ensino – ITE, Bauru e Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR.

SUMÁRIO 1. Introdução 2. Breve Abordagem Histórica Sobre O Acesso A Justiça No Brasil 3. O Acesso À Justiça 4. A Desigualdade De Gênero 5. Atendimentos A Mulher Em Situação De Violação De Seus Direitos 6. Obstáculos Enfrentados Pelas Mulheres Ao Recorrer À Justiça 7. Considerações Finais Referências

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RESUMO Esse trabalho possui caráter bibliográfico e descritivo, tendo como base de estudo de obras literárias, artigos e a legislação nacional e versa sobre os pontos relevantes acerca da desigualdade de gênero no acesso à justiça e se justifica pela necessidade de igualdade de gênero no acesso pleno da justiça. Uma vez que a desigualdade e a violência de gênero estão naturalizadas na sociedade atual, é necessário espaço para discussão e analise do tema. A Função da sociedade como um todo é garantir que todas as pessoas estejam em situação de igualdade e que tenham pleno acesso de seus direitos. Por meio dessa pesquisa é possível caracterizar e perceber que a desigualdade de gênero é produto de um processo histórico e por essa razão interfere em todos os aspectos da vida em sociedade, inclusive no acesso à justiça. Além do mais a desigualdade produz obstáculos às mulheres, quando essas tentam recorrer á justiça, por exemplo, a falta de informação, medo, vergonha, dependência financeira e afetiva, além da falta de políticas públicas e capacitação profissional dos responsáveis pelo atendimento das vítimas. Uma vez encontrados os fatores determinantes pela desigualdade no acesso à justiça, é importante o levantamento das condutas e mudanças que possibilitem a igualdade entre homens e mulheres no acesso judicial, como a garantia dos serviços existentes, criação de novos serviços, a capacitação dos funcionários que atuam no atendimento das mulheres e a criação de mecanismos que atendam as mulheres de forma mais sensibilizada.

PALAVRAS-CHAVE Desigualdade; gênero; mulheres; violência; acesso à justiça.

ABSTRACT This work has a bibliographic and descriptive character, based on the study of literary works, articles and national legislation, and deals with relevant points about gender inequality in access to justice. This work is justified by the need for gender equality in the full access to justice. Since gender inequality and violence are naturalized in today’s society, space is needed for discussion and analysis of the issue. The role of society as a whole is to ensure that all people are on an equal footing and have full access to their rights. Through this research it is possible to characterize and realize that gender inequality is the product of a historical process and therefore interferes in all aspects of life in society, including access to justice. Besides, inequality produces obstacles to women, when they try to resort to justice, for example, lack of information, fear, shame, financial and affective dependence, besides the lack of public policies and professional training of those responsible for attending victims. Once found the determining factors for the inequality in the access to justice, it is important the survey of the conducts and changes that make possible the equality between men and women in the judicial access, as the guarantee of the existing services, the creation of new services, the qualification of the employees that act in the attendance of the women and the creation of mechanisms that attend the women in a more sensible way.

KEY WORDS inequality; gender; women; violence; access to justice. 61


1. INTRODUÇÃO Não basta apenas que a sociedade reconheça que a desigualdade exista entre homens e mulheres, é necessária a criação de métodos que a combata. No decorrer do artigo, realizado por meio de pesquisa bibliográfica, serão exemplificados os elementos estruturais que geram e agravam a desigualdade entre homens e mulheres no acesso à justiça. Ponto importante de discussão sobre o acesso da mulher à justiça é a visão que a sociedade tem dessa discriminação.

dio se agrava quando é relacionado com algum tipo de violência, muitas mulheres ao serem vítimas, acabam se calando frente à prática pelo medo de serem julgadas como culpadas, ou por dependerem financeira e afetivamente do agressor, uma vez que a maior parte dos agressores são seus companheiros e pais de seus filhos. Outro ponto a ser abordado nesse trabalho é a falta de capacitação e de recursos para o atendimento às mulheres, os responsáveis por esses atendimentos em muitos casos não receberam capacitação para exercer suas Muitas vezes a mulher é julgada e ainda funções. colocada no lugar de culpada quando recorre à justiça para reclamar seus direitos. Esse episó-

2. BREVE ABORDAGEM HISTÓRICA SOBRE O ACESSO A JUSTIÇA NO BRASIL As primeiras investigações sobre o direito no Brasil se localizam no campo dos bacharéis da área direcionados sociologicamente, do modo em que o objeto de estudo era o acesso à Justiça.

pouco mais da metade da população brasileira, ainda assim, elas são consideradas uma minoria quando se trata de acesso a oportunidade e direitos em igualdade de condições com os homens. Porque o que faz com que esse grupo seja considerado minoria, não é o Porém, o enfoque inicial dos estudos não número de pessoas, mas sim, qual a represenenvolvia os novos direitos conquistados pelas tatividade, poder e acesso a direitos que tal “minorias”, mas sim a necessidade de acesso grupo possui. aos direitos básicos dos quais a maioria ainda não tinha acesso1. É indiscutível a necessidaSegundo Junqueira1, as produções acade de enfatizar os direitos básicos de todo ser dêmicas brasileiras e as mudanças jurídicas humano, porém já é histórico o processo do durante os anos 80 do Século XX visavam esquecimento das minorias quando se trata sobre os direitos coletivos, não pela crise do de seus direitos. Estado pelo bem-estar social, mas sim pela exclusão da grande maioria da população ao se Importante ressaltar que apesar de as tratar de direitos básicos1. mulheres serem praticamente a metade, ou

3. O ACESSO À JUSTIÇA Acesso à justiça não deve ser confun- acesso ao justo, o direito de se ter um prodido com o acesso ao Poder Judiciário, o já cesso justo do qual não sofra nenhuma imparmencionado acesso à justiça refere-se ao cialidade, seja ela por incapacidade do poder 1 JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Acesso à Justiça: um olhar retrospectivo.. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 9, n. 18, p. 389-402, dez. 1996. ISSN 2178-1494. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2025>. Acesso em: 10 Jan. 2020.

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judiciário ou por estereótipos da sociedade. É importante ainda se lembrar de que a noção de justo vária de pessoa para pessoa, dessa forma o sistema deve amparar de forma igualitária a todos que a ele recorre, superando os obstáculos que dificultam as parcelas menos favorecidas da sociedade.

não se pode pleitear o que não se tem conhecimento. A descrença por parte do Poder Judiciário ocorre pelo desconhecimento, o número de demandas cada vez maior e a demora enfrentada nos processos, desse modo grande parte da população acaba nutrindo a sensação de ineficiência da justiça. O obstáculo do Direito e serviço existe uma vez a sociedade é dotada do mercantilismo, transformando o judiciário em um serviço ao consumidor. A falta de defensores públicos para a população que não tem condições de pagar pelos honorários é um dos obstáculos pelo qual o Estado não consegue garantir o acesso à justiça, que por sua vez é um direito.

O acesso à justiça é um direito constitucional de todos no Brasil, está expresso no art. 5º, XXXV da Constituição Federal de 1988: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (CF/1988)2. Esse dispositivo enfatiza que todos sem qualquer distinção tenham o direito de recorrer à justiça. Mas a simples existência por escrito de um direito não significa que o mesmo é disponível, a realidade em que se encontra O distanciamento da justiça pode se o judiciário brasileiro é muito distante de uma dar de duas formas, física ou hierárquica, a prinoção de justiça e igualdade. meira ocorre devido às condições geográficas, Desse modo cabe destacar que é dever onde as grandes dimensões do Brasil acabam do Estado garantir que todos os cidadãos te- por dificultar que todos tenham perto locais nham o pleno acesso igualitário à justiça, afim destinados ao judiciário. E a segunda forma de não se instaurar o caos social e jurídico e é devido à intimidação causada nas pessoas, evitando a realização da justiça pelas próprias às estruturas imponentes, as formalidades mãos. de linguagem e vestimenta, acabam por fazer com que as pessoas tenham medo e vergonha Massula em seu trabalho enfatiza cinco de recorrer à justiça. E a pobreza está ligada pontos chaves no processo de obstaculização diretamente a todos os outros fatores. para o acesso à justiça: eles seriam o desconhecimento, descrença, direito e serviço, dis Esses obstáculos estão presentes em 3 tanciamento e pobreza . toda sociedade, porém as minorias são afetadas de forma mais severa. Nesse estudo o O desconhecimento está presente em ponto a ser desenvolvido é o acesso à justiça grande parte da população que não tem nopor parte das mulheres, essas por sua vez são ção de seus direitos. No Brasil não se pode um dos grupos mais afetados pelos obstácualegar desconhecimento da lei para se exilos acima mencionados. mir de seu descumprimento, segundo “Art. 3º Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando É importante relacionar a questão de jus4 que não a conhece” (LINDB/1942) . Porém, o tiça com cidadania, uma vez que ambas andam desconhecimento dos direitos é um problema lado a lado, e a desordem causada em uma das enfrentado na realidade, sendo assim grande duas podem levar ao caos social, como podeobstáculo para o acesso à justiça uma vez que mos notar na fala de Cavalcante5: 2 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao.htm. Acesso em: 11 Jan. 2020 3 MASSULA, Letícia. A violência e o acesso das mulheres à justiça: O caminho das pedras ou as pedras do (no) caminho. In: Vinte e cinco anos de respostas brasileiras em violência contra a mulher: Alcances e Limites – São Paulo: Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, 2006, pp. 140-167. Disponível em: http://www.observatoriodeseguranca.org/ files/leticiapdf.pdf. Acesso em: 11 Jan. 2020. 4 BRASIL, Decreto – Lei nº. 4.657, de 4 de setembro de 1942 – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm. Acesso em: 11 Jan. 2020. 5 CAVALCANTE, Tatiana Maria Náufel. Cidadania e Acesso à Justiça. Disponível em: file:///E:/novo%20artigo/

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O acesso a uma ordem jurídica justa está intrinsecamente atrelado à questão da cidadania, sobretudo porque o direito de acesso à justiça é um direito garantidor de outros direitos e uma maneira de assegurar efetividade aos direitos de cidadania..

reito como também promover a sua cidadania e garantir a efetividade de seus direitos. Porém, no decorrer deste artigo serão elencados os obstáculos enfrentados pelas mulheres no decorrer do caminho pelo acesso à justiça.

De esse modo assegurar a igualdade das mulheres na justiça, é garantir não só esse di-

4. A DESIGUALDADE DE GÊNERO Os valores patriarcais se perpetuam desde a antiguidade até os dias atuais. Tendo o masculino como sujeito e o feminino como seu objeto, assim o homem é detentor da ação, decisão e o provedor material6.

É indispensável lembrar que a luta das mulheres produziu conquistas, como, por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, traz que todas as pessoas nascem livres e iguais em direitos e dignidade. Apesar da previsão de igualdade, na prática isso não Na Roma Antiga as famílias eram cenocorria. tradas no homem e as mulheres eram apenas figuras coadjuvantes. O pater familiar dava ao Desse modo é possível concluir que a dehomem o poder sobre seus filhos e esposa, do sigualdade é fruto de um processo histórico qual era unilateral e prevalecia até mesmo ao enraizado e naturalizado nos dias de hoje. É Estado.7 necessário que essa visão de normatização da desigualdade seja revista. A desigualdade paiE, esse poder do homem sobre a mura sobre todos os aspectos da vida social, mas lher, institucionalizado pela Estado perdurou como enfoque desse trabalho será enfatizado ao longo dos Séculos, sendo abrandado graa desigualdade ao acesso à justiça e seus desdativamente a partir do final do Século XIX dobramentos. e somente no Século XX é que podemos falar em direitos das mulheres8. Com todo esse Como antes mencionado o acesso à jusprocesso histórico de pré-conceito e privação tiça é uma questão de cidadania, e por muide acesso a direitos não é surpresa que a so- tos anos as mulheres, assim como outras miciedade trate de forma desigual os gêneros. norias, não eram vistas como cidadãos. A luta travada pelos direitos das mulheres é um caA organização social do Brasil apresenta minho longo e árduo que se perpetua há anos. resquícios da organização escravocrata agráAs mulheres são parcela da população que ria, conduta social que legitima a violência e mais sofrem violações de seus direitos. Nos objetificação às minorias, como as mulheres. dias atuais pode considerar que a maior parte Essas eram tidas como figura de criação e de das violações ocorre por meio da violência, e a educação os filhos, além de serem tratadas mulheres como consequência são os maiores sexualmente como objetos9. alvos dessas práticas. Cidadania_e_Acesso_a_Justica.pdf. Acesso em: 13 Jan. 2020. 6 MINAYO, Maria Cecília de Souza. Laços perigosos ente machismo e violência. 2005. Disponível em: https:// www.scielosp.org/scielo.php?pid=S141381232005000100005&script=sciarttex t&tlng=pt. Acesso em: 15 Jan. 2020. 7 NARVAZ, Martha Giudice e KOLLER, Sílvia Helena. Famílias e patriarcado: da prescrição normativa à subversão criativa. Psicol. Soc. [online]. 2006, vol.18, n.1, pp.49-55. ISSN 0102-7182. Disponível em: http://www . scielo.br/pdf/ psoc/v18n1/a07v18n1.pdf. Acesso em: 15 Jan. 2020. 8 TELES, Maria Amélia de Almeida. O que são direitos humanos das mulheres. São Paulo: Brasiliense, 2007. 9 LACERDA, Isadora Almeida. O conceito de violência contra a mulher no direito brasileiro. 2014. Disponível em: http://www.pucrio.br/pibic/relatorioresumo2014/relatorios_pdf/ccs/DIR/DIRIsadora%20Almeida%20Lacerda.pdf. Acesso em: 13 Jan. 2020.

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Outro ponto que deve ser destacado sobre a desigualdade entre homens e mulheres é a raça, somado esse fator se obtém resultados alarmantes. Segundo dados apontados por Massula, os homens brancos brasileiros estão em 41º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano, enquanto os afro-descendentes es-

tão em 104º lugar. As mulheres brancas brasileiras estão em 69º lugar, enquanto as afro-descendentes estão em 114º. Ou seja, existe uma diferença de 63 pontos entre os homens brancos e afro-descendentes e as mulheres apresentam uma diferença de 45 lugares10.

5. ATENDIMENTOS A MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLAÇÃO DE SEUS DIREITOS As conquistas no amparo judicial às mulheres aconteceram com maior intensidade a partir da década de 80 do Século XX. É nesse período em que surgem as primeiras Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher e também é nessa década que ocorre a criação do SOS Mulheres, primeiro serviço de atendimento jurídico, social e psicológico para as mulheres em caso de violência11. Já na década de 90 o Ministério da Saúde criou a norma técnica “Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes” que além de prever o atendimento integral à saúde de mulheres e meninas vítimas de violência sexual, regulamenta o artigo 128 do Código Penal Brasileiro, em seu inciso II, ao permitir o aborto de gravidez resultante de estupro. A partir de então a violência contra a mulher passou a vigorar como questão de saúde pública.

violência por medo de não ter um local para a sua moradia e a de seus filhos. Ainda como conquista da luta das mulheres pode elencar a Lei Maria da Penha que prevê que o agressor seja afastado do lar; A lei 11.340/06 traz que a mulher só pode renunciar à ação em audiência realizada pelo Juiz, ponto que sem dúvida evita que as mulheres desistam da ação por ameaça do agressor, além do mais com a lei houve a impossibilidade de transação penal nos casos de violência doméstica. Com a referida lei houve a quebra do silêncio de milhares de mulheres frente a violências sofridas. A garantia do atendimento físico e psicológico a vítimas de violência pelo SUS e o enfrentamento da violência com medidas de prevenção, erradicação e sanção, são outros exemplos das conquistas na luta das mulheres contra a violência.

Outras formas de atendimento às muApesar de todos os avanços obtidos nas lheres vítimas de violência são as casas-abriúltimas décadas, em especial com a Lei Maria gos e aluguéis sociais, esse último é utilizando da Penha, é certo que ainda assim, as mulhequando na cidade em que a mulher reside não res enfrentam obstáculos no acesso à justiça. existe casas-abrigos. Esses dois mecanismos proporcionaram que as mulheres ao denunciar o caso de violência tenham a possibilidade de se afastar do local onde a violência ocorre, muitas mulheres não denunciavam a

10 MASSULA, Letícia. A violência e o acesso das mulheres à justiça: O caminho das pedras ou as pedras do (no) caminho. In: Vinte e cinco anos de respostas brasileiras em violência contra a mulher: Alcances e Limites – São Paulo: Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, 2006, pp. 140-167. Disponível em: http://www.observatoriodeseguranca.org/ files/leticiapdf.pdf. Acesso em: 11 Jan. 2020. 11 Cruz, Madge & Costa, Francisco. Os Direitos Humanos das Mulheres e os Crimes Sexuais: Realidade e Possibilidades da Produção da Prova para o Pleno Acesso à Justiça. (2006). Revista da Faculdade de Direito UFPR. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/265920431_OS_DIREITOS_HUMANOS_DAS_ MULHERES_E_OS_CRIMES_SEXUAIS_REALIDADE_E_POSSIBILIDADES_DA_PRODUCAO_DA_PROVA_ PARA_O_PLENO_ACESSO_A_JUSTICA. Acesso em: 15 Jan. 2020.

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6. OBSTÁCULOS ENFRENTADOS PELAS MULHERES AO RECORRER À JUSTIÇA Mesmo com os mecanismos existentes para o atendimento a mulher, muito ainda falta para que possa ser considerado um atendimento digno e eficiente. Anteriormente foram citados os obstáculos enfrentados quando se recorre à justiça, porém analisando na perspectiva da mulher outras pedras no caminho são encontradas. Como antes mencionada, a pobreza desempenha grande obstáculo, e esse fator que atinge grande parte da sociedade, afeta as mulheres de forma desproporcional12.

Nos casos em que as mulheres precisam apresentar provas materiais da violência, como é o caso da violência sexual, são encontrados outros obstáculos. O reconhecimento da materialidade deve ser feita exclusivamente por médicos peritos do IML (Instituto Médico Legal), o número de médicos peritos disponíveis no sistema do IML são menores que a demanda por atendimento e a espera necessária para o atendimento faz com que as mulheres vítimas do crime fiquem impossibilitadas de serem periciadas para a produção de provas, esses fatores fazem com que ocorram Um ponto importante de se destacar muitos arquivamentos de inquéritos policias é que a justiça apesar de pregar a igualdade por falta de prova15. de todos em seus dispositivos, não apresenta meios para que essa igualdade seja exercida, A condição exigida da materialidade é uma vez que seus aparatos não reconhecem algo muito questionável, uma vez que resisa existência da desigualdade e muito menos tência da vítima teria de estar marcada em seu possuem meios para minimizar essa discrimi- corpo para caracterizar o consentimento ou nação. não da prática. A palavra da vítima em muitos casos não é elemento essencial, sendo que as As mulheres são o grupo social que mais autoridades em muitos casos acabam coloenfrenta a violência em sua vida. A Convencando o depoimento da vítima em dúvida. Por ção Interamericana conhecida como Convenesses motivos muitas mulheres não procuram ção do Belém do Pará, define a violência como a justiça para denunciar. “qualquer ato ou conduta baseada no gênero que cause morte, dano ou sofrimento físico, Outros obstáculos impostos às mulheres sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfe- são a visão que a sociedade tem da violação ra pública como na esfera privada”. (1994, cap. de direitos seus direitos, muitas mulheres ao I, artigo 1°)13. sofrer alguma violação não buscam a justiça por sentirem vergonha ou culpa, se colocanSegundo a plataforma Evidência sobre do assim no lugar de responsável pela prátiViolências e Alternativas para mulheres e meca. Muitas mulheres vítimas de violência têm ninas (EVA) no período compreendido entre como agressor seu marido ou pai de seus fi2010 e 2017, 1,23 milhões de mulheres relhos, esse é outro fator que interfere na deportaram casos de violência14. núncia, uma vez que existe a relação afetiva 12 Conforme OXFAM Brasil as mulheres estão mais vulneráveis a viver na pobreza. https://oxfam.org.br/noticias/ por-que-ha-mais-mulheres-que-homens-pobres-no-mundo/ Acesso em 03-02=2020 13 CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR, PUNIR E ERRADICAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, “CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ”. 9 Jun. 1994. Disponível em: http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/m. Belem.do.Para.htm 14 EVA: Evidências sobre Violências e Alternativas para mulheres e meninas. Instituto Igarapé. 2019. Disponível em: https://eva.igarape.org.br/?utm_source=eurio.com.br&utm_medium=referral&utm_content=portal_primenews&utm_ campaign=hotfixpress#/. Acesso em: 14 Jan. 2020. 15 Cruz, Madge & Costa, Francisco. Os Direitos Humanos das Mulheres e os Crimes Sexuais: Realidade e Possibilidades da Produção da Prova para o Pleno Acesso à Justiça. (2006). Revista da Faculdade de Direito UFPR. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/265920431_OS_DIREITOS_HUMANOS_DAS_ MULHERES_E_OS_CRIMES_SEXUAIS_REALIDADE_E_POSSIBILIDADES_DA_PRODUCAO_DA_PROVA_ PARA_O_PLENO_ACESSO_A_JUSTICA. Acesso em: 15 Jan. 2020.

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entre as partes. A sociedade infelizmente possui uma visão naturalizada da violência contra a mulher, em muitos casos quando a violência ocorre no convívio marital, as mulheres continuam com o companheiro, dessa forma se propaga o senso comum de “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher” ou “mulher gosta de apanhar”, essa visão acaba por justificar a violência e impede que mais mulheres venham a denunciar os casos. A falta de capacitação do pessoal que atende as mulheres que procuram ajuda é outro obstáculo, uma vez que ao procurar ajuda e amparo as mulheres acabam sendo revitimizadas. O funcionamento precário e com baixos recursos dos Órgãos destinados

a atender as mulheres também é um empecilho enfrentados, segundo a pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa DataSenado, “Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres - DEAMs”, 35% das DEAMs não possuem orientação por escrito que a equipe utiliza para padronizar o atendimento. Segundo a mesma pesquisa apenas 38% encaminham as mulheres para o Sistema Especializado (Casa-Abrigo) e 24% encaminham para Centros Especializados de Atendimento à Mulher (CEAMs). Nessa pesquisa foram entrevistados os funcionários responsáveis pelo atendimento nas Delegacias Especializadas, e 47% deles afirmaram não ter recebido treinamento especifico para atender mulheres vitimas de violência16.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS É evidente que a desigualdade de gênero afeta o acesso à justiça, como foi demonstrado ao longo desse artigo, porém, para que haja a solução desse problema muitas medidas devem ser criadas. As medidas defendidas nesse trabalho para que exista acesso igualitário à justiça é o aperfeiçoamento e garantia dos serviços já existentes para o atendimento das mulheres, uma vez que é necessário que ao acionarem o sistema jurídico mulheres tenham a certeza que sua efetividade. E ainda, que sejam divulgadas informações de forma pública sobre os direitos das mulheres e os sistemas especializados para seu atendimento, além de que, deve haver capacitação profissional para um atendimento mais humano e de qualidade. Além da criação de novas políticas públicas para o atendimento, e a criação de locais para o acolhimento de mulheres vítimas de violência. Outro ponto importante é sobre a falta de provas materiais para o prosseguimento dos processos. A falta de provas é influenciada por dois motivos, pela falta de informação

que faz com que as mulheres não adotem as condutas necessárias para a conservação das provas até o momento em que serão recolhidas, e o mais importante que é a falta de estrutura e de médicos peritos do IML para as perícias. Desse modo devem ser adotadas as condutas de conscientização das mulheres, e a criação de uma parceria para que mais médicos especializados em perícias possam atuar no recolhimento de provas matérias para inquéritos, uma vez que a quantidade disponibilizada pelo IML é insuficiente. Além do mais a avaliação psicológica e a palavra da vítima devem ganhar maior destaque nos rol das provas. Todas essas condutas devem ser vistas como fundamentais, uma vez que a falta de informação e a não denúncia pela violação dos direitos das mulheres acabam por criar um circulo vicioso de violação e desrespeito, dificultando, e muitas vezes até impedindo, o acesso à justiça.

16 Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres – DEAMs Pesquisa DataSenado. Senado Federal. 2016. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/datasenado/arquivos/rede-de-enfrentamento-a-violenciacontra-as-mulheres-deams. Acesos em: 17 Jan. 2020

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REFERÊNCIAS BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao.htm. Acesso em: 11 Jan. 2020. BRASIL, Decreto – Lei nº. 4.657, de 4 de setembro de 1942 – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm. Acesso em: 11 Jan. 2020. CAVALCANTE, Tatiana Maria Náufel. Cidadania e Acesso à Justiça. Disponível em: file:///E:/ novo%20artigo/Cidadania_e_Acesso_a_Justica.pdf. Acesso em: 13 Jan. 2020. CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR, PUNIR E ERRADICAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, “CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ”. 9 Jun. 1994. Disponível em: http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/m.Belem.do.Para.htm. Acesso em: 14 Jan. 2020. CRUZ, Madge & COSTA, Francisco. Os Direitos Humanos das Mulheres e os Crimes Sexuais: Realidade e Possibilidades da Produção da Prova para o Pleno Acesso à Justiça. (2006). Revista da Faculdade de Direito UFPR. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/265920431_OS_DIREITOS_HUMANOS_DAS_MULHERES_E_OS_CRIMES_SEXUAIS_REALIDADE_E_POSSIBILIDADES_DA_PRODUCAO_DA_PROVA_PARA_O_PLENO_ACESSO_A_JUSTICA. Acesso em: 15 Jan. 2020. EVA: Evidências sobre Violências e Alternativas para mulheres e meninas. Instituto Igarapé. 2019. Disponível em: https://eva.igarape.org.br/?utm_source=eurio.com.br&utm_medium=referral&utm_content=portal_primenews&utm_campaign=hotfixpress#/. Acesso em: 14 Jan. 2020. JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Acesso à Justiça: um olhar retrospectivo. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 9, n. 18, p. 389-402, dez. 1996. ISSN 2178-1494. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2025>. Acesso em: 10 Jan. 2020. LACERDA, Isadora Almeida. O conceito de violência contra a mulher no direito brasileiro. 2014. Disponível em: http://www.pucrio.br/pibic/relatorioresumo2014/relatorios_pdf/ccs/ DIR/DIRIsadora%20Almeida%20Lacerda.pdf. Acesso em: 13 Jan. 2020. MASSULA, Letícia. A violência e o acesso das mulheres à justiça: O caminho das pedras ou as pedras do (no) caminho. In: Vinte e cinco anos de respostas brasileiras em violência contra a mulher: Alcances e Limites – São Paulo: Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, 2006, pp. 140-167. Disponível em: http://www.observatoriodeseguranca.org/files/leticiapdf.pdf. Acesso em: 11 Jan. 2020. MINAYO, Maria Cecília de Souza. Laços perigosos ente machismo e violência. 2005. Disponível em: https://www.scielosp.org/scielo.php?pid=S141381232005000100005&script=sciarttex t&tlng=pt. Acesso em: 15 Jan. 2020. NARVAZ, Martha Giudice e KOLLER, Sílvia Helena. Famílias e patriarcado: da prescrição nor68


mativa à subversão criativa. Psicol. Soc. [online]. 2006, vol.18, n.1, pp.49-55. ISSN 01027182. Disponível em: http://www . scielo.br/pdf/psoc/v18n1/a07v18n1.pdf. Acesso em: 15 Jan. 2020. Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres – DEAMs Pesquisa DataSenado. Senado Federal. 2016. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/datasenado/arquivos/rede-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres-deams. Acesos em: 17 Jan de 2020. TELES, Maria Amélia de Almeida. O que são direitos humanos das mulheres. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 2007.

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A (SUB)REPRESENTATIVIDADE FEMININA NO PODER PÚBLICO: ESFORÇOS PARA GARANTIA, PROMOÇÃO E AMPLIAÇÃO DOS DIREITOS DAS MULHERES POR MEIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS Natália Dozza Bacharel em Direito pela PUC/SP, especialista em Direito Constitucional pelo COGEAE PUC/SP e Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP. Advogada com vasta especialização em Direito Constitucional, Administrativo, Civil e Contratual, além de atuante nos projetos OAB Elas por Elas e Mapa do Acolhimento

SUMÁRIO Introdução 1. Breve histórico da participação feminina no processo democrático 1.1 Surgimento e desenvolvimento do ideal democrático e do voto feminino 1.2. A evolução do voto feminino no Brasil 2. Divisão de Poderes e participação feminina nas esferas de poder 2.1. Participação feminina nos Poderes Legislativo e Executivo 2.2. Participação feminina no Poder Judiciário 3. Desdobramentos da subrepresentação feminina nas esferas do Poder Público 4. Conclusões Referências bibliográficas

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RESUMO O presente trabalho tem por escopo avaliar a participação das mulheres no jogo democrático, não só no que diz respeito ao reconhecimento do seu direito de votar e ser votada, mas, principalmente, em face do número de assentos ocupados nos poderes legislativo, executivo e judiciário. Com base em uma breve análise de conceitos de representatividade e alternância de poder diante dos números e percentuais de participação das mulheres em cada esfera de poder, discutir-se-á se a democracia está conseguindo exercer sua função contramajoritária, assegurando às mulheres um espaço para discussão e tomada de políticas públicas essenciais à garantia e promoção de uma agenda pública voltada para interesses da população feminina. Em termos de desenvolvimento do trabalho, a pesquisa se debruça sobre informações empiricamente levantadas, cotejando-as com o atual cenário de representação feminina no processo democrático, sugerindo, ao final medidas propositivas de mudanças estruturais e culturais para melho recepção das mulheres no Poder Público.

PALAVRAS-CHAVES Democracia – função contramajoritária da democracia – voto feminino – separação de poderes – ações afirmativas

ABSTRACT The present work aims to evaluate the participation of women in the democratic game, not only with regard to the recognition of their right to vote and to be voted, but mainly, in view of the number of seats occupied in the legislative, executive and judicial branches. Based on a brief analysis of concepts of representativeness and alternation of power in view of the numbers and percentage of participation of women in each sphere of power, discuss whether democracy is managing to exercise its countermajoritarian role, ensuring in women a space for discussion and decision-making. essential public policies to guarantee and promote a public agenda geared to the interests of the female population. In terms of work development, a survey shows details about empirically raised information, such as the current scenario of female representation in the democratic process, suggesting, and the final proposed measures of strategic and cultural changes for the return of women in the Public Power.

KEYWORDS Democracy - democracy against majority - female vote - separation of powers - affirmative actions

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INTRODUÇÃO Quando Simone de Beauvoir diz que “ninguém nasce mulher, torna-se mulher” decerto não estava se referindo às mudanças trazidas com a puberdade, tampouco com os rituais envolvendo os já ultrapassados bailes de debutante. A essência do pensamento voltava-se, sem dúvida, ao fato de que enquanto o homem, simplesmente por ser homem, era titular de uma gama de direitos, prerrogativas que lhe garantia posição de destaque e poder na sociedade, a mulher, por sua vez, teria que galgar e lutar por idêntico espaço e respeito em seu seio social.

Público, ainda se vê profunda resistência ao ingresso de mulheres na vida pública, mantendo-se a esmagadora maioria dos cargos públicos nas mãos dos homens.

Ao longo dos anos, ações afirmativas assecuratórias da participação de mulheres no processo eleitoral permitiram um tímida, porém, constante inserção feminina nas eleições, no entanto, ainda são poucas as que conseguem se eleger. No mais, a eleição em si também não é garantia de exercício de um mandato feminino, eis não estar a pauta legislativa aberta à discussão de uma agenda femi Trocando em miúdos, à mulher eram nina. reservadas as atribuições domésticas e maAssim, ainda que hoje tenhamos um núternas, enquanto ao homem eram garantidos mero de congressistas muito mais expressivo amplos caminhos e opções. Após anos de bado que aquele verificado no início da redemotalha, as mulheres conseguiram relativa posicratização, as políticas públicas seguem poução de destaque, ocupando, hoje, lugares de co voltadas à defesa dos direitos e interesses chefia, tanto no ambiente de trabalho como femininos. dentro do lar, sendo responsáveis pela gerência e comando de diversas empresas, bem Além da resistência e preconceito da parcomo pelo sustento de suas famílias. te de outros parlamentares – os quais insistem em diminuir a posição das colegas eleitas -, as Não obstante sejam inegáveis os avancongressistas acabam não conseguindo aproços conseguidos em um curto espaço de var e ou mesmo dar seguimento a projetos de tempo, a participação feminina em cargos do interesse feminino, seja por falta de repercusPoder Público ainda é bastante reduzida, sisão eleitoral, seja porque assuntos relativos tuação esta que produz efeitos diretos sobre à agenda feminista acabam por resvalar em as futuras conquistas feministas, eis que, sem tabus sociais (tais como discriminalização do representatividade nos órgãos responsáveis aborto, igualdade salarial e recrudescimento pelas tomadas das decisões que ordenam e da legislação envolvendo violência doméstidisciplinam os caminhos do Estado, a vida púca). blica seguirá sem a oitiva das vozes de tantas mulheres, as quais permanecerão distantes De qualquer modo, é preciso analisar a dos meios e ferramentas para efetiva promo- representatividade feminina no Poder Público ção dos mudanças tão indispensáveis ao es- e como esta tem interferido na produção de tabelecimento de uma real igualdade entre os políticas públicas para mulheres, avaliando-se, gêneros. também, meios para promoção do aumento no número de assentos ocupados por mulheEm outras palavras, para que o movires com vistas à garantia de uma pauta verdamento feminista possa seguir seu rumo para o deiramente feminista. futuro e assim buscar as mudanças que ainda pendem de realização é indispensável o preenchimento de cargos por mulheres também junto ao Poder Público. Malgrado seja inegável a necessidade de maior representatividade feminina no Poder 72


1. BREVE HISTÓRICO DA PARTICIPAÇÃO FEMININA NO PROCESSO DEMOCRÁTICO De princípio, é preciso derrubar a definição de democracia como sendo o governo da maioria. Considerada a elevada posição ocupada pelos direitos fundamentais no atual ordenamento constitucional, tem-se que estes funcionam como um núcleo substantivo de competência negativa1, assegurando a minoria derrotada área livre de interferência da vontade democrática e, portanto, protegida de supressões ou alterações que poderiam acabar tolhendo por completo a participação, interesses ou direitos de um determinado grupo minoritário.

tam resistência nos orgãoes de cúpula e de poder, sendo, em termos de participação política, a minoria. Logo, e dada essa histórica subrepresentatividade, o modelo democrático hoje adotado no Brasil funciona, como preconiza a doutrina, como um trunfo contra a maioria, devendo, portanto, ser exercido de forma a permitir a maior participação possível dos diversos grupos sociais, especialmente, das mulheres.

Para melhor compreensão do raciocínio defendido, fundamental o breve estudo do conceito de democracia e do ingresso feminiCuriosamente, as mulheres não são – nem no do jogo democrático.

no Brasil, nem no mundo – a minoria dos gêneros, entretanto, por terem sido por tantos anos excluídas do processo político, ainda hoje enfren-

1.1. SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO DO IDEAL DEMOCRÁTICO E DO VOTO FEMININO O berço da democracia remota à Grécia Antiga – anos 508-507, a. C. -, mais especificamente, à Atenas, de Clístenes, surgindo como uma opção antagônica à oligarquia e à aristocracia, até então únicas formas de organização das cidades-Estado (pólis)2. Ao revés da formas de governo precursoras, o modelo democrático aristotélico, propunha uma reorganização das forças políticas, cabendo ao povo o poder de decidir os rumos políticos da pólis ateniense3. Com efeito, a palavra democracia advém do grego dèmokratia, no qual demos = povo, e kratos = força, poder; unindo-se ambos, tem-se, literalmente, o “poder do povo”, a soberania popular, a qual era exercida pela ocupação dos poucos cargos administrativos e judiciais por cidadãos aleatoriamente escolhidos e por uma assembleia composta por todos os cidadãos atenienses, aos quais eram garantidos tanto o direito à palavra como ao voto. Assim, o poder de tomada das decisões políticas da pólis e a elaboração das leis era fruto das

decisões propostas e votadas pela maioria desta assembleia. Não se pode olvidar que a democracia ateniense era, a bem da verdade, bastante excludente, vez serem cidadãos – e, portanto, aptos a participar do processo democrático -, apenas os homens, com mais de 20 anos e proprietários de terras, sendo tolhidos de qualquer processo democrático mulheres, escravos e estrangeiros. Assim, o governo do povo era, na verdade, de uma determinada parcela deste, retiradas as minorias que, se somadas, ultrapassavam consideravelmente o número de pessoas da dita maioria. Para se ter uma ideia da concentração de poder então permitida pelo primeiro modelo democrático implantado, estima-se que dos entre 200.000 e 400.000 habitantes atenienses nos primórdios da democracia, algo entre 30.000 e 60.000 eram tidos como cidadãos, cabendo a estes poucos a determinação dos rumos políticos de toda aquela

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NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 22. RAAFLAUB, Kurt A.; OBER, Josiah; e WALLACE, Robert W. Origin of Democracy in Ancient Greece, University of California Press, 2007, pp. 105-107. 3 ARISTÓTELES, A Política, 15ª ed., São Paulo, Ed. Escala, pp. 70-71.

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sociedade4. Introduzida a base do ideal democrático, a noção de representatividade vem com John Locke, nos idos do século XVII5. Para este, o processo político seria melhor organizado se cidadãos delegassem esta tarefa a representantes previamente escolhidos, podendo, dessa maneira se dedicar às suas atividades privadas. Vale ressaltar que, além do conceito de representatividade, Locke também já pensava na alternância entre eleitos, decerto por vislumbrar a necessidade de uma constante “reciclagem” de ideias.

homens. A descoberta da sua força de trabalho e revolta em face das injustiças as quais eram submetidas no ambiente de labor, despertaram nas mulheres o desejo de participação no jogo político, até mesmo como forma de combate às desigualdades de gênero dentro das fábricas.

O primeiro país democrático a reconhecer o direito ao sufrágio feminino foi a Nova Zelândia, no ano de 1893, após uma intensa luta liderada pela feminista neozelandesa Kate Sheppard. Seguindo o caminho neozeolandês, um intenso movimento pelo sufrágio feminino surgiu na Inglaterra no ano de 1897, sendo o direito ao voto Surge assim, o embrião do que seria a demo- feminino conquistado no ano de 19186., cracia atual, modelo político este a guiar a maioria dos governos mundiais e que, mesmo tendo faPaulatinamente, mulheres de todo o mundo lhas, segue aparentando ser a melhor alternativa passaram a reivindicar o seu direito ao voto em política para organização das diversas sociedades, seus países e, mais do que isso, à efetiva partiem toda sua complexidade. ciapção democrática, com a garantia de assentos em órgãos públicos e pautas legislativas feminiImpende lembrar que, neste ponto, a parti- nas. Esta luta foi impulsionada pela IV Conferência cipação das mulheres no processo democrático Mundial sobre a Mulher, a qual ficou conhecida ainda era vedada e o seguiria sendo por muitos como a “Conferência de Beijing” e foi um marco anos, sendo questionáveis, portanto, as idéias de no tema de mulheres na política7. A Conferência representatividade e alternância de poder, eis que foi a quarta organizada pela ONU para debater um grupo considerável de pessoas estava sendo igualdade de gênero (Cidade do México, 1975; tolhido por completo das tomadas de decisão, Copenhague, 1980; Nairóbi, 1985) e, depois dela, permanecendo o Poder Público e a soberania po- passaram a ter revisões a cada 5 anos8. pular na mão de um grupo determinado e fechado de cidadãos: os homens. O último país a reconhecer o direito das mulheres como eleitoras e candidatas foi a Arábia O movimento sufragista feminino começa a Saudita, em 20159. ganhar força com a Revolução Industrial, a qual introduz a mulher no mercado de trabalho, em condições infinitamente desvantajosas em relação os

1.2. A EVOLUÇÃO DO VOTO FEMININO NO BRASIL Fato curioso: não obstante fosse inegável a intenção de manter-se voto como evidentemente censitário, a Constituição Federal de 1981 traz em seu bojo previsão ambígua quanto à possibilidade de participação das mulheres no processo eleitoral, haja vista prever apenas serem eleitores aptos todos aqueles maiores de 21 anos, sem dis-

tinção de gênero10. Tão logo algumas senhoras se mostram ansiosas com a expectativa de participarem efetivamente dos rumos da República, o Congresso Nacional, pela via legislativa, cuidou de especificar que o direito de votar e ser votado permanecia apenas com os homens11.

4 RAAFLAUB, Kurt A.; OBER, Josiah; e WALLACE, Robert W. Op. cit., pp. 125. 5 LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil e outros escritos. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 50. 6 Disponível em https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-foi-o-movimento-sufragista/ - Acesso em 13/02/2020. 7 SOUZA, Fernanda Thomazella de. Representação feminina no Poder Legislativo: cotas eleitorais de gênero e a função do partido polí-

tico. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019, p. 32. 8 Portal da ONU Mulheres: http://www.unwomen.org/en/how-we-work/intergovernmental-support/world-conferences-on-women Acesso em 13/02/2020 9 Disponível em http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/12/mulheres-votam-pela-primeira-vez-em-eleicoes-na-arabia-saudita.html Acesso em 13/02/2020 10 Art 70. São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei. 11 LISBOA, Silvia, 70 mulheres que mudaram o mundo. Dossiê Superinteressante. São Paulo, 2019, p. 35.

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Mas a manobra parlamentar não seria suficiente para barrar o início do movimento sufragista brasileiro, o qual teve em Leolinda Daltro seu maior expoente. Em 1910, a baiana radicada no Rio de Janeiro fundou e liderou, clandestinamente, o Partido Republicano Feminino. Inspiradas em Leolinda, a paulista Bertha Luz organizou o primeiro congresso feminista do país (Federação Brasileira pelo Progresso Feminino), enquanto Celina Guimarães Viana, em 1927, se tornaria a primeira mulher a se registrar para votar, aproveitando uma lacuna na Constituição Estadual do Rio Grande do Norte12. Infelizmente, o voto de Celina e de outras mulheres potiguares acabaria sendo anulado pelo Senado Federal, sob o pretexto de ser necessária alteração normativa mais profunda, de modo a disciplinar a matéria a nível federal13.

mente correta, do direito das mulheres de votar e ser votada, cabendo a Bertha Lutz participação no grupo de pesquisadores e elaboradores do novo Código Eleitoral. Já em fevereiro de 1932, foi instituído, de forma facultativada, o direito das brasileiras de poder participar da escolha dos seus candidatos, o qual já valeu para a Assembleia Constituinte em todo o país. Somente em 1934, o direito ao voto feminino foi transformado em dever, permanecendo desta forma até os dias de hoje14. Em uma última nota histórica, Leolinda Daltro chegou a se candidatar para concorrer ao cargo de deputada federal na Constituinte convocada por Getúlio Vargas, no entanto, um atropelamento lhe ceifaria a vida antes que pudesse colher os frutos da sua militância.

Em 1930, foi iniciada a discussão do o projeto que acabaria por resultar na previsão, formal-

2. DIVISÃO DE PODERES E PARTICIPAÇÃO FEMININA NAS ESFERAS DE PODER A Revolução Francesa, enquanto movimento político e social, pretendeu a completa ruptura com as bases do Antigo Regime, sendo parte indissolúvel deste o Estado Absolutista. A concentração de todas as facetas do poder na mão de um único representante havia se mostrado terreno fértil para desmandos e tiranias, bem como para a instituição de privilégios para poucos em detrimento do bem-estar de muitos.

Pois bem, são três os poderes reconhecidos: (i) o legislativo, o qual, formado pelo Parlamento, e o responsável pela confecção das normas de direito de abrangência geral ou individual a serem aplicadas à sociedade e ao Estado; (ii) o executivo, a quem compete de governar o Estado, administrando os interesses e as coisas públicas, no estrito cumprimento das suas atribuições e funções legalmente estabelecidas; e (iii) o judiciário, em linhas gerais, cabe a função de apaziguar conflitos Neste contexto, propõe Montesquieu a se- e dizer o direito aplicável em situações envolvenparação dos poderes estatais em três partes dis- do discussões entre particulares ou mesmo entre tintas, harmônicas e independentes, porém, in- o Estado e particulares17. terligadas15. Modernamente, reconhece-se que, muito embora sejam independentes um dos ouNo Brasil, os componentes dos poderes letros, os poderes se controlam mediante o exercí- gislativos e executivo são eleitos pela população, cio de mecanismos de checks and balances16, en- enquanto os membros do poder judiciário são tretanto, como tais conceitos são de pouca valia aqueles aprovados em concurso público especípara os fins deste artigo, não serão explicados de fico para tanto. forma mais pormenorizada. Feita esta breve explanação, passa-se a ex12 Disponível em https://www.politize.com.br/conquista-do-direito-ao-voto-feminino/ - Acesso em 13/02/2020. 13 Idem. 14 LISBOA, Silvia. Op. cit. 15 MONTESQUIEU, Complete Works, vol. 1 (The Spirit of Laws). oll.libertyfund.org. Consultado em 15/02/2020. 16 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Tradutor Nelson Boeira, coleção Justiça e direito, p. 152. 17 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Poder judiciário: crises, acertos e desacertos. Trad. Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 220.

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plicar como se dá a participação das mulheres em à defesa de uma pauta feminina – legislativa, execada esfera de poder e as razões pelas quais a su- cutiva e judiciária – de fato eficiente. brepresentação feminina dentro de cada uma das facetas alhures indicadas é extremamente nociva

2.1. PARTICIPAÇÃO FEMININA NOS PODERES LEGISLATIVO E EXECUTIVO Conforme dados colhidos pelo IBGE em 2018, a população brasileira – formada por aproximadamente 210 milhões de habitantes – é composta da seguinte forma: 51,7%, de mulheres; e 48,3%, de homens. Logo, são quase 6 milhões a mais de mulheres, o que torna o grupo, indubitavelmente, a maioria dos habitantes18.

tramajoritária da democracia, eis assegurar voz às minoriais e seus interesses, protegendo-os de mudanças que, ainda que apoiadas por uma maioria, possam tolher por completo direitos fundamentais do grupo minoritário.

Contudo, para que a democracia possa de fato funcionar como um trunfo contra a maioria, Se tomarmos os números de eleitores, as um mínimo de representatividade deve ser garanmulheres seguem sendo maioria. Na década de tido, situação esta que, dos dados empíricos já 70, apenas 35% do eleitorado era composto por apresentados, evidentemente não se verifica. mulheres, no entanto, em 2006, as mulheres ulDa mesma forma, a necessária alternância trapassaram a marca dos 50%, quebrando a hegemonia do eleitorado masculino. Em 2018, o de representantes não se faz presente, permanepercentual de mulheres no eleitorado brasileiro cendo nas cadeiras legislativas os mesmos parlamentares – ou grupos de parlamentares – que cresceu para 52%19. há anos estão no Parlamento, o que dificulta soNão obstante o percentual de mulheres siga bremaneira a ascensão de novas pautas e ideias, crescendo no eleitorado brasileiro, o número de especialmente aquelas encapadas por um grupo mulheres eleitas não ascende na mesma propor- minoritário e que por décadas foi sumariamente ção. Destarte, ainda que as mulheres sejam a excluído dos eixos de tomada de decisão. maioria da população e do eleitorado, o número Melhor situação não se verifica na escolha de número de candidaturas femininas alcançou apenas 31,6% do total de registros para as últimas dos membros do Poder Executivo. Dos 38 Presidentes da República, apenas um deles foi uma eleições20. mulher, valendo lembrar não ter esta conseguido Considerado o número geral de parlamenta- concluir o seu mandato, tendo sido afastada do res eleitos, apenas 16,20% das vagas foram pre- cargo em decorrência da sua submissão a um duenchidas por candidatas mulheres, sendo a parti- vidoso processo de impeachment. cipação das mulheres na Câmara dos Deputados Nas últimas eleições, o número de governaé de 9% e, no Senado, de 10% do total de eleitos. Logo, é evidente a subrepresentação feminina nas doras eleitas também foi irrisório. O Rio Grande Casas Legislativas, as quais seguem sendo ocupa- do Norte, berço da primeira mulher eleitora do Brasil, foi o único Estado a eleger uma mulher para das majoritariamente por homens21. a função de Chefe do Poder Executivo Estadual22. Conforme já salientado alhures, a represenCabe ressaltar haver no Brasil ação afirmatitatividade é elemento característico dos governos va para a inclusão de mulheres no meio político, a democráticos modernos, especialmente por ser o qual se encontra consubstanciada no artigo 10, § grande garantidor do desempenho da função con18 Disponível em https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18320-quantidade-de-homens-e-mulheres.html - Acesso em 15/02/2020. 19 Disponível em http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2018/Marco/mulheres-representam-52-do-eleitorado-brasileiro - Acesso em 15/02/2020. 20 Disponível em http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2019/Marco/numero-de-mulheres-eleitas-em-2018-cresce-52-6-em-relacao-a-2014 - Acesso em 15/02/2020 21 RIBEIRO, Paulo Silvino. Participação da Mulher na vida política; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/participacao-mulher-na-vida-politica.htm. - Acesso em 17/02/2020. 22 Disponível em https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/eleicao-em-numeros/noticia/2018/10/28/veja-quem-sao-os-27-governadores-eleitos-nas-eleicoes-deste-ano.ghtml - Acesso em 17/02/2020

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3º da Lei nº 9.504/1997 (Lei das Eleições)23, a qual prevê a reserva de uma cota de candidaturas para mulheres dentro dos partidos políticos, sendo o atendimento a esta, inclusive, condição para a disponibilização e fruição do Fundo Partidário.

próprio partido. Como não são raros os casos de candidatas-laranjas, a desconfiança e preconceito com relação às candidaturas femininas crescem entre o eleitorado, o qual acaba se vendo cada vez menos interessado na eleição de mulheres, quer seja para cargos no Parlamento, quer seja para a Malgrado tenham as cotas servido de incen- chefia do executivo. tivo à participação de candidatas mulheres nas eleições, vê-se que a ação afirmativa ainda não Vale anotar que, consoante dados Inter-Parconseguiu alcançar efeitos práticos significativos, liamentary Union, o Brasil é um dos piores países haja vista o reduzido número de participantes efe- em termos de representatividade política femitivamente eleitas. nina, ocupando o 3º lugar na América Latina em menor representação parlamentar de mulheres. Parte do problema se dá ao fato de ainda Conforme apurado, a taxa brasileira é de aproxihaver muito preconceito ao ingresso de mulheres madamente 10 pontos percentuais a menos que na vida política, seja por parte dos partidos, seja a média global, estando praticamente estabilizada por parte do próprio eleitorado. Assim, muitas das desde a década de 194025. que conseguem vencer as barreiras internas e galgar, pelas cotas, um lugar na disputa, acabam não Isto posto, por mais que algumas mudanças tendo o apoio interno necessário para converter tenham sido notadas no percentual de participansua candidatura em eleição. tes femininas e de eleitas, tais alterações ainda não pouco signifiativas em termos de expectativa No mais, muitos partidos acabam se apro- de representatividade das mulheres para os carveitando das cotas para conseguirem, por meio de gos públicos sujeitos ao processo eleitoral. candidatas-laranjas24, burlar a legislação eleitoral e levantar fundos para candidaturas masculinas ou mesmo para propinas e outras ilicitudes dentro do

2.2. PARTICIPAÇÃO FEMININA NO PODER JUDICIÁRIO Conforme pontuado alhures, para ocupação dos assentos perante poderes legislativo e executivo, as mulheres devem, tal como os homens, se submeter ao trâmite democrático de eleição de representantes. Dada a histórica exclusão das mulheres do processo de tomada de decisões, mesmo com a existência de ações afirmativas a garantir uma cota de participantes femininas nas elaições, o Brasil ainda está longe de um número adequado e proporcional de eleitas, sendo evidente a subrepresentação feminina no Parlamento e na chefia do executivo.

curso público, era de se esperar que a participação de homens e mulheres fosse mais igualitária, especialmente por serem as mulheres maioria no cursos jurídicos26. No entanto, não é esse o quadro que se vê na prática. Consoante dados levantados, em 2019, por pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as mulheres são 56,6% do total dos servidores atuantes no Poder Judiciário nos últimos 10 anos.

Considerando serem os assentos perante Em contrapartida, os cargos de confiano poder judiciário preenchidos por meio de con- ça acabam sendo preenchidos, em sua maioria 23

Art. 10. Cada partido ou coligação poderá registrar candidatos para a Câmara dos Deputados, a Câmara Legislativa, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais no total de até 150% (cento e cinquenta por cento) do número de lugares a preencher, salvo: [...] § 3o Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo. 24 Conforme Malu Gatto e Kristin Wyllie, em pesquisa feita sobre candidatas laranja e disponível em https://www.bbc.com/portuguese/ brasil-47446723 - Acesso em 17/02/2020 25 REZENDE, Daniela Leandro. Desafios à representação política de mulheres na Câmara dos Deputados. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 23, n. 3, p. 1199-1218, set. 2017 26 Disponível em https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/participacao-de-mulheres-nas-carreiras-juridicas-07112017 - Acesso em 17/02/2020

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(56,8%), por homens, assim como os postos na magistratura são majoritariamente preenchidos por homens. Pontuados os últimos 10 anos, apenas 37,6% dos juízes e desembargadores são mulheres27. Do exposto, vê-se que o acesso feminino a posições de poder também é restrito no poder judiciário, não servindo o concurso público como um seletor igualitário de participantes. No que tange a distribuição dos servidores públicos, chama especial atenção o fato de que mesmo sendo feminina a maioria dos atuantes, os cargos de chefia – portanto, de poder e melhor remunerados – são em grande parte ocupados por homens, a reforçar a perpetuação da histórica exclusão das mulheres dos postos de maior prestígio e reconhecimento. Trocando em miúdos, mesmo quando há meios, em tese, isonômicos de

escolha de candidatos, sempre que houver espaço para uma seletiva calcada em aspectos pessoais, a questão de gênero acaba sendo um fato de discrímen a pesar de forma negativa às mulheres28. Entre os magistrados, a disparidade, conforme já colocado, é ainda mais gritante. Ainda com base na pesquisa realizada pelo CNJ, a Justiça do Trabalho (50,5%) e a Justiça Estadual (37,4%) são as com maiores percentuais de mulheres na magistratura em atividade. Por outro lado, nos Tribunais Superiores (19,6%) e na Justiça Militar Estadual (3,7%) estão os menores índices de participação feminina. A fim de melhor ilustrar a destoante presença de homens e mulheres no Poder Judiciário, veja-se o mapa abaixo, o qual indica o percentual de desembargadoras nos Tribunais de Justiça da federação29:

Voltando as atenções ao Tribunal de Justiça cipação feminina se deu somente no 146º Condo Estado de São Paulo (TJSP), a primeira parti- curso de Ingresso na Magistratura, quando dos 71 27 Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/05/cae277dd017bb4d4457755febf5eed9f.pdf - Aces-

so em 15/02/2020. 28 MELO, Mônica de; NASTARI, Marcelo; MASSULA, Letícia. A participação da mulher na magistratura brasileira. Revista Jurídica Virtual - Brasília, 6(70), 2005. 29 Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-ago-27/dificuldade-mulher-avancar-magistratura-independe-regiao - Acesso em 17/02/2020

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aprovados 68 eram homens (95,77%) e três eram posição mais elevada já ocupada por uma mulher mulheres (4,23%)30. dentro do TJSP data do recente ano 2018, quando a desembargadora Maria Cristina Zucchi foi eleita Vale destacar datar a existência do TJSP aos para compor o Órgão Especial31. idos de 1874, não tendo nunca sido eleita uma desembargadora para a Presidência do Tribunal. A

3. DESDOBRAMENTOS DA SUBREPRESENTAÇÃO FEMININA NAS ESFERAS DO PODER PÚBLICO De todo o exposto, vê-se de forma clara a subrepresentação feminina nas diversas esferas do Poder Público. Não obstante as mulheres sejam maioria da população e do eleitorado, não conseguem garantir maioria nos assentos do Parlamento, tampouco nas cadeiras de chefe do Poder Executivo.

Prova do que se alega está no conjunto de políticas públicas adotadas para coibir a violência domésticas. Conquanto tenha sido a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) um marco, inclusive mundial, no combate às agressões praticadas contra as mulheres, suas previsões encontram-se ultrapassadas, seja pela complexidade das relações interpessoais e familiares, seja porque sua aplicação pura e simples, desassociada de medidas educativas e de conscientização, pouco faz em termos de prevenção e redução das taxas de violência.

Corolário lógico desta falta de representatividade feminina é a pouca visibilidade e efetividade dada à agenda de preocupações efetivamente feministas, sendo discussões e proposições - tanto legislativas como executivas - voltadas à garantia de direitos e prerrogativas dos direitos das Da mesma forma, tem-se ser essencial uma mulheres constantemente ignoradas ou tratadas maior participação feminina no poder judiciário. sem a devida atenção. Número significativo das demandas levadas à apreciação dos magistrados são ajuizadas por muNão se nega a possibilidade de parlamenta- lheres e envolvem assuntos estritamente relaciores homens tratarem com eficiência de assuntos nados com a agenda feminina e que não se relalegislativos interessantes ao eleitorado feminino, cionam somente com a Lei Maria da Penha (ações entretanto, a própria essência do debate se perde de guarda e alimentos, indenização por danos mose o grande público alvo da medida não tiver re- rais e outras). presentantes nas câmaras legislativas, comissões e demais grupos de estudo atinentes ao projeto. No mais, aspectos comumente tidos como contrários à participação das mulheres na atividaDa mesma forma, e lembrando-se que o ide- de judiciária (sensibilidade e aproximação com o al democrático moderno tem na representativida- jurisdicionalizado), são, a bem da verdade, pontos de e alternância de poder suas pedras de toque, favoráveis e que tornam a participação femininina é indispensável uma maior presença feminina nas no poder judiciário essencial a uma prestação jucadeiras do poder executivo, seja este a nível fe- risdicional e equilibrada, seguindo uma tendência deral, estadual ou municipal, justamente para que por um posicionamento mais humano nas deciseja garantida uma efetiva troca de ideias e de sões judiciais32. pontos de vista na administração pública. Hodieranamente, o que se percebe das ações do poder parlamentar, bem como daquelas oriundas do poder executivo, é uma constante desídia e desconhecimento das reivindicações e necessidades feministas, sendo que muito deste descaso decorre do preconceito decorrente da simples falta de empatia e ciência dos direitos, dificuldades e da atual situação das mulheres no Brasil. 30 Disponível em https://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=55993 – Acesso em 17/02/2020. 31 Disponível em https://www.tjsp.jus.br/QuemSomos/ExPresidentes/P1874a1900 - Acesso em 17/02/2020. 32 SADEK, Maria Tereza. Magistrados: uma imagem em movimento. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 45.

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4. CONCLUSÕES a) as mulheres foram historicamente ex- res; cluídas do processo de tomada de decisões h) para além dos poderes legislativo e desde os primórdios do ideal democrático, executivo, as mulheres também seguem supassando pela Revolução Francesa até os idos brepresentadas no poder judiciário, ainda que da Revolução Industrial; a seleção para este se dê por meio de concurb) no período pós Revolução Industrial e so público. pós inserção das mulheres na atividade opei) muito embora sejam maioria nos currária, as diferenças nos tratamentos entre sos jurídicos, as mulheres não conseguem homens e mulheres, tanto nas fábricas como ocupar a maioria dos cargos da magistratura, nos demais âmbitos sociais, se faz ainda mais tampouco ocupam o maior número de cargos perceptível e passa a incomodar um grupo de chefia e/ou de confiança nos Tribunais, fide mulheres que passa a perceber e a buscar cando renegadas à posição de servidoras púmaior participação no jogo democrático; blicas sem maiores reconhecimentos, poder c) o movimento sufragista evolui de for- ou remuneração, em situação que em muito mas diferentes a depender do local no qual se se aproxima daquela verificada na carreira priencontra, momento político do país e caracte- vada; rísticas sociais, econômicas e culturais daquej) assim, as mulheres seguem excluídas la sociedade. A Conferência de Beijing é, dendo processo de tomada de decisões, eis não tro deste contexto, um esforço coletivo pela conseguirem traduzir em representação pepromoção dos direitos das mulheres, inclusive rante quaisquer dos poderes a sua maioria em no âmbito político; termos de número de habitantes, o que fere d) no Brasil, o movimento sufragista se de morte a função contramajoritárida da deaproveita de lacunas normativas para se orga- mocracia, bem como inviabiliza a adoção de nizar e exercer pressão política pelo reconhe- uma agenda pública calcada em políticas que cimento do direito ao voto feminino, o que de fato atendam aos anseios, interesses e preacaba ocorrendo durante a Era Vargas; ocupações femininas dos dias de hoje; e) malgrado não tenha sido o Brasil um dos últimos países a reconhecer e garantir proteção constituicional ao voto feminino, ainda é um dos países com menor representatividade feminina no Poder Público; f) logo, vê-se que as ações afirmativas adotadas com vistas à promoção da necessária representatividade e alternatividade entre os representantes democraticamente eleitos ainda não surtiu os efeitos práticos esperados, permanecendo as mulheres (maioria em habitantes e em eleitorado) subrepresentadas no jogo democrático;

l) para correção do problema apontado, além da manutenção e melhor desenvolvimento e fiscalização das políticas públicas já existentes, também se faz necessária adoção de medidas afirmativas e propositivas por uma mudança cultural quanto ao papel da mulher na sociedade e no jogo político, reconhecendo seu protagonismo e a indispensabilidade de lhe serem conferidas iguais assentos em todas as esferas do Poder Público.

g) o preconceito e as barreiras históricas e sociais são grandes entraves à aceitação de mulheres no Parlamento e na chefia do poder executivo, o que afasta das mesas legislativas temas da agenda feminista, essenciais à promoção de direitos e garantias para as mulhe80


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS A) Livros ARISTÓTELES, A Política, 15ª ed., São Paulo, Ed. Escala. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Tradutor Nelson Boeira, coleção Justiça e direito, p. 152. LISBOA, Silvia, 70 mulheres que mudaram o mundo. Dossiê Superinteressante. São Paulo, 2019. LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil e outros escritos. Petrópolis: Vozes, 1994. MONTESQUIEU, Complete Works, vol. 1 (The Spirit of Laws). oll.libertyfund.org. Consultado em 15/02/2020. NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra Editora, Coimbra, 2006. RAAFLAUB, Kurt A.; OBER, Josiah; e WALLACE, Robert W. Origin of Democracy in Ancient Greece, University of California Press, 2007. RIBEIRO, Paulo Silvino. Participação da Mulher na vida política; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/participacao-mulher-na-vida-politica.htm. - Acesso em 17/02/2020. SADEK, Maria Tereza. Magistrados: uma imagem em movimento. Rio de Janeiro: FGV, 2006. SOUZA, Fernanda Thomazella de. Representação feminina no Poder Legislativo: cotas eleitorais de gênero e a função do partido político. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Poder judiciário: crises, acertos e desacertos. Trad. Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 220. MELO, Mônica de; NASTARI, Marcelo; MASSULA, Letícia. A participação da mulher na magistratura brasileira. Revista Jurídica Virtual - Brasília, 6(70), 2005. B) Publicações e notícias Disponível em https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-foi-o-movimento-sufragista/ - Acesso em 13/02/2020. Portal da ONU Mulheres: http://www.unwomen.org/en/how-we-work/intergovernmental-support/world-conferences-on-women Acesso em 13/02/2020 Disponível em http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/12/mulheres-votam-pela-primeira-vez-em-eleicoes-na-arabia-saudita.html - Acesso em 13/02/2020 Disponível em https://www.politize.com.br/conquista-do-direito-ao-voto-feminino/ - Acesso 81


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DIREITO DAS MULHERES À IGUALDADE TRIBUTÁRIA (PINK TAX) Sintia Salmeron Sócia da Leite Melo & Camargo Sociedade de Advogados. Professora de Direito Tributário no AdLege Curso Jurídico em Bauru. Monitora do curso de Especialização “Lato Sensu” em Direito Tributário da Fundação Getúlio Vargas - FGVLAW - em Bauru. Presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB, Subseção de Bauru. Conselheira Suplente do Conselho de Contribuintes do Município de Bauru. Mestre em Direito Constitucional pelo Centro Universitário de Bauru mantido pela Instituição Toledo de Ensino. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Bauru da Instituição Toledo de Ensino - ITE Bauru Omar Augusto Leite Melo Sócio da Leite Melo & Camargo Sociedade de Advogados. Especialista em Direito Tributário pelo Centro de Extensão Universitária – CEU. Mestrando em Direito Constitucional pelo Centro Universitário de Bauru mantido pela Instituição Toledo de Ensino. Presidente da Comissão de Análise Econômica do Direito e Jurimetria, Subseção de Bauru. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Bauru da Instituição Toledo de Ensino - ITE Bauru.

SUMÁRIO 1. Introdução 2. Análise da Igualdade Tributária de Gênero a Partir da Classificação dos Tributos de Acordo com a sua Base Econômica de Incidência 3. Desigualdade na Tributação do Consumo de Produtos e Serviços Femininos 4. Desigualdade na Tributação da Mão de Obra Feminina, Especificamente com Relação à Licença Maternidade 5. Conclusões Referências

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RESUMO A Constituição Federal apregoa que homens e mulheres são iguais perante a lei, não sendo, portanto, admitida nenhuma forma de discriminação. O Sistema Tributário Nacional traz disposição semelhante afirmando, em seu artigo 150, inciso II, que é proibido a instituição de tratamento desigual entre os contribuintes. Em que pese a existência destes dispositivos constitucionais, o que se verifica é que, na realidade, esta igualdade não vem sendo praticada. A discriminação com relação às mulheres tem se apresentado de várias formas, sendo a tributária uma delas. Com fundamento nisso e considerando a existência de inúmeros movimentos pelo mundo visando ao combate à discriminação tributária das mulheres, faz-se necessário um estudo sobre o tema levando em consideração a realidade e o sistema tributário brasileiro.

PALAVRAS-CHAVE Direito tributário. Tributação das mulheres. Direitos femininos. Pink tax. Tax woman. Gender bias. Princípio da igualdade. Discriminação tributária entre homens e mulheres nos tributos incidentes sobre consumo e salário.

ABSTRACT The Federal Constitution preaches that men and women are equal before the law, therefore, no allowing forms of discrimination. The National Tax System has a similar prevision, in its article 150, item II, there is no permission by law a institution of unequal treatment among taxpayers. In spite of this existence of all constitutional provisions, nowadays, in reality, this equality is not a practice. There is a discrimination against women in many forms, with taxation being one of them. For this reason and considering the existence of numerous movements around the world aiming for combat a tax discrimination against women, the study of this subject is important, and necessary also, considering the reality of the Brazilian tax system.

KEYWORDS Tax law. Taxation of women. Women’s rights. Pink tax. Tax woman. Gender bias. Principle of equality. Tax discrimination between men and women in taxes on consumption and wages.

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1. INTRODUÇÃO “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações” apregoa a Constituição Federal de 1988, logo no inciso I do seu artigo 5º. Especificamente no campo tributário, o artigo 150, inciso II, do Texto Constitucional, reforça a vedação contra a instituição de “tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente”.

Eis o propósito do presente trabalho: propagar essa relevante temática e colaborar com essa discussão acerca da tributação discriminatória contra as mulheres no ordenamento brasileiro.2

Para tanto, serão apresentados dados que relatam o tratamento da legislação tributária brasileira sobre alguns produtos e serviços consumidos exclusiva ou preponderantemente pelas muA Constituição Federal, sem sombra de lheres, bem como o tratamento desigual contra a dúvida, assegura o tratamento isonômico en- mão de obra feminina.

tre homens e mulheres, inclusive na tributação. Dito de outra maneira, não deve haver discriminação tributária em razão do gênero da pessoa, de tal forma que os contribuintes, independentemente do seu sexo, merecem receber o mesmíssimo tratamento.

Neste diapasão, serão abordadas as tributações sobre o consumo (de produtos ou serviços femininos) e o salário (das empregadas do sexo feminino), com apresentação de argumentos visando à supressão de tais inconstitucionalidades, além de elogios às medidas tributárias já Isso é, pelo menos, o que consta na Cons- encontradas em vigor no sistema tributário bratituição da República Federativa do Brasil. Mas, sileiro. na prática, será que a igualdade tributária entre mulheres e homens está sendo respeitada pela legislação infraconstitucional? No Brasil, diante da inexistência de um tratamento discriminatório explícito,1 ou seja, ausência de uma legislação que expressamente tribute de modo diferente um contribuinte tão-somente em razão do sexo, tal investigação precisa ser mais profunda, no sentido de diagnosticar as desigualdades implícitas encontradas no sistema tributário nacional, que mascaram um peso tributário majorado contra as contribuintes femininas. Esses estudos voltados à detecção e remoção da tributação desigual imposta contra as mulheres, tratados como “pink tax”, “woman tax” ou “gender bias”, têm crescido no mundo inteiro, com avanços pelo menos no que concerne ao apontamento de alguns tratamentos discriminatórios inconstitucionais, além de despertar esse debate até então adormecido. 1 “O mesmo não ocorre, por exemplo, na Argentina: os rendimentos de bens comuns ao casal são, como regra geral, atribuídos ao homem – a discriminação é evidente, portanto” (PISCITELLI, Tathiane et al. Tributação e gênero. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/tributacao-e-genero-03052019. Acesso em: 30 jan. 2020). 2 Heleno Taveira Torres assim discursou acerca dos estudos envolvendo o tema da “tributação das mulheres”: Portanto, estudar a tributação das mulheres e a repercussão da desigualdade tributária como fator prejudicial à concretização do desenvolvimento, segundo os princípios do Direito Financeiro e do Estado Democrático de Direito, a partir de uma metodologia interdisciplinar, numa exegese teleológica das normas fiscais, inclusive à luz do direito comparado, assume-se como um dos temas mais ricos e atuais deste momento histórico. Quanto mais as oportunidades sejam iguais e os custos do viver em sociedade sejam equilibrados, maior será a atividade econômica das pessoas e melhor e mais favorável será o desenvolvimento de toda a sociedade (TORRES, Heleno Taveira. Desigualdade de gênero e na tributação da mulher prejudicam desenvolvimento. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jun-12/ consultor-tributario-desigualdade-tributacao-mulher-prejudicam-desenvolvimento. Acesso em: 30 jan. 2020).

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2. ANÁLISE DA IGUALDADE TRIBUTÁRIA DE GÊNERO A PARTIR DA CLASSIFICAÇÃO DOS TRIBUTOS DE ACORDO COM A SUA BASE ECONÔMICA DE INCIDÊNCIA Há vários critérios sugeridos pela doutrina para se classificar os tributos: em razão da vinculação de uma prestação estatal (tributos vinculados e não vinculados); variação da alíquota (progressivos ou não); quantidade de etapas de incidência (monofásicos, plurifásicos); finalidade (fiscal ou extrafiscal); repasse dos encargos (diretos ou indiretos); geração de créditos ou descontos em função das etapas anteriores (cumulativos e não cumulativos) etc.

pelo filtro da constitucionalidade. Todavia, a partir de recentes e importantes estudos voltados para essa temática, têm sido levantadas e questionadas algumas tributações desiguais contra as contribuintes mulheres. Na verdade, o debate em torno do assunto - “tributação e mulheres”, que vem se propagado com os termos “pink tax”, “woman tax” ou “gender bias” – não é algo novo. Durante a luta feminista pelo direito ao voto ocorrida sobretudo entre o final do século XIX e início do século XX,3 um dos argumentos levantados pelo movimento vinha exatamente deste viés tributário: como as mulheres poderiam ser obrigadas ao pagamento de tributos sem direito ao voto, violando, assim, um clássico fundamento ou pressuposto de legitimidade da tributação, de que os tributos somente podem ser criados mediante representação popular, ou seja, através dos seus representantes políticos que elaboraram e aprovaram a lei que instituiu o tributo? A tributação sobre as mulheres, então, aparecia como uma contradição ao seu status precário e paradoxo de cidadã sem direito ao voto.4

Para o presente estudo, convém identificar a classificação econômica adotada pelo próprio Código Tributário Nacional (CTN) em seu Título III, quando separa os impostos sobre “comércio exterior” (artigos 19 a 28), “patrimônio e renda” (artigos 29 a 45), “produção e circulação” (artigos 46 a 73). Muito embora essa classificação do Codex se refira apenas à espécie tributária dos impostos, há total compatibilidade de sua extensão também para as contribuições sociais, eis que também incidem sobre essas bases econômicas que exteriorizam sinais de riqueza e de capacidade contributiva dos contribuintes, como é o caso do PIS/COFINS-importação (comércio exterior), CSLL (acréscimo patrimonial), cota patronal, SAT/RAT, terceiros (renda, especialmenNos Estados Unidos da América (EUA), a te o salário), CIDE-combustível e o PIS/COFINS partir da década de 1970 surgiu um movimento (produção e circulação). de estudo jurídico engajado exclusivamente nas De acordo com a igualdade tributária ou a desigualdades de gênero, conhecida como teoigualdade geral de gênero, não pode haver um ria ou escola feminista do Direito, que participou tratamento tributário diferenciado em razão do ativamente na legalização do aborto (liberado sexo, que beneficie ou prejudique a mulher ou em 1973 pela Suprema Corte dos EUA no caso o homem. Sob o critério do gênero, homens e Roe vs. Wade), na nomeação da primeira minismulheres devem ter os mesmos direitos e deve- tra da Suprema Corte norte-americana em 1981 que ficou no cargo até res tributários. Uma tributação que distorça esse (Sandra Day O’Connor, 5 janeiro de 2006), conquista de direitos em favor princípio constitucional tributário não passará 3 No Brasil, o sufrágio feminino foi conquistado a partir do Decreto nº 21.076/1932, consolidado na Constituição de 1934 e nas posteriores, inclusive na de 1988 (art. 14). No mundo, os primeiros países a reconhecerem o direito ao voto para as mulheres foram a Nova Zelândia (1893) e a Finlândia (1906). Nos EUA, as mulheres conquistaram seu direito de votar em 1919, a partir da Emenda Dezenove. Na América do Sul, o Equador foi o pioneiro nesse reconhecimento, em 1929. 4 Tathiane Piscitelli, Andréa Mascitto, Raquel Preto, Betina Grupenmacher, Catarina Rodrigues, Daniela Silveira Lara, Fernanda Ramos Pazello e Renata Correia Cubas explicam: “Sob o mote do lema da revolução civil americana ‘no taxation without representation’, muitas mulheres passaram a se recusar a pagar tributos sobre suas propriedades, na medida em que a ausência do direito de escolha de seus representantes refletia uma invasão indevida em suas vidas privadas” (PISCITELLI, Tathiane et al. Tributação e gênero. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/ artigos/tributacao-e-genero-03052019. Acesso em: 30 jan. 2020). 5 Atualmente, a Suprema Corte norte-americana conta com três ministras: Ruth Bader Ginsburg, Sonia Sotomayor e Elena Kagan. A propósito, recentemente foi produzido um filme sobre a história da Ministra Ruth Bader

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dos homossexuais, luta contra a pornografia e na participação militar das mulheres.6 De acordo com Ana Lúcia Sabadell, o estudo analítico e crítico acerca da posição das mulheres no direito busca diagnosticar a possível ou provável “contribuição do sistema jurídico para a perpetuação dessas violações dos direitos da mulher”, através de “[...] leituras internas, relativas à estrutura do direito positivo”, bem como de “[...] leituras externas, relativas e às relações entre o direito e a cultura, machista/sexista”.7 Ao tratar da educação jurídica nos EUA, Richard Posner historiou o surgimento e desenvolvimento da teoria feminista do direito:

Até pouco tempo, a advocacia, em todas as suas vertentes, era uma profissão totalmente dominada por homens. A Faculdade de Direito de Harvard só passou a admitir mulheres como aunas na década de 1950, e a primeira juíza da Suprema Corte só foi nomeada em 1981. Como resultado da escassez de mulheres em posições influentes na profissão e do papel de subordinação que, via de regra, estas ocupavam na sociedade, o direito não refletia os interesses das mulheres, nem a perspectiva delas, a propósito de um grande número de questões. Entre essas questões, estavam as normas probatórias nos julgamentos por estupro, a venda e a exibição de pornografia, o assédio sexual no trabalho, a discriminação sexual no trabalho e nas instituições de ensino, as normas relativas ao divórcio e à guarda de crianças, as restrições legais ao aborto e as adaptações a serem feitas no local de trabalho para acomodar mulheres grávidas.8

Mais recentemente, no final de 2019, o Fórum Econômico Mundial (WEF) divulgou em sua página eletrônica9 um relatório sobre desigualdade de gênero, ocupando o Brasil a 92ª posição final no ranking mundial. No quesito específico da igualdade salarial, nosso País piora ainda mais sua situação, caindo para 130ª posição! Ainda que não tenha uma conotação diretamente tributária, a Convenção nº 103 da Organização Internacional do Trabalho, que versa sobre o amparo à maternidade, ratificada pelo Brasil em 18/06/1965 e promulgada pelo Decreto n° 58.820, de 14/07/1966 (poucos meses antes do nosso CTN), vedou o repasse dos custos da licença-maternidade para o patrão, com o fim de evitar o encarecimento da mão de obra feminina em comparação com a masculina: “em hipótese alguma, deve o empregador ser tido como pessoalmente responsável pelo custo das prestações devidas às mulheres que ele emprega”. No item 4, do mesmo art. IV, a Convenção nº 103 determina acerca da licença-maternidade:

4. As prestações em espécie e a assistência médica serão concedidas quer nos moldes de um sistema de seguro obrigatório quer mediante pagamento efetuados por fundos públicos, em ambos os casos serão concedidos de pleno direito a todas as mulheres que preencham as condições estipuladas. Ao seguir a referida convenção internacional, blindou-se o repasse do ônus (financeiro) da licença-maternidade para o empregador, consistente no custeio da remuneração da mulher durante o seu período de afastamento licença-

Ginsburg, intitulado de “A Juíza”. Ainda sobre ela, conferir: FERNANDES, João Renda Leal. Notorious R.B.G. e o poder de um voto divergente. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/notorious-r-b-g-e-o-poderde-um-voto-divergente-13022020. Acesso em: 14 fev. 2020. Vale lembrar que, no Brasil, a primeira ministra do Supremo Tribunal Federal foi Ellen Gracie Northfleet, que atuou entre 2000 e 2011. Atualmente, o STF conta com duas ministras: Carmen Lúcia Antunes Rocha (desde 2006) e Rosa Weber (2011). 6 A história conta a participação de mulheres no exército norte-americano durante a Guerra da Independência (1775-1783), porém disfarçadas de homens. Em 1942, as Forças Armadas dos EUA criaram a primeira unidade feminina. Recentemente, em 2015, as mulheres norte-americanas adquiriram o direito de concorrer por todos os empregos militares, inclusive os postos de combate. Em 2018, pela primeira vez na história, uma mulher (Tenente-General Laura J. Richardson) assumiu o maior comando do Exército norte-americano. 7 SABADELL, Ana Lucia. Manual de sociologia jurídica. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 229. 8 POSNER, Richard Allen. Fronteiras da teoria do direito. Tradução de Evandro Ferreira e Silva, Jefferson Luiz Camargo, Paulo Salles e Pedro Sette-Câmara. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. XVI. 9 WORLD ECONOMIC FORUM. Global gender gap report 2020. Suíça, 2019. 371 p. Disponível em: http://www3. weforum.org/docs/WEF_GGGR_2020.pdf. Acesso em: 12 fev.2020.

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-maternidade. Esse custo, portanto, deve ser as- zindo a sua renda líquida em comparação com sumido por um sistema público de seguro obriga- a dos consumidores (e contribuintes) homens. tório (seguridade social). Agora, para se chegar a essa conclusão, é fundamental ter em mente que os tributos sobre Por isso, a partir da vigência dessa norma consumo são indiretos, é dizer, o ônus tributáno ordenamento jurídico brasileiro, o custeio do rio não é economicamente assumido pelo consalário-maternidade, nos 120 (cento e vinte) dias tribuinte “de direito” (fornecedor do produto ou de afastamento da empregada, passou a ficar a serviço), na medida em que é considerado, inclucargo da Previdência Social e não do emprega- ído e repassado dentro no preço do produto ou dor. A legislação brasileira observa essa regra, serviço, logo, transferido para o consumidor, que transferindo apenas o pagamento para o empre- atua como um “contribuinte de fato”. Acerca dos gador, que se credita do montante para fins de tributos indiretos, leciona Leandro Paulsen: compensação automática (administrativa) com débitos previdenciários.10 Tratando-se de tributos indiretos, asConforme advertido, muito embora a licença maternidade não seja um tema ou instituto diretamente tributário, há uma evidente repercussão de natureza fiscal, na medida em que o salário-maternidade (benefício custeado pela Previdência Social) entra na base de cálculo das contribuições sociais incidentes sobre a folha de salários, ou seja, na prática, o empregador acaba arcando com altos encargos tributários que recaem sobre essa licença, a saber: cota patronal (20%), SAT/RAT (1% a 3%, dependendo do grau de risco da atividade) e terceiros (5,8%). Consequentemente, em comparação com o trabalhador do gênero masculino, a mão de obra feminina sofre um tratamento tributário majorado durante o período de licença-maternidade. Daí a necessidade de uma abordagem sobre a (in) constitucionalidade da incidência de contribuições sociais sobre a licença-maternidade, que será enfrentada doravante. Por outro lado, no que concerne à tributação sobre o consumo de produtos e serviços, há pesquisas e estudos que revelam um tratamento tributário discriminatório contra as mulheres, levando ao encarecimento daqueles produtos e serviços de consumo exclusivo ou preponderantemente feminino. Em outras palavras, essa distorção tributária detectada no consumo tem por consequência final uma obrigação tributária majorada contra as contribuintes mulheres, redu-

sim considerados aqueles relativamente aos quais o próprio legislador estabelece que sejam destacados no domicílio fiscal de venda e que componham o valor total da operação, como é o caso do IPI, do ICMS e, via de regra, também do ISS, aplica-se o artigo 166 do CTN. Nesses casos, teremos duas figuras a considerar, a do contribuinte de direito e a do contribuinte de fato. Contribuinte de direito é a pessoa que, por realizar o fato gerador, é obrigada por lei ao pagamento do tributo. Contribuinte de fato é outra pessoa que, não estando obrigada a efetuar o pagamento do tributo perante o fisco, suporta indiretamente o ônus da tributação na medida em que a ela é repassada a carga tributária.11

Dessa forma, uma tributação sobre o consumo que, em última instância, deságua para renda da consumidora de produtos e serviços exclusiva ou preponderantemente femininos, pode ensejar também um tratamento tributário desigual entre homens e mulheres. Estudo divulgado pelo INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos em 201412 expõe a perversidade da tributação sobre o consumo no País, concluindo que a contribuinte mulher, negra e pobre é quem mais paga tributos no Brasil!

10 Assim estatui o art. 72, §1º, da Lei nº 8.213/1991 (Lei de Benefícios Previdenciários): “Cabe à empresa pagar o salário-maternidade devido à respectiva empregada gestante, efetivando-se a compensação, observado o disposto no art. 248 da Constituição Federal, quando do recolhimento das contribuições incidentes sobre a folha de salários e demais rendimentos pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço”. O §3º ressalva que essa regra não se aplica aos empregadores microempreendedores individuais (MEI). 11 PAULSEN, Leandro. Curso de direito tributário completo. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 234. 12 SALVADOR, Evilásio. As implicações do sistema tributário brasileiro nas desigualdades de renda. INESC: Brasília, 2014. Disponível em: https://www.inesc.org.br/wp-content/uploads/2019/04/Sistema_tributario_e_desigualdades_ evilasio.pdf. Acesso em: 30 jan. 2020.

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Ou seja, o estudo denuncia três graves desigualdades simultaneamente geradas pela tributação sobre o consumo em nosso país: contra os pobres (que detém menor capacidade econômica, criando um cenário regressivo diametralmente oposto àquele determinado pela Lei Maior),13 contra os negros (discriminação racial)14 e contra as mulheres (desigualdade de gênero).

da do referido estudo do INESC, demonstra que, na base da pirâmide, ou seja, dos 10% mais pobres (onde 68,06% são negros), a carga tributária atinge 32%. Nesta faixa, as mulheres negras são o maior grupo contribuinte, 35,59%. No outro extremo, dos 10% mais ricos (83,72% são brancos), a carga é de 21%. Nessa faixa, são os homens brancos que predominam, 49%.

A tabela abaixo (Tabela 1 – Título), extraíTabela 1 - Título

Fonte: INESC, 2014.

Nota-se que esses números apontam como da cobrança de contribuições sociais como a tributação efetivamente funciona e sobre a licença maternidade. repercute na realidade brasileira, reforçando ainda mais a importância de novos e mais estudos, pesquisas e sugestões racionais e eficientes para a correção dessas desigualdades presentes no custeio do Estado. No presente artigo, o enfoque se dará tão-somente em torno da tributação (des)igual entre homens e mulheres, a partir da análise da tributação de produtos e serviços consumidos exclusivamente ou sobretudo pelas mulheres, bem 13 CF, art. 145, §1º, 1ª parte: “sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte”. Importante ressaltar, ainda, nos termos do art. 3º, III, da Constituição, que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil consiste na erradicação da pobreza e na redução das desigualdades sociais. 14 O art. 3º, IV, da CF também elenca como objetivo fundamental “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

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3. DESIGUALDADE NA TRIBUTAÇÃO DO CONSUMO DE PRODUTOS E SERVIÇOS FEMININOS Nos EUA, há uma campanha liderada pela advogada Jennifer Weiss-Wolf intitulada “Igualdade Menstrual”,15 cuja vertente tributária se concentra na luta contra a tributação dos absorventes (“tampon tax”), por se tratar de um produto exclusivamente feminino e de utilidade necessária e habitual para todas as mulheres que se encontram dentro do ciclo menstrual. No Brasil, sobre o absorvente higiênico recai uma tributação que gira em torno de 25%, ou seja, um quarto do preço pago pelas consumidoras é só de custo tributário, mais especificamente o ICMS. Numa eventual isenção ou desoneração do ICMS sobre o produto, o preço tenderia a cair para aproximadamente 75% do valor atualmente praticado pelo mercado.

cias, eis a carga tributária em cima desses produtos: na Itália (21%); Alemanha (19%); África do Sul (14%); Malásia e Austrália (10%); EUA (7%), mas no Estado de Nova Iorque foi concedida isenção total; França (era de 20%, mas foi recentemente reduzido para 5,5%); Reino Unido (5%). Em 2015, o Canadá zerou a tributação, com o objetivo de promover a igualdade da taxação sobre produtos para homens e mulheres, já que o absorvente é um produto de higiene básica, de uso não opcional, consumido exclusivamente por mulheres. Com efeito, a taxação de um produto com tais peculiaridades atribui um peso superior e desigual sobre a renda das mulheres perante o financiamento do Estado.

Rodolfo Almeida, Daniel Mariani e Vitória Espera-se que essas movimentações ocorOstetti apresentam o seguinte estudo relacionado ao valor que as mulheres gastam com a tribu- ridas no Canadá e na França cheguem, e em breve, até o Brasil e demais países que ainda não tação sobre os absorventes: se atentaram ao tratamento desigual acarretado O imposto sobre absorventes é uma pelo “pink tax”, seja através de uma alteração letaxa que será cobrada de mulheres, em mé- gislativa ou de um posicionamento judicial. Como dia, dos 12 aos 51 anos de vida. Supondo bem lembra Ana Lúcia Sabadell, muitos avanços valores médios de um ciclo menstrual de 28 legislativos em prol dos direitos das mulheres se dias, com a menstruação durando 5 dias e deram em virtude de um empréstimo ou transcom o uso de 4 absorventes por dia, o total plante jurídico de leis de um país para o outro, de imposto que cada cidadã paga ao governo ou, mais ainda, advindos de tratados, declarações ou convenções internacionais, sobretudo durante a vida irá variar de R$ 852 a R$ 4849, nas áreas do direito constitucional, de família, do dependendo do preço e modelo do produto.16 trabalho e penal17.

Dito de outra forma, o direito comparado e o direito internacional servem como fatores Na taxação do absorvente (“tampon tax”), infelizmente o Brasil lidera o ranking mundial positivos que podem impulsionar a igualdade com esse percentual de 25%. Como referên- de gênero, inclusive no campo tributário. 15 “No estado de Nova York (EUA) foi criada uma lei chamada ‘Igualdade Menstrual’, na qual em escolas públicas, prisões e abrigos os absorventes são distribuídos gratuitamente. Além disso, estes produtos estão sendo incluídos no orçamento destas instituições assim como o papel higiênico, ou seja, é uma compra básica. O objetivo principal dessa lei é dar acesso aos absorventes, que geralmente são caros para as pessoas que possuem baixa ou nenhuma renda”. (SANTOS, Sarah Luisa. Absorvente não é luxo: é hora de lutar pela igualdade menstrual. Disponível em: https:// helloclue.com/pt/artigos/cultura/absorvente-nao-e-luxo-e-hora-de-lutar-pela-igualdade-menstrual. Acesso em: 30 jan. 2020). Recentemente, o Município do Rio de Janeiro aprovou o fornecimento gratuito de absorventes higiênicos para estudantes da rede pública municipal, através da Lei nº 6.603/2019. No Município de São Paulo houve a tentativa de se aprovar algo similar por meio do Projeto de Lei nº 55/2013, que foi aprovado pela Câmara Municipal, mas vetado pelo então Prefeito Fernando Haddad. 16 ALMEIDA, Rodolfo; MARIANI, Daniel; OSTETTI, Vitória. O imposto sobre absorventes no Brasil e no mundo. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/grafico/2016/12/05/O-imposto-sobre-absorventes-no-Brasil-e-no-mundo. Acesso em: 30 jan. 2020. 17 SABADELL, Ana Lucia. Manual de sociologia jurídica. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 237.

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Os questionamentos contra o “tampon tax” têm se estendido para outros produtos essenciais de consumo feminino, como se extrai do artigo “Tributação e gênero”, op.cit., de coautoria de Tathiane Piscitelli, Andréa Mascitto, Raquel Preto, Betina Grupenmacher, Catarina Rodrigues, Daniela Silveira Lara, Fernanda Ramos Pazello e Renata Correia Cubas, todas fundadoras e membros do Comitê Executivo do WIT – Woman in Tax Brazil: Há ainda outras situações no mínimo peculiares, que bem evidenciam a tributação mais onerosa para bens de consumo que são adquiridos majoritariamente por mulheres. Veja-se, por exemplo, no caso brasileiro, a tributação respectivamente de ICMS e IPI sobre bombas de amamentação (18% ICMS e 5% de IPI), adaptadores de silicone para seios durante a amamentação (18% ICMS e 10% de IPI) e os sabonetes íntimos femininos (18% ICMS e 10% de IPI), todos eles bens essenciais para as mulheres, únicas consumidoras desse tipo de produtos. Isso tudo ao lado da elevadíssima tributação das fraldas descartáveis (18% ICMS e 15% IPI). Obviamente, há outros produtos femininos que podem ser estendidos a essa lista meramente exemplificativa, como é o caso de remédios contra doenças que assolam apenas as mulheres. Essa essencialidade também deveria se estender para alguns cosméticos femininos que a legislação tributária teima em tratar como supérfluos e, por conseguinte, aumentam a carga tributária sobre tais produtos, em total desarmonia com a realidade social e cultural, culminando numa tributação mais gravosa (logo, desigual) contra as mulheres. As autoras acima citadas também discorreram sobre isso:

tributação entre 22% a 12%, a depender do bem, como se vê do item 33.04 da tabela do IPI. A justificativa para o nível elevado das alíquotas está no fato de que cosméticos são bens supérfluos e, como tais, devem ser mais onerados. Porém, ainda que a essencialidade desses bens seja questionável, a imposição de um certo padrão de beleza e comportamento para as mulheres é um fato inegável. Ao mesmo tempo, ainda que o uso de tais produtos esteja na esfera de autonomia das mulheres, como de fato deve estar, é igualmente verdade que o não cumprimento desse padrão, especialmente em ambientes profissionais, é visto como sinal de descuido e inadequação. Sendo assim, a reflexão sobre as alíquotas atualmente vigentes é necessária. Ora, se a seletividade do ICMS é meramente facultativa, consoante a redação literal do artigo 155, §2º, III,18 da CF, o rebaixamento da alíquota do imposto estadual pode ser conquistado com a invocação do princípio constitucional da igualdade de gênero, promovendo19 e estabelecendo, assim, a igualdade entre mulheres e homens também no que concerne ao financiamento do Estado por via de tributos. Neste caso, a igualdade tributária se concretizaria com a eliminação desses tributos arcados exclusivamente pelas contribuintes mulheres. Por meio de sua teoria funcionalista, Norberto Bobbio deslocou a interpretação e aplicação dos princípios jurídicos (como é nitidamente o caso da igualdade de gênero) sob o enfoque de sua função dentro do ordenamento, analisando o direito como instrumento de incentivo para a prática de condutas desejadas (sanções premiais) ou, inversamente, de desincentivo para as condutas indesejadas (sanções negativas). Acerca dessas sanções, ensina o mestre italiano:

[Sanção é] a resposta ou a reação que o grupo social manifesta por ocasião de um Do ponto de vista do ICMS, o padrão comportamento por algum motivo relevante nacional é a tributação de cosméticos pela de um membro do grupo (relevante no sentialíquota de 25%17. Já a União, via IPI, fixa a do negativo ou positivo, não importa).20 18 “Art. 155. omissis. §2º. O imposto previsto no inciso II [ICMS] atenderá ao seguinte: III – poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços”. 19 Essa função promocional do Direito é um tema marcante na doutrina de Norberto Bobbio, especialmente na sua obra “Da estrutura à função: novos estudos de teoria jurídica do direito” (Tradução de Daniela Baccaria Versani. Barueri: Editora Manole, 2007). 20 BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria jurídica do direito. Tradução de Daniela

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Com efeito, a função do princípio tributário da isonomia entre homens e mulheres consiste em repartir a carga tributária de forma igualitária entre os contribuintes e isso obviamente também deve valer para a tributação sobre o consumo. Ora, no que tange à tributação sobre o patrimônio ou renda, não há dúvidas de que inexiste qualquer abertura constitucional para uma tributação diferenciada em razão do sexo do contribuinte, do tipo (pitoresco) das mulheres terem uma alíquota majorada do imposto de renda ou, então, que os proprietários homens tenham uma alíquota superior de IPVA ou IPTU! Por certo, ninguém defenderia a validade de um tratamento desigual com relação a esses tributos sobre a renda ou o patrimônio, baseado no gênero do contribuinte.

ral:

Ademais, atentar-se ao status de “contribuinte de fato” (consumidoras) é algo que o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) estão respeitando e consagrando, como ocorreu recentemente na discussão envolvendo a criminalização da inadimplência contumaz do ICMS (“apropriação indébita tributária”) no RHC 163.334, rel. Min. Luiz Roberto Barroso, j. em 18/12/2019, com a fixação da seguinte tese em repercussão ge-

Esse “direito ao esclarecimento” acerca dos tributos incidentes sobre os produtos e serviços deve ser considerado como uma salvaguarda constitucional ou meio de concretização do princípio da igualdade tributária, eis que os consumidores (contribuintes de fato) somente poderão lutar pelos seus direitos se e quando estiverem devidamente informados, ainda mais frente a uma tributação (“disfarçada”) sobre o consumo que gera o “efeito ilusionista”22 combatido por Almicare Puviani em seu livro Teoria della ilusione

O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º (inciso II) da Lei 8.137/1990.

Destarte, ao admitir a constitucionalidade e tipificação deste crime tributário, o STF ratificou entendimento anterior do STJ de que o ICMS declarado (e embutido no preço da mercadoria) é um valor que o consumidor (contribuinte “de fato”) pagou (logo, arcou com o ônus e teve sua renda diminuída em razão desse tributo incluído no preço) e que o contribuinte “de direito” (vendedor da mercadoria) recebeu para repassar ao Erário Estadual. Enfim, restou reconhecida a juridicidade, a relevância jurídica do contribuinte “de fato”. Mas, então, por que se admitiria uma triNo mais, essa consideração já tinha previsão butação diferenciada no consumo (ICMS, ISS, no artigo 166 do Código Tributário Nacional: IPI, PIS, COFINS), quando o produto ou serviço for de utilidade exclusiva ou preponderanArtigo 166 - A restituição de tributos temente das mulheres? A função do princípio que comportem, por sua natureza, transfeda igualdade deve ser a mesma, independen- rência do respectivo encargo financeiro será temente da base de incidência tributária, no feita por quem prove haver assumido referido sentido de evitar uma diferenciação tributá- encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terria sob o critério do gênero (gender bias). Ao ceiro, estar por este expressamente autorizatributar um produto exclusiva ou preponde- do a recebê-la. rantemente de consumo feminino, as consuMais do que isso, o §5º do artigo 150 da midoras (“contribuintes de fato”) mulheres esCarta Magna também atribui direitos tributários tão nitidamente em situação de desigualdade para os consumidores, ao determinar que a “a lei com os contribuintes homens, em total des- determinará medidas para que os consumidores respeito ao princípio da igualdade (arts. 5º, I, sejam esclarecidos acerca dos impostos que ine 150, II, CF). cidam sobre mercadorias e serviços”.21

Baccaria Versani. Barueri: Editora Manole, 2007, p. 29. 21 Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei nº 12.741/2012. 22 “A ilusão fiscal é um fenômeno que envolve a limitação da compreensão dos contribuintes sobre a carga fiscal real que incide sobre eles e, com isso, propicia o aumento de gastos públicos” (ARAÚJO, Jevuks Matheus. Um estudo sobre ilusão fiscal no Brasil. 2014. 90 p. Tese (Doutorado em Economia) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014).

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finanziaria, publicado em 1903, quando cunhou tabelecido pela Emenda Constitucional nº 20. pela primeira vez o termo “ilusão fiscal”, defininNo que tange ao IPI, além da igualdade tribudo-o como um tária, a discussão em torno do “pink tax” também [...] artifício utilizado pelos governantes envolve o princípio da seletividade, de aplicação para restringir a percepção dos contribuintes obrigatória para este imposto federal,25 forçando acerca dos tributos e gastos públicos, para uma revisão acerca do devido enquadramento que os mesmos não demonstrem resistência dos produtos femininos como sendo essenciais ou não essenciais ou, ao menos, uma reclassiperante os esquemas de tributação.23 ficação fiscal que retire alguns cosméticos do Essa análise econômica do direito apri- status de bens supérfluos com a consequente remora e maximiza a concretização da função dução daquela imposição tributária mais gravosa do princípio da igualdade tributária, eis que que costuma recair sobre tais produtos.

viabiliza e amplifica a aplicação e extensão do princípio da igualdade aos tributos sobre o consumo, corrigindo ou evitando uma sobrecarga tributária decorrente do gênero do contribuinte (inclusive o “de fato”).

Ademais, importante frisar que essa discriminação indireta, talvez até mesmo involuntária ou desapercebida, fomentada pela tributação do consumo também precisa ser detectada e removida do sistema jurídico, consoante apregoa a chamada Teoria do Impacto desproporcional, assim apresentada pelo Ministro Joaquim Barbosa: Toda e qualquer prática empresarial, política governamental ou semigovernamental, de cunho legislativo ou administrativo, ainda que não provida de intenção discriminatória no momento de sua concepção, deve ser condenada por violação do princípio constitucional da igualdade material se, em consequência de sua aplicação, resultarem efeitos nocivos de incidência especialmente desproporcional sobre certas categorias de pessoas24. Conforme será mais bem explorado no tópico seguinte, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1946, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a discriminação indireta às mulheres, ao julgar inconstitucional o limite dos benefícios previdenciários sobre o salário-maternidade, es-

Recentemente, a legislação brasileira ganhou um exemplo positivo que se aproxima desse respeito com a igualdade de gênero na tributação sobre o consumo. A partir da alteração feita pela Lei Complementar nº 155/2016 na Lei Complementar nº 123/2006 (Lei Geral da ME e EPP, que versa sobre o regime tributário diferenciado do Simples Nacional), com vigência iniciada em 1º/01/2018, os valores repassados aos profissionais que trabalham em salões de beleza, contratados por meio de parceria, não integrarão a receita bruta da empresa contratante para fins de tributação, cabendo ao contratante a retenção e o recolhimento dos tributos devidos pelo contratado.26 Por consequência, as consumidoras27 dos serviços prestados pelos salões de beleza optantes pelo Simples foram poupadas de um acréscimo da carga tributária que seria provocada com a cumulatividade de incidência para o salão de beleza e os profissionais parceiros. Ademais, as considerações que foram feitas com relação aos produtos femininos, também merecem o mesmo tratamento tributário diferenciado no que diz respeito aos serviços consumidos pelo público feminino, de forma exclusiva ou preponderante, e suas implicações no ISS e PIS/COFINS. Exemplos: serviços médicos de ginecologia; tratamentos médico-hospitalares de doenças que recaem somente sobre mulheres (ou majoritariamente), como o caso do câncer de mama, ovários policísticos, cólica menstrual; salões de beleza. Em muitos Municípios, esses serviços de consumo exclusiva ou preponderan-

23 MOURÃO, Paulo Jorge Reis. Quatro ensaios sobre a ilusão fiscal. 2009. 185 p. Tese (Doutorado em Ciências Econômicas) – Escola de Economia e Gestão, Universidade do Minho. Braga, Portugal, 2009. 24 GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de transformação social. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 24. 25 Art. 153, §3º, I, CF: o IPI “será seletivo, em função da essencialidade do produto”. 26 Art. 13, §1º-A, da LC 123/2006, acrescentado pela LC 155/2016. 27 Muito embora não seja um serviço de consumo exclusivo de mulheres, estas foram a maior parte da clientela desse segmento de beleza. Por outro lado, pode-se questionar a respeito da essencialidade do serviço. Neste sentido, valem os comentários feitos anteriormente a respeito dos cosméticos.

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temente femininos são tributados com a alíquota produtos e serviços consumidos exclusiva ou máxima de 5%. preponderantemente por eles, valendo-se das

Por fim, embora o presente trabalho se mesmas considerações aqui desenvolvidas concentre nos direitos das mulheres, os con- em prol das mulheres, mutatis mutandis. tribuintes homens também merecerão um tratamento tributário diferenciado sobre os

4 DESIGUALDADE NA TRIBUTAÇÃO DA MÃO DE OBRA FEMININA, ESPECIFICAMENTE COM RELAÇÃO À LICENÇA-MATERNIDADE O salário-maternidade se apresenta como que é conferida à gestante desde a descoberta um benefício previdenciário28 concedido às mu- da gravidez até 5 (cinco) meses após o parto31. lheres empregadas durante o período em que se Como se pode observar, o salário materniafastam da atividade laborativa para exercerem dade é um direito constitucionalmente asseguraa sua função mais nobre, a maternidade. do às mulheres empregadas. Acontece que não O salário-maternidade surgiu pela primeira são raras são as vezes nas quais nos deparamos vez no bojo de uma Constituição brasileira, na com situações de discriminação das mulheres Constituição da República dos Estados Unidos por conta deste direito. Dito de outra forma, muido Brasil, de 16 de julho de 193429, sendo, pos- tos empregadores entendem este direito como teriormente, regulamentado pela Consolidação um ônus que a mulher empregada traz para a das Leis do Trabalho em 1943. Atualmente, o sua empresa e, em razão disso, acabam por opsalário-maternidade é um direito assegurado à tar pela contratação de homens. E é sobre este mulher empregada que encontra fundamento de aspecto que a tributação do salário-maternidade validade na Constituição Federal de 1988, mais será trabalhada no presente artigo. Em uma soespecificamente no artigo 7º, inciso XVIII, que ciedade que almeja ser justa, não se pode adassim preconiza: mitir discriminação contra as mulheres durante o período em que exercem função essencial para a Artigo 7º - São direitos dos trabalhado- sobrevivência da própria humanidade.

res urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] XVIII - licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias; [...]”30.

Heleno Taveira Torres pontua que “a natalidade é condição de existência de qualquer sociedade e, por isso mesmo, o Constituinte reafirmou, em distintas passagens, as garantias de proteção à família”32. Com efeito, não há como pensarmos em uma sociedade sem a natalidade. A natalidade é essencial para a evolução e crescimento da sociedade, por isso a preocupação, desde os primórdios dos textos constitucionais, com a garantia de um direito em prol das mulheres no momento em que exercem a maternidade.

Imperioso destacar que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consagra outros direitos com a finalidade de garantir e Acontece que o direito plasmado no bojo do permitir que as mulheres possam exercer a maternidade sem que isso lhes cause prejuízos pos- texto constitucional não reflete o que tem aconteteriores. É o caso, por exemplo, da estabilidade cido na realidade da sociedade brasileira. Melhor 28 Posicionamento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 1946. 29 Artigo 138 - Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas: [...] c) amparar a maternidade e a infância; [...]. 30 Constituição da República Federativa do Brasil. 31 Artigo 10 do ADCT - Até que seja promulgada a lei complementar a que se refere o art. 7º, I, da Constituição: II - fica vedada a dispensa arbitrária ou sem justa causa: b) da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. 32 TORRES, Heleno Taveira. Tributação da mulher na constituição: o caso do salário-maternidade no STF. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-22/consultor-tributario-tributacao-mulher-constituicao-salariomaternidade#_ftn4. Acesso em: 11 fev. 2020.

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dizendo, as mulheres, infelizmente, são alvo de dora produz e reproduz. Ou seja, há duas discriminações por conta deste “ônus” que tra- maneiras de lida com esta diferença: ou a zem para o seu empregador. coletividade arca com a reprodução social – Os números não mentem. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – realiza um estudo denominado Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD. Em seu último estudo, que levou em consideração o período de referência de 01/01/2018 a 31/12/2018, constatou-se que os salários das mulheres são reduzidos em 24% (vinte e quatro por cento) aproximadamente quando essas têm o primeiro filho. A redução fica ainda mais gritante conforme as famílias vão crescendo: mulheres com três ou mais filhos podem sofrer uma redução em seus salários de até 40% (quarenta por cento)33, significando dizer que “[...] quantos mais filhos, menos as mulheres são remuneradas no mercado de trabalho”.34

e com o ônus do cuidado a ser dispensado ao recém-nascido – ou as mulheres em idade reprodutiva não terão o mesmo acesso ao trabalho remunerado que seus colegas homens.35

Um trabalhador produz, uma trabalha-

Em que pese a discussão travada pelos Mi-

Argumentos relacionados à igualdade e não discriminação foram utilizados pelo Ministro Roberto Barroso no julgamento do Recurso Extraordinário nº 576.967/PR afetado pelo instituto da repercussão geral (tema nº 72). No referido recurso, a Suprema Corte brasileira julgará se é constitucional ou inconstitucional a incidência da contribuição social sobre a rubrica do salário-maternidade. Dito de outra forma, o Supremo Tribunal Federal julgará se o salário-maternidade tem natureza jurídica de salário e, portanto, suscetíNão há, portanto, como se negar um tra- vel de compor a base de cálculo da contribuição tamento discriminatório contra a maternidade. previdenciária ou se possui a natureza jurídica As mulheres sofrem, em nossa sociedade atual, de indenização.36 uma discriminação pelo simples fato de gerarem Importante ressaltar que a carga tributária uma vida, o que não se pode admitir. E não há como se calar diante de uma “punição” imposta desigual que se pretende afastar atinge aproxitambém pela legislação tributária às mulheres. madamente 35% do montante pago a título de Não há como admitir que as mulheres sofram licença maternidade, compreendendo cota paconsequências gravíssimas por serem mães. tronal previdenciária (20%), SAT/RAT (1% a 3%, Não podemos nos esquecer que a reprodução é conforme o grau de risco da atividade), terceiros um custo a ser assumido por toda a coletividade, ou “Sistema S” (5,8%), além do FGTS (8%). Porafinal de contas, conforme já mencionado neste tanto, é uma tributação que eleva em mais de 1/3 artigo, a natalidade faz parte da evolução da so- o custo da mão de obra feminina sobre a base ciedade. Note-se que, por uma questão divina, do salário maternidade. Ademais, a inclusão do foi incumbida à mulher a função de gerar uma salário maternidade reflete na base de cálculo nova vida. Todavia, esta nova vida é essencial da contribuição da própria segurada (retida pelo para toda a coletividade. Não se pode admitir empregador), com alíquotas de 8%, 9% e 11%, dependendo do salário-de-contribuição. A partir uma discriminação por conta disso. de março de 2020, como reflexo da Reforma da Nesse sentido, os ensinamentos de Jana- previdência, esses percentuais serão de 7,5%, 9%, 12% e 14%. ína Penalva:

33 TORRES, Heleno Taveira. Tributação da mulher na constituição: o caso do salário-maternidade no STF. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-22/consultor-tributario-tributacao-mulher-constituicao-salariomaternidade#_ftn4. Acesso em: 11 fev. 2020. 34 TORRES, Heleno Taveira. Tributação da mulher na constituição: o caso do salário-maternidade no STF. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-22/consultor-tributario-tributacao-mulher-constituicao-salariomaternidade#_ftn4. Acesso em: 11 fev. 2020. 35 PENALVA, Janaína. Salário-maternidade no STF: qual o valor do cuidado? Disponível em: https://www. jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/salario-maternidade-no-stf-qual-e-o-valor-docuidado-01022020. Acesso em: 11 fev. 2020. 36 O julgamento do Recurso Extraordinário nº 576.967/PR teve início em novembro de 2019, mais especificamente em 06 de novembro de 2019. Votaram pelo provimento do recurso os Ministros Roberto Barroso (Relator), Edson Fachin e as Ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber. Votaram contrários ao provimento os Ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes. O julgamento foi suspenso em decorrência do pedido de vista formulado pelo Ministro Marco Aurélio. O Recurso Extraordinário será julgado novamente em 02 de abril de 2020.

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nistros da Corte Suprema ter levado em consideração a natureza salarial ou indenizatória do salário-maternidade, o Ministro Relator Roberto Barroso demonstrou relevante preocupação com a discriminação que este encargo tributário pode causar contra as mulheres. Como pontuou o Ministro: “a preocupação fiscal tem que ceder a uma demanda universal de justiça com as mulheres”.37 A questão envolvendo o salário-maternidade vai muito além da discussão acerca da sua natureza jurídica – salarial ou indenizatória. A discussão envolvendo a tributação do salário-maternidade recai nos percalços da efetivação da igualdade tributária, da igualdade de homens e mulheres perante a lei.

Em um sistema constitucional que preza a igualdade, a arrecadação fiscal, a tributação e o desenho infraconstitucional da seguridade social não podem dispensar avaliações sobre os impactos que causam às minorias.38

gualdade das mulheres quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1946, oportunidade em que reconheceu a discriminação indireta às mulheres, ao julgar inconstitucional o limite dos benefícios previdenciários sobre o salário-maternidade, estabelecido pela Emenda Constitucional nº 20. Consta em parte do acórdão:

[...] 3. Na verdade, se se entender que a Previdência Social, doravante, responderá apenas por R$1.200,00 (hum mil e duzentos reais) por mês, durante a licença da gestante, e que o empregador responderá, sozinho, pelo restante, ficará sobremaneira, facilitada e estimulada a opção deste pelo trabalhador masculino, ao invés da mulher trabalhadora. Estará, então, propiciada a discriminação que a Constituição buscou combater, quando proibiu diferença de salários, de exercício de funções e de critérios de admissão, por motivo de sexo (art. 7º, inc. XXX, da C.F./88), proibição, que, em substância, é um desdobramento do princípio da igualdade de direitos, entre homens e mulheres, previsto no inciso I do art. 5º da Constituição Federal41.

Neste aspecto, é louvável e digno de aplausos o Programa Empresa Cidadã, instituído pela Lei nº 11.770/2008 que foi criado com o objetivo de “[...] prorrogar por sessenta dias a duração da licença-maternidade [...].39” dentre outras providências. As empresas que se inscreverem neste programa garantirão às suas empregadas uma licença-maternidade de 180 (cento e oitenEste precedente se encaixa como uma ta) dias, um adicional à licença convencional de 120 (cento e vinte) dias. Em contrapartida, nos luva contra a tributação do salário-maternitermos do artigo 5º da lei em comento, a empre- dade, diante das mesmas consequências dessa que aderir ao Programa terá uma compensa- vantajosas para as mulheres. ção tributária, pois poderá deduzir o valor pago à empregada mulher no período dos 60 (sessenta dias) de seu Imposto de Renda e Contribuição Social sobre o Lucro.40 Vale observar que a empresa recebe apenas uma restituição fiscal do benefício concedido à sua empregada. Outrossim, como bem pontuou o Ministro Roberto Barroso em seu voto no Recurso Extraordinário nº 576.967, o Supremo Tribunal Federal já se debruçou sobre essa questão da desi37 PENALVA, Janaína. Salário-maternidade no STF: qual o valor do cuidado? Disponível em: https://www. jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/salario-maternidade-no-stf-qual-e-o-valor-docuidado-01022020. Acesso em: 11 fev. 2020. 38 Ibid. 39 BRASIL. Lei nº 11.770, de 09 de setembro de 2008. Cria o Programa Empresa Cidadã, destinado à prorrogação da licença-maternidade mediante concessão de incentivo fiscal, e altera a Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11770.htm. Acesso em: 11 fev. 2020. 40 Artigo 5º - A pessoa jurídica tributada com base no lucro real poderá deduzir do imposto devido, em cada período de apuração, o total da remuneração integral da empregada e do empregado pago nos dias de prorrogação de sua licença-maternidade e de sua licença-paternidade, vedada a dedução como despesa operacional. 41 Íntegra do acórdão disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266805. Acesso em: 11 fev. 2020.

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5 CONCLUSÕES Diante de todo o exposto, denota-se que as mulheres sofrem discriminações tributárias, por conta do consumo de produtos e serviços de uso exclusiva ou preponderantemente femininos e, pior ainda, quando exercem a maternidade durante vínculo empregatício. Essas desigualdades levam à inconstitucionalidade da incidência das contribuições sociais sobre o salário-maternidade, bem como da tributação sobre o consumo de produtos e serviços femininos. A validação ou preservação desses tratamentos tributários desiguais em razão do gênero (“pink tax”, “woman tax”, “gender bias”) destoa dos direitos que vêm sendo conquistados pelas mulheres ao longo dos anos, às custas de muita luta e sofrimento.

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FEMINICÍDIO COMPARADO: BRASIL E ARGENTINA NO COMBATE À MORTE VIOLENTA DE MULHERES COMPARED FEMINICIDES: BRAZIL AND ARGENTINA AGAINST VIOLENT DEATHS OF WOMEN

Patrícia Tuma Martins Bertolin Mestre e Doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP), com Pós-Doutorado na Superintendência de Educação e Pesquisa da Fundação Carlos Chagas (FCC). Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Líder do grupo de pesquisa (CNPq) “Mulher, Sociedade e Direitos Humanos” e do Projeto de Pesquisa (CNPq) “Feminicídio: quando a desigualdade de gênero mata. Mapeamento da tipificação na América Latina”. E-mail: ptmb@uol.com.br.

Érica Lene da Silva Santos Mestranda em Direito e Instituições do Sistema de Justiça – UFMA. Pós-graduada em Direito Penal pela Faculdade Damásio de Jesus. Graduada em Direito pela Universidade Estadual do Piauí. Advogada. E-mail: ericalene@hotmail.com.

SUMÁRIO 1. Introdução 2. Da Violência de Gênero: um estigma socialmente construído 3. O cenário latino americano do Feminicídio 4. A faces do Feminicídio no Brasil 5. O cenário argentino 6. Conclusão

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RESUMO O presente trabalho tem como objetivo analisar a qualificadora do homicídio que apena o assassinato contra a mulher pela condição do sexo feminino, denominado feminicídio, previsto no Código Penal Brasileiro, bem como, analisar à luz do direito comparado, a legislação argentina sobre o tema. Portanto, busca-se demonstrar a eficácia ou ineficácia do feminicídio do Código Penal de ambos os países latino-americanos, analisando o questionamento sobre o feminicídio ser apenas uma alteração simbólica, com o objetivo de alertar a sociedade, ou o tipo penal criado tem o condão de, de fato prevenir e reprimir o homicídio baseado no gênero. Com vistas a atingir os fins constitucionais e de tratados internacionais o legislador precisou repensar a interpretação e aplicação das legislações ordinárias e do Direito Penal de ambos os países dada a necessidade de ampliação dos seus institutos penalizadores para maior proteção e assistência à mulher. O objetivo desse estudo é trazer conceitos que fundamentam e reforçam a importância e aplicabilidade dessa alteração legislativa para a proteção da mulher vítima de violência, e para melhor esclarecimento acerca da temática, utilizou-se a pesquisa exploratória e a revisão bibliográfica.

PALAVRAS-CHAVE Violência de gênero. Feminicídio. Direito Comparado.

ABSTRACT The objective of this study is to analyze the qualifier of the murder that penalizes the murder against the woman by the condition of the feminine sex, denominated feminicide, foreseen in the Brazilian Penal Code, as well as to analyze, under comparative law, the Argentine legislation on the subject. Therefore, it is sought to demonstrate the effectiveness or ineffectiveness of the feminicide of the Criminal Code of both Latin American countries, analyzing the questioning about feminicide to be only a symbolic change, with the purpose of alerting society, or the type of criminal created has the condemn, in fact, prevent and repress homicide based on gender. In order to achieve the constitutional and international treaties, the legislator had to rethink the interpretation and application of the ordinary laws and criminal law of both countries, given the need to expand its penalizing institutions for greater protection and assistance to women. The purpose of this study is to provide concepts that substantiate and reinforce the importance and applicability of this legislative change for the protection of women victims of violence, and for better clarification on the subject, we used exploratory research and bibliographic review.

KEY WORDS Gender violence. Feminicide. Comparative law.

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1. INTRODUÇÃO Muito se tem discutido acerca da violência física e psicológica perpetrada contra a mulher no século XXI, uma vez que, seus dados são alarmantes. Apesar de termos conquistados diversos direitos, entre eles o de igualdade que a própria Constituição Federal Brasileira nos assegura, vivemos sob a égide de uma sociedade patriarcal e discriminatória.

contra as mulheres como uma violação aos direitos humanos foi reconhecida em 1993, na Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos2.

Assim, a violência contra a mulher por ser substancialmente, uma violação dos direitos humanos de caráter pluriofensivo, configura ataque à liberdade, à igualdade a ao dever de solidariedade, tendo reflexos por todas as gerações. Tal as A Constituição da República Federativa pecto reforça de sobremaneira a importância de do Brasil de 1988, assim preleciona: estudos sobre o tema, dado o caráter de rejeição internacional a tais condutas.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se Sobre a violência que socialmente e histoaos brasileiros e aos estrangeiros residentes ricamente subjugam a mulher por meio de prono País a inviolabilidade do direito à vida, à li- cessos violentos, cita-se Artenira Silva, Almudena 3 berdade, à igualdade, à segurança e à proprie- García Manso e Rossana Pinheiro : dade, nos termos seguintes: Aun así la violencia contra la mujer – la misoginiasigue persistiendo a modo de herenI - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Consti- cia histórica que parece no tener fin, ejemplo de ello lo tenemos em el repunte de víctimas que se tuição; (...) vienen dando em esta última década em América A Constituição da Nação Argentina de 18531 Latina y em España tal y como nos indican las esestabelece em seu artigo 8º que “los ciudadanos de tadísticas del observatorio de conocimiento sobre cada provincia gozan de todos los derechos, privileViolencia de Genero.4 gios e inmunidades inherentes al título de ciudadano en las demás.” Dessa forma, ao equipar direitos e obrigações de homens e mulheres, as Constituições nos demonstram que essa igualdade se transfigura em igualdade perante a lei, que vedam discriminações em razão do sexo. Entretanto, os processos discriminatórios aos quais estão submetidas as mulheres latino-americanas, apresentam cenário diverso do prelecionado em lei, evidenciando assim o grau de vulnerabilidade das mesmas. Ao incidir sobre as mulheres o título de seres humanos, de tal modo que sua objetificação frente a dominação masculina não é vista como justa, a violência contra a mulher constitui flagrante afronta aos direitos humanos. A violência

Nesta pesquisa, observaremos a importância de normas específicas para a proteção as mulheres frente o homicídio por razões de gênero, uma vez que, por se tratar de tipos específicos de violência, para que o Poder Judiciário possa processar e julgar com eficácia, e as instituições do sistema jurídico devem oferecer mecanismos para prevenir e coibir esse tipo de violência, que são necessários para que as mulheres não fiquem à mercê de uma sociedade discriminatória. O ponto crucial da discussão reside em esclarecer o que prelecionam as leis penais do Brasil e Argentina sobre o Feminicídio, e tem-se como ponto de partida do trabalho uma abordagem panorâmica a respeito do fenômeno social da violência de gênero, enquanto manifestação

1 Disponível em: http://www.oas.org/juridico/mla/sp/arg/sp_arg-int-text-const.html. Acesso em: 03.07.2019. 2 Naquela Conferência Internacional de Direitos Humanos, foi definitivamente legitimada a noção de indivisibilidade dos direitos humanos, enfatizou-se os direitos de solidariedade, o direito à paz, o direito ao desenvolvimento e os direitos ambientais. 3 SILVA, Artenira da Silva e; MANSO, Almudena García. PINHEIRO, Rossana Barros. Violencia Contra la Mujer como Mal Endémico em la Sociedad Contemporánea. Revista Quaestio Iuris, Rio de Janeiro, 2019, v. 12, n. 1, pp 144-170, jan/jun. 2019, p. 147-148. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/view/30064/28024>. Acesso em: 22 fev. 2019. 4 Vide: www. observatorioviolencia.org.

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de violência contra a mulher. Assim, é salutar estabelecer uma análise do conceito de violência de gênero do contexto social em que esse fenômeno é observado.

aplicação da punibilidade em casos de Feminicídios em ambos os países, discorrendo assim sobre os pressupostos, limites e alcance jurídico, considerando as disposições do texto constitucional de cada país e a legislação específica sobre o tema. Com o presente estudo comparativo, pretende-se contribuir para o conhecimento das causas que envolvem a violência contra a mulher, a fim de que a informação possa ser usada na criação e no fortalecimento de políticas de prevenção sob a ótica legal.

Para isso, parte-se da realidade latino-americana de tratativas para as mulheres vítimas de violência doméstica e intrafamiliar, com vistas a observar os processos socioculturais de onde partiram e partem, os ciclos discriminatórios que subjugam as mulheres e tornam o fenômeno da violência de gênero um problema social epidêmico e de dimensões continentais, que demandam Assim, pretende-se produzir subsídios medidas de proteção a nível global. científicos para o desenvolvimento do conhecimento jurídico que poderão ser utilizados como A importância do tema se dá em virtude do diretrizes para o Sistema de Justiça, com especial grau epidêmico em que ocorrem as mortes viodestaque para o Poder Judiciário e ao Poder Lelentas de mulheres nos países latino-americanos gislativo, com vistas a melhor aplicação da legislaquando tratamos de violência contra a mulher: ção. Segundo o mapa da violência produzido pelo Instituto Sangari (2016), das dez primeiras posições Para atingir esses fins, far-se-á uso de pesdo ranking mundial de homicídio doloso contra quisa bibliográfica nas obras de autores dedicados mulheres, de um universo de 84 países, em sete ao estudo da violência de gênero, homicídio e feilustram a países latino-americanos. O Brasil e a minicídio, bem como da pesquisa normativa que Argentina ocupam, respectivamente, a 7ª e 36ª tenha relação com a legislação afeta ao tema. posições. Ao longo desse debate é de crucial importância compreender os critérios e medidas de

2 DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO: UM ESTIGMA SOCIALMENTE CONSTRUÍDO A violência contra a mulher, por razão de sua condição de mulher, por muito tempo foi invisibilizada pelo Direito, que tem como pedra angular a tradição de se pautar por conceitos machistas e patriarcais, através de uma cultura reforçada por processos discriminatórios, e socialmente introjetadora de verdadeiros “esforços” na perpetuação desta organização preconceituosa sob o ponto de vista do gênero.

É importante salientar que podemos compreender a violência contra a mulher como uma das facetas que perpassam pela violência de gênero, uma vez que, é possível visualizar agressões contra mulheres que não constituem necessariamente episódios de violência de gênero; bem como, é admissível a ocorrência violações que consistam em violência de gênero que não tenham por alvo as mulheres; e nesta oportunidade, apenas as mulheres são objeto deste trabalho. Sobre o que entendemos por gênero, para então

De acordo com Marilena Chauí5, em nosso compreendemos sua importância dentro de um cenário

contexto cultural, a violência de um modo geral, é entendida de sobremaneira, como o uso da força física e do constrangimento psíquico, com vistas à obrigar alguém a agir de modo contrário a sua natureza, seu entendimento e ao seu ser. A violência, é portanto, podemos assim pontuar, uma violação não apenas da integridade física e psíquica de um indivíduo, mas também da dignidade humana.6 5 6

onde são pautadas as desigualdades, Farah observa:

Gênero é um recurso utilizado para se referir à construção social desigual baseada na existência de hierarquia entre os sexos e as consequências que daí se originam. Essa diferença não é só conceitual, tem efeitos políticos, sociais e

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 12ª ed. São Paulo: Ática, 2000, p. 337. O princípio da dignidade da pessoa humana está previsto no artigo 1º, inciso III, da CRFB de 1988.

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culturais.7 E especificamente sobre a violência de gênero, assim aduz Saffioti: Violência de gênero é o conceito mais amplo, abrangendo vítimas como mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos. No exercício da função patriarcal, os homens detêm o poder de determinar a conduta das categorias sociais nomeadas, recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que se lhes apresenta como desvio. Ainda que não haja nenhuma tentativa, por parte das vítimas potenciais, de trilhar caminhos diversos do prescrito pelas normas sociais, a execução do projeto de dominação-exploração da categoria social homens exige que sua capacidade de mando seja auxiliada pela violência. Com efeito, a ideologia de gênero é insuficiente para garantir a obediência das vítimas potenciais aos ditames do patriarca, tendo este necessidade de fazer uso da violência.8

to de mulheres destacam-se aquelas voltadas para o enfrentamento da violência doméstica, expressão mais radical de um conjunto de discriminações que, historicamente, tem incidido sobre as mulheres em todo o país. A luta desse movimento contra tal violência apontou a necessidade de elaboração e implementação de uma política nacional ampla voltada para o enfrentamento de uma criminalidade especifica que recai sobre as mulheres e que limita suas vidas e direitos.9 Sobre as contribuições emanadas dos movimentos feministas, Safiotti pontua:

Certamente, a maior contribuição de interpelações de certas correntes do feminismo ou a maior contribuição de corrente expressiva do feminismo tem sido o ataque às análises dualistas, tão marcantes na ciência dos homens. Mais do que isto, esta contribuição epistemológica tem provocado fissuras neste edifício tão antigo, ou seja, a ciência oficial, abrindo caminho para um novo tipo de conhecimento, cujo objeto é a sociedade em sua Desta forma, fundado na hierarquia e inteireza, com tudo que ela contém: contradidesigualdade dos lugares sociais destinados ções, desigualdades, iniquidades.10 a homens e mulheres, e aos indivíduos tidos como vulneráveis, e demarcados por proces O universo da violência, configura-se e sos violentos de perpetuação do poder pelo funda-se em pilares de dor e opressão, de um grumasculino, o feminino foi considerado subal- po tipo como superior a grupos tidos como suborterno e vulnerável. Assim, dentro do Direito dinados, e o enfrentamento a esses mecanismos havia lacunas que legitimavam/legitimam as repressivos, deve pautar-se no enfrentamento violências praticadas pelos homens, especial- teórico, legislativo, prático e cotidiano, aspectos mente quando se tratam de gênero, cenário que, em regra, são utilizados como meios revitimizadores e perpetuadores das violências. este que, com a ascensão dos movimentos feministas na década de 70, começou a ser mo Frente as estatísticas pandêmicas, podemos afirmar que violência contra a mulher é a fordificado.

ma de violação de direitos humanos mais tolerada no mundo. O assassinato de mulheres em razão de sua condição do sexo feminino, é a ponta do iceberg das violências perpetradas contra a mulher, entretanto, trata-se apenas de mais uma violência dentre o panorama violento a que as mulheDentre as novas demandas do movimen- res são submetidas. Trazendo à luz um normativo

Leila Linhares Barsted menciona que nesse processo de ascensão do feminismo, a insurreição contra a violência contra a mulher é uma de suas principais bandeiras:

7 FARAH, Marta Ferreira Santos. Gênero e Políticas Públicas. Estudos Feministas, Florianópolis, 12 (1): 47-71, jan.-abr./2004, p. 48. 8 SAFFIOTTI, Heleieth B. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Cadernos Pagu, n. 16, p. 115-136, 200, p. 115. 9 BARSTED, Leila Linhares. O avanço legislativo no enfrentamento da violência contra a mulher. In: O Desafio de Construir Redes de Atenção às mulheres em Situação de Violência. Brasília: AGENDE, 2006, p. 67. 10 SAFFIOTTI, Heleieth B. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Cadernos Pagu, n. 16, p. 115-136, 200, p. 136.

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nacional, podemos mencionar que a Lei Maria da dio são termos mais específicos. Penha preleciona em seu bojo os diferentes tipos Lamentavelmente, os assassinatos de mude violência contra a mulher, são elas: a violência lheres por questões de gênero, encontra espaço física, sexual, patrimonial, moral e psicológica.11 em todos os espaços da sociedade e são decor Mas, o que podemos entender por femini- rentes de uma cultura de dominação e desigualdacídio? Podemos compreender o feminicídio como: de nas relações de poder existente entre homens “o assassinato de mulheres realizado por homens e mulheres, produzindo a inferiorização da condimotivado por ódio, desprezo, prazer ou um senti- ção feminina, resultando na forma mais extrema do de propriedade sobre as mulheres”.12 da violência contra as mulheres, que é ceifar-lhes a vida.13 Feminicídio é o termo usado para denominar o homicídio de mulheres cometidos em razão Diante das bases conceituais apresendo seu gênero, ou seja, cometidos pelo simples tadas, e do caráter de violação a direitos hufato da vítima ser mulher, e precipuamente trata- manos que a violência contra a mulher perpe-se de um crime de ódio, o que deve diferenciar- tra, passaremos pelo cenário latino americano -se de femicídio, que é o homicídio de uma mulher do homicídio de mulheres, como base para dentro de um contexto geral. A utilização de concompreendermos as legislações em vigor no ceitos diversos para denominar o homicídio, não se trata de uma separação de gênero, mas de uma Brasil e Argentina. especialização semântica, onde o termo “homicídio” é genérico, e os termos feminicídio e femicí-

3 O CENÁRIO LATINO AMERICANO DO FEMINICÍDIO O Brasil ocupa a expressiva 5º colocação, escolhida para este estudo; a Bolívia (2013); Bra-

quando avaliados dados de 83 países no que diz respeito ao assassinatos de mulheres. Essa taxa só é maior em El Salvador (8,9), na Colômbia (6,3), na Guatemala (6,2) e na Rússia (5,3), seguidos pelo Brasil, que apresenta taxa de 4,8 homicídios a cada 100 mil habitantes. A Argentina encontra-se em na 28º colocação, com taxa de 1,4 mortes.14

A cifra do assassinato de mulheres na América Latina é maior do que de outros continentes. América Latina é considerada a região do planeta mais letal para as mulheres, e, segundo um relatório da ONU Mulheres, é o local mais perigoso do mundo para elas, fora de uma zona de guerra.15 Dos países 20 países que compõem a América Latina, 15 deles consagraram em sua legislação o feminicídio, são eles: Argentina (2012),

sil(2015); o Chile (2010); a Colômbia (2008); a Costa Rica (2007); o Equador(2014); o El Salvador (2012), a Guatemala (2008), Honduras (2013), México (2012), Nicarágua (2012), Panamá (2011), Peru (2011), República Dominicana (2014) e Venezuela (2014).16 Os países latino-americanos têm tomado diferentes legislativos distintos, uma vez que, uns escolheram criar uma lei específica para o feminicídio, outros alteraram o código penal ou até mesmo os dois. E apesar dos dados alarmantes, ao menos do ponto de vista legislativo, a América Latina busca avançar na defesa às mulheres, uma vez que, países como o Brasil e a Argentina apresentam leis avançadas na proteção às mulheres vítimas a violência, como veremos nesse estudo.

11 Tipos previstos no artigo 7º da Lei nº 11.340/2006. 12 CAPUTI, Jane; RUSSEL, Diana E. H. Femicide: sexist terrorism against women. In: CAPUTI, Jane; RUSSEL, Diana E. H. Femicidio: la política de matar mujeres. Nueva York: Twayne, 1992, p. 34. 13 OLIVEIRA, Ana Carolina Gondim; COSTA, Mônica Josy Sousa; SOUSA, Eduardo Sérgio Soares. Feminicídio e violência de gênero: aspectos sociojurídicos. Revista Tema, v. 16, n. 24/25, jan.- dez. 2015. 14 Disponível em: <https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf>. Acesso em: 09.07.2019. 15 Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/24/actualidad/1543075049_751281.html>. Acesso em: 09.07.2019. 16 Disponível em: www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Nucleo_de_Genero/Feminicidio/FemLegislacao/Legislacao%20Internacional%20da%20America%20Latina%20-%20Quadro%20Comparativo . Acesso em: 09.07.2019

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A respeito das sanções perpetradas ao feminicídio, podendo-se notar que, no que diz respeito à punição, observa-se variações não só em relação a quantidade de pena privativa de liberdade, bem como ao tipo de reprimenda, como também nos parâmetros a partir dos quais se baseiam a aplicação da sanção:

pena fixa (30 anos, sem direito a indulto, na Bolívia e perpétua na Argentina); (ii) pena mínima de 15 anos de duração sem previsão de limite máximo no tipo, tendo a forma agravada pena mínima de 25 anos (Peru); (iii) pena variável entre intervalos fixos (exemplos: de 20 a 35 anos na Costa Rica e na Venezuela, de 25 a 40 anos na Colômbia, de 30 a 40 anos em Honduras, de 30 a 50 anos em El Salvador, de 25 a 50 anos na Guatemala, de 40 a 60 anos no México, de pena majorada até a prisão perpétua no Chile). No Equador, a pena cominada é de 22 a 26 anos na hipótese do feminicídio, mas a lei prevê a aplicação da pena máxima

quando ocorrem circunstâncias agravantes (artigos 141 e 142 do Código Orgânico Integral Penal). Outras legislações também vinculam a existência de duas ou mais circunstâncias agravantes à pena fixa e mais agravada, como o Peru, que prevê prisão perpétua nesses casos.17 Cada país escolheu, dentro de seu contexto político e social, a melhor forma de legislar, publicando legislações com muitas distinções entre si, mas cujo objetivo precípuo é a proteção a mulher vítima de violência. Entretanto, sobre uma racional perspectiva, em face das estatísticas pandêmicas que se manifestam na América Latina, há que se assinalar que a criação de um normativo, por si só, não tem a força prática de resolver os gravíssimos problemas atinentes à implementação de direitos humanos das mulheres e sua efetiva proteção.

4. A FACE DO FEMINICÍDIO NO BRASIL De acordo com dados da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) do ano de 2018, o número de mulheres no Brasil é superior ao de homens. A população brasileira é composta por 48,3% de homens e 51,7% de mulheres, ou seja, a mulher representa a maioria absoluta da população brasileira, em um total de 209,3 milhões de habitantes.18

das as dimensões aqui analisadas, ainda é longo para as mulheres, precipuamente, por ter como principal obstáculo os processos culturais marcados pela violência. Segundo o Atlas da Violência 2019 conforme dados oficiais do Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde (SIM/MS), em 2017 houve no Brasil, 65.602 homicídios o que equivale a uma taxa de aproximadamente 31,6 mortes para cada cem mil habitantes. Assim, foi registrado no corrente ano, maior nível histórico de letalidade violenta intencional no país.

Entretanto, em termos de representação política, das vagas destinadas a Câmara dos Deputados do Congresso nacional Brasileiro, por exemplo, apenas 10,5% são ocupados por mulheres.19 Assim, o caminho a ser Assim, o Brasil tem segunda maior taxa trilhado em direção à igualdade de gênero ende homicídios da América do Sul, segundo recontra percursos tortuosos, pois, a busca por latório da ONU, ficando neste ranking atrás um cenário onde homens e mulheres gozem apenas da Venezuela, com taxa de 56,8 asdos mesmos direitos e oportunidades em to17 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. A violência doméstica fatal: O problema do feminicídio íntimo no Brasil Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria da Reforma do Judiciário, p. 27. Disponível em http://www.pnud.org.br/arquivos/publicacao_feminicidio.pdf Acesso em: 09.07.2019. 18 Disponível em: <https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18320-quantidade-de-homens-e-mulheres. html.> Acesso em: 03.07.2019. 19 Disponível em: <https://educa.ibge.gov.br/jovens/materias-especiais/materias-especiais/20453-estatisticas-de-genero-indicadores-sociais-das-mulheres-no-brasil.html.> Acesso em: 03.07.2019.

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sassinatos a cada 100 mil habitantes. No to Os contextos sociais violentos com o tal, cerca de 1,2 milhão de pessoas perderam sexo feminino, apresentam-se pelo simples a vida por homicídios dolosos no Brasil entre fato de se tratarem de mulheres. Assim, 1991 e 2017.20 constata-se que as mulheres foram per Com relação à morte de mulheres em seguidas e maltratadas pelo fato de serem razão de sua condição de mulher, Dados do mulheres, diferentemente do que ocorreu Núcleo de Estudos da Violência da USP, apon- com os homens, que também foram reprimitaram que o Brasil registrou em 2018 4.254 dos e subordinados, mas por razões externas homicídios dolosos de mulheres, sendo des- e não simplesmente porque eram homens. Os tes 1.173 casos de feminicídio. Houve assim, jovens, enquanto jovens, eram reprimidos e um aumento em 16 estados brasileiros no nú- subordinados, mas ao se transformarem em mero de feminicídio, quando comparados ao velhos, adquiriam status e passavam a ocupar ano de 2017.21 postos importantes. O mesmo não sucedia com as mulheres, que se perpetuavam como Assim, o Brasil é líder em assassinaseres subordinados.22 tos de mulheres na América Latina. Ao me No que diz respeito a evolução legislativa nos 2.795 mulheres foram assassinadas em 2017, por questões de gênero, em 23 países do tratamento da mulher no Brasil, é importante da América Latina e do Caribe, segundo dados salientar que a primeira previsão legal sobre a proConstituição oficiais da CEPAL; em termos absolutos, a lis- teção da mulher festa consagrada na 23 Federal, em seu artigo 226, § 8º , tendo como ta de feminicídios é liderada pelo Brasil (com outro grande marco brasileiro a aprovação da Lei 1.173 vítimas confirmadas em 2017). 24 O feminicídio, manifestado em proporções epidêmicas no Brasil é a expressão mais extrema da violência praticada contra as mulheres, entretanto a mera tipificação do crime não foi suficiente para diminuir tais violências. Ao contrário, é necessário para além disso, devido as peculiaridades deste tipo de delito.

nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha ).

Em virtude desse panorama, houve a necessidade de criar um tipo legal que retratasse essa figura delituosa peculiar e com características tão determinadas. Surge assim na legislação brasileira, a figura do Feminicídio, que difere-se do femicídio comum, que trata apenas da morte de mulheres (ser do sexo A dinâmica das mortes das vítimas de feminino), indo além: trazendo em seu bojo o feminicídio apresenta características distintas caráter da violência de gênero perpetrada. das mortes violentas praticadas contra os ho A Lei de Feminicídio Brasileira25 foi criamens, e por isso, necessitam de políticas de da a partir de uma recomendação da Comisprevenção específicas para a violência contra são Parlamentar Mista de Inquérito sobre a mulher, tendo em vista que, o funcionamenViolência contra a Mulher (CPMI-VCM)26 que to eficaz de um sistema de medidas protetiteve por objetivo investigar a violência prativas protege essas vítimas e pode interromper cada contra as mulheres nos Estados brasileidesfechos letais. 20 Disponível em: <https://nacoesunidas.org/brasil-tem-segunda-maior-taxa-de-homicidios-da-america-do-sul-diz-relatorio-da-onu/>. Acesso em: 03.07.2019. 21 Disponível em: <https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2019/03/08/cai-o-no-de-mulheres-vitimas-de-homicidio-mas-registros-de-feminicidio-crescem-no-brasil.ghtml.> Acesso em: 03.07.2019. 22 TELES, Maria Cunha de Almeida; MELO, Mônica de. O que é violência contra a mulher? São Paulo. Brasiliense, 2002, p. 30. 23 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. 24 A história da farmacêutica bioquímica Maria da Penha Maia Fernandes deu nome para a Lei nº 11.340/2006 porque ela foi vítima de violência doméstica durante 23 anos. Em 1983, o marido tentou assassiná-la por duas vezes 25 Lei nº 13.104 de 09 de março de 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/ l13104.htm. 26 Relatório final disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/relatorio-final-da-comissao-parlamentar-mista-de-inquerito-sobre-a-violencia-contra-as-mulheres.

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ros, no período de março de 2012 à julho de 2013. A Comissão apurou denúncias de omissão por parte do poder público com relação à aplicação de instrumentos instituídos em lei para proteger as mulheres em situação de violência, tendo compilado suas conclusões em um relatório final, o que culminou na criação da Lei. Não é possível desconsiderar entretanto que a iniciativa do poder legislativo de sancionar tal lei, é o resultado de anos de empoderamento político e social das mulheres, que passam diuturnamente, a se reconhecerem como sujeitos de direitos começam a cobrar tal reconhecimento da própria sociedade e das Instituições do Sistema de Justiça, que por força constitucional, não ser negligentes em face dessa realidade.

o Brasil aderiu em 198428; Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, a convenção de Belém do Pará de 199429; a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem – DADDH30 e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – CADH31. Desse modo, dentro de um contexto histórico de necessidade de reprimenda as violências de gêneros perpetradas contra as mulheres, em 09 de março de 2015, a Lei nº 13.104 inseriu no Código Penal o crime de Feminicídio, tendo esta figura sido inserida como uma espécie de homicídio qualificado, in verbis:

Homicídio simples Art. 121. Homicídio qualificado § 2º

Sobre a luta das mulheres em defesa de Feminicídio mecanismos legais que tipifiquem condutas VI - contra a mulher por razões da condidirecionadas a ofensa desses grupos vulneráveis, assim preleciona Lima sobre a Lei Maria ção de sexo feminino: da Penha, importante mecanismo nacional de § 2º -A Considera-se que há razões de combate à violência doméstica e intrafamiliar: condição de sexo feminino quando o crime A atual Lei Maria da Penha foi também envolve: baseada em diversos documentos internacioI - violência doméstica e familiar; nais, os quais visam, há muito tempo, à elimiII - menosprezo ou discriminação à connação da violência contra a mulher. Isso nos dição de mulher. mostra que a luta contra a violência doméstica contra a mulher é antiga, além de nos deAumento de pena monstrar a razão da existência desse diploma § 7º A pena do feminicídio é aumentada legal. Isso sem falar nos altos índices de violência de que se tem conhecimento através de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado: das delegacias brasileiras.27 Os tratados internacionais de repressão a violência contra a mulher também trazem comprometimento do estado brasileiro para com o desenvolvimento de políticas públicas que visem coibir e prevenir tais condutas. Temos como destaques: A Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW – Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women)/ ONU – a que

I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto; II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência; III - na presença de descendente ou de ascendente da vítima.

27 LIMA, Marcos Ferreira. Violência Contra a Mulher: o homicídio privilegiado e a violência doméstica. São Paulo. Ed. Atlas. 2009, p. 63. 28 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4377.htm> . Acesso em: 03.07.2019. 29 Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/belem.htm>. Acesso em: 03.07.2019. 30 Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/b.Declaracao_Americana.htm> . Acesso em: 03.07.2019. 31 Disponível em:< https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm> . Acesso em: 03.07.2019.

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Art. 2º O art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de ou seja, quando a vítima tem algum tipo de julho de 1990 , passa a vigorar com a seguinte vínculo com o agressor. alteração: Tal previsão de aumento de pena reflete Art. 1º mais uma vez, o caráter peculiar do homicídio cometido contra mulher por questões de gêI - homicídio (art. 121), quando praticado nero, em virtude precipuamente dos espaços em atividade típica de grupo de extermínio, sociais destinados a mulher e as pessoas que a ainda que cometido por um só agente, e hocircundam, bem como onde ela eventualmenmicídio qualificado (art. 121, § 2º, I, II, III, IV, V te sofre as violências. e VI) A força da ordem masculina se eviden É importante salientar que, uma vez cia no fato de que ela dispensa justificação: a que a figura do Feminicídio foi incluída como visão androcêntrica impõe-se como neutra e circunstância qualificadora do crime de hominão tem necessidade de se enunciar em discídio, esta passa a ser o incluída também no cursos que visem a legitimá-la. A ordem social rol dos crimes hediondos, tendo em vista que funciona como uma imensa máquina simbólia Lei nº 8.072/90 assim prevê: ca que tende a ratificar a dominação masculina o Art. 1 São considerados hediondos sobre a qual se alicerça: é a divisão social do os seguintes crimes, todos tipificados no trabalho, distribuição bastante estrita das atiDecreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de vidades atribuídas a cada um dos dois sexos, 1940 - Código Penal, consumados ou tenta- de seu local, seu momento, seus instrumentos; é a estrutura do espaço, opondo o lugar dos: de assembleia ou de mercado, reservados aos I – homicídio (art. 121), quando pratica- homens, e a casa, reservada às mulheres; ou, do em atividade típica de grupo de extermí- no interior desta, entre a parte masculina, com nio, ainda que cometido por um só agente, e o salão, e a parte feminina, com o estábulo, a homicídio qualificado (art. 121, § 2o, incisos I, água e os vegetais; é a estrutura do tempo, a II, III, IV, V, VI e VII). jornada, o ano agrário, ou o ciclo de vida, com Dessa forma, o agente praticante des- momentos de ruptura, masculinos, e longos se crime sofre uma série de implicações mais períodos de gestação, femininos.32 danosas, se comparado a figura do homicídio simples. Entre elas: regime inicial da pena, se É importante mencionar a existência gunda a lei, obrigatoriamente em regime fede um documento intitulado Diretrizes Nachado, progressão de regime mais dificultosa, prazos mais prolongados para prisão tempo- cionais Feminicídio – Investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes rária, entre outros. violentas de mulheres, de 2016): A publicação A lei também prevê o aumento de pena é resultado do processo de adaptação do Moquando o crime é praticado durante a gestação, delo de Protocolo latino-americano para ine nos 3 meses posteriores a esta, bem como vestigação das mortes violentas de mulheres contra pessoa menor de 14 anos ou maior de por razões de gênero (femicídio/feminicídio) à 60 anos ou com deficiência, na presença de realidade social, cultural, política e jurídica no descendente ou de ascendente da vítima (art. Brasil. 33 121, par. 7º, Código Penal). É salutar pontuar Por se tratar de uma lei relativamenque boa parte dos feminicídio ocorridos no Brasil são os chamados feminicídios íntimos, te nova, e que para o enquadramento de um 32 BOURDIEU, Pierre, A dominação masculina. 11ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012, p. 18. 33 O documento é uma realização da ONU Mulheres Brasil, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos e da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, com apoio da Embaixada da Áustria. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/diretrizes_feminicidio_FINAL.pdf . Acesso em: 03.07.2019.

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homicídio nas figuras por ela previstas exigem uma abordagem multidisciplinar, há relativa dificuldade de, nos casos concretos, se reconhecer a prática de feminicídio. Assim, os registros de feminicídio podem embutir alguma subnotificação, em função da não imputação do agravante de feminicídio ao crime de homicídio.

o propósito de diminuir as práticas discriminatórias ainda presentes no Direito, e especialmente no Poder Judiciário. Assim, o debate sobre o feminicídio ainda suscita controvérsias e tensões, pela compreensão de que a simples judicialização, ou seja, a tipificação da conduta violenta como crime não seria o caminho mais eficaz para a mitigação ou o banimento deste fenômeno da realidade social, é O tipo penal que prevê como qualificapreciso fazer mais. do o homicídio de mulheres em razão do gênero, busca promover a justiça de gênero com

5. O CENÁRIO ARGENTINO Na Argentina, em um universo de mais de 45 milhões de habitante, aproximadamente 51,1% da população é composta por mulheres; assim como no Brasil, a população feminina compõe a maior parte da população34. Entretanto quando comparada com o Brasil, em termos de feminicídio, a Argentina se encontra na 28º posição do país que ocorre mais feminicídio no mundo.35

com armas de fogo.37 Os anos 80 na Argentina, marcaram a publicização e diversos movimentos contra a violência contra as mulheres. Nesse período foram criados os Conselhos da Mulher, de âmbito provincial e municipal, que deram início à discussão sobre a problemática da violência de gênero.

Naquele país, de acordo ao Registro Nacional de Femicídios da Organização Mulheres da Matria Latino-Americana (MuMaLá), de junho de 2015 a maio de 2018, foram registrados 871 femicídios e 24 travesticidios. Isso demonstra que, a violência de gênero ceifa a vida de uma mulher a cada 30 horas nesse país.36

Outro passo importante para o avanço da proteção a mulher na Argentina foi dado em abril de 2009 quando foi sancionada a Ley 26485/0938, que, em seu texto, muito se assemelha a lei brasileira (Lei Maria da Penha)39. Neste normativo define-se a violência contra a mulher segundo os princípios e conceitos da Convenção de Belém do Pará, apresentando diferentes tipos de violência contra a mulher, como também estabelecendo um protocolo nacional de atendimento as mulheres vítimas de violência nas delegacias de polícia.

Na última década, de acordo com dados da ONG Casa de Encontro, ocorreram 2.679 feminicídios na Argentina. Destas, cerca de 66% das vítimas tinham entre 19 e 50 anos, e, em mais de 62% dos casos os homicidas os maridos, namorados ou parceiros das vítimas. Esta pesquisa mostrou ainda, que 51% das mulheres foram mortas em suas casas, e que um a cada quatro feminicídios foi cometido

Tal normativa, como objetivo inicial, visou sensibilizar e prevenir a violência contra a mulher, bem como desenvolver políticas públicas de âmbito interinstitucional, modificar padrões socioculturais que promovam e sustentem a desigualdade de gênero e as relações de poder sobre as mulheres e oferecer amplo acesso à justiça e assistência integral às vítimas de violência. Esta lei tipifica

34 Disponível em: <https://countrymeters.info/pt/Argentina>. Acesso em: 03.07.2019. 35 Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-11/brasil-concentrou-40-dos-feminicidios-na-america-latina-em-2017>. Acesso em: 03.07.2019. 36 Disponível em: <https://www.parlamentomercosur.org/innovaportal/v/15475/1/secretaria/parlasul-recomenda-a-criac%C3%A3o-de-um-observatorio-de-viol%C3%AAncia-contra-a-mulher-no-mercosul.html>. Acesso em: 03.07.2019. 37 Disponível em: http://www.lacasadelencuentro.org/. Acesso em: 03.07.2019. 38 Disponível em: <http://www.sipi.siteal.iipe.unesco.org/pt/node/691>. Acesso em: 03.07.2019. 39 A influência da Lei 11.340/06 – Maria da Penha na promulgação da Lei 26.485 pode ser apreendida na leitura da entrevista dada pela senadora argentina Maria Cristina Perceval ao site Comunidade Segura em 25 de março de 2009 (Entrevista com Maria Cristina Perceval. Nova lei pode reverter a violência contra as mulheres. Site Comunidade Segura, 25 de março de 2009. Disponível em: http://www.comunidadesegura.org/pt-br/MATERIAlei-pode-reverter-violencia-contra-mulheres) Acesso em: 03.07.2019.

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variadas formas de violência contra a mulher (física, psicológica, sexual, econômica e patrimonial, e simbólica) e define as modalidades dessa violência como doméstica, institucional, laboral, contra a liberdade reprodutiva, obstétrica e midiática.

Segundo dados da Casa del Encuentro, de 2008 a 2015 foram registrados na Argentina 2.094 feminicídios e 205 feminicídios vinculados de homens e crianças, ou seja, nesses 8 anos, além das vítimas diretas, foram registrados 2.518 vítimas colaterais, filhas e filhos que ficaram sem a mãe decorrente do feminicídio, demonstrando assim que o feminicídio é um tipo criminal que afeta para além da vítima efetivamente atingida, uma vez que esta encontra-se dentro de um contexto social.

Visando avançar ainda mais no que diz respeito aos normativos em defesa da mulher vítima de violência, o feminicídio foi regulamentado em uma reforma do Código Penal Argentino promulgado em 11 de dezembro de Diante desse cenário, em 2018 foi apro2012, in verbis: vada a Lei Brisa na Argentina, que garante assis-

tência aos “filhos do feminicídio”, constituindo-se em uma compensação econômica que deve iniciar desde o momento do julgamento do femicida, transfigurado em um valor de um salário mínimo mensal, destinados aos meninos, meninas e ado11. A una mujer cuando el hecho sea per- lescentes até os 21 anos, dependentes da vítimas. Tem-se assim, mais um avanço.

ARTICULO 80. - Se impondrá reclusión perpetua o prisión perpetua, pudiendo aplicarse lo dispuesto en el artículo 52, al que matare: petrado por un hombre y mediare violencia de género.

O Código Penal Argentino é claro ao tratar da violência de gênero. Para este país, tal reprimenda é necessária em virtude dos seus altos índices de violência e feminicídio, perpetrados por conceitos socioculturais de subjugação da mulher, entretanto, seguem resistindo. A maior mudança está, sem dúvida, no fato de que a dominação masculina não se impõe mais com a evidência de algo que é indiscutível. Em razão, sobretudo, do enorme trabalho crítico do movimento feminista que, pelo menos em determinadas áreas do espaço social, conseguiu romper o círculo do reforço generalizado, esta evidência passou a ser vista, em muitas ocasiões, como algo que é preciso defender ou justificar, ou algo de que é preciso se defender ou se justificar.40 Sobre a reprimenda aplicada, aquele que comete o feminicídio na Argentina estará sujeito a uma pena de reclusão ou de prisão perpétua. Assim, observa-se a grande diferença quando comparada a pena aplicada no Brasil. Entretanto, de acordo com as estatísticas, com o advento do feminicídio na Argentina, não foi constatada nenhuma diminuição drástica quanto à prática deste tipo de homicídio.

Ainda há necessidade de mais avanços na tipificação dos feminicídios na Argentina, entretanto, já não se fala de “crimes passionais”, mas de homicídios de gênero. A mudança de linguagem e tratamento deste tipo de violência representa um importante avanço com vistas a erradicar a cultura de violência contra a mulher. Assim, é importante mencionar que, ara além de solicitar mudanças do mundo social através das leis, deve-se lutar pela aplicação das próprias leis, tendo em vista que quanto mais as normas defendem direitos emergentes, vulneráveis e populares, maior é a probabilidade de não serem aplicadas. Outro aspecto relevante a ser mencionado, é a necessidade de constante de aprimoramento dos agentes do Sistema de Justiça que lidam com tais processos, com vistas ao melhor andamento da persecução penal e efetivo combate as violências perpetradas. Nesse sentido, prelecionam José Márcio Alves e Artenira Silva: Induvidoso que a garantia dessa máxima efetividade passa pela dotação dos operadores do direito – sobretudo dos que estejam à frente das instituições do sistema de justiça – de conhecimentos transdisciplinares que revelem a verdadeira mens legis da LMP como ferramenta insuflada

40 BOURDIEU, Pierre, A dominação masculina. 11ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012, p. 106.

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pela rede feminista global acerca da violência doméstica. Não excluir os operadores do direito do acesso a esse debate, em forma de qualificação formal e continuada, significa garantir uma mudança de paradigma para o de deslegitimação da violência doméstica, através do recrudescimento do discurso sociológico feminista no meio jurídico, para que ele migre do abstrato à prática das relações sociais geridas pelo Poder Judiciário.41

fique e apene o feminicídio, para que a mortalidade de mulheres seja reduzida. É preciso se perseguir, incessantemente, o objetivo de construção de uma sociedade menos desigual, processo que se inicia com a conscientização e a capacitação dos diversos atores.

Não é suficiente, portanto, que se tipi-

CONCLUSÃO A violência de gênero contra a mulher, quando praticada em um contexto doméstico, familiar ou mesmo de íntima relação de afeto com o agressor, constitui uma afronta aos direitos humanos e direitos de proteção a grupos vulneráveis prelecionados nos normativos infraconstitucionais e, portanto, merece receber a devida atenção das instituições integrantes do Sistema de Justiça. Nesse contexto, criar leis é de suma importância, entretanto, como vimos, não é suficiente.

estudo é a mista, ou seja, a pena possui dupla finalidade: A prevenção e a retribuição a violência praticada. Assim, a prevenção visa reeducar o criminoso, e em um segundo momento coibi-lo a não mais cometer delitos. Nesse contexto, não é difícil imaginar os percalços que os processos referentes a feminicídio enfrentam no Poder Judiciário, tendo em vista tratar-se de uma causa que exige especialidade de tratativas, com as quais os magistrados e diversos outros atores do sistema de justiça, em virtude da generalização de sua formação, podem não estar familiarizados, o que poderia representar obstáculos no que diz respeito o acesso à justiça. É importante salientar que os tribunais possuem um acervo processual pendente considerável e variado, e que ocasiona a congestão de processos.

Constitui-se um grande desafio, nos mais diversos países, erradicar os feminicídios, apenar adequadamente os agressores e, sobretudo, prevenir novos crimes, submetendo-os a um processo de reeducação. Para isso, fazem-se necessários instrumentos diversos em diferentes contextos sociais, para uma efetiva aplicação da lei, podemos citar: a capacitação Ainda assim, compreendemos que a ediconstante dos agentes da justiça e policiais, ção destas normativas representam um impara que os procedimentos sejam realizados portante avanço, que ultrapassa o mero simdentro dos padrões previstos em lei e a edição bolismo, estabelecendo providências que de de políticas públicas preventivas. fato vão resguardar a efetividade dos direitos Observamos neste estudo, portanto, humanos das mulheres em situação de violênque a criação destas qualificadoras nos Códi- cia doméstica e familiar, vítimas de feminicígos Penais do Brasil e da Argentina, são fruto dio. Ás mulheres (e homens) cabe lutar para uma política criminal que tem como objeti- que um dia todo esse pesadelo de violência vo dar uma proteção mais vigorosa à mulher, inaceitável e infundada acabe. frente a sua vulnerabilidade social, bem como com o intento reprimir de forma mais dura e específica o homicídio por razão de gênero, e assim, de fato reeducar o autor do crime. É importante pontuar que a teoria da pena adotada nos dois países objeto desse 41 ALVES, José Márcio Maia; SILVA, Artenira Silva e. A tipificação da lesão à saúde psicológica: revisitando o artigo 129, do código penal à luz da Lei Maria da Penha. In: João Paulo Allain Teixeira, Riva Sobrado de Freitas, Sérgio Antônio Ferreira Victor. (Org.). Direitos e garantias fundamentais I. 1ed.Brasília: CONPEDI, 2016, v. 1, p. 77-96.

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O MACHISMO ENRAIZADO NA SOCIEDADE BRASILEIRA E A INCORPORAÇÃO DA LEI DO FEMICICÍDIO (LEI 13.104/2015) NO ORDENAMENTO JURÍDICO COMO INSTRUMENTO DE PENALIZAÇÃO Rayfranete Neves Mastriani Graduanda em Direito pela Faculdade Marechal Rondon – Campus São Manuel (SP); Oficiala Administrativo na Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. E-mail: fran.bneves@gmail.com

SUMÁRIO 1. Introdução 2. Breve História e Cultura no Machismo no Brasil 2.1 Legislações Anteriormente Vigentes que Amparavam as Mulheres Vítimas de Violência 2.2 Da Lei 13.104/2015 3. Direitos e Princípios Aplicados 3.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e sua Abrangência 3.2 Princípio da Isonomia e Igualdade 4 Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015) 4.1 Lei do Feminicídio e suas Nuances 4.2 Diferenças Entre Femicídio e Feminicídio 5. A Qualificadora do Feminicídio e sua Natureza Subjetiva ConsideraÇões Finais Referências

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RESUMO Este artigo apresenta um estudo acerca da cultura do machismo enraizado na sociedade brasileira e suas consequências através dos tempos para as mulheres, das lutas empreendidas ao longo dos anos para combater a desigualdade entre homens e mulheres, dos avanços conquistados e das políticas públicas adotadas para deter a grande onda de violência contra a mulher no ambiente familiar e social, das leis criadas no sentido de proteger a mulher de seus agressores e do recrudescimento de leis já vigentes, com base em princípios constitucionais. O objetivo deste trabalho é apresentar um histórico dessa cultura machista/paternalista arcaica e sua principiologia, as formas adotadas pelo Estado para combater, erradicar e punir os agressores de mulheres dentro do ambiente socioafetivo e familiar por questões de gênero, da criação de leis efetivas e específicas para dirimir e combater a desigualdade entre homens e mulheres, dentro dos parâmetros de ordem mundial, bem como nos tratados internacionais e principalmente, em defesa da dignidade da pessoa humana.

PALAVRAS-CHAVE Machismo cultural. Violência doméstica e social. Homicídio. Princípios constitucionais. Políticas públicas de combate. Dignidade.

ABSTRACT This article presents a study about the sexist culture rooted in Brazilian society and its consequences over time for women, the struggles undertaken over the years to combat inequality between men and women, the advances achieved and the public policies adopted for to stop the great wave of violence against women in the family and social environment, the laws designed to protect women from their aggressors and the upsurge of laws already in force, based on constitutional principles. The purpose of this is to present a history of this archaic sexist/patriarchal culture and its principles, the ways the state has adopted to combat, eradicate and punish women offenders within the socio-affective and family environment for gender issues, the creation of effective and specific laws. to resolve and combat inequality between men and women, within the parameters of world order and based on international treaties, and especially in defense of the dignity of the human person.

KEYWORDS Sexist Culture. Domestic and social violence. Murder. Constitutional principles. Public policies of combat. Dignity.

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1. INTRODUÇÃO É notória a caminhada da mulher ao longo dos anos, no sentido de romper as barreiras arcaicas e patriarcais que a subjugaram continuamente em todas as esferas da sociedade, principalmente dentro do ambiente familiar, é o que nos mostra este estudo.

A finalidade deste estudo é trazer outra perspectiva acerca do feminicídio, tendo por enfoque a questão socioeducativa e filosófica, que abrange não só as estatísticas de morte por feminicídio, mas, a fim de revelar o problema maior: qual é a diferença de poder entre homens e mulheres nos diferentes contextos No primeiro momento, serão destacados socioeconômicos. os principais pontos sobre a história da cultura do machismo enraizado na sociedade braA metodologia deste artigo está baseada sileira, as legislações que buscavam amparar na revisão e discussão de referências sobre o as mulheres vítimas de violência e como foi tema, como livros, artigos, legislações vigencriada a Lei 13.104/2015. tes e demais publicações. O procedimento técnico empregado foi o estudo bibliográfico, Logo após, discute-se a luta das mulheres com a interpretação de textos, leis, jurispruatravés dos anos e as conquistas alcançadas dências, doutrinas e artigos científicos, com na legislação brasileira, os princípios norteauma pesquisa abrangente e filosófica sobre dores aplicados e sua abrangência nos direitos o assunto, tendo por conclusão o reconhecida mulher. Sendo assim, um dos objetivos é mento da grande falha na educação sobre a debater a Lei 13.104/2015 e suas nuances, a violência doméstica e socioafetiva e suas condiferença entre femicídio e feminicídio. sequências sociais para a mulher. Finalmente, discorre-se sobre a constituO principal objetivo da Lei do feminicícionalidade da lei 13.104/2015, sua eficiêndio é tirar o problema da invisibilidade, sendo cia e alcance, o reconhecimento êquanime da uma resposta penal a um crime que tem tirado mulher transgênero dentro da lei do feminicía vida de muitas mulheres, o artigo visa escladio, sua qualificadora e natureza subjetiva. Por recer e modificar os conceitos já apresentados fim, análise se constituirá pela ótica crítica de acerca do feminicídio, possibilitando ao leitor doutrinadores, por se tratar de assunto novo uma visão mais reflexiva acerca do assunto. no meio jurídico o que me proporcionou grande aprendizado.

2. BREVE HISTÓRIA E CULTURA DO MACHISMO NO BRASIL Ao longo dos anos a mulher tem lutado para conquistar espaço e igualdade de direitos e deveres no meio social. Graças às reinvindicações e constantes quebras de tabus, sua trajetória tem apresentado avanços e rompimentos de paradigmas por várias gerações.

ra papeis de liderança dentro de sua própria identidade, ocupando lugares de destaque na sociedade através de movimentos sociais, em lutas organizadas, fugindo das amarras ideológicas que as confinavam aos cuidados meramente familiares.

O ideal machista e seu sistema hierárquico vem perdendo força tanto no meio econômico, politico mundial, tanto quanto nas religiões e no núcleo familiar, onde historicamente a prática e os abusos contra a mulher são os mais presentes. A mulher, como coisa, “objeto sexual” de satisfação e prazer e como reprodutora, explorada e dominada, assume ago-

O século XX marca essa quebra de paradigmas de forma categórica, passos importantes foram dados para resguardar a dignidade da mulher, trazendo reconhecimento na lei, de direitos igualitários aos homens em todos os sentidos, embora sofrendo ainda os resquícios de uma sociedade marcada pelo patriarcalismo.

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Caminhando a passos lentos, a evolução histórica da condição jurídica da mulher na legislação do Brasil, tem sua trajetória marcada por opressão, sofrimento, submissão, conservadorismo, castigos físicos e até banimentos “legalizados”.

ção do patrimônio e a permanência deste no núcleo familiar, formava cidadãos atrelados à consciência de seus antepassados e de seus valores, deixando os indivíduos com destinos reservados, restando às mulheres o mesmo caminho de suas mães, avós e tias.

O Brasil-Colônia antes do Código Criminal do Império aprovado em 1830 e vigente a partir de sua publicação em 1831 era regido pelo Livro das Ordenações Filipinas, que mesmo não se identificando com os usos, costumes e tradições do Brasil, traziam em sua essência o conservadorismo do poder patriarcal e da Igreja. Conforme o Regime das Ordenações Filipinas, não era imputado pena ao marido por aplicação de castigos corporais à mulher e aos filhos e o pátrio poder era de exclusividade do homem, não podendo a mulher praticar quase nenhum ato sem sua autorização.1

Com a pseudopreocupação de harmonizar os interesses comuns da família, o legislador manteve a vontade preponderante do cônjuge masculino e os atos relativos à mulher ateados à prévia autorização de seu marido, de forma geral ou especial, constando em instrumento público ou particular previamente autenticado.

O Regime Republicano Brasileiro implantado no país veio a diminuir o domínio patriarcal, onde retirou do marido o direito de infligir castigos corporais a esposa e aos filhos, dispondo no Decreto nº 181 de Janeiro de 1890 as regras sobre o casamento civil. O Código Civil de 1916 manteve os princípios conservadores e o homem como chefe da família, a mulher ainda estava restrita a pequenos atos e apenas em caso de falecimento do cônjuge ou impedimento legal deste; um cenário de submissão às regras de liderança do poderio masculino ainda vigente e imposta. A restrição fica notória no Artigo 233 da referida lei, que institui em seu texto: “O marido é o chefe da sociedade conjugal...”, ou ainda mais absurdo, tratando com desprezo a capacidade cognitiva da mulher em tomar decisões ou resolver questões inerentes à sua própria vida conjugal, o texto da lei a tornava relativamente incapaz, Artigo 6º, inciso II.

Modificado o Artigo 233 do Código Civil de 1916 pela Lei 4.121/62, O Estatuto da Mulher Casada, acrescentou em seu texto que: “A função de chefe da sociedade conjugal deve ser exercida com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos”, amenizando sua condição de mera servente, para o marco de sua mudança social como companheira e ajudadora e retirou a incapacidade relativa do Artigo 6º. O Estatuto da Mulher Casada foi um marco na história da evolução feminina, trazendo em seu âmago os ideais e anseios de liberdade, embora com ressalvas e ainda competindo ao marido a representação legal da família, conforme Diniz (1994, p.102), “por motivos práticos, pois seria inconveniente faltar alguém que defendesse os direitos e interesses comuns na órbita cível ou criminal”, e que, “o homem era o representante legal da unidade familiar e não de sua mulher”, deixando claro, portanto, que a lei prescreveria e regulamentaria as relações familiares, retirando do marido a condição absolutista deste núcleo. 2

A Família tradicional voltada à manuten1 As Ordenações Filipinas resultaram da reforma feita por Felipe II da Espanha (Felipe I de Portugal), ao Código Manuelino, durante o período da União Ibérica. Continuou vigendo em Portugal ao final da União, por confirmação de D. João IV. Até a promulgação do primeiro Código Civil brasileiro, em 1916, estiveram também vigentes no Brasil. In Brasil, 1780 Livro das Ordenações Filipinas. Lisboa- Portugal. Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/242733~- acesso em 26 ago. 2019. 2 Informações retiradas de DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Direito de Família. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 102.

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2.1 LEGISLAÇÕES ANTERIORMENTE VIGENTES QUE AMPARAVAM AS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA Através da Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecido como “Pacto de San Jose da Costa Rica” (1969/1978), que assegurou em seu texto, direitos civis e políticos a todos, igualando assim as pessoas independente de sexo, foi um propulsor dos Direitos Humanos e trouxe para a mulher, identidade, personalidade jurídica, direito à liberdade de consciência e religião, privacidade, liberdade de pensamento e expressão, liberdade de movimento e residência, igualdade perante a lei e proteção judicial, dentre outros.

ativistas que já crescia em todas as camadas sociais. Embora desconhecendo o importante trabalho desenvolvido pelas mulheres para modificar o Código Civil, o texto da convenção continha reservas nos Artigos 15, § 4º e 16º, § 1º, alíneas (a), (c), (g) e (h) e referiam-se ao status da mulher casada; como escolha de domicílio, igualdade de direitos no casamento e em sua dissolução.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Itamaraty enviou ao Congresso Nacional uma proposta de retirada dessas Pela “Convenção para Eliminação de To- ressalvas. das as Formas de Discriminação contra a MuAtravés do Decreto 1.973 de 1º de agoslher”, de 1979, o Brasil, através do Decreto Nº to de 1996 foi promulgada a Convenção Inte89.460/84 homologou a referida convenção, ramericana para Prevenir, Punir e Erradicar a trazendo para as mulheres uma verdadeira reViolência Contra a Mulher. Conhecida como a viravolta em diferentes campos. Convenção de Belém do Pará, esta lei reitera, Como a própria convenção traz em seu ratifica e afirma que a violência contra a mutexto, todo significado de luta empreendi- lher constitui violação dos direitos humanos da pelas mulheres ao longo dos anos, tendo e liberdades fundamentais consagrados na como base a igualdade e os direitos humanos, Declaração Americana dos Direitos e Deveres as liberdades e garantias fundamentais para do Homem e na Declaração Universal dos Disua própria sobrevivência social, até então: reitos Humanos, instrumentos internacionais nas quais o Brasil teria celebrado acordo. Artigo 1º Para os fins da presente Convenção, a expressão “discriminação contra a mulher” significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. 3 A referida convenção que foi produto da Conferência Internacional da Mulher do México em 1975, trouxe para o país modificações significativas no universo feminino e inaugurou no Brasil uma era de movimentos 3

Comprometidos a adotar medidas para prevenir e erradicar todas as formas de violência contra a mulher, os Estados Membros da Comissão Interamericana, ressaltaram a obrigação dos Estados signatários em promover mudanças nos setores administrativos, educacional, político e na criação de políticas públicas de prevenção e combate à violência e toda forma de discriminação contra a mulher, bem como promover a igualdade de gênero. Em 26 de dezembro de 1977 foi promulgada a Lei 6.515 que regulou os casos de dissolução da sociedade conjugal e do casamento, seus efeitos e respectivos processos, dando aos cônjuges a oportunidade de pôr fim ao casamento e de constituir nova família. Tal lei deu à mulher a faculdade de escolher usar o sobrenome do marido e retirou a imposição social de abrir mão de seu próprio nome, o que a despersonalizava. A lei também trouxe efeitos sobre a escolha do re-

Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4377.htm – acesso em 26 ago. 19.

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gime de comunhão de bens a que os cônjuges se submeteriam, equiparou os filhos independentemente de filiação para fins de sucessão hereditária; estabeleceu a reciprocidade de prestação alimentar indistintamente entre homem e mulher, vinculando os alimentos ao poder aquisitivo dos pais. 4

orientações da Corte Internacional, demorou 19 anos e seis meses para que o autor das tentativas de homicídio contra Maria da Penha fosse preso. Dos oito anos de pena, cumpriu um ano e quatro meses em regime fechado e o restante em regime semiaberto e aberto, o que não trouxe alivio a vitima, pois estava paraplégica por conta das agressões vividas, mas, contribuiu para que Com a criação dos Juizados Especiais Cri- fosse criada a Lei que levaria seu nome e ajudaminais em 1995, através da Lei 9.099/95, com ria milhares de mulheres com histórias iguais a o intuito de ampliar o acesso à justiça principal- sua. mente à população mais carente de forma mais simples e célere, o Estado proporcionou uma forA Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) foi ma de administrar conflitos envolvendo os crimes elaborada depois de demorado processo de disconsiderados de menor potencial ofensivo, com cussões e audiências públicas, análises das propena máxima não superior a dois anos. Em virtu- postas de leis que tramitavam no Congresso Nade das práticas de mediação de conflito ocorridas cional, propostas e acordos ratificados pelo país, nos Juizados Especiais Criminais, os casos de passando pelo crivo de processualistas cíveis violência contra a mulher estavam sendo banali- e criminais, para então chegar ao Legislativo e zados, pois o judiciário buscava conciliar a vítima ser encaminhada para sanção presidencial. Um com o agressor, sendo isto apenas uma forma de árduo caminho que custou a muitas mulheres, resolver os conflitos que se apresentavam o que dor, pela omissão do Estado. contribuía para naturalizar ainda mais a violência A referida lei explicita as ações que devem doméstica/familiar.5 ser incluídas no enfrentamento à violência conEm 2001, o Brasil foi condenado pela Co- tra a mulher, com punição, proteção, prevenção missão Interamericana de Direitos Humanos dos e educação. Estados Americanos (CIDH/OEA) por omissão, No campo da punição, temos a instauração negligência e tolerância em relação aos crimes contra os direitos humanos das mulheres. Sen- de inquérito (abolido na Lei 9.099/95); aplicação tado no banco dos réus pelo caso da biofarma- de medidas de prisão em flagrante delito, pricêutica Maria da Penha, que foi vítima de duas são preventiva ou como decorrente de decisão tentativas de homicídio em 1983 pelo seu então condenatória; proibição da aplicação de penas marido, o Brasil iniciava uma longa jornada que alternativas ou pagamento de multa como pena alteraria a visão da sociedade em relação aos isolada; restrição da representação criminal para crimes de violência doméstica praticado contra determinados delitos; e o veto da aplicação da Lei n. 9.099/95 aos crimes que se configurem como as mulheres. “violência doméstica e familiar contra a mulher”, A Organização dos Estados Americanos segundo o disposto nos artigos 5º e 7º. categoricamente afirmou que sendo o Brasil sigO segundo princípio norteador da lei connatário de todos os acordos internacionais, entre eles a Convenção Interamericana para Prevenir, templa medidas de proteção à integridade física Punir e Erradicar a Violência Contra as Mulheres e os direitos da mulher; a decretação da prisão (Convenção de Belém), que asseguram indiscu- preventiva do agressor através de requerimento tivelmente os direitos humanos das mulheres, do juiz expedido ao Ministério Público, dentre ourecomendou ao Brasil a finalização do proces- tras. Integram também esse princípio as medidas so penal do responsável pelas agressões contra de assistência, de modo que a atenção à mulher Maria da Penha, bem como indenização moral e em situação de violência se dê de forma integral, material pelas violações sofridas, assim também contemplando, além do atendimento jurídico cicomo a adoção de medidas voltadas à preven- vil e criminal, o atendimento psicológico e social. ção, punição e erradicação da violência contra a E, por fim, temos as medidas de prevenção e de educação, compreendidas como estratégias mulher. possíveis e necessárias para coibir a reprodução Mesmo tendo implementado parte das social do comportamento violento e a discrimina4 5 2019.

Brasil Lei 6.515, de 26 de dezembro de 1977 – Lei do Divórcio. Disponível em Conselho Nacional de Justiça – www.cnj.jus.br - acesso em 26 ago.

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ção baseada no gênero. (Souza, 2013)6

2.2 DA LEI 13.104/2015 Como objeto de estudo se torna prioridade discorrer sobre o processo de criação da Lei 13.104/2015 conhecida por Lei do Feminicídio.

estatal detectada tanto por pesquisas, estudos e relatórios nacionais e internacionais quanto pelos trabalhos desta CPMI estão a demonstrar a necessidade urgente de mudanças legais e culturais em nossa sociedade. Conforme mostra a pesquisa intitulada Mapa da Violência: Homicídios de Mulheres, mais de 92 mil mulheres foram assassinadas no Brasil nos últimos trinta anos, 43 mil delas só na última década.

Criada em 2013 para avaliar a situação de violência contra a mulher no país, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da violência doméstica envolveu diversos órgãos de diversos setores do país, incluindo organizações internacionais, órgãos do poder executivo e do sistema de Justiça, que se reuniram BALANÇO DOS TRABALHOS DA CPMI para traçar um mapa da violência contra a muAo longo de pouco mais de um ano de lher e realizar um estudo da ineficiência das trabalho, a Comissão Parlamentar Mista de políticas públicas já aplicadas para coibir tais Inquérito da Violência contra a Mulher (CPMIatos. VCM) – criada por meio do Requerimento nº Em sua nota de apresentação a nobre co- 4 de 2011-CN, “com a finalidade de, no prazo missão cita em seu texto: de 180 (cento e oitenta) dias, investigar a situação da violência contra a mulher no BraSuperar a violência contra as mulheres sil e apurar denúncias de omissão por parte é um dos maiores desafios impostos ao Estado poder público com relação à aplicação de do brasileiro contemporaneamente. As diverinstrumentos instituídos em lei para proteger sas formas de violência – como a praticada as mulheres em situação de violência” – visino âmbito doméstico por parceiros íntimos tou dezessete estados brasileiros e o Distrito ou familiares, a violência sexual, o tráfico de Federal, sob a presidência da Deputada Femulheres, a violência institucional, a violênderal Jô Moraes (MG) e relatoria da Senadocia contra mulheres com deficiência, a violênra Ana Rita (ES).7 cia decorrente do racismo, a lesbofobia e o Os dados do Mapa da Violência 2015 elesexismo – e o feminicídio são violações aos direitos humanos das mulheres, incompa- varam os clamores sociais para um olhar mais tíveis com o Estado Democrático de Direito abrangente na legislação, pois o diagnóstico e com o avanço da cidadania, em boa parte apresentado pela Comissão Parlamentar Mispatrocinado pelas conquistas do movimento ta de Inquérito afirmava que a maior parte dos crimes contra a mulher ocorria no contexto das feminista e de mulheres nos últimos séculos. A curva ascendente de feminicídios (o assassinato de mulheres pelo fato de serem mulheres), a permanência de altos padrões de violência contra mulheres e a tolerância

relações afetivas e diversas vezes, os corpos violentados das mulheres traduziam a crueldade e o barbarismo de seus algozes, refletindo dessa forma o desprezo e a discriminação dos assassinos às vitimas pela condição de ser mulher.8

6 SOUZA, Suellen André de - Doutoranda em Sociologia Política da Universidade Estadual do Norte Fluminense – UENF – Pesquisadora do Núcleo de Estudos da Exclusão da Violência NEEV/UENF e pesquisadora do instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos – INCT – InEAC. XXVII Simpósio Nacional de História – Conhecimento histórico e diálogo social – Natal/RN – 22 a 26 de julho de 2013 7 Senado Federal – Secretaria das Comissões – Subsecretaria de apoio às Comissões Especiais e Parlamentares de Inquérito. Disponível em https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/relatorio-final-da-comissao-parlamentar-mista-de-inquerito-sobre-a-violencia-contra-as-mulheres - acesso em 12 set. 2019. 8 Disponível em CNJ (Conselho Nacional de Justiça) Disponível https://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/81764-cnj-

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Dessa forma, surgiu através da pressão po- qualifica o assassinato de mulheres “em razões pular a Lei 13.104/2015, Lei do Feminicídio, que da condição do sexo feminino”.

3. DIREITOS E PRINCÍPIOS APLICADOS Os direitos das mulheres assegurados na legislação brasileira é uma verdadeira evolução histórica. Segundo Rocha (2015)9, “as primeiras Constituições Federais de 1824 e 1891 asseguraram formalmente o postulado da isonomia”.

finitivamente a isonomia jurídica entre homens e mulheres especificamente no ambiente familiar, trazendo regras especiais no ambiente de trabalho que proíbem a discriminação no mercado de trabalho por motivo de sexo.

A Constituição Federal de 1934 conferiu o direito ao voto, bem como vedou expressamente os privilégios e distinções por motivos de sexo, vedação que se estendia, inclusive, ao pagamento de salários diferenciados.

Ainda citando Rocha, as determinações constitucionais foram complementadas nas cartas estaduais e pelas legislações infraconstitucionais, com destaque ao Código Civil que trouxe mudanças importantes para a mulher; a Lei 8.930/94 que incluiu o crime de estupro no rol dos crimes hediondos; a Lei 9.318/96 que agravou a pena dos crimes cometidos contra a mulher grávida; a Lei Maria da Penha 11.340/06 que penaliza efetivamente casos de violência doméstica e a Lei do Feminicídio 13.104/15, que trouxe uma maior dureza nos crimes cometidos contra a mulher, em razão de sexo.

Foi assegurada no Governo de Getúlio Vargas, a assistência médica e sanitária à gestante, antes e depois do parto, sem prejuízo do salário e do emprego, que foi estendida nas Constituições Federais de 1937, 1946 e 1967 e emendada em 1969. Ainda segundo Rocha, a mais exitosa das Constituições foi a de 1988, que consagrou de-

3.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SUA ABRANGÊNCIA A dignidade da pessoa humana tem ligação íntima e indissociável com os Direitos Humanos fundamentais, que são reconhecidos e protegidos na esfera do Direito Internacional e do Direito Constitucional. Segundo Sarlet (2017), em virtude do reconhecimento relativamente recente da dignidade da pessoa humana como valor de matriz constitucional, “constitui um dos esteios nos quais se assenta tanto o direito constitucional quanto o direito internacional dos direitos humanos”.10 A Constituição Federal ao inserir a dignidade da pessoa humana no elenco dos fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro, situou-a no âmbito dos princípios fundamentais

e estruturantes, vindo após o preâmbulo, como sinal de força propulsora das demais garantias e direitos outorgados na Carta máxima de nosso país (Artigo 1º, inciso III, Constituição Federal), buscando definir o conteúdo normativo autônomo, seja como princípio de valor, seja estando em causa a natureza e a intensidade de suas relações com os direitos fundamentais, traz em sua essência o amparo que o indivíduo necessita e pode se valer como garantia de sua própria dignidade pessoal. Destinada a “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”,

-servico-voce-conhece-a-lei-do-feminicidio - acesso em 19 ago. 2019. 9 ROCHA, Maria Elizabeth Guimarães Teixeira. Os direitos da mulher nos 30 anos da Constituição Federal Brasileira. Editora JC, Rio de Janeiro. Artigos. Edição 218. Disponível em https://www.editorajc.com.br/os-direitos-da-mulher-nos-30-anos-da-constituicao-federal-brasileira/ acesso em 18 set. 2019. . 10 SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de Direito Constitucional. Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidero. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. 263.

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damental não contém apenas (embora também e acima de tudo) uma declaração de conteúdo ético e moral, mas constitui norma jurídico-positiva dotada, em sua plenitude, de status constitucional formal e material e, como tal, inequivocamente dotado de eficácia e aplicabilidade, alcançando, portanto, Doravante seguindo o mesmo sentido ético também a condição de valor jurídico fundae moral, Sarlet cita que: mental da comunidade. 12 a Constituição Federal em seu preâmbulo traz o sentido maior do indivíduo e o reconhecimento de que dignidade da pessoa humana é a razão pela qual o Estado exerce seu poder e tem sua finalidade precípua para servir como instrumento para garantir e promover a dignidade das pessoas individualmente e coletivamente.

Quando se fala em direito a dignidade, se está, em verdade a considerar o direito a reconhecimento, respeito, proteção e até mesmo promoção e desenvolvimento da dignidade, sem prejuízo de outros sentidos que se possa atribuir os direitos fundamentais relativos à dignidade da pessoa humana. 11 No âmbito familiar, a Constituição Federal trouxe no Art. 226, caput, a família como base da sociedade e tendo a especial proteção do Estado, assegurando assim, conforme entende Sarlet, que: O Artigo 1º, inciso III, de nossa Lei Fun-

Mendes (apud Sarlet, 2018, p.89) nos remete ao mesmo autor, nas considerações inicias de sua obra sobre Direito de Família, acrescentando que: A dignidade da pessoa humana é o reduto intangível de cada indivíduo e, neste sentido, a última fronteira contra quaisquer ingerências externas. Tal não significa, contudo, a impossibilidade de que se estabeleçam restrições aos direitos e garantias fundamentais, mas que as restrições efetivadas não ultrapassem o limite intangível imposto pela dignidade da pessoa humana. 13

3.2 PRINCÍPIO DA ISONOMIA E IGUALDADE Presente em toda Constituição Federal, o princípio da Isonomia e Igualdade garante a todos os cidadãos brasileiros, perante a lei, tratamento justo e digno, independentemente de sexo, idade ou etnia. Trata-se de direito fundamental e de reconhecimento mundial inerente à ideia de liberdade e dignidade humana, representando o símbolo da democracia. Araújo (2016) cita Kant, que em sua formulação diz que: “Dignidade pode ser apontada como o predicado que faz do ser humano o único ser dotado de valor não relativo”. Diz com isso que o ser humano é a finalidade que não pode ter seu valor mitigado diante de nenhuma outra circunstância, bem ou valor. 14

A expressão vem do grego e representa o prefixo “iso”(igual) mais “nomos” (lei) e ganhou notoriedade a partir da noção de “Estado de Direito”, onde suas principais características são soberania popular, democracia representativa e participativa, Estado Constitucional, ou seja, que possui uma constituição que emanou da vontade do povo e um sistema de garantia dos direitos humanos. Ainda Araújo (2016) explicita em sua tese citando também Aristóteles, segundo o qual deve haver tratamento “igual aos iguais e desigual aos desiguais, na medida dessa desigualdade”, nos trazendo a luz a máxima com a explicação de que, apesar de correto o sentido da explicação,

11 SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de Direito Constitucional. Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidero. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. 264. 12 SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de Direito Constitucional. Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidero. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. 265. 13 MENDES, Stela Maris Vieira. Manual de Direito de Família e Sucessões. Stela Maris Vieira Mendes. 3ª ed. Campo Grande: Contemplar, 2018. P. 21. 14 Araújo, Luiz Alberto David. Curso de Direito Constitucional. Luiz Alberto David Araújo, Vidal Serrano Nunes Júnior. 20ª ed. ver. São Paulo: Verbatin, 2016. Pg. 175.

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a concretização dessa adequação implica na grande dificuldade em determinar em cada caso concreto, quem são os iguais, quem são os desiguais e qual a medida dessa desigualdade.15

mem e mulher (Artigo 226, § 5º da Constituição Federal); nas relações trabalhistas onde, muitas vezes, criminaliza discriminações; na proteção de vulneráveis, assim como também nas relações de consumo, na análise de cada caso conAos particulares, segundo Araújo (2016), o creto e de acordo com suas vertentes.16 princípio da isonomia se propaga imediatamente em vários sentidos e com muitos efeitos, no sentido das relações conjugal e familiar entre ho-

4 LEI DO FEMINICÍDIO (LEI 13.104/2015) Para que se chegue a uma definição do conceito jurídico do feminicídio, é necessário um estudo mais aprofundado da mencionada qualificadora em face dos demais institutos do mesmo tipo penal. Vale ressaltar aqui que a referida lei está inserida como condição qualificadora do crime de homicídio no Artigo 121, do Código Penal, em seu § 2º-A, o que eleva o tipo penal à condição de crime hediondo, segundo Xavier (2019), para contextualizar devidamente a presente discussão, há de se destacar os termos literais da lei e sua alteração no Código Penal na redação do crime de homicídio. Xavier cita que vai depender sempre da análise do caso concreto, destacando ser impossível a incidência de privilegiadora conjuntamente com a qualificadora, pois haverá choque dos motivos que levam o sujeito a praticar o crime.

Dentre as características do feminicídio estão incluídos as circunstancias de prática do crime de assassinato em contexto de violência doméstica/familiar e o menosprezo ou discriminação à condição de mulher e a simbólica destruição da identidade da vítima. O conceito subjetivo e profundo traz à luz a definição do crime que carrega traços de ódio que destrói a vítima, combinado com as práticas de violência sexual, tortura ou mutilação antes ou depois do assassinato. Barros nos explica que a expressão feminicídio “vai além da compreensão daquilo designado como misoginia” , sendo que o agressor origina um ambiente de pavor na mulher, gera a perseguição e sua morte e constituem as agressões físicas e psicológicas, espancamentos, torturas, estupro, mutilação genital, intervenções ginecológicas imotivadas, impedimento do aborto e da contracepção, esterilização forçada dentre outros atos dolosos que possam gerar a morte da mulher.18

Conforme definição de Barros (2019) o A expressão “por razões da condição do Feminicídio é: sexo feminino” foi fruto de uma emenda substiUma qualificadora do crime de homicí- tutiva apresentada na Câmara dos Deputados e que altera a expressão “por razões de gênero” dio motivada pelo ódio contra as mulheres ou que constava no projeto de lei original, revelancrença na inferioridade da mulher, caracteri- do assim a qualificadora do feminicídio, que deve zado por circunstâncias específicas nas quais restar comprovada segundo o texto legal. o pertencimento da mulher ao sexo feminino A substituição tem pouca relevância no coné central na prática do delito. 17 15 Araújo, Luiz Alberto David. Curso de Direito Constitucional. Luiz Alberto David Araújo, Vidal Serrano Nunes Júnior. 20ª ed. ver. São Paulo: Verbatin, 2016. Pg. 176. 16 Araújo, Luiz Alberto David. Curso de Direito Constitucional. Luiz Alberto David Araújo, Vidal Serrano Nunes Júnior. 20ª ed. ver. São Paulo: Verbatin, 2016. pg. 177 17 Barros, Francisco Dirceu. Feminicídio: controvérsias e aspectos práticos. Francisco Dirceu Barros & Renee de Ó Souza. Leme, SP: JH Mizuno, 2019. pg. 24. 18 Barros, Francisco Dirceu. Feminicídio: controvérsias e aspectos práticos. Francisco Dirceu Barros & Renee de Ó Souza. Leme, SP: JH Mizuno, 2019. pg. 25

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texto da hermenêutica, pois conforme entende crime que envolve violência doméstica e familiar, Barros, vincula-se igualmente a razões de gê- menosprezo ou discriminação à condição de munero, devendo-se compreender objetivamente o lher .19

4.1 LEI DO FEMINICÍDIO E SUAS NUANCES A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, por ocasião da edição da Lei 13.104/2015 centrou-se em cinco (5) razões específicas principais para assentar o correto sentido da qualificadora e modelar uma diretriz normativa a ser empregada na sua aplicação e a partir dai analisar as hipóteses de razões de gênero prevista no parágrafo 2º-A da lei em questão, são elas:

va à sociedade de que o direito a vida é universal e de que não haverá impunidade; V Protege, ainda, a dignidade da vítima, ao obstar de antemão as estratégias de se desqualificarem, midiaticamente, a condição de mulheres brutalmente assassinadas, atribuindo a elas a responsabilidade pelo crime de que foram vítimas. 20 Barros explica que o legislador pretendeu

I reconhecer, na forma da lei, que mulhe- deixar clara a norma explicativa do Artigo 121, § res estão sendo mortas pela razão de serem 2º-A da referida lei, a fim de assegurar “uma aplimulheres; cação sistêmica ao regime protetivo em oposiII expondo a fratura da desigualdade de gênero que persiste em nossa sociedade, e é social, por: III combater a impunidade, evitando que feminicidas sejam beneficiados por interpretações jurídicas anacrônicas e moralmente inaceitáveis, como o de terem cometido ‘crime passional’; IV enviar desta forma, mensagem positi-

ção à violência doméstica contra a mulher”. Dito isso, depreende-se do texto que o legislador não criou uma qualificadora para a morte de mulheres, pois bastaria dizer claramente “se o crime é cometido contra a mulher”, sem a utilização da expressão “por razões da condição de sexo feminino”, desse modo deduz-se que a qualificadora não se refere a uma questão biológica, mas a uma questão de gênero, o que nos remete ao que é relativo ao papel que cada sexo desempenha no meio social. 21

4.2 DIFERENÇAS ENTRE FEMICÍDIO E FEMINICÍDIO Torna-se imprescindível conceituarmos e diferenciarmos femicídio de feminicídio para delimitar as abrangências do bem jurídico tutelado e enfocar a proteção devida e indispensável em cada caso concreto.

mete à concepção da supressão do bem jurídico da vida, o mais valioso bem do sujeito, tutelado pela norma, sendo ela a base de todo direito individual, pois sem a vida não existe personalidade.

O Feminicídio como nos revela Barros Femicídio significa praticar homicídio contra (2019) 22, “revela uma desigualdade estrutural a mulher, matar a mulher. Este conceito nos re- nas relações sociais e de poder entre homens 19 Barros, Francisco Dirceu. Feminicídio: controvérsias e aspectos práticos. Francisco Dirceu Barros & Renee de Ó Souza. Leme, SP: JH Mizuno, 2019. pg. 25 20 Plenário do dia 09 de fevereiro de 2012. Ação Declaratória de Constitucionalidade 19 – Disponível em http:// www.stf.jus.br – acesso em 17 out. 2019. 21 Barros, Francisco Dirceu. Feminicídio: controvérsias e aspectos práticos. Francisco Dirceu Barros & Renee de Ó Souza. Leme, SP: JH Mizuno, 2019. pg. 26 22

Barros, Francisco Dirceu. Feminicídio: controvérsias e aspectos práticos. Francisco Dirceu Barros & Renee

de Ó Souza. Leme, SP: JH Mizuno, 2019. apresentação.

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e mulheres”, sendo, pois, necessário um estudo §2º Se o homicídio é cometido: profundo sobre “todos os aspectos e consequVI – Contra a mulher por razões do sexo ências jurídicas do crime misógino, fomentando feminino: interpretações que repudiam a impunidade”.

§ 2º-A Considera-se que há razões de O Feminicídio é a instância última de controle da mulher pelo homem, o controle da vida condição de sexo feminino quando o crime e da morte, como afirmação de posse, como se envolve: objeto fosse, com a destruição da identidade da I – violência doméstica e familiar; vítima. II- menosprezo ou discriminação à conO termo literal da lei contextualiza a qualidição de mulher. 23 ficação: Artigo 121. Matar alguém:

5. A QUALIFICADORA DO FEMINICÍDIO E SUA NATUREZA SUBJETIVA Barros (2019) entende que a Lei do Feminicídio tem duas qualificações, uma objetiva e outra subjetiva. “As qualificadoras subjetivas são aquelas relacionadas com a motivação do crime, e as objetivas, relacionam-se com as formas de sua execução”. 24

A qualificadora do feminicídio assenta-se em circunstâncias que, para ser bem compreendidas, devem ser conjugadas com os artigos 5º e 7º da Lei nº 11.340/2006 que enumera as hipóteses e formas de violência doméstica e familiar contra a mulher. 25

Para explicar o posicionamento das correnO autor exemplifica a subjetividade da quates doutrinárias, Barros explica que: lificadora na motivação do agente, pelas estritas Segundo essa corrente, a nova qualifi- razões relacionadas à condição de mulher, não cadora do feminicídio não deve ser compre- havendo assim ligação com os meios ou modos endida como móvel imediato da conduta, a de execução do crime, a motivação delitiva é a qualificadora subjetiva do feminicídio, “pela vulexemplo de uma discussão banal, adultério, nerabilidade da mulher tida como frágil, pela cerpossessividade, desilusão amorosa, ciúmes teza de sua dificuldade em oferecer resistência excessivos ou inconformismo com o fim do ao agressor machista” 26.

relacionamento afetivo. Em verdade, o texto da qualificadora do feminicídio (inciso VI), que é complementado pela norma explicativa do § 2º - A, descreve hipóteses fáticas que devem ser aferidas objetivamente, a fim de identificar a existência da violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Barros conclui sobre a temática que “a relativização dos requisitos previstos no §1º do artigo 121 do Código Penal, produz a banalização da tutela penal sobre o valor da vida e ofende a proibição da proteção deficiente” 27. Nesta linha de raciocínio, nos surpreende ao valorar a máxima de que (Barros 2019, apud Piedade28 p. 46 2015)

23 BRASIL. Lei 13.104/15, de 09 de março de 2015 – Lei do Feminicídio. 24 Barros, Francisco Dirceu. Feminicídio: controvérsias e aspectos práticos. Francisco Dirceu Barros & Renee de Ó Souza. Leme, SP: JH Mizuno, 2019. Pg. 49. 25 Barros, Francisco Dirceu. Feminicídio: controvérsias e aspectos práticos. Francisco Dirceu Barros & Renee de Ó Souza. Leme, SP: JH Mizuno, 2019. Pg. 57 26 Barros, Francisco Dirceu. Feminicídio: controvérsias e aspectos práticos. Francisco Dirceu Barros & Renee de Ó Souza. Leme, SP: JH Mizuno, 2019. Pg. 59 27 Barros, Francisco Dirceu. Feminicídio: controvérsias e aspectos práticos. Francisco Dirceu Barros & Renee de Ó Souza. Leme, SP: JH Mizuno, 2019. Pg. 62 28 Piedade, Antonio Sergio Cordeiro. Teses atentatórias à dignidade da mulher e o princípio da proporcionalidade na vertente da proibição da proteção deficiente. Cadernos do Júri 3. Associação dos Promotores do Júri – Confraria do júri. Organizado por César Danilo Ribeiro de Novais. Cuiabá-MT: KCM Editora, 2015. Pg. 46.

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“o Estado não deve agir de forma arbitrária, as- equiparação dos direitos a todos os transgêsim como não poderá agir de forma insuficiente, neros. na proteção de valores ínsitos ao Estado DemoDepreende-se então que, medidas lecrático de Direito”.

gislativas vêm sendo adotadas, de ordem interna e internacional pelo Brasil em favor das mulheres, independentes do sexo biológico, o que representa um grande avanço para a sociedade como um todo, embora a questão de gênero seja mais abrangente que as características psicológicas e comportamentais, buscando o legislador destacar a vulnerabilidade do gênero que demanda proteção especial do Estado.

4.1 Eficácia e alcance da Lei 13.104/1529

A Lei 13.104/15 embora tenha incluído o assassinato de mulheres no rol dos crimes hediondos, segundo o mapa da violência divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), chegou a 13 casos por dia em 2015, sendo que o Brasil ocupava o quinto (5º) lugar no mundo em casos de assassinatos de mulheres, perdendo apenas para El Salvador, Colômbia, Guatemala e Federação Russa, sendo 4.2 Constitucionalidade da Lei 13.104/15 que os maiores casos ocorrem em municípios A Lei 13.104/15 é um importante marco para de pequeno porte, onde não há delegacias esefetivação da igualdade entre homens e mulhepecializadas e as delegacias comuns não tem res, dado que a violência contra a mulher é uma preparo para lidar com casos desse tipo. Buscou o legislador dar concretude ao Artigo 226, §8º, da Constituição Federal, criando mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher e refrear a reiterada prática de agressão do gênero feminino, que podem se manifestar fisicamente, psicologicamente, moralmente, sexualmente e patrimonialmente. Admite o presente, a ampliação do sujeito passivo a mulher transgênero, quando demonstrado que o crime foi motivado pelo menosprezo ou discriminação à condição de gênero da vítima como nos mostra o ACORDÃO 1184804, publicado no Diário Oficial da Justiça do dia doze de julho de 2019, entendimento já pacificado. Servindo-se da conveniência e oportunidade a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), aprovou no dia 22/05/2019 o Projeto de Lei do Senado (PLS) 191/2017, que amplia o alcance da Lei Maria da Penha (Lei 13.340/2006), que pretende combater a violência contra pessoas que se identifiquem como integrantes do sexo feminino, trazendo

questão densa e muito mais complexa do que tipos penais e cominações legais a elas correspondentes, pois envolvem fatores de cunho psicossocial e histórico, conforme explicita Barros, pois exatamente “em razão dessa complexidade e do conflito que envolve a violência de gênero, a mesma resposta não pode ser dada, como o é para os crimes comuns”. 30

Barros explica que a atual Constituição Federal concede tratamento mais favorável para as mulheres justamente por causa da submissão social que ela se encontra, pois “a lei se assenta em pressupostos e determinações convencionais e da Convenção dos Direitos Humanos que reconhece a situação de hipossuficiência e hipoproteção da mulher” 31, sendo justificada dessa forma o tratamento penal mais gravoso. Para explicar a constitucionalidade da lei, Barros cita a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC 19) e a Ação de Inconstitucionalidade (ADIN 4424), onde o Supremo Tribunal Federal considerou constitucionais todos os dispositivos da Lei 11.340/2006, que estabelecem tratamento jurídico diferenciado necessário para a proteção da mulher. Assim, reitera-se que a Constitucionalidade da Lei 13.104/2015 baseia-se no princípio da igualdade e fundamenta-se

29 Dados retirados do Conselho Nacional de Justiça – Disponível em www.cnj.jus.br. Acesso em 19 ago. 2019; do Senado Federal – disponível em www12.leg.br. Acesso em 01 nov. 2019 e do Pesquisa Documentos Jurídicos. www. pesquisajuris.tjdft.jus.br. Acesso em 22 out. 2019. 30 Barros, Francisco Dirceu. Feminicídio: controvérsias e aspectos práticos. Francisco Dirceu Barros & Renee de Ó Souza. Leme, SP: JH Mizuno, 2019. pg. 46. 31 Barros, Francisco Dirceu. Feminicídio: controvérsias e aspectos práticos. Francisco Dirceu Barros & Renee de Ó Souza. Leme, SP: JH Mizuno, 2019. Pg. 43

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na busca por reduzir as diferenças de gênero e a Defensoria Pública, o Ministério Público, a promover a isonomia entre todos. Polícia Militar e as Delegacias Especializadas, Vale citar a posição da Ministra Cármen Lú- para que harmoniosamente possam atuar: cia Antunes Rocha e sua fala na votação da Lei Fala na M.D. Ministra Carmem Lúcia: 11.340/2006: A paz ou a violência não para nos um Por tudo, Senhor Presidente, não quis

deixar de fazer essas observações - que vão na linha exatamente do que o Ministro Marco Aurélio, mais de uma vez, tem, tanto em casos específicos quanto na ação anterior, reafirmado - do que representa para a sociedade, não apenas para nós mulheres, para toda uma sociedade, uma sociedade que se quer diferente, para ter direitos efetivos não de dignidade da mulher, mas para romper as indignidades, que de todas as formas são tantas vezes cometidas, que esta lei, nesses três artigos específicos, mais naqueles que já examinamos antes, tem uma importância fundamental para uma sociedade que tem a maioria hoje, como é a sociedade brasileira, composta de mulheres, mas de respeito integral ao que põe a Constituição brasileira, especificamente no seu artigo 5º.

brais das portas das casas, ela atravessa a rua e ganha as praças. Ou temos uma sociedade que pode conviver de forma mais pacífica ou vamos ter uma sociedade cada vez mais violenta e não se sabe onde isso vai acabar, mas certamente não vai acabar bem. 33

Diante de todo exposto e através de todo estudo empreendido até aqui, conclui-se que desde a entrada em vigor da Lei 13.104/2015 não foi suscitado até o momento, qualquer questionamento acerca de sua constitucionalidade por meio do controle concentrado de constitucionalidade que é de competência do Supremo Tribunal Federal, através das ações específicas de cabimento.

De forma analógica foi observado que a Lei Maria da Penha foi fortemente questionada sobre a constitucionalidade, especialmente nos dispositivos que davam tratamento mais rigoroso aos procedimentos penais, o que deu origem a Ação Direta de Constitucionalidade nº 19, o que foi prontamente justificado e tiveram como objetivo comum trazer maior Ponho-me inteiramente de acordo no proteção à mulher. sentido da procedência da ação. Tal conclusão partiu dos dados elevados A igualdade - como o Ministro Marco Aurélio acentuou - é tratar com desigualdade aqueles que se desigualam e que, no nosso caso, não é que não nos desigualamos, fomos desigualadas por condições sociais e de estruturas de poder que nos massacraram séculos a fio.

É como voto, Senhor Presidente. 32 Vale também ressaltar o destaque da Ministra Carmem Lúcia durante a abertura da XXI Jornada Maria da Penha de 09 de agosto de 2018, onde a ministra defendeu uma maior integração entre todas as instituições envolvidas na aplicação da lei e na repressão à violência contra a mulher, como o poder Judiciário,

constatados através de relatórios e do mapa da violência anteriormente citados e dos assassinatos de mulheres, especialmente no ambiente familiar. O argumento de maior força foi a ânsia em enfrentar todo tipo de discriminação de gênero e de garantir que todos gozem plenamente de seus direitos humanos.

32 ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Plenário do dia 09 de fevereiro de 2012. Ação Declaratória de Constitucionalidade 19 - Disponível em http://www.stf.jus.br. Acesso em 17 out. 2019. 33 ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. XII Jornada Maria da penha de 09 de agosto de 2018 – disponível em http:// www.stf.jus.br/portal. Acesso em 13 nov. 2019.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A Lei 13.104/2015, conhecida como a lei do feminicídio, tem a finalidade de enviar uma mensagem a sociedade e revelar uma desigualdade estrutural nas relações sociais e de poder entre homens e mulheres, que devem ser interpretados como questão de segurança e saúde pública, dada a gravidade e a alta incidência a que chegou a violência sofrida pelas mulheres ao longo dos anos.

ficas, como livros, artigos, leis e demais publicações sobre o tema. Assim conclui-se que os princípios constitucionais como a Igualdade, Isonomia e dignidade da pessoa humana devem balizar e fortalecer as relações sociais entre todos, de forma que nós mulheres deixemos de ser estereotipadas pelos papéis que desempenhamos no meio social e passemos a ser reconhecidas como seres iguais, dotadas de capacidades e sentimentos, independenteA referida lei visa proteger e guardar a mente de nossas limitações ou força. integridade física das vítimas de violência doméstica ou socioafetivas, diminuir a incidência de homicídios discriminatórios tanto para mulheres como para as pessoas identificadas com o gênero feminino, haja vista a abrangência das hipóteses do termo utilizado na letra da lei. Decerto que um largo caminho ainda precisa ser percorrido, pois a questão cultural é muito mais abrangente do que os estudos revelam, estando enraizados há tanto tempo na sociedade, que tendem a ser considerados como parte de uma vivência comum no meio social brasileiro, é necessário que se faça uma mudança radical na cultura do nosso país, para que se mude o cenário em que nos encontramos, mais do que campanhas de conscientização, é preciso que se eduquem os jovens que futuramente serão atuantes no meio social, de tal forma que se possa erradicar de uma vez por todas o machismo esmagador a que estamos sujeitas. O machismo não pode ser considerado como algo bom, nenhuma forma de machismo é boa ou tende a proteger a mulher, o machismo é exercício de poder arbitrário e não consensual; o respeito, o reconhecimento da igualdade nas relações, a deslegitimização da inferioridade a que fomos submetidas historicamente e a desmistificação da supremacia masculina sobre todos os gêneros, devem ser consolidadas como nova ordem social, para que possamos alcançar um patamar aceitável de civilidade. Sendo assim, procuramos recuperar e rediscutir as principais referências bibliográ130


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https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/relatorio-final-da-comissao-parlamentar-mista-de-inquerito-sobre-a-violencia-contra-as-mulheres - acesso em 12 set. 2019. https://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/81764-cnj-servico-voce-conhece-a-lei-do-feminicidio acesso em 19 ago. 2019.

-

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DIREITOS DAS HUMANAS: O PASSADO IMPERFEITO E O FUTURO DO PRESENTE Telma Aparecida Rostelato Mestre em Direito Constitucional (Instituição Toledo de Ensino – ITE – Bauru/SP). Especialista em Direito Constitucional (Escola Superior de Direito Constitucional de Sorocaba/SP). Professora da Faculdade de Ciências Sociais e Agrárias de Itapeva/ SP. Procuradora Jurídica Municipal.

Renata Domingues de Oliveira Simão Mestre em Direito Constitucional (UNIMEP). Especialista em Direito Constitucional (Instituto Damásio de Direito), com módulo internacional em Direitos Fundamentais (Universidad Rey Juan Carlos/Iberojur – Espanha). Especialista em Direito Processual Civil (Instituto Damásio de Direito). Professora da Faculdade de Ciências Sociais e Agrárias de Itapeva/SP. Advogada.

SUMÁRIO 1. Introdução 2. As mulheres como sujeitos de direitos humanos fundamentais 2.1 Considerações pontuais acerca de um passado imperfeito 2.2 O presente e o futuro do presente 3. “Cases” de violência contra a mulher no Brasil, um presente infeliz 4. Considerações Finais; Referências.

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RESUMO O presente artigo discorre sobre o tema, direitos da mulher, enveredando pela abordagem voltada à batalha encravada ao longo da história, que perpassa os lindes do nosso País, tencionando com isso, demonstrar a preocupação dispensada por diversificados povos, para com a salvaguarda dos direitos da mulher, que em virtude do seu enquadramento como sendo direito fundamental à proteção da dignidade humana da aludida categoria de pessoas, passou a ser erigido ao patamar de direitos humanos. Destaca-se, todavia, que malgrado os envidados esforços identificados em múltiplas atuações, praticadas por representantes de diversas Nações, inclusive aderindo a textos de Declarações Internacionais, em que se firmou compromissos para com os resultados deste intento, desditosamente verifica-se a frequente ocorrência de situações desprezíveis, que denotam episódios de violência, desprezo e preconceito com mulheres, motivados exclusivamente pelo ranço do ofensor para com o gênero feminino. Conclui-se que é inconteste a existência de grandioso rol de normatização jurídica, que inquestionavelmente perpassou por transformações significativas, em âmbito internacional e nacional, entretanto observa-se que estes não evidenciam suficiência à solução da problemática, que ostenta muito maior cunho social, que meramente jurídico.

PALAVRAS CHAVE Mulher; Direitos Humanos; Dignidade Humana.

ABSTRACT This article discusses the theme, women’s rights, going through the battle-oriented approach inbetween throughout history, which passes through the lindes of our country, intending to demonstrate the concern given by diverse peoples, to safeguard women’s rights, which, because of its framework as a fundamental right to the protection of human dignity in the alluded category of people, has been erected to the level of human rights. It is noteworthy, however, that the efforts identified in multiple actions, practiced by representatives of several Nations, including adhering to texts of International Declarations, in which commitments to the results were made this intention, unditosfully, there is the frequent occurrence of despicable situations, which denote episodes of violence, contempt and prejudice with women, motivated exclusively by the runcid of the offender towards the female gender. It is concluded that it is undeniable that there is a great list of legal standardization, which has undoubtedly undergone significant transformations, at international and national level, however it is observed that these do not show sufficiency to the solution of the problem, which boasts much greater social nature, than merely legal.

KEY WORDS Woman; Human rights; Human dignity.

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1. INTRODUÇÃO Num primeiro momento o presente artigo busca questionar o passado para compreender o presente, indicando possíveis raízes da discriminação em face da mulher e a evolução da legislação que sacramenta a proteção do gênero feminino. Para tanto, vai demonstrando na seara mundial os conflitos havidos e os compromissos firmados para a diminuição e eliminação de atos que promovam marginalização desta categoria de pessoas, que tal qual os negros, pessoas com deficiência, idosos e outros, estão a ocupar real posição de grupos que sofrem diuturnamente preconceito, apenas por serem “diferentes”, pertencendo assim, à nominada minorias, que não é sinônimo de contingente numérico, mas de exclusão social.

tados internacionais. Na sequência, tenciona-se ilustrar a problemática que ainda se vivencia no País, mediante demonstração de casos emblemáticos, que comoveram o mundo, face o requinte de crueldade empregado na sua execução, dada a falta de empatia do agressor.

Por fim, anseia-se fixar reflexões acerca da necessidade em se perseverar no intento de conscientização social, uma vez que o extenso rol normativo não se demonstra suficientemente apto à eliminação do preconceito ainda enfrentado pelas mulheres; o ofensor não se inibe perante as previsões legais coercitivas, o que atemoriza a sociedade como um todo, já que mesmo não sendo uma mulher, tem próximo de si, uma Aborda-se, com o intuito de salientar a amiga, uma esposa, uma filha, enfim, alguém do pesquisa envolta ao imbróglio discriminatório, o sexo feminino que carece de proteção. princípio da dignidade humana e o da igualdade, reconhecidos pelo direito interno vigente e solidificados internacionalmente, alteados à senda de direitos humanos, consagrados como direitos fundamentais, diante do reconhecimento em tra-

2. AS MULHERES COMO SUJEITOS DE DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS As mulheres enquadram-se como sendo categoria de pessoas que ladeadas às pessoas com deficiência, às pessoas idosas, aos indígenas, dentre outros grupos vulneráveis, requerem uma intervenção estatal, por meio de auxílio a conceder-lhes condições de equidade1, para a prática de suas atividades, face as incontáveis situações de marginalização e discriminação a que se submetem diuturnamente.

“ferindo de morte” o conclamado princípio da dignidade humana, tão caro ao direito constitucional pátrio, o que resulta por desaguar latente afronta ao princípio da igualdade.

Inolvidável que os atos discriminatórios a que se sujeitam atentam contra o seu “eu”, 1 O significado das palavras equidade e igualdade são diferentes, porém muitas vezes são utilizados de forma similares no dia-a-dia das pessoas. Para se falar de mulheres na liderança, o cenário das mulheres no mercado de trabalho, e até mesmo sobre etnia, deve-se entender os reais significados dessas duas palavras. No feminismo usamos o termo “equidade” e não igualdade, elas possuem mensagens diferentes, apesar de terem o mesmo objetivo. Quando buscamos por equidade de gênero estamos falando de justiça, de oportunidades iguais independentemente do gênero. Partindo de um pressuposto de que todas não são iguais, as oportunidades são diferentes para homens e mulheres, assim como para àquelas que são negras, de classe baixa ou com mais idade (...)O discurso de igualdade parte da ideia de que devemos tratar todos iguais, porém não somos iguais, a palavra acaba com o sentido de pluralidade e de diversidade. A igualdade persiste em uma padronização, homogeneização, o que não podemos mais permitir. Queremos a diversidade, a equidade, a valorização e a equiparação da mesma.. in https://programaelas.com.br/diferenca-de-equidade-e-igualdade-de-genero/. Acesso em 07. fev 2020.

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2.1 CONSIDERAÇÕES PONTUAIS ACERCA DE UM PASSADO IMPERFEITO Partindo do princípio, muitas são as assertivas lançadas ao longo da história, no sentido de que “Foi pela mulher que começou o pecado, por sua culpa todos morremos.” Eclesiástico, segundo século AEC (Antes da Era Comum). Nesta mesma roupagem, Tertuliano, de habitu muliebri (sobre a vestimenta das mulheres), segundo século EC (Era Comum), assim pregava:

vando que o homem subjugasse a mulher (Gênesis 3:16), Ele estava simplesmente predizendo as tristes consequências do pecado do primeiro casal. Assim, a discriminação contra as mulheres é resultado direto da natureza pecaminosa dos humanos, não da vontade de Deus. A Bíblia não apoia a ideia de que as mulheres devam ser subjugadas pelos homens, a fim de pagar pelo pecado original (Romanos 5:12).

Tu és a porta de passagem do diabo. Tu és a deslacradora daquela árvore proibida. Tu és Deus não criou a mulher inferior ao hoa primeira desertora da lei divina... Tu destru- mem, pois Gênesis 1:27 diz: “Deus passou íste tão facilmente a imagem de Deus, o ho- a criar o homem à sua imagem, à imagem mem. de Deus o criou; macho e fêmea os criou.” Desde o início, o ser humano — tanto o Assim, nota-se que a começar do prihomem como a mulher — foi criado com meiro século EC (Era Comum), escritores a capacidade de refletir as qualidades de como Filo de Alexandria começaram a usar Deus. Embora Adão e Eva fossem diferentes a filosofia grega para reinterpretar o relato em sentido físico e emocional, os dois de Gênesis. Para Filo, Eva era culpada de receberam os mesmos direitos e orientações pecado sexual e assim estava condenada a de seu Criador (Gênesis 1:28-31). uma vida que ‘a despojava completamente de sua liberdade e a sujeitava à dominação Antes de criar Eva, Deus disse: ‘Vou fa2 de seu companheiro’ . Esse desprezo pelas zer para Adão uma ajudadora como complemulheres se infiltrou no judaísmo e nos es- mento dele.’ (Gênesis 2:18) Será que a pacritos dos dirigentes clericais. lavra “complemento” indica que a mulher é inferior ao homem? Não, porque no hebraico Ocorre, entretanto, que esses textos original essa palavra também pode significar antigos não são da Bíblia, mas durante sé“parte equivalente” ou “ajuda correspondenculos, eles têm sido usados para justificar a te”. Do mesmo modo, Deus criou o homem discriminação contra as mulheres e ainda e a mulher para cooperar entre si, não para nos dias atuais, alguns extremistas citam competir um com o outro (Gênesis 2:24). textos religiosos para legitimar a subjugação das mulheres, alegando que elas são culpaPrevendo o que os homens fariam em das pelos males da humanidade. seu estado decaído e pecaminoso, Deus expressou desde o início sua intenção de Será que Deus queria que as mulheres proteger as mulheres, podendo ser verififossem desprezadas e maltratadas pelos cado no texto que apregoa deva-se honrar homens? Para responder a esta indagação, e respeitar tanto o pai como a mãe. (Êxofaz-se necessário enveredar numa análise do 20:12; 21:15, 17) e também para que se da própria Bíblia. Pois bem: quem foi amalmostrasse a devida consideração às mulhediçoado não foi a mulher, mas o Diabo, “a res grávidas (Êxodo 21:22). Essas leis de serpente original” (Revelação [Apocalipse] Deus são notáveis, pois concediam direitos 12:9; Gênesis 3:14); ao dizer que Adão ‘dolegais que ainda hoje as mulheres não têm minaria’ sua esposa, Deus não estava aproem muitos lugares do mundo3. 2 ALEXANDRIA, Filon de. Da Criação do Mundo e outros escritos. São Paulo: Filocalia, 2015, p. 64. 3 Disponível em https://bellatodesconhecido.jusbrasil.com.br/artigos/254204838/direito-da-mulher-na-biblia Acesso em 05. fev 2020.

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Destarte, com o fito de verificar factualmente as conquistas alcançadas, adentra-se na análise da posição ocupada por esta categoria de pessoas, sob o manto protetivo internacional, precisamente sob o enfoque dos nominados direitos humanos; para tanto, ressalva-se que os direitos fundamentais são os direitos, destinados ao ser

humano, reconhecidos e positivados por cada Estado, como ocorre com o art. 1º., inciso III da

Constituição Federal que assevera constituir-se encargo do Estado brasileiro, o resguardo da pessoa humana no que alude à sua dignidade (princípio constitucional que dá sustentação aos demais), subsumindo-se aqui abarcadas as mulheres, já que o texto constitucional direciona-se a todas as pessoas. Já os direitos humanos transcendem a órbita do direito interno de cada Estado, por serem reconhecidos universalmente, através de documentos de direito internacional. Dessa maneira, pode-se dizer que os direitos fundamentais são aqueles consagrados constitucionalmente, enquanto os direitos humanos são consagrados na esfera de abrangência internacional. Vale destacar que os direitos fundamentais têm um conceito aberto, como consagra a Constituição Federal, podendo ser inseridos no ordenamento, a qualquer momento, observando-se o estabelecido no Art. 5º, § 2º. Isto é possível, dada a consideração doutrinária de que a Constituição é um sistema aberto de regras e princípios, como pondera Canotilho.4

tucional, de maneira que a solução de eventuais conflitos deve se embasar em mecanismos de ponderação e harmonização dos princípios. As características da fundamentalidade, segundo ensinamento de Canotilho “[...] aponta para a especial dignidade e proteção dos direitos num sentido formal e num sentido material”.5 que:

Nesta linha, Ingo Wolfgang Sarlet, sustenta

A fundamentalidade formal encontra-se ligada ao direito constitucional positivo e resulta dos seguintes aspectos, devidamente adaptados ao nosso direito constitucional pátrio: a) como parte integrante da Constituição escrita, os direitos fundamentais situam-se no ápice de todo o ordenamento jurídico; b) na qualidade de normas constitucionais, encontram-se submetidos aos limites formais (procedimento agravado) e materiais (cláusulas pétreas) da reforma constitucional (Art. 60 da Constituição Federal); c) por derradeiro, cuida-se de normas diretamente aplicáveis e que vinculam de forma imediata as entidades públicas e privadas (Art. 5º, § 1º, da Constituição Federal). A fundamentalidade material, por sua vez, decorre da circunstância de serem os direitos fundamentais elemento constitutivo da Constituição material, contendo decisões fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da sociedade.6 Os direitos fundamentais são tanto aqueles previstos no texto constitucional, os direitos fundamentais em sentido formal, quanto aqueles que, embora não previstos no texto constitucional, considerado seu conteúdo e importância a eles se equiparam, classificando-se como direitos fundamentais em sentido material.

Há uma unidade no sistema dos direitos fundamentais, refletora de lutas históricas, pretensoras da afirmação do princípio da dignidade da pessoa humana, mas há que se sublinhar o fato de que, outros direitos fundamentais têm aplicabilidade direta e incondicional; tendo-lhes, inclusive, sido atribuído caráter de cláusula péA Constituição vigente, já no segundo Títutrea (Art. 60, § 4º, inc. IV da Constituição Fede- lo, enumera os Direitos e Garantias Fundamenral). tais; no Capítulo I enuncia: Direitos e Deveres Individuais e Coletivos; no Capítulo II trata dos Apesar da importância que representam, Direitos Sociais; após, trata de questões voltadas os direitos fundamentais não podem ser vistos à nacionalidade, aos direitos políticos e aos parcomo superiores aos demais preceitos constitidos políticos. tucionais, devendo ao revés, serem analisados com observância à unicidade do sistema constiConsigne-se ainda, que em outros pontos 4 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1146. 5 Idem. Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1991, p. 509. 6 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 78-79.

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da Constituição, constam direitos fundamentais, cuja enumeração é meramente exemplificativa, como pondera Manoel Gonçalves Ferreira Filho,7 fato que ocorre desde a Constituição de 1891, inserido na seção Declaração de Direitos, Título IV – Dos Cidadãos Brasileiros, em seu Art. 78, in verbis:

pressamente, consignou a vedação a privilégios e distinções por motivo de sexo, sendo que citada vedação se estendia, inclusive, ao pagamento de salários diferenciados.

Nas Constituições de 1937, 1946 e 1967 (emendada em 1969), assegurou-se assistênArt. 78: A especificação das garantias e cia médica e sanitária à gestante, antes e dedireitos expressos na Constituição não exclui pois do parto, sem prejuízo do salário e do outras garantias e direitos não enumerados, emprego. mas resultantes da forma de governo que ela Na Constituição em vigor avultam os estabelece e dos princípios que consigna. êxitos desta laboriosa batalha, cravada pelos militantes do movimento feminista, dada a E, na atual, em seu Art. 5º, § 2º, que consagração da garantia de isonomia jurídica estabelece: entre homens e mulheres especificamente no Art. 5º: [...]. âmbito familiar, bem como a proibição de discriminação no mercado de trabalho por moti§ 2º – Os direitos e garantias expressos vo de sexo, havendo proteção à mulher com nesta Constituição não excluem outros decorregras especiais de acesso, além de ter fixado rentes do regime e dos princípios por ela adoresguardo do direito das presidiárias em amatados, ou dos tratados internacionais em que mentarem seus filhos e também, asseverando a República Federativa do Brasil seja parte. proteção à maternidade como um direito soEstas normas de direitos e garantias fun- cial, e de igual forma, veio reconhecer o pladamentais têm aplicabilidade imediata, com a nejamento familiar como uma livre decisão do finalidade de torná-las efetivas; é o que prevê casal e, principalmente, instituiu ser dever do a Constituição, entretanto cumpre destacar Estado coibir a violência no âmbito das relaque algumas normas não são completas na ções familiares. sua hipótese e no seu dispositivo. Sendo asAs acima citadas são algumas das mais sim, Manoel Gonçalves Ferreira Filho assevera relevantes vitórias, existindo outras, constanque: do aqui e acolá, ao longo da Constituição de Ora, de duas uma, ou a norma defini- 1988. dora de direitos ou garantia fundamental é Para conferir aplicabilidade e atingimencompleta, e, portanto, auto-executável, ou to à plena efetivação do exercício destes dinão o é, caso em que não poderá ser aplireitos, pelas mulheres, legislações infraconscada. Pretender que uma norma incompleta titucionais foram sendo inseridas no nosso seja aplicada é desejar uma impossibilidade, sistema jurídico, merecendo destaque alguou forçar a natureza que, rejeitada, volta a mas delas, como a Lei 10.406/2002 (Código galope, como disse o francês.8 Civil) que operou mudanças substanciais na Infere-se que as normas que não são situação feminina; a Lei no 8.930/94 que inauto executáveis ocupam o texto constitucio- cluiu o estupro no rol dos crimes hediondos; nal, apenas como meras declarações de direi- a Lei no 9.318/96 que agravou a pena dos critos. Procedendo uma pesquisa, mesmo que mes cometidos contra a mulher grávida; a Lei perfunctória, denota-se que, com referência no 11.340/06 – a famosa Lei Maria da Penha às Constituições do Brasil, nas de 1824 e de – que penaliza com efetividade os casos de 1891 formalmente consta o postulado da iso- violência doméstica e a da Lei do Feminicídio nomia entre os sexos, enquanto a de 1934 – a Lei no 13.104, promulgada em 9 de março concedeu às mulheres o direito ao voto e, ex- de 2015 (alterou o Código Penal para incluir 7 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 4ª ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 98. 8 Ibidem, p. 100.

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mais uma modalidade de homicídio qualificado, o feminicídio: quando crime for praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. Todas estas são normas que ilustram os significativos avanços operados na proteção dos direitos fundamentais femininos no cenário da história legislativa pátria. Na seara do direito externo, por sua vez, galgando degraus, verifica-se, na história, determinadas ocorrências que vieram ocupar lugar de destaque e que engendraram sutis anotações tendentes a consignar proteções diversificadas em favor da igualdade de gênero e da superação de discriminações odiosas. A aludida luta pela conquista de tratamento igualitário entre os sexos herda resquícios de preocupação com a temática, implementada na França, com discussões voltadas precipuamente ao clamor de atingimento de uma sociedade ideal, por ocasião da revolução francesa (1789)9, tendo sido de Olímpia de Gouges a voz feminina ativa no processo da Revolução Francesa. Na sua militância, “além de reafirmar as reinvindicações relativas aos direitos civis das mulheres, ela tomou consciência da marginalização da mulher quanto aos direitos políticos”10; e então, marcando a história da luta pelos direitos das mulheres, ela publica o documento que foi intitulado “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, de 1791.

Num segundo momento, pode-se pontuar que os Tratados e Pactos Internacionais, antes de sua feitura, passaram a encontrar cidadãos atentos com a inserção, no seu texto, que denotam verdadeira preocupação com a salvaguarda de determinados direitos. Assim, os diversos tratados internacionais, protetores de Direitos Fundamentais, passaram a conclamar esta proteção a nível de Nações Unidas, ocupando notória relevância jurídica os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, além de instrumentos especificamente criados para proteger temas peculiares (e tendenciosos a proteger as mulheres), como a tortura, discriminação racial, discriminação contra a mulher, violação dos direitos da criança e outros, de tal maneira que grupos certos e individualizados é que passaram a receber a proteção, tanto em âmbito interno, quanto externo, em sede de tratados internacionais. Em decorrência destas declarações internacionais dos direitos das mulheres, é de se salientar que tais desideratos traçados não se demonstraram suficientemente eficazes, pois tais instrumentos protetivos genéricos, careciam recorrer à especificação do sujeito de direito, como assevera Flávia Piovesan11. Considerada a importância do significado e abrangência dos direitos humanos, pode-se valer do escólio de Antonio Enrique Pérez Luño.12

Com referência à proteção da mulher, em 1975, ao qual foi atribuído como título “Ano Internacional da Mulher”, neste mesmo ano realizou-se no México, a 1ª. Conferência Mundial sobre a Mulher e tendo sido aprovada pelas Nações Unidas, em 1989 uma Convenção nominada Convenção à Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, também conhecida como CEDAW, sua sigla em inglês (ratificada pelo estado brasileiro, em 1984) daí iniciando-se os primeiros acontecimentos de valor histórico, Pois bem, foi então em 1948 que se conso- na seara mundial, versando sobre o tema. lidou o direcionamento formal à questão da luta Esta Convenção veio impor a obrigatoriedacontra o que hodiernamente tem sido nominado de de eliminação da discriminação e da desigualcomo sendo sexismo. dade. Observa-se que seu objetivo visava resNo que pertine especificamente à salvaguarda dos direitos da mulher em âmbito internacional, o marco declaratório está presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Entretanto, cabe enfatizar que a expressão: “os direitos das mulheres são direitos humanos”, foi cunhada nos anos 90, sendo portanto, bastante recente, apesar de estarmos a comemorar mais de cinco décadas de existência da Declaração Universal da ONU.

9 Disponível em http://www.economist.com/node/21591749/print “in” Cultura Francesa: Bleak Chique: The Economist 21.dez 2013. Paris. Acesso em 05. fev 2020. 10 DALLARI, Dalmo de Abreu. Os direitos da mulher e da cidadã por Olímpia de Gouges. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 114. 11 PIOVESAN, 2003, p. 206. 12 LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitucion. 8ª ed. Madrid: Tecnos, 2003, p.

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saltar que qualquer ato discriminatório à mulher repercutia em desigualdade, logo aliado está, o anseio de protegê-las, afastando a discriminação, para em contrapartida, assegurar a igualdade de tratamento. Em julho de 2001, a Convenção já contava com 168 Estados-partes13.

redução de desigualdades e discriminações existentes no país, significando que uma ação afirmativa não deve ser vista como um benefício, ou algo injusto, a ação afirmativa só se faz necessária quando percebemos um histórico de injustiças e direitos que não foram assegurados.14

Nos anseios presentes nestes Estados-partes encontravam-se o resguardo da igualdade formal perante a lei, abarcado o direito de a mulher de decidir sobre o direito de reproduzir-se ou não, além do direito de acesso às oportunidades sociais e econômicas, o direito de dispor de seu próprio corpo e outros mais.

A compreensão da vivência histórica do País, a respeito do tema que requer a criação de ações afirmativas é o instrumental justificador de sua necessidade. A Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial permite a discriminação positiva, significando que os Estados podem adotar temporariamente, técnicas que visem conscientizar celeremente e realizar técnicas para equiparar homem e mulher e tão logo atinja tal intento, as técnicas/medidas cessam. Como consigna Flávia Piovesan15, são estas “medidas compensatórias para remediar as desvantagens históricas (...)”, posto que representam hoje, o cenário discriminatório encarado pelas mulheres, a herança do passado discriminatório vivenciado.

Reconhecido no próprio texto da Convenção, que a proibição da discriminação por si só, não se bastaria para assegurar esta igualdade de gêneros. Esta é, mais uma forma de consagração das famigeradas ações afirmativas, que podem ser compreendidas como sendo políticas públicas feitas pelo governo ou pela iniciativa privada com o objetivo de corrigir desigualdades presentes na sociedade, acumuladas ao longo de anos, sejam tais desigualdades consubstanÉ possível afirmar que diversos instrumenciadas em raça, sexo, idade, etc. As ações afir- tos jurídicos vieram regulamentar a temática, em mativas buscam oferecer igualdade de oportuni- 1993, com a Conferência de Direitos Humanos, dades a todos. realizada em Viena, ocasião em que foram uma vez mais disseminadas concepções reflexivas, Em pleno século XXI, por razões eviden- ansiando conscientizar os países membros, para tes é que a compreensão dos Direitos Fun- que implementassem medidas tendentes à gadamentais requer uma interpretação diversa rantir o direito igualitário de gênero, além de ter daquela que se empregava verbi gratia no mo- sido reivindicada a necessidade de ratificação mento da Declaração Universal dos Direitos universal da Convenção sobre a Eliminação da Humanos e mesmo quando da outorga da Discriminação contra a Mulher; disciplinado no própria Constituição vigente no nosso País, o art. 39 da Declaração de Viena.

que justifica a transmutação dos Direitos Fundamentais através de suas dimensões (ou gerações, nominadas por alguns doutrinadores) porque não se está mais objetivando resguardar unicamente o direito de existir, mas de se assegurar uma existência digna, respeitosa e feliz, a todos.

Neste panorama histórico, a proteção das mulheres fora reforçada por ocasião da Declaração e Programa de Ação de Viena, em 1993 e pela Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, de 1995, após o decurso de duas décadas desta Declaração, formalizou-se documento, contendo perspectivas, dados, relatórios e resultados demonstrando a realidade que os países Em 2012, o Supremo Tribunal Federal de- estariam a vivenciar, tendo sido finalizado refecidiu por unanimidade que as ações afirmativas rido relatório e disponibilizado à população, no são constitucionais e políticas essenciais para a ano de 2018. 109. Tradução livre da autora: “De modo que seja possível se falar sobre direitos humanos, não basta admitir determinadas faculdades ao indivíduo, porém que as mesmas tenham relação direta e imediata com a sua própria qualidade de ser humano e se reputem imprescindíveis para o desenvolvimento de suas atividades pessoais e sociais. Daí que a positivação dos direitos fundamentais é o produto da dialética constante entre o desenvolvimento progressivo no plano técnico dos sistemas de positivação, e o afirmar-se paulatino no terreno ideológico das idéias de liberdade e dignidade humanas”. 13 Disponível em http://www.unhchr.ch/pdf/report.pdf; [12.07.2001]. Acesso em 05. fev 2020. 14 Disponível em http://www.seppir.gov.br/assuntos/o-que-sao-acoes-afirmativas. Acesso em 05. fev 2020. 15 PIOVESAN, 2003, p. 209.

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A Convenção de Belém do Pará, como ficou conhecida a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra Mulher, adotada na referida cidade, em 9 de junho de 1994, conceitua a violência contra as mulheres, reconhecendo-a como uma violação aos direitos humanos, e estabelece deveres aos Estados signatários, com o propósito de criar condições reais de rompimento com o ciclo de violência identificado contra mulheres em escala mundial. Suas resoluções ratificam as que foram divulgadas um ano antes, após a Conferência Mundial dos Direitos Humanos, em Viena, na qual a violência de gênero foi considerada uma questão de Estado, rompendo a lógica de que só há desrespeito aos direitos humanos na esfera pública. O documento final da Convenção de Belém do Pará, organizado em cinco capítulos e 25 artigos, afirma: entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada (artigo 1º). No seu artigo 2º declara que a violência contra a mulher inclui a violência física, sexual ou psicológica ocorrida na família, na comunidade ou que seja perpetrada ou tolerada pelo Estado e seus agentes, onde quer que ocorra. Recomenda em seu artigo 9º que, para adoção das medidas recomendadas, os Estados-parte da Organização dos Estados Americanos (OEA) devem considerar a situação de vulnerabilidade à violência que a mulher possa sofrer em consequência, por exemplo, de sua condição racial e étnica. Torna-se importante, neste sentido, articular com a Convenção contra a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (ONU, 1966), aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU, 1966). A Convenção de Belém do Pará ainda exige dos Estados um compromisso efetivo na erradicação da violência de gênero a partir da criação de leis de proteção aos direitos 16

das mulheres, modificação dos padrões socioculturais, fomento à capacitação de pessoal, além da criação de serviços específicos para atendimento àquelas que tiveram seus direitos violados. A Convenção de Belém do Pará é mais um instrumento que avança na consolidação de uma sociedade justa e solidária, a partir do respeito amplo e irrestrito aos direitos das mulheres. Toda mulher poderá exercer livre e plenamente seus direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais e contará com total proteção desses direitos consagrados nos instrumentos regionais e internacionais sobre direitos humanos. Os Estados Partes reconhecem que a violência contra a mulher impede e anula o exercício desses direitos (artigo 5º). A Convenção de Belém do Pará prevê dois tipos de mecanismos: o Mecanismo de Acompanhamento da Implementação da Convenção (MESECVI), um sistema independente, baseado em consenso, para examinar os progressos alcançados na implementação dos objetivos da Convenção, e o Mecanismo de Proteção, que consiste na apresentação de petições individuais e/ou coletivas referentes a violações do artigo 7º da Convenção para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e, posteriormente, à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em 12 de março de 1999, por ocasião da 43ª. Sessão da Comissão do status da Mulher da ONU, foi adotado o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, tendo sido consignados 2 itens fiscalizatórios de importância salutar, quais sejam, o mecanismo de petição, que permite o encaminhamento de denúncias de violação de direitos enunciados na Convenção à apreciação do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher e um procedimento investigativo, que habilita o Comitê a investigar a existência de grave e sistemática violação aos direitos humanos das mulheres. Pondera Piovesan16 que para acionar aludidos mecanismos de monitoramento, faz-se necessário que o Estado tenha ratificado o Protocolo Facultativo, que reaviva o ideário internacionalmente buscado, que denota a significância dos direitos humanos das mulheres, constituindo-se uma real garantia vol-

Ibidem, p. 206.

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tada a assegurar o pleno e equânime exercício dos direitos humanos das mulheres e sua não discriminação.17

2.2 O PRESENTE E O FUTURO DO PRESENTE Como pondera Verucci18, o Brasil adota a corrente jurídica segundo a qual o Direito Internacional e o Direito Interno são dois ramos de um mesmo sistema jurídico, segundo o axioma ‘A lei internacional é parte da lei do país.’ Nosso país é signatário de tratados que visam tutelar os direitos das mulheres. Além dos basilares tratados que regulam os Direitos Civis, Políticos, Econômicos, Sociais e Culturais, no sistema global (ONU)19 e no sistema regional interamericano (OEA)20, que garantem os direitos fundamentais, como igualdade e liberdade de forma geral (independente do gênero), há também os diplomas internacionais específicos: Convenção sobre todas as formas de discriminação contra a mulher (1979), Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, Plataforma de Ação das Mulheres para a Conferência Mundial da Mulher – Pequim (1995), a respeito dos quais fora comentado anteriormente. A proteção dos direitos da mulher encontra-se erigida à senda transnacional, e, no cenário atual, é de se ressaltar as ponderações e definições trazidas pela Equipe das Nações Unidas, no Brasil, em julho de 2018, por meio da obra “Direitos Humanos das Mulheres”21, no “item 1. Compromissos mundiais/legislação internacional”, com destaque para os trechos transcritos abaixo:

Por ocasião da revisão dos 20 anos da Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher (realizada em 1995, em Pequim), os Estados reunidos constataram que a plena igualdade de gênero não é realidade em nenhum país no mundo. No mesmo ano, a adoção da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável refletiu estes achados e a necessidade de combater

em todo o mundo desigualdades e discriminações contra mulheres e meninas, que resultam em violência e limitam seu acesso ao trabalho decente, à participação política, à educação e à saúde. Dada a relevância da questão, o 5º dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) apresentados pela Agenda 2030, estipula como meta o alcance da igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas. Além dele, outros 12 ODS incorporam explicitamente metas desagregadas por sexo, sendo que todos podem ser lidos a partir da perspectiva de gênero. A Agenda 2030 reafirma princípios contidos nas principais normas internacionais relativas aos direitos humanos das mulheres, tais como a Convenção para Eliminar Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e a Plataforma de Ação de Pequim. (...). Dos instrumentos regionais dos quais o Brasil é signatário, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (1994) destaca-se pelos importantes desdobramentos que teve para a legislação nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres. (...) No campo do ensino, há extenso ordenamento jurídico que garante o compromisso com um ambiente de ensino livre de discriminações e preconceitos, capaz de atender a todos/as em suas necessidades básicas de aprendizagem (...). (grifo nosso) Isto significa que do levantamento de dados e das apurações realizadas, tornou-se possível ter uma visão panorâmica, envolvendo as mulheres, sob as mais variadas áreas. Evidencia-se a persistente articulação das desigualdades de gênero e ra-

17 O Protocolo entrou em vigor em 22 de dezembro de 2000 e foi ratificado pelo Brasil em 28 de junho de 2002. 18 VERUCCI, Florisa. O direito da mulher em mutação: os desafios da igualdade. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 31. 19 Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. 20 Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e Protocolo de San Salvador. 21 Disponível em https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/08/Position-Paper-Direitos-Humanos-das-Mulheres.pdf. Acesso em 07. fev 2020.

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ciais no contexto da educação, do mercado de no ordenamento jurídico. Mulheres e homens trabalho e renda, da exclusão e da violência. são titulares dos mesmos direitos. Entretanto, infelizmente, há uma aparente disjunção Segundo divulgado recentemente no “entre norma, aplicação e sociedade, entre site da Fiocruz22, a organização das Nações as quais encontra-se a realidade das mulheUnidas relaciona os 12 direitos pertencentes res”24, não há verdadeiramente a igualdade às mulheres, sendo eles: direito à vida, direi- material. to à liberdade e à segurança pessoal, direito Isso se deve a diversos fatores, tais à igualdade e a estar livre de todas as formas como história, cultura, educação, ausência de discriminação, direito à liberdade de pensamento, direito à informação e à educação, de normas e políticas públicas, “estrutura sodireito à privacidade, direito à saúde e à pro- cial fundada na misoginia (...) e na manutenteção desta, direito a construir relacionamen- ção de violências simbólicas nas dinâmicas to conjugal e a planejar sua família, direito à do campo do Direito.”25 decidir ter ou não ter filhos e quando tê-los, Evidentemente há diferenças biológicas direito aos benefícios do progresso científico, entre os gêneros, seja em relação às habidireito à liberdade de reunião e participação lidades, seja em relação às necessidades; política e direito a não ser submetida a tortutodavia, tais diferenças devem ser “reconheras e maltrato. cidas e ajustadas, mas sem eliminar da titula23 O UNICEF , por sua vez, define a igual- ridade das mulheres a igualdade de direitos e dade entre os sexos como “nivelar os campos oportunidades”26. de jogo de garotas e rapazes, assegurando Deve-se ponderar o fato de que avanços de que todas as crianças tenham oportuni- vem sendo constatados, mas ainda demonsdades iguais de desenvolver seus talentos.” tram-se insuficientes, a resistência persiste, o Já o Fundo para as Populações das Nações preconceito ainda se faz presente. Unidas declarou a igualdade entre os sexos A ideia que se tem acerca das mulheres como “acima de tudo, um direito humano.” Diante da análise dos importantes eventos citados até aqui, denota-se que inexiste salvaguarda aos direitos humanos acaso haja insuficiência no respeito aos direitos das mulheres, ou seja, a atribuição do significado humano, como gênero; razão porque a busca pela salvaguarda à igualdade de gêneros justifica-se sob esta conotação, por isso quando a Constituição brasileira reporta-se a todos (art. 5º, caput) deve-se compreender como sendo realmente todos, na acepção jurídica do termo. A desigualdade não encontra guarida

pode remeter àquela ideia traçada pela famosa música Mulher (sexo frágil), lançada em 198127, de Erasmo Carlos, na letra desta, consta a afirmação de que a mulher é o sexo frágil, mas logo em seguida faz a ressalva de que mencionada afirmação constitui-se uma mentira absurda. Sem olvidar modéstia é de fato uma inverdade compreender o sexo feminino como detendo, em sua inteireza, fragilidade, eis que, apesar da aparente delicadeza, as mulheres em sua grande maioria desenvolvem jornada laboral tripla (e com maestria), face a necessidade de gerir as prendas domésticas e familiares (com os filhos e marido), paulatinamente trabalhando fora de sua casa, para auxiliar na renda familiar, elevando-as à categoria de verdadeiras heroínas, porque

22 Disponível em https://portal.fiocruz.br/. Acesso em 16. mar 2019. 23 Disponível em https://www.unicef.org/brazil/. Acesso em 16. mar 2019. 24 MARTINS, Fernanda. Feminismos sem edições: o papel da mulher nos cenários jurídicos. In: GOSTINSKI, Aline; MARTINS, Fernanda (orgs.). Estudos feministas por um direito menos machista. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 75-90. 25 CIPRIANI, Marcelli. Dos controles formais aos informais: desconstrução de papéis de gênero e representatividade feminina como instrumentos de equidade no campo do Direito. In: GOSTINSKI, Aline; MARTINS, Fernanda (orgs.). Estudos feministas por um direito menos machista. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 105. 26 PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 2ª. ed. rev. ampl. e atual., São Paulo: Max Limonad, 2003, p. 206 27 Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Mulher_(%C3%A1lbum). Acesso em 06. fev 2020.

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é praticamente inexistente o sexo masculino que art. 226 da Constituição Federal. Buscou o desempenhe as funções acima citadas, conco- legislador colmatar a vergonhosa e reiterada mitantemente. prática de agressão do gênero feminino, deNão se está pregando um discurso feminista ou sexista, com o intuito de defender as mulheres, não se quer colocá-las num patamar acima, mas ao lado, em grau de igualdade ao dos homens, já que em 2020, lamentavelmente ainda é necessário falar em direitos humanos das mulheres (ou “direitos das humanas”), devido a diversos fatores: os direitos políticos não são plenamente exercidos, pois embora as mulheres representem mais da metade do eleitorado do país, não ocupam sequer 10% das cadeiras do Congresso Nacional28. Episódios dignos de nota como “a 1ª mulher presidenta”, “a 1ª mulher ministra do STF” são acontecimentos recentes.... e ainda não tivemos a notícia da 1ª mulher presidenta da Câmara ou do Senado, tampouco na presidência do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

Pelo demonstrado, conclui-se que medidas legislativas vêm sendo adotadas, na ordem interna e internacional, pelo Estado Brasileiro em favor das mulheres, o que, sem dúvida, representa conquistas importantes da sociedade como um todo, ocupando posição de relevo, a determinação legislativa de combate à violência de gênero, Lei Maria da Penha, que completou 13 anos de vigência e fez emergir na normatividade uma nova modalidade de política criminal, aquela que visa defender a mulher das agressões sofridas em âmbito familiar com um rigor maior do que o previsto anteriormente. Ela resultou de uma recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que culminou no relatório 54/1, que concluiu pela omissão do Estado Brasileiro com relação ao problema da violência contra a mulher de modo geral e, em particular, contra Maria da Penha Fernandes, advertindo-o a adotar medidas efetivas para implementar direitos já reconhecidos nas Convenções Internacionais.

simportando o sexo do agressor, desde que este mantenha o exigido vínculo doméstico ou mantenha ou tenha mantido com a vítima vínculo afetivo.

Em realidade, tanto a Lei no 11.340/06 quanto a Lei do Feminicídio, não criaram nenhum tipo penal novo, apenas deram um tratamento distinto à violência cometida contra mulher em todos os vieses, com o agravamento apenatório devido ao seu alto grau de incidência que se reflete em dados estatísticos assustadores e custa ao país 10,5% do PIB. Estas normatizações representam leis afirmativas que buscam resguardar a mulher em situação de vulnerabilidade, a demandarem, portanto, proteção especial da estatalidade. Desditosamente, mesmo após a promulgação da Lei Maria da Penha, a taxa de violência contra a mulher não diminuiu, ao contrário, aumentou. Estatísticas realizadas demonstraram que o número de homicídios de mulheres por agressões de maridos, companheiros e parceiros – entre 2001 e 2011 – pouco se alterou. A taxa média de mortalidade por grupo de 100 mil mulheres entre 2001 e 2006, ou seja, antes da lei, foi de 5,28. Entre 2007 e 2011, depois da lei, foi de 5,22. Calcula-se que nesse período ocorreram mais de 50 mil feminicídios no Brasil, o que equivale a 5 mil por ano, 15 por dia e uma mulher morta a cada uma hora e meia. Recentemente o CNJ revelou que em 2016 foram registradas 402.695 agressões, número que um ano depois se elevou para 452.988.

Para agravar, os dados não são confiáveis e podem ser piores, pois no Brasil grande é a dificuldade em mapear as informações sobre tais delitos, a demonstrar a invisibilidade do problema perante o Poder Público. O fenômeno do feminicídio, pouco estudado no País, não produz estatísticas oficiais fidedignas de Esta lei criou mecanismos para coibir e homicídios por sexo, e todos sabem que, doloprevenir a violência doméstica e familiar con- rosamente, a morte tem nome de mulher. tra a mulher, dando concretude ao § 8o do 28 Dados disponíveis nas estatísticas das eleições 2014, no site do Tribunal Superior Eleitoral: http://www.tse.jus. br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais-2014-resultado. Acesso em 06. fev 2020.

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Dos levantamentos realizados junto às secretarias de segurança pública dos Estados, às polícias e aos movimentos feministas, têm-se a notícia de que, em média, 4,6 mulheres são assassinadas por 100 mil habitantes do sexo feminino, podendo dobrar em algumas cidades. Os índices se igualam ou mesmo superam, sozinhos, a taxa total de homicídios de países europeus ocidentais – 3 a 4 por 100 mil, da América do Norte – 2 a 6 e da Austrália – 2 a 3. Em relação à América Latina, o Brasil perde apenas para El Salvador, Guiana e Guatemala, países onde já atuam grupos de direitos humanos para reverter o caos provocado por tantas mortes.

em 2014, o Brasil figurou na 79ª posição dentre 187 países do ranking do índice de desigualdade de gênero do PNUD29, que tem por critérios fatores como o acesso à educação e saúde materna para avaliar as diferenças das condições materiais das vidas de homens e mulheres.

Ocorre que os atos discriminatórios e preconceituosos fazem “saltar os olhos”, ocasionando sentimento repulsivo e uma revolta grandiosa assola a sociedade, que também é composta de mulheres filhas, mulheres mães, mulheres irmãs, mulheres avós, mulheres tias, mulheres sobrinhas, enfim, mulheres...Aqui ou ali o homem depara-se com um familiar ou amiga, mulher, é para isso que se está alertando, a luta não é em prol do sexo feminino, mas em prol da sociedade Os direitos humanos das mulheres care- como um todo. cem ser reivindicados porque no âmbito dos direitos econômicos, sociais e culturais permanecem sendo um desafio a ser cumprido, eis que

3. “CASES” DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO BRASIL, UM PRESENTE INFELIZ Conforme demonstrado no capítulo anterior, não há em nosso ordenamento interno, tampouco em tratados internacionais, dispositivo que coloque a mulher numa posição de inferioridade em relação ao homem. Todavia, hodiernamente ainda há muita discriminação e violência em face da mulher, por ser mulher, tendo havido determinadas ocorrências que desolaram massas de representações desta categoria de pessoas; as mulheres ainda são desrespeitadas e isto se dá, em virtude do preconceito de gênero, eis que embora estejamos em pleno século XXI, as conquistas alcançadas e as dezenas de Tratados Internacionais à que se renderam diversas Nações são ainda ineficazes. Constitui-se um dos casos mais emblemáticos e famosos, vivenciado pelo Brasil, o da farmacêutica-bioquímica Maria da Penha Maia Fernandes. Em 1983, ela sofreu dupla 29 2020.

tentativa de homicídio por parte de seu então marido, Marco Antonio Heredia Viveiros, que atirou contra suas costas enquanto ela dormia, deixando-a paraplégica. E, como se não bastasse, ainda tentou eletrocutá-la no banho, duas semanas depois; quando então ela decidiu se separar. O agressor sofreu duas condenações no Tribunal do Júri do Ceará, em 1991 e 1996; todavia, em que pese a gravidade dos crimes, passados mais de 15 anos ainda não havia uma decisão definitiva no processo e Heredia Viveiros permanecia em liberdade. Então, Maria da Penha, o Centro para a Justiça e o Direito Internacional – CEJIL Brasil e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher - CLADEM-Brasil, enviaram o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, denunciando a tolerância do Brasil para com a violência cometida em face da vítima e o consequente desrespeito à Convenção

Relatório completo do PNUD disponível em: http://www.pnud.org.br/noticia.aspx?id=3909. Acesso em 06. fev

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Americana de Direitos Humanos, à Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e à Convenção de Belém.30A Comissão concluiu que:

uma das três melhores legislações para enfrentamento à violência contra as mulheres do mundo, é um dos raros exemplos brasileiros de leis construídas para e por mulheres”32.

o Estado violou, em prejuízo da Senhora Maria da Penha Maia Fernandes, os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial assegurados pelos artigos 8 e 25 da Convenção Americana, em concordância com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos, prevista no artigo 1(1) do referido instrumento e nos artigos II e XVII da Declaração, bem como no artigo 7 da Convenção de Belém do Pará. Conclui também que essa violação segue um padrão discriminatório com respeito a tolerância da violência doméstica contra mulheres no Brasil por ineficácia da ação judicial. A Comissão recomenda ao Estado que proceda a uma investigação séria, imparcial e exaustiva para determinar a responsabilidade penal do autor do delito de tentativa de homicídio em prejuízo da Senhora Fernandes e para determinar se há outros fatos ou ações de agentes estatais que tenham impedido o processamento rápido e efetivo do responsável; também recomenda a reparação efetiva e pronta da vítima e a adoção de medidas, no âmbito nacional, para eliminar essa tolerância do Estado ante a violência doméstica contra mulheres.31

Outro caso de grande repercussão no País, foi o de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro pelo PSOL, assassinada em 14 de março de 2018, na região central da capital. Os criminosos efetuaram vários disparos no carro da vereadora, que acabaram também por matar o motorista Anderson Gomes. Um caso que até hoje envolve muito mistério, que teve uma série de reveses, e que se arrasta a dois anos. Duas pessoas foram acusadas de serem os executores, o policial militar reformado Ronnie Lessa e o ex-policial militar Élcio Vieira de Queiroz. Mas ainda não se sabe os motivos, tampouco quem seriam os verdadeiros mandantes.33

E, assim, Maria da Penha tornou-se a protagonista de um caso de litígio internacional, que marcou a história da luta contra a violência doméstica, verdadeiro ícone dessa causa, inclusive dando o nome à Lei n.º 11.340/2006, que é “considerada pela ONU

Recentemente o ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope), Adriano Magalhães da Nóbrega, acusado de comandar o grupo de assassinos de aluguel conhecido como Escritório do Crime, do qual Ronnie Lessa é acusado de fazer parte, foi morto. Diante de tal ocorrência, a Procuradoria Geral da República discute a possibilidade de federalização34 das investigações do caso; segundo a jornalista Andréia Sadi, o procurador Augusto Aras considera que “a cada fato novo envolvendo personagens ligados ao Escritório do Crime, maior é a necessidade de se conduzir uma investigação afastada do Estado do Rio.”35 Por ser uma ativista dos direitos humanos, Marielle Franco foi uma das escolhidas pela Anistia Internacional para protagonizar, em 2018, a campanha Escreva por Direitos (Write for Rights), que teve por foco a luta de mulheres defensoras de direitos humanos, mobilizando diver-

30 Cf. resumo do relato do caso disponível em: https://assets-compromissoeatitude-ipg.sfo2.digitaloceanspaces. com/2012/08/cejil_resumorelatocasomariadapenha.pdf. Acesso em 12 fev. 2020. 31 Cf. Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH/OEA. Relatório n° 54/01, caso 12.051, MARIA DA PENHA MAIA FERNANDES versus BRASIL, de 4 de abril de 2001. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm. Acesso em 08 fev. 2020. 32 TEODORO, Ilka; GONÇALVES, Laura; LASALVIA, Raquel. 12 Anos de Lei Maria da Penha: Por Políticas pela vida das mulheres. Disponível em: http://www.justificando.com/2018/09/14/12-anos-de-lei-maria-da-penha-por-politicas-pela-vida-das-mulheres/. Acesso em 12 fev. 2020. 33 Disponível em: https://brasil.elpais.com/tag/caso_marielle_franco. Acesso em: 12 fev. 2020. 34 O Incidente de deslocamento de competência, previsto no artigo 109, § 5º, CF, é destinado a resguardar a responsabilidade do Estado soberano perante a comunidade internacional, em função de tratados de proteção à pessoa humana firmados pela União. O foco é a redução da impunidade e a concretização da proteção aos direitos humanos. (cf. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 19. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 731740.) 35 Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/caso-marielle-pgr-quer-federalizar-investigacao-apos-morte-de-adriano-1-24243629. Acesso em 12 fev. 2020.

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sos países.36

E, ainda, tantos outros casos poderiam ser citados como exemplos da triste realidade de violência e discriminação em face da mulher, que tomaram conta das manchetes dos jornais nos últimos anos, como o da doméstica Maria Regina Araújo, da advogada Marina Spitzner, e, recentemente o da bailarina Magó. Todos crimes praticados por homens, maridos, namorados, companheiros... conhecidos, desconhecidos... homens.

leva o indivíduo a uma acentuada indiferença afetiva, podendo adotar um comportamento criminal recorrente e o quadro clínico de transtorno de personalidade assume o feitio de psicopatia. A Psicologia contribui então, para com a elucidação comportamental destas pessoas, que são indivíduos clinicamente perversos, com isso pode-se afirmar que se faz necessário esquadrinhar outras ciências, para obter informações acerca do comportamento dos agressores em potencial.

Tudo isso conduz à inferência dolorosa Crimes esses que revelam que qualquer de que trabalhos voltados à conscientização mulher pode ser a próxima vítima, simplesmente por existir, simplesmente por ser mu- não podem cessar, assim como assenta de igual forma, a plena convicção de que postulher. Até quando? lados jurídicos não se revestem, infelizmenA índole massacrante e cruel do agressor te, de suficiente capacidade para extirpar tão é, por vezes, mascarada por atos de gentileza, repugnantes atos de desdém, que resultam num primeiro contato, a fim de seduzir e con- massacres ao gênero feminino, escondidos quistar inabalável confiança da vítima, esta, num disfarce discriminatório, a abarcar infunsem suspeitar que está mediante uma pessoa dado ódio e preconceito. Inúmeras batalhas já que detém transtorno de personalidade e que foram vencidas pelas mulheres, mas tudo leva sente prazer em ocasionar o sofrimento alheio. a crer que a guerra ainda não acabou. Esse tipo de transtorno específico de personalidade é marcado por uma insensibilidade aos sentimentos alheios e em se apresentando em grau elevado, essa insensibilidade,

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ser mulher tem sido sinônimo de ser disNecessita-se de mais políticas públicas criminada, de correr perigo diariamente. Em e ações afirmativas para garantir a igualdade que pesem as conquistas das últimas décadas, material mas, sobretudo, é preciso rever coné fato que ainda há muito em que avançar. ceitos, desconstruir a imagem de sexo frágil, abolir de vez a ideia de patriarcado. Hoje a Não se pode cair no “clichê” de pugnar maioria das mulheres trabalham, geram empor mais normas protetivas apenas e tão sopregos e rendas, pagam tributos... têm as mente. É preciso ir além do Direito, é necessámesmas obrigações que os homens. Destarte, ria uma mudança de posicionamentos, mentaa igualdade de gênero é o caminho para alcanlidades, posturas e objetivos na sociedade em çar o equilíbrio social, tão necessário ao nosso que vivemos. País. A preservação da liberdade feminina é o Trabalhos voltados à conscientização de- caminho para que mais nenhuma mulher seja vem continuar e a utilização de estudos dis- morta ou enfrente violência unicamente pelo ponibilizados por ciências, além da jurídica, é fato de enquadrar-se no gênero feminino. Asfator imperativo; valendo ressaltar a impor- sim, do passado imperfeito poder-se-á se chetância da psicologia forense para auxiliar na gar a um futuro ideal. identificação do perfil do agressor. 36 2020.

Disponível em: http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/44649. Acesso em 12 fev.

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A NECESSIDADE DA IGUALDADE E EMPODERAMENTO DA MULHER NA RECOLOCAÇÃO NO MERCADO DE TRABALHO NOS CASOS DE DOENÇAS GRAVES Rosangela Regina Alves. Advogada. Graduada em 2011. Membro da Comissão de Direito Contemporâneo da OAB-SBC triênio 2015/2018. Membro associado da ADFAS - Associação de Direito das Famílias e Sucessões. Pós-graduanda em Direito de Família e Sucessões pela Escola Superior de Advocacia OAB/ SP – Núcleo São Bernardo do Campo.

T eresinha Maria dos Santos de Oliveira. Advogada. Graduada em 2014. Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Escola Superior de Advocacia - ESA em parceria com a Universidade de Santa Cruz do Sul –UNISC em 2018. Pós-graduanda em Direito de Família e Sucessões pela Escola Superior de Advocacia OAB/SP – Núcleo São Bernardo do Campo.

SUMÁRIO 1. Introdução 2. Princípios na Constituição Federal 3. Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 4. Dificuldade na Recolocação 5. Igualdade e Empoderamento 6. Conclusão Referências.

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RESUMO Este artigo objetivou compreender os desafios e as dificuldades das mulheres que enfrentaram algum tipo de doença grave que as tiraram do mercado, e a dificuldade de retorno e a recolocação neste mercado mostra diariamente uma evolução constante de tecnologia. Em um mercado altamente competitivo instante em que encontram a indiferença de colegas, a insegurança, a necessidade financeira da família, maior infraestrutura de maneira geral, e nestas, o desconhecimento da tecnologia, que em evolução constante e que nos mais diversos ramos, seus conhecimentos precisarão estar bem atualizados para voltar a sua atividade. Os direitos dessas mulheres precisam ser garantidos para que possam conquistar novamente sua clientela e o seu lugar como profissional, clientes estes que prezará cada vez mais por credibilidade e confiabilidade, e que hoje buscam pela qualidade de seu serviço e/ou produto. Um dos meios de diferenciação está na atribuição de qualidade dos serviços destas mulheres que estão retornando ao mercado. Para tanto, essas mulheres precisam de empoderamento, autoestima elevada, oportunidades para seu efetivo retorno.

PALAVRAS-CHAVE Direito das Mulheres. Dificuldade de Recolocação. Trabalho. Câncer. Doenças Graves. Experiências e Conhecimento.

ABSTRACT This article aimed to understand the challenges and difficulties of women who faced some type of serious illness that removed them from the market, and the difficulty of returning and relocating to this market shows a constant evolution of technology on a daily basis. In a highly competitive market, when they find the indifference of colleagues, insecurity, the financial need of the family, greater infrastructure in general, and in these, the ignorance of technology, which is constantly evolving and in the most diverse fields, their knowledge they will need to be well updated to get back to their activity. The rights of these women need to be guaranteed so that they can win over their clientele and their place as a professional again, clients who will increasingly value credibility and reliability, and who today seek the quality of their service and / or product. One of the means of differentiation is the attribution of quality of services to these women who are returning to the market. For this, these women need empowerment, high self-esteem, opportunities for their effective return.

KEYWORDS Women’s Law. Relocation difficulty. Job. Cancer. Serious diseases. Experiences and Knowledge.

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1. INTRODUÇÃO Muito se fala em direitos humanos e no gênero que ainda permanecem em freigualdade, mas pouco se explora quanto a efe- quente discussão e aprimoramento. tiva concretização desses direitos fundamenImplementar as oportunidades é recotais, é o que se pretende analisar no presente nhecer as responsabilidades em garantir que artigo. os direitos das mulheres ao trabalho, após ter Culturalmente, se tem a ideia de que o passado por tratamento médico invasivo, e trabalho da mulher somente faz parte de um muitas duradouro possuem caráter de ordem complemento ao trabalho homem. Contudo pública e por isso é fundamental. Ao cumprir sabe-se que não é essa mais a realidade apre- a garantia do alcance e manutenção da digsentada em nosso país. nidade humana a estas mulheres o Estado se consolida como Estado democrático de direiAlém das desigualdades de valores nas to, com a devida igualdade a todos. remunerações entre homens e mulheres que é uma realidade não só no Brasil. Se faz necesPor conseguinte, deve implicar no fortasário análise de outra vertente tão importante lecimento de um Estado e uma sociedade que quanto que é a recolocação profissional e de garanta a relevância da proteção da mulher trabalho de mulheres que passaram por doen- em manter e conquistar um trabalho digno, ças graves no mercado de trabalho. para se manter e ou voltar a trabalhar mesmo tendo passado por doenças graves como As oportunidades para retorno das muo câncer, depressão, e as doenças autoimunes lheres após enfrentarem doenças graves, no garantindo a mulher como titular de direitos mercado de trabalho dependem de políticas humanos. públicas, projetos sociais, plataformas de incentivos e parcerias. E para que isso avance é preciso combater às desigualdades com base

2. PRINCÍPIOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL A palavra princípio no dicionário significa o início de algo, o que vem antes, a causa, o começo, um conjunto de leis, definições ou preceitos utilizados para nortear o ser humano. É uma verdade universal, aquilo que o homem acredita como um dos seus valores mais inegociáveis. Por exemplo, ouvimos em diversos lugares que: “Todos têm direitos iguais”. Esse trecho está presente no Artigo 5º da Constituição Federal. Ele é apenas uma pequena parte da infinidade de benefícios, se pode dizer assim, pertinentes à população.

nia, dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Já no seu artigo 3º, a CF/88 nos traz os objetivos fundamentais que englobam a construção de uma sociedade mais justa e solidária com a devida promoção do bem de todos.1 Muito embora de difícil definição, o princípio da dignidade da pessoa humana é composto por um núcleo duro, o mínimo existencial, consoante o entendimento de Ana Paula de Barcellos2, que oferece a seguinte explicação:

“(...) O efeito pretendido pelo princípio da A Constituição Federal, no seu artigo 1º, dignidade da pessoa humana consiste, em terincisos II, III e IV estabelece vários princípios mos gerais, em que as pessoas tenham uma vida fundamentais principalmente os da cidada- digna. Como é corriqueiro acontecer com os prin1 MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 2ª. Ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 2056. 2 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 304-305.

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cípios, embora esse efeito seja indeterminado a partir de um ponto, há também um conteúdo básico, sem o qual se poderá afirmar que o princípio foi violado e que assume caráter de regra e não mais de princípio. (...)”. Salienta-se a dignidade da pessoa humana, igualdade e vedação ao retrocesso,

destaca-se ainda, para a matéria abordada, a proteção plena à Igualdade, Liberdade, solidariedade. Dentre os vários há especial destaque para o princípio da dignidade da pessoa humana e plena proteção ao trabalho que dignifica a pessoa.

3. OS 17 OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL Na agenda 2030 que trouxe como documento final da agenda pós-2015 os 17 objetivos globais para transformar nosso mundo com um plano de desenvolvimento sustentável focando no planeta e na prosperidade, visando fortalecer a paz universal com mais liberdade: “(...) Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e 169 metas que estamos anunciando hoje demonstram a escala e a ambição desta nova Agenda universal. Eles se constroem sobre o legado dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e concluirão o que estes não conseguiram alcançar. Eles buscam concretizar os direitos humanos de todos e alcançar a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres e meninas. Eles são integrados e indivisíveis, e equilibram as três dimensões do desenvolvimento sustentável: a econômica, a social e a ambiental. Os Objetivos e metas estimularão a ação para os próximos 15 anos em áreas de importância crucial para a humanidade e para o planeta: 1 Pessoas Estamos determinados a acabar com a pobreza e a fome, em todas as suas formas e dimensões, e garantir que todos os seres humanos possam realizar o seu potencial em dignidade e igualdade, em um ambiente saudável. (...) Prosperidade Estamos determinados a assegurar que todos os seres humanos possam desfrutar de uma vida próspera e de plena realização pessoal, e que o progresso econômico, social e tecnológico ocorra em harmonia com a natureza. (...) Se realizarmos as nossas ambições em toda a extensão da Agenda, a vida de todos será profundamente melhorada e nosso mundo será transformado para

melhor(...)” Dentre os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e a 169 metas estabelecidas destacam-se 02 que buscam o atendimento das mulheres, são eles objetivo 05 e o objetivo 08 e ainda o objetivo 10, vejamos: Quanto a igualdade3: Objetivo 5. Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas 5.1 Acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas em toda parte. 5.2 Eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas públicas e privadas, incluindo o tráfico e exploração sexual e de outros tipos. 5.3 Eliminar todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e de crianças e mutilações genitais femininas. 5.4 Reconhecer e valorizar o trabalho de assistência e doméstico não remunerado, por meio da disponibilização de serviços públicos, infraestrutura e políticas de proteção social, bem como a promoção da responsabilidade compartilhada dentro do lar e da família, conforme os contextos nacionais 5.5 Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública.

3 ITAMARATY. Integra dos ODS. Disponível em http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_desenvsust/20160119-ODS.pdf. Acesso em 29.01.2020.

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5.6 Assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos, como acordado em conformidade com o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento e com a Plataforma de Ação de Pequim e os documentos resultantes de suas conferências de revisão. 5.a Realizar reformas para dar às mulheres direitos iguais aos recursos econômicos, bem como o acesso a propriedade e controle sobre a terra e outras formas de propriedade, serviços financeiros, herança e os recursos naturais, de acordo com as leis nacionais.

acesso a serviços financeiros. 8.4 Melhorar progressivamente, até 2030, a eficiência dos recursos globais no consumo e na produção, e empenhar-se para dissociar o crescimento econômico da degradação ambiental, de acordo com o Plano Decenal de Programas sobre Produção e Consumo Sustentáveis, com os países desenvolvidos assumindo a liderança. 8.5 Até 2030, alcançar o emprego pleno e produtivo e trabalho decente todas as mulheres e homens, inclusive para os jovens e as pessoas com deficiência, e remuneração igual para trabalho de igual valor

8.6 Até 2020, reduzir substancialmente a 5.b Aumentar o uso de tecnologias de proporção de jovens sem emprego, educação ou base, em particular as tecnologias de informaformação. ção e comunicação, para promover o empoderamento das mulheres 8.7 Tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, acabar com a 5.c Adotar e fortalecer políticas sólidas e escravidão moderna e o tráfico de pessoas, e aslegislação aplicável para a promoção da igualsegurar a proibição e eliminação das piores fordade de gênero e o empoderamento de todas mas de trabalho infantil, incluindo recrutamenas mulheres e meninas em todos os níveis. to e utilização de crianças-soldado, e até 2025 4 Quanto ao empoderamento : acabar com o trabalho infantil em todas as suas formas. Objetivo 8. Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, em8.8 Proteger os direitos trabalhistas e proprego pleno e produtivo e trabalho decente para mover ambientes de trabalho seguros e protegitodos dos para todos os trabalhadores, incluindo os trabalhadores migrantes, em particular as mulheres 8.1 Sustentar o crescimento econômico per migrantes, e pessoas em empregos precários. capita de acordo com as circunstâncias nacionais e, em particular, um crescimento anual de 8.9 Até 2030, elaborar e implementar popelo menos 7% do produto interno bruto [PIB] líticas para promover o turismo sustentável, que nos países menos desenvolvidos. gera empregos e promove a cultura e os produtos locais 8.2 Atingir níveis mais elevados de produtividade das economias por meio da diversifica8.10 Fortalecer a capacidade das instituição, modernização tecnológica e inovação, in- ções financeiras nacionais para incentivar a exclusive por meio de um foco em setores de alto pansão do acesso aos serviços bancários, de sevalor agregado e dos setores intensivos em mão guros e financeiros para todos. de obra. 8.a Aumentar o apoio da Iniciativa de Ajuda 8.3 Promover políticas orientadas para o para o Comércio [Aid for Trade] para os países em desenvolvimento que apoiem as atividades pro- desenvolvimento, particularmente os países medutivas, geração de emprego decente, empreen- nos desenvolvidos, inclusive por meio do Quadro dedorismo, criatividade e inovação, e incentivar Integrado Reforçado para a Assistência Técnica a formalização e o crescimento das micro, pe- Relacionada com o Comércio para os países mequenas e médias empresas, inclusive por meio do nos desenvolvidos. 4 ITAMARATY. Integra dos ODS. Disponível em http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_desenvsust/20160119-ODS.pdf. Acesso em 29.01.2020.

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8.b Até 2020, desenvolver e operacionalizar uma estratégia global para o emprego dos jovens e implementar o Pacto Mundial para o Emprego da Organização Internacional do Trabalho [OIT]5. O Brasil elaborou o documento chamado Posicionamento do Brasil no qual detalha a que forma pela qual atingirá cada objetivo e estabelecendo suas metas. Este documento foi elaborado com o objetivo de orientar os negociadores brasileiros nas discussões do Grupo de Trabalho Aberto sobre Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (GTA-ODS), constituído no âmbito da Assembleia-Geral das Nações Unidas, cujas atividades foram concluídas em julho de 2014.

civil recolhidos nos eventos “Diálogos Sociais: Desenvolvimento Sustentável na Agenda Pós2015 – Construindo a Perspectiva do Brasil” (Rio de Janeiro, 11/02/2014) e “Arena da Participação Social” (Brasília, 23/05/2014), bem como os insumos de representantes das entidades municipais articulados em oficinas organizadas pela Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República e pelo Ministério das Cidades.

Assim, a realização de um verdadeiro Estado Democrático de Direito com as garantias ali expostas, conforme disposto no preâmbulo da Constituição Federal da República, e o preâmbulo da declaração da agenda 2030, só se efetivará com a preservação da dignidade O conteúdo deste documento reúne as da pessoa humana e sua consequente obsercontribuições dos 27 Ministérios e órgãos de vação dos direitos e garantias das mulheres governo que integram o Grupo de Trabalho In- como um todo inclusive para o trabalho. terministerial sobre a Agenda Pós-2015. Também incorpora os comentários da sociedade

4. DIFICULDADE DE RECOLOCAÇÃO Para qualquer discussão a respeito dos direitos humanos inclusive para as mulheres deve-se começar por uma análise da profunda dos direitos e garantias trazidas pela nossa constituição. No nosso país a cidadania vem em trajetória de difícil percurso e desde 1824, data da primeira Constituição brasileira.

ou sua esposa ou uma irmã, já isso não acontece quando se trata da mulher.

Existem mulheres que enfrentaram doenças extremamente graves e que precisaram desistir do seu trabalho para continuar com seu tratamento, e esse acontecimento de forte intensidade emocional, especialmente por estarem viA tempos as mulheres precisam lutar pelo venciando momento difícil da vida, chega a causeu reconhecimento como seres humanos ple- sar depressão na pessoa o que dificulta ainda nos e pelos seus direitos humanos básicos, esta mais seu retorno ao mercado de trabalho. luta vem por um longo período e, infelizmente, As consequências que podemos observar continua hodiernamente. Se considerarmos a mesmo quando essas mulheres conseguem suhistória que as mulheres viveram e vivem até hoje, pode-se observar que muitas conquistas perar a doença e alcançar a cura, é a dificuldade foram alcançadas, mais ainda há muito o que re- de retornar ao mercado de trabalho, como por alizar para que seja encontrado uma verdadeira exemplo quem enfrentou um câncer possui algumas limitações e nenhuma empresa quer contraIgualdade com uma efetiva solução. tar uma mulher que já tenha se tratado de câncer Quando uma mulher passa por uma doen- ou uma doença autoimune. 6 ça de estrema gravidade, por muitas vezes não Segundo o Ministério da Saúde “Uma dotem o apoio do marido ou de seus familiares, o homem quando passa por uma enfermidade de ença autoimune é um mau funcionamento do grave risco de morte tem ao seu lado ou sua mãe, sistema imunológico, levando o corpo a atacar 5 ITAMARATY. Integra dos ODS. Disponível em http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_desenvsust/ 20160119-ODS.pdf. Acesso em 29.01.2020. 6 Casos reais tratamento feito no hospital das clinicas de São Paulo e Icesp São Paulo.

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os seus próprios tecidos7”, muitas doenças au- decorrência de doenças tais como o câncer, toimunes são mais frequentes em mulheres e podem sofrer discriminações ainda maiores não se sabe o que desencadeia as doenças. em virtude da aparência ou pelos períodos de afastamento, pois em uma entrevista terá que O Instituto Nacional do Câncer (INCA) do Ministério da Saúde8 disponibiliza uma cartilha falar o porquê de ter ficado muito tempo fora com todos os direitos sociais da pessoa com do mercado. Tais discriminações podem ocorrer no local onde estavam trabalhando mesmo Câncer. ou mesmo para iniciar um novo trabalho. O paciente com câncer possui direitos Entretanto ficou fora aparentemente a especiais na legislação, como auxílio doença, princípio, as possibilidades ou propostas que tratamento fora de domicílio, saque do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS, visem essa necessidade que é uma realidade e do Pis Pasep, Licença Médica, Isenção do da mulher de todos os níveis sociais. A ConImposto de Renda. Para aqueles que ficaram venção sobre a Eliminação de Todas as Forcom sequelas e invalidez permanente: depen- mas de Discriminação contra as Mulheres, dendo do contrato de financiamento da casa tem como base o princípio da igualdade, como própria poderão ter a quitação total, carro uma forma vinculante e também como um obadaptado, transporte público gratuito, dis- jetivo para acabar com toda e qualquer difepensa de rodízio, isenção do imposto de renda rença que seja uma forma de discriminação na aposentadoria, acréscimo de 25% sobre o contra as mulheres. benefício previdenciário e prioridade no atenMais não seria uma forma de exclusão dimento no comércio e bancos, amparo assis- e discriminação não ter políticas públicas, tencial ao idoso e deficiente, cirurgia de re- e a falta de programas sociais de inclusão construção mamária, reabilitação profissional uma forma de discriminação contra essas para trabalhador com previdência(reeducação mulheres? e reabilitação), indenização do seguro de vida A luta dessas mulheres para superar um por invalidez, passar a receber renda pela invalidez permanente ou parcial da previdência trauma de uma doença que poderia ter causado sua morte, a mutilação em seu corpo privada.. não acaba quando ela não mais necessita de Entretanto ainda falta pensar em meios tratamento, e como sabemos e sentimos nepara atender a necessidade de sustento des- cessário se faz de pensamentos e maneiras de sas mulheres, muitas vezes marginalizadas e auxiliá-las, não como forma de superioridade esquecidas, que não querem receber dinheiro de direitos ou exclusividade, o que seria uma do Estado para sempre, mais sim demonstrar forma de discriminação que todos estamos sua capacidade e sua contribuição para a so- tentando combater, mais sim como forma de ciedade além de se auto sustentar para gozar inclusão para que haja um empoderamento de uma vida digna. efetivo com resgate da autoestima e com a A Constituição Federal, a Convenção so- certeza que a dignidade da pessoa de direitos bre a Eliminação de Todas as Formas de Dis- está sendo observada amplamente. criminação contra as Mulheres, e declaração O Brasil assumiu o compromisso de da agenda 2030 se fundamenta na dupla obri- “acabar com todas as formas de discriminação gação de eliminar qualquer tipo de discrimina- contra todas as mulheres e meninas em toda ção e de assegurar a igualdade. parte” de acordo com a meta 5.1 do ODS5 a

A mulher já enfrenta muitas dificuldades partir da assinatura da Agenda 2030, no enpara se inserir e se manter no mercado de tra- tanto, apesar da referida Agenda estar em balho e aquelas que apresentam sequelas em vigor desde 2015, ainda não temos nada em efetivo para as mulheres portadoras de câncer 7 Ministério da saúde. http://saude.gov.br/saude-de-a-z/cancer-de-mama. Acessado em 03.02.2020 8 Inca. Ministério da Saúde. https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files//media/document//direitos_sociais_da_pessoa_com_cancer_5edicao.pdf. Acessado em 03.02.2020.

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em novos locais de trabalho.

movimento foi em 22.08.2019 - aguardando Parecer do Relator na Comissão de Defesa dos Por oportuno, frisa-se que está em traDireitos das Pessoas com Deficiência (CPD). mitação o projeto de Lei PLS14/20179 de autoria do Senador Eduardo Amorim (PSDB-SE) O PLS 14/2017 é um projeto de lei que que acrescenta o art. 118-A à Lei nº 8.213, se mostra adequado e que vem ao encontro de 24 de julho de 1991, para conceder garan- às metas contidas na ODS05 e ODS08, protia de emprego ao segurado com câncer que move a não discriminação das mulheres, em perceber auxílio-doença, acidentário ou não. especial se incluí as acometidas de doenças graves câncer, garante-lhes a igualdade de O referido projeto de lei concede a garanoportunidades e empoderamento, por meio tia de estabilidade no emprego por mais um de recursos financeiros oriundos da manutenano, no mínimo, ao segurado da Previdência ção de seus empregos. Social com câncer após o termino do auxílio-doença acidentário ou auxilio previdenciário. Assim, poderemos assegurar que todas as mulheres possam desfrutar de uma vida A aprovação implicará na alteração da lei próspera e de plena realização pessoal, e que 8213/91 dos benefícios previdenciários no o progresso econômico, social e tecnológico que se refere a garantia de permanência no ocorra em harmonia com a natureza como disemprego. O projeto de lei foi aprovado por posto em nossa Carta Magna, Convenção de unanimidade pela Comissão de Assuntos Sodireitos humanos, Convenção sobre a Elimiciais (CAS), obteve parecer favorável do Relanação de Todas as Formas de Discriminação tor no Senado e seguiu em 06.07.2017 para a contra as Mulheres e como previsto na agenCâmara dos Deputados, está sendo analisada da 2030. juntamente com a PL 8057/201710. O último

5 IGUALDADE E EMPODERAMENTO A igualdade que se pretende só pode ser garantida pela participação plena e efetiva das mulheres, em igualdade de oportunidades em todos os âmbitos sociais, sendo uma das metas da ODS 5, que para tanto prevê a necessidade de realização de reformas na legislação para dar à mulher recursos econômicos, sociais e tecnológicos. Esta é a forma de concretizar o empoderamento de todas as mulheres e meninas.

criminação contra a Mulher, pela ONU, trouxe a possibilidade de “discriminação positiva” conhecida como “ação afirmativa”), que visa a busca de medidas especiais de proteção ou incentivo a grupos ou indivíduo em situação de vulnerabilidade.

As ações afirmativas têm por objetivo acelerar todo o processo de igualdade, com o devido alcance da igualdade por parte de grupos socialmente vulneráveis, como as muIsto significa ser essencial distinguir di- lheres, dentre outros grupos, respeitando as ferença de desigualdade. Esta mesma lógica diferenças. inspirou a definição de discriminação contra a Por conseguinte, as ações afirmativas demulher, quando da adoção da Convenção sovem ser compreendidas não só no sentido de bre a Eliminação de todas as Formas de Discrialiviar a carga de um passado discriminatório, minação contra a Mulher, pela ONU, em 1979. mas também de um futuro no sentido de proA possibilidade trazida pela Convenção teção e a transformação social, contemplando sobre a Eliminação de todas as Formas de Dis- todas as mulheres. 9 Senado Federal. Disponível em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/127990. Acesso em 10.02.2020. 10 Câmara Federal dos Deputados. Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2144454. Acesso em 10.02.2020.

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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS A implementação do direito à igualdade, inclusive para as mulheres que passaram pelo trauma de uma doença grave é tarefa essencial a qualquer projeto democrático e a saúde de uma sociedade que está em constante melhorias. A busca pela Igualdade, Liberdade e Sororidade requer fundamentalmente um exercício contínuo e parcerias eficazes, para que haja igualdade de condições na caminhada de proteger e garantir os direitos humanos elementares para o bem-estar de uma pessoa.

em parcerias com instituições e/ou entidades educacionais, plataformas e/ou programas que tenham parcerias também com empresas para que possam contratar mulheres capacitando-as e atualizando-as no mercado de trabalho e respeitando as limitações decorrentes de ordem pessoal e em virtude das doenças. A Convenção confirma a reflexão e confirma a visão de que as mulheres são titulares de todos os direitos e oportunidades que os homens podem exercer, logicamente respeitando as habilidades e necessidades que decorrem de diferenças biológicas entre os gêneros, que devem também ser reconhecidas e ajustadas, mas sem eliminar da titularidade das mulheres a igualdade de direitos e oportunidades com base nas ações afirmativas.

Houve considerável avanço no Direito com o amparo legal no que tange às garantias dos direitos das mulheres, e na sociedade como um todo, porém muito ainda há de ser feito para perseverar pela melhora de normas jurídicas nacionais e internacionais, além de mecanismos que efetivem e tragam eficácia Portanto o que precisa se buscar é não no desenvolvimento de políticas públicas e são privilégios, mais o respeito das diferenças social para garantir os direitos das mulheres visando o combate a desigualdade ainda muia recolocação e ao trabalho mesmo após ento influente em nosso país. frentar uma doença grave. Para resolver o impasse existente, deve o Estado, em conjunto com as entidades de classe como a OAB que sempre dá o exemplo, com a sociedade buscar meios eficazes de garantia nessas recolocações, para que o direito fundamental da dignidade das mulheres que sofreram tanto, muitas vezes marginalizadas pelas violências físicas, psíquicas enfrentadas durante o tratamento, possam de forma universal, ter garantindo, assim, seu retorno ao mercado de trabalho. Nesse sentido, a garantia e proteção das mulheres que enfrentaram doenças graves e precisam se manter ou voltar ao mercado de trabalho para que seu direito fundamental seja aplicado na prática, necessário se faz ter incentivos, programas e assistência, que refletirá na vida de mulheres que passaram por tamanha violência física e psicológica depois dos tratamentos. Entende-se que um dos meios eficazes para garantir para essas mulheres o retorno ao mercado de trabalho, propostas de incentivo através de cursos de atualização gratuitos 160


REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. (trad. Virgílio Afonso da Silva, 5ª. Ed. Alemã), São Paulo: Malheiros Editores, 2008. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. Câmara Federal dos Deputados. Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/ fichadetramitacao?idProposicao=2144454. Acesso em 10.02.2020. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. GOTTI, Alessandra. Direitos sociais: fundamentos, regime jurídico, implementação e aferição de resultados. São Paulo: Saraiva, 2012. MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Editora Atlas, 2003. ONU. Declaração Universal de direitos humanos. https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/ declaracao/. ACESSO EM 29.01.2020. ONU. Declaração Universal de direitos humanos. https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2015/10/agenda2030-pt-br.pdf. ACESSO EM 29.01.2020. Piovesan, Flávia. Temas de direitos humanos. 5. ed. – São Paulo: Saraiva, 2012. Senado Federal. Disponível em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/127990. Acesso em 10.02.2020.

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AS MULHERES NA ONU - RETRATOS DO CAMINHO Silvia Cristina Elias Zago Executiva jurídica, é Mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos e especialista em Direito Empresarial pela PUC/Cogeae. Ocupou cargos de Diretora e Gerente Jurídica em empresas de diferentes segmentos do mercado. Professora na Escola Superior de Advocacia – ESA/OAB/SP, cursos de MBAs e workshops corporativos. Vice-Presidente da Comissão Especial de Estudos de Contencioso de Volume da OAB/SP. Palestrante. Consultora jurídica e de negócios.

SUMÁRIO 1. Introdução 2. O Tratamento das Diferenças no Escopo dos Direitos Humanos 3. O Olhar da Onu Sobre as Mulheres – Primeiros Passos 4. Entre Pedras e Espinhos - O Caminho para Criação da Onu Mulheres 4.1 A Declaração Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres 4.2 A Declaração e a Plataforma de Ação Pequim – 50 Anos de Luta 4.3 A Resolução 1325 do Conselho de Segurança da Onu Sobre Mulheres, Paz E Segurança (2000) 4.4 A Declaração do Milênio e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio 5. Onu Mulheres – Um Passo Histórico 6. Conclusões

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RESUMO Esse trabalho tem por objetivo identificar o tratamento dispensado pela Organização das Nações Unidas (ONU) à proteção dos direitos das mulheres e ao refreamento de todo tipo de desigualdade entre gêneros, bem como analisar os diversos tratados internacionais que induziram e prepararam o caminho para a criação da ONU Mulheres, uma entidade das Nações Unidas voltada para a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres, que atua sob o fundamento de que meninas e mulheres têm direito a uma vida sem discriminação, livre de desigualdades, violência e pobreza, sendo estes elementos determinantes para o desenvolvimento sócio econômico e sustentável das nações. Utilizou-se como metodologia, uma revisão bibliográfica descritiva, realizada através de pesquisas em diferentes publicações, tais como livros, artigos científicos e, principalmente, informações via mídia eletrônica, na homepage da Organização das Nações Unidas (ONU) e ONU Mulheres. Entre os quadros teóricos de autores de referência encontram-se TELES, que descreveu amplamente sobre a definição de quais são os direitos humanos das mulheres, bem como sobre a importância da consolidação destes como requisito para fortalecimento da economia global e desenvolvimento de uma sociedade mais juta; PIMENTEL, que se dedicou ao estudo da evolução dos direitos da mulher e BOBBIO, um dos maiores filósofos do século 20, insuperável em combater os direitos humanos e toda forma de desigualdade; dentre outros. Para traçar o caminho que culminou na criação da ONU Mulheres abordou-se os tratados que a antecederam e o impacto que causaram na comunidade internacional manifestado através da criação de leis, políticas e programas pelos Estados-Membros dentro de seus territórios, além da adesão de organizações não-governamentais e empresas privadas. Em razão da crescente consciência e inquietude no tocante ao tratamento desigual dispensado às mulheres e a urgente necessidade de proteção dos direitos das mulheres e meninas, constatou-se a inserção definitiva da problemática da igualdade de gênero na agenda internacional, cujo conceito foi construído ao longo da década de 80. Na conclusão verificou-se a expressiva relevância dos intensos e contínuos esforços da Organização das Nações Unidas refletida na criação da ONU Mulheres, uma entidade com vocação e esforços direcionados exclusivamente para a defesa dos direitos das mulheres e meninas e completo banimento de toda forma de desigualdade de gênero.

PALAVRAS-CHAVE Mulher. Proteção. Gênero. ONU Mulheres. Desigualdade de Gênero. Meninas. Direito das Mulheres.

ABSTRACT This work aims to identify the United Nation’s (UN) treatment given to the protection of women’s rights and the curbing of all types of gender inequality, such as to analyze several international treaties that induced and prepared the way to create UN Women, a United Nations entity focused on gender equality and empowerment of women, which works on the grounds that girls and women are entitled to a life without discrimination, free from inequality, violence and poverty, those elements are determinants for nations socio-economic and sustainable development . The methodology used was a descriptive bibliographic review, through 163


research in different publications, such as books, scientific articles and, mainly, information via electronic media, on United Nations (UN) and UN Women homepage. Among the theoretical references of reference authors are TELES, who described extensively about women’s human rights and the importance of consolidating these as a requirement for strengthening the global economy and developing a fairer society. ; PIMENTEL, who dedicated himself to study the evolution of women’s rights and BOBBIO, one of the greatest philosophers of 20th century, unsurpassed in fighting human rights and all forms of inequality; among others. In order to trace the path that culminated in the creation of UN Women, it was approached the treaties that preceded it and the impact they had on the international community manifested through laws, policies and programs creations by Member States within their territories, in addition to the accession of non-governmental organizations and private companies. Due to the growing awareness and concern regarding the unequal treatment given to women and the urgent need to protect the women and girls rights, gender equality issue was definitively inserted in the international agenda, which the concept it was built throughout 1980s. In conclusion, there was a significant relevance of the United Nation’s intense and continuous efforts that reflected in the creation of UN Women, an entity with a vocation and efforts aimed exclusively at the defense of the rights of women and girls and a complete ban of all forms of gender inequality.

KEYWORDS Woman. Protection. Genre. UN Women. Gender Inequality. Girls. Women’s Rights.

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1. INTRODUÇÃO lugar ocupado pelos direitos das mulheres na agenda internacional, notadamente no ambiente da Organização das Nações Unidas (ONU); sua evolução e perspectivas. Constituirá objeto de análise os principais tratados e convenções internacionais voltados para proteção da mulher, culminando na criação (Simone de Beauvoir) histórica e emblemática da ONU Mulheres, em 2010, cujos pilares visam promover e garantir vida digna, com iguais oportunidades de Em que pese os multifacetados ângu- desenvolvimento e a consequente superação los presentes no tema do direito humano das dos efeitos perversos da desigualdade e dismulheres, este artigo não pretende trazer criminação, há séculos suportadas. o resultado de pesquisas e números sobre a O fato é que o direito de gênero tem discriminação e desigualdade que permeiam a sociedade, ainda que sabidamente alarman- ocupado longas pautas de discussões no âmtes. Tão pouco suscitará questões sociais, po- bito internacional, sob a ótica política, judicial líticas ou filosóficas sobre a origem e a legiti- e religiosa, cujo reflexo se faz perceber nos midade desses direitos, mas pretende realizar movimentos de conscientização, luta e resisum mapeamento do movimento global desti- tência que permeiam a sociedade pós-modernado a refrear a aniquilação suave e paulatina na e que traçam um caminho de não retorno daqueles direitos historicamente preteridos, na direção do empoderamento das mulheres neste artigo circunscritos e representados pe- e consolidação dos seus humanos direitos. los direitos das mulheres e meninas. “É dentro de um mundo dado que cabe ao homem fazer triunfar o reino da liberdade; para alcançar essa suprema vitória é, entre outras coisas, necessário que, para além de suas diferenciações naturais, homens e mulheres afirmem sem equívoco sua fraternidade.”1

Nesse cenário, este artigo trará à luz o

2. O TRATAMENTO DAS DIFERENÇAS NO ESCOPO DOS DIREITOS HUMANOS Para TELES, em razão do processo de atualização, evolução e momento histórico, estamos sob a égide da “terceira geração” dos direitos humanos. Em retrospectiva, temos que os direitos de “primeira geração” contemplavam os direitos individuais, a emancipação do poder político do Estado e a liberação do poder econômico dos ditames feudais. Já os de “segunda geração”, reafirmados na Declaração de 1948, albergavam em seu bojo os direitos sociais, dentre os quais o direito à saúde, ao trabalho, à educação e econômicos. E, por fim, os de “terceira geração”, traduzidos pelo direito à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, à paz e ao meio ambiente.2 1 2

Diante dessa premissa, revela-se de singular importância o tratamento dispensado pela Organização das Nações Unidas (ONU) às diferenças de gênero, desde sua formação. Nesse sentido, vale à pena destacar a introdução da carta da ONU, assinada em 26 de junho de 1945 por 50 países, como segue: “NÓS, OS POVOS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVIDOS

DAS

a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim

BEAUVOIR, Simone de – O segundo sexo, 3ª ed., vol II, São Paulo – Rio, ed. Difel, 1975, p. 500 TELES, Maria Amélia de Almeida. O que são direitos humanos das mulheres – São Paulo: Brasiliense, 2007, p. 13 e 26

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como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla.” (Carta da ONU, 1945)3

peculiaridades e particularidades de cada um. Por seu turno, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu preâmbulo ratifica a “sua fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres e se declaram resolvidos a favorecer o progresso social...”4

Assim, além de pioneiro em força e intencionalidade, a Carta das Nações Unidas é de fundamental importância para o início do movimento de mudança de mindset de dimensão global, no que se refere ao reconhecimento das diferenças naturais e sociais como ensejadoras de direitos e tratamentos especiais.

Merece destaque o fato de que, quer na Carta da Nações Unidas, quer na Declaração Universal de Direitos Humanos, reside o expresso reconhecimento da centralidade e dignidade do ser humano; da necessidade de igualdade dos direitos de homens e mulheres e o respeito destes como base para formação e desenvolvimento de uma sociedade mais justa, social e Seguindo-se a entrada em vigor da Carta economicamente.

das Nações Unidas, em outubro de 1945, teve início não poucos movimentos voltados à celebração de tratados internacionais destinados à proteção dos direitos humanos, dentre os quais ocupa papel de destaque e singular relevância a Declaração Universal de Direitos Humanos, celebrada em dezembro de 1948

Assim, ocupa aqui um bom lugar a reflexão de PIMENTEL, quando indaga retoricamente se a evolução dos direitos das mulheres está seguindo o mero acaso, ou obedece a imperativos de justiça e outros valor5

Pelo que se depreende do horizonte histórico, a evolução dos direitos das mulheres não O protagonismo da ONU na defesa dos segue o sabor dos ventos e do acaso, mas consdireitos humanos e, distintamente, das mulhe- trói-se dia após dia sobre o firme alicerce dos dires, acena para a necessidade de especifica- reitos humanos, dos quais é objeto e fundamento.

ção do sujeito de direito, de forma que o tratamento dispensado atenda as especificidades,

3. O OLHAR DA ONU SOBRE AS MULHERES – PRIMEIROS PASSOS MAGALHÃES sustenta que as manifestações iniciadas pelas mulheres no século XIX, deixam de ser privativas no XX e alcançam a comunidade internacional que também passa a aspirar pela igualdade de tratamento num reconhecimento expresso de que a relação de subordinação dos gêneros é um dos grandes entraves para o desenvolvimento humano.6

mens como um dos requisitos para o progresso social e a melhoria das condições de vida.

Em que pese a integração dos direitos das mulheres no âmbito dos direitos humanos realizada pela Carta da ONU, o documento internacional de maior expressão é a Declaração dos Direitos Humanos o qual, segundo MAGALHÃES, espelha as aspirações da comunidade De fato, a Carta da ONU de 1945, que nor- internacional, o que lhe confere especial efetiviteia as relações internacionais, foi a precursora dade, notadamente por conter princípios gerais em considerar a igualdade de direitos entre ho- de Direito Internacional que se fazem obrigató3 Carta das Nações Unidas, 1945. Disponível em https://nacoesunidas.org/carta/. Acesso em 20.01.2020 4 Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Pages/Language.aspx?LangID=por .Acesso em 27.01.2020 5 PIMENTEL, Silvia. Evolução dos direitos da mulher: Norma, fato, valor – São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1978, p. 128 6 MAGALHÃES, José Carlos de. O mundo com empresa global: aspectos da ordem internacional – São Paulo: Grua, 2016, p 213

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rios dado seu caráter jus cogens, ainda que sob a ótica jurídico instrumental, não possua caráter vinculante que obrigue os Estados aos preceitos nela elencados. 7

o grande número de tratados internacionais sobre esse tema dá origem ao arcabouço de costumes, também denominado direito consuetudinário, que terminaria por atribuir natureza jus cogentis a uma significativa gama de normas afetas aos Por outro lado, GARCIA, destaca o caráter direitos humanos.9 imperativo das normas jus cogentis, por refletir padrões consolidados no cenário internacional, É justamente nesse cenário e sob essa cuja existência e eficácia não dependem do con- natureza que seguiram-se à Declaração Universal sentimento do sujeitos de direito internacional, dos Direitos Humanos os instrumentos de carámas que dado o caráter erga omnes coloca no ter internacional, no âmbito das nações Unidas, terreno da ilicitude que as viola. 8 de maior destaque e relevância que a seguir passaremos a analisar. Assim, conclui GARCIA, uma vez instalada a impossibilidade de dissociação dos direitos humanos da agenda internacional contemporânea,

4. ENTRE PEDRAS E ESPINHOS - O CAMINHO PARA CRIAÇÃO DA ONU MULHERES Nas sábias palavras de HAN, “a vida é algo to, como por exemplo os direitos das crianças, muito mais complexo que mera vitalidade e saú- das mulheres, dos grupos étnicos, etc., com suas de.”10 características e demandas distintas e individualizadas. Para esses grupos de sujeitos de direito, Tal afirmativa vemos refletida no esforço as respostas devem ser específicas e diferenciadas nações em implementar um sistema norma- das, assim como são as especificidades e pecutivo global que albergasse direitos gerais e es- liaridades de sua condição social que demandam pecíficos. Conforme sustentado por PIOVESAN, por tratamento especial.11 tratar o indivíduo de forma geral e abstrata não atende as especificidades dos sujeitos de direi-

4.1 A DECLARAÇÃO SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO CONTRA AS MULHERES Foi sob essa ótica que em 1967 foi lançada a pedra fundamental dos programas de proteção à mulher da ONU, a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), que contou com assinatura de 185 países.12 A CEDAW está fundamentada nos valores da Carta das Nações Unidas e da Declaração Universal dos Direitos Humanos que reafirmam a igualdade de direitos entre homens e mulheres e

o princípio da não-discriminação. Vale dizer que, se de um lado existe a manifesta preocupação com a discriminação dos direitos das mulheres, de outro a Declaração expande essa preocupação para escalas globais na medida em que reconhece “que a participação máxima da mulher, em igualdade de condições com o homem, em todos os campos, é indispensável para o desenvolvimento pleno e completo de um país, o bem-estar do mundo e a causa da

7 Idem, p 215-216. 8 GARCIA, Emerson. Jus cogens e proteção internacional dos direitos humanos. 2016. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/emerson-garcia/jus-cogens-e-protecao-internacional-dos-direitos-humanos Acesso em 28.01.2020 9 Idem. 10 HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço; tradução de Enio Paulo Giachini. 2ª ed – Petrópolis, RJ: Vozes, 2017, p 107 11 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos – 5ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2012, p 284 12 ONU MULHERES. Disponível em http://www.onumulheres.org.br/onu-mulheres/documentos-de-referencia/ . Acesso em 29.01.2020

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paz.”13

realizada em Viena17. Sobre essa linha introdutória da Plataforma, PIOVESAN afirma tratar-se do expresso reconhecimento de que, sem a observância dos direitos das mulheres, não há que se falar em direitos humanos,18 como que sem um o outro não existe ou não se completa.

A CEDAW é reconhecidamente um marco nos esforços da ONU em promover o banimento de todo e qualquer tipo de discriminação entre os sexos e, segundo MAGALHÃES, o artigo 1º da Declaração merece especial destaque uma vez que eleva o direito de igualdade à categoria de direito humano e não somente uma reivindicação Sem dúvida, a Plataforma de Ação de exclusiva e privativa das mulheres, na medida Pequim, em seus 361 parágrafos, esforçouem que aloca a discriminação contra a mulher no -se por discutir, traduzir e consolidar os avanrol de ofensas a própria dignidade humana.14

ços dos cinquenta anos antecedentes no toA Declaração e a Plataforma de Ação cante aos direitos das mulheres, contando Pequim – 50 anos de luta com a assinatura de 189 países-membros. Após o lançamento da pedra fundamenÉ possível afirmar que a Plataforma tal dos direitos das mulheres pela ONU e, de Ação é o maior guia para governos e com o crescente despertar da comunidade sociedade no sentido de implementar prograinternacional para a necessidade de banir mas para promoção da igualdade de gênero toda e qualquer forma de discriminação das e extinção da discriminação, sendo notória mulheres, ocorreram uma série de conferên- sua importância ainda nos dias atuais, quer cias e convenções as quais deram origem à para inspirar, quer para nortear ações de eminúmeros tratados15 determinantes na prepa- poderamento, protagonismo e defesa dos diração do caminho para a Conferência Mun- reitos das mulheres. dial Sobre a Mulher de 1995, dentre as quais O parágrafo 44 do Capítulo III da Platadestaca-se a Conferência Mundial de Direitos forma de Ação destaca 12 áreas críticas que Humanos, realizada em 1993 em Viena, que em seu artigo 18 consagra definitivamente os inspiram preocupação e demandam esforços direitos das mulheres como direitos humanos da comunidade internacional, devendo ocupar posições prioritárias na agenda dos Esinalienáveis, indivisíveis e universais.16 tados. As áreas encontram-se agrupadas da Na mesma linha e intencionalidade, a seguinte forma: Plataforma de Ação de Pequim, realizada Peso persistente e crescente da poem Pequim no quinquagésimo aniversário de breza sobre a mulher; fundação das Nações Unidas, em sua Declaração de Objetivos, reitera e ratifica a inalieDesigualdades e inadequações na nabilidade, indivisibilidade e universalidade educação e na formação profissional e acesso dos direitos da mulher, nos exatos termos desigual às mesmas. da Conferência Geral de Direitos Humanos, 13 Idem. 14 MAGALHÃES, José Carlos de. O mundo com empresa global: aspectos da ordem internacional – São Paulo: Grua, 2016, p 219 15 Há um número expressivo de convenções e instrumentos internacionais que tratam da não-discriminação e dos direitos das mulheres, dentre os quais destacamos: Convenção Americana de Direitos Humanos, São José (1969); Conferência Mundial sobre a Mulher, Cidade do México (1975); II Conferência Mundial Sobre a Mulher, Copenhague (1980); III Conferência Mundial Sobre a Mulher, Nairóbi (1985); Conferência das Nações Unidas sobre meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), que reconhece o papel da mulher na construção e manutenção de um meio ambiente sustentável; II Conferência Mundial de Direitos Humanos, Viena (1993); Convenção Interamericana para Prevenir, P Declaração de Viena, artigo 18: “os direitos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integrante e indivisível dos direitos humanos universais” ONU Mulheres unir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, Belém do Pará (1994). 16 Declaração de Viena, artigo 18: “os direitos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integrante e indivisível dos direitos humanos universais” 17 ONU Mulheres. Documentos de Referência. Disponível em http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2014/02/declaracao_pequim.pdf Acesso em 31.01.2020 18 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos – 5ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2012, p 290

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Desigualdades e inadequações em da Plataforma de Ação, “comunidade intermatéria de serviços de saúde e outros afins e nacional” compreende os governos, as orgaacesso desigual aos mesmos. nizações intergovernamentais, as instituições acadêmicas e de pesquisa e o setor privado. Todas as formas de violência contra a Ou seja, existe uma convocação de toda a somulher. ciedade para envidar seus melhores esforços Consequências para as mulheres, para erradicar as históricas desigualdades e principalmente as que vivem em áreas sob preterimento do direito das mulheres. ocupação estrangeira, de conflitos armados Desperta a atenção a extensão, robusou outros tipos de conflitos. tez, especificação, nível de detalhamento e Desigualdade nas estruturas e políti- amplitude do escopo da Plataforma de Ação cas econômicas, em todas as atividades pro- e disposições nela constantes, cujo Capítulo V comporta não menos que 240 parágrafos dutivas e no acesso aos recursos. destinados exclusivamente a proteção dos diDesigualdade entre mulheres e ho- reitos das mulheres, em suas multifacetadas mens no exercício do poder e na tomada de formas. decisões em todos os níveis. Por fim, há que se destacar que a DeAusência de mecanismos suficientes, claração e a Plataforma de Ação de Pequim, em todos os níveis, para promover o avanço além de sua singular importância, inovaram das mulheres. ao incorporar o conceito de gênero, de emDesrespeito de todos os direitos hu- poderamento feminino e a questão da transmanos das mulheres e sua promoção e pro- versalidade. Sobre esse viés a ONU posiciona-se no sentido de que “a transformação teção insuficiente. fundamental em Pequim foi o reconheciImagens estereotipadas das mulhe- mento da necessidade de mudar o foco da res nos meios de comunicação e na mídia e mulher para o conceito de gênero, reconhedesigualdade de seu acesso aos mesmos e cendo que toda a estrutura da sociedade, e participação neles. todas as relações entre homens e mulheres Desigualdades de gênero na gestão dentro dela, tiveram que ser reavaliados. Só dos recursos naturais e na proteção do meio por essa fundamental reestruturação da sociedade e suas instituições poderiam as muambiente. lheres ter plenos poderes para tomar o seu Persistência da discriminação contra lugar de direito como parceiros iguais aos a menina e violação de seus direitos.19 dos homens em todos os aspectos da vida. A partir da eleição das áreas críticas, as Essa mudança representou uma reafirmação quais desnudam e expõem o desequilíbrio de que os direitos das mulheres são direitos agudo na relação entre os direitos de gêne- humanos e que a igualdade de gênero era ro, o documento segue em seu Capítulo IV uma questão de interesse universal, benefi20 com o desmembramento e individualização ciando a todos”. de cada área, traçando os objetivos estratégicos e consequente rol de ações e medidas que devem ser adotadas pela comunidade internacional para mitigar o problema destacado em cada uma das 12 áreas de criticidade. Vale dizer que, à teor das disposições 19 Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher. Disponível em http://www.onumulheres. org.br/wp-content/uploads/2014/02/declaracao_pequim.pdf Acesso em 01.02.2020 20 Conferências Mundiais das Mulheres. Disponível em : http://www.onumulheres.org.br/planeta5050-2030/conferencias/ Acesso em 01.02.2020

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4.3 A RESOLUÇÃO 1325 DO CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU SOBRE MULHERES, PAZ E SEGURANÇA (2000) Sob o argumento do (i) forte impacto que os desastres naturais e os conflitos armados causam nas mulheres, quer pela fragilidade natural, quer pela falta de recursos para se proteger, agravando, inclusive, as desigualdades; (ii) do fato das mulheres e meninas tornarem-se objeto de violências sexuais em contextos de guerra; (iii) e da relevância e potencial das mulheres na construção e manutenção de políticas de paz, se tiverem a oportunidade de se manifestar, o Conselho de Segurança da ONU, no ano 2000, aprovou a Resolução 1325 que versa sobre mulheres, paz e segurança. O documento estabelece a participação das mulheres na construção da paz, na proteção das violações dos direitos humanos, e na promoção do acesso à justiça e aos serviços para enfrentar a discriminação.21 Na sequência, o Conselho de Segurança da ONU aprovou mais quatro resoluções sobre o mesmo tema as quais, juntamente com a primeira, formam um quadro de maior proteção das mulheres em cenários de conflitos armados. 4.4 A Declaração do Milênio e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio

-se em: (i) Erradicar a extrema pobreza e a fome; (ii) Oferecer educação básica de qualidade para todos; (iii) Promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres; (iv) Reduzir a mortalidade infantil; (v) Melhorar a saúde das gestantes; (vi) Combater a Aids, a malária e outras doenças; (vii) Garantir qualidade de vida e respeito ao meio ambiente e, (viii) Estabelecer parcerias para o desenvolvimento.22 No contexto e sob a ótica do presente artigo, merece especial destaque a promoção da igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres. Para consecução desses objetivos a comunidade internacional elenca uma série de proposições e medidas, dentre as quais destacamos: a completa eliminação de todas as formas de discriminação de mulheres e meninas, bem como toda forma de violência ou práticas nocivas nas esferas pública e privada; a valorização do trabalho doméstico; a participação efetiva das mulheres em todos os níveis de decisão e liderança nas esferas política, econômica e pública; a ratificação do direito ao acesso à saúde sexual, nos termos da Plataforma de Ação de Pequim; a implementação de reformas para dar direito de acesso às mulheres aos recursos financeiros, propriedades, etc. e, por fim, a promoção do empoderamento das mulheres através do uso de tecnologia e fortalecimento das políticas em todos os níveis.

Por fim, ao final do caminho que culminou na criação da ONU Mulheres, temos a Declaração do Milênio e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), adotada em setembro de 2000, na sede das Nações Em que pese a proteção dos direitos Unidas, em Nova York, com prazo para seu aldas mulheres e a igualdade de gênero escance até 2015. tar presente somente nos objetivos 3 e 5 da Frise-se que os Objetivos do Milênio ODM, o Observatório Brasil de Igualdade de (ODM) são frutos das muitas cúpulas multi- Gênero manifesta-se no sentido de que “... laterais instaladas durante a década de 90 so- pela sua natureza transversal, a questão de bre o desenvolvimento humano. A ODM fixou gênero deve ser considerada em cada um oito objetivos que auxiliaram os países a en- dos demais objetivos do milênio, permitindo acompanhar a presença das mulheres nas frentarem os desafios do século XXI. mais diversas áreas setoriais.”23 Os oitos objetivos do milênio resumem21 Paz e Segurança. Disponível em http://www.onumulheres.org.br/areas-tematicas/paz-e-seguranca/ Acesso em 04.02.2020 22 Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Disponível em https://nacoesunidas.org/tema/odm/ Acesso em 04.02.2020 23 Disponível em: http://www.observatoriodegenero.gov.br/eixo/internacional/compromissos-internacionais/odm-1 Acesso em 04.02.2020

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5. A ONU MULHERES – UM PASSO HISTÓRICO Após esse longo, árduo e íngreme caminho, em 2010 foi cria a ONU Mulheres, uma entidade destinada à promover a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres, bem como estimular e apressar o processo no atendimento das necessidades das mulheres em todo o mundo. A ONU Mulheres está sediada em Nova York e possui escritórios regionais em todos os continentes. Ao criar a ONU Mulheres, os Estados Membros da ONU deram um salto rumo à concretização dos objetivos da Organização sobre igualdade de gênero e empoderamento feminino. A criação da ONU Mulheres também surgiu como forma de enfrentar os desafios da falta de financiamento adequado e de uma equipe específica e vocacionada para conduzir os trabalhos de fomento da igualdade de gênero. Para tanto, a ONU Mulheres apoia os governos que envidam esforços na erradicação das desigualdades auxiliando na formulação de leis, políticas e programas que garantam a implementação dos padrões e de fato beneficiem as mulheres e meninas. Soma-se ainda um concentrado esforço da ONU Mulheres para que os Objetivos do Milênio tornem-se uma realidade na vida de mulheres e meninas, com foco em algumas prioridades consideradas estratégicas, a seguir elencadas: As mulheres lideram, participam e se beneficiam igualmente dos sistemas de governança;

Além das prioridades estratégicas, a ONU Mulheres também elegeu um rol de atribuições que ela chama para si e as considera como seu principal papel. São elas: Prestar apoio aos organismos intergovernamentais, tais como a Comissão sobre o Status da Mulher, na formulação de políticas, padrões globais e normas. Auxiliar os Estados Membros na implementação dessas normas, prestando apoio técnico e financeiro adequado aos países que a solicitem e estabelecer parcerias efetivas com a sociedade civil. Dirigir e coordenar o trabalho do sistema das Nações Unidas sobre a igualdade de gênero, bem como promover a prestação de contas, inclusive por meio de acompanhamento regular dos progressos em todo o sistema.25

Há que se reconhecer que ao longo de

muitas décadas e não sem muito, constante e redobrado esforço, a ONU conseguiu significativos avanços na implementação de acordos históricos visando a igualdade de gênero, dentre os quais destacamos a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), dada sua relevância e impacto, culminando com a criação de um órgão exclusivamente vocacionado para proteção dos direitos da mulheres e erradicação de toda forma de desigualdade de gênero, cujos objetivos são orientados pelos tratados e convenções destacados no presente artigo.

Por fim, vale dizer que os esforços da ONU As mulheres têm segurança de renda, traMulheres para atingir os objetivos de igualdade balho decente e autonomia econômica; de gênero e capacitar mulheres e meninas em Todas as mulheres e meninas vivem uma todo planeta se estendem até o presente movida livre de todas as formas de violência; mento e projetam-se para o futuro, à exemplo, mas não limitado ao Plano Estratégico da ONU Mulheres e meninas contribuem e têm Mulheres 2018 -2021, firmado em agosto de maior influência na construção da paz e resili2017, que “apoia a implementação da Declaraência sustentáveis e se beneficiam igualmente ção e Plataforma de Ação de Pequim e contribui da prevenção de desastres e conflitos naturais e para a implementação sensível à questão de gêde ações humanitárias.24 nero da Agenda 2030 para o Desenvolvimento 24 25

Sobre a ONU Mulheres. Disponível em: https://www.unwomen.org/en/about-us/about-un-women Acesso em 04.02.2020 Idem.

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Sustentável.”26

CONCLUSÕES A plena implementação dos objetivos estratégicos e prioritários da Plataforma de Pequim e da ONU Mulheres, que resumem e ampliam todos os avanços das últimas décadas, são de fundamental importância haja visto o potencial de transformar relações desiguais de poder entre mulheres e homens e enfrentar barreiras estruturais e culturais que impedem o progresso.

revela-se um caminho de não retorno, ainda que pese o fato de que a execução das garantias no tocante às igualdades e direitos mostre-se morosa e deficitária.

Nesse sentido, vale lembrar a lição do Ministério Público Federal, em sua cartilha sobre Questões de Gênero e Direitos Humanos: “Implementação de direitos exige postura ativa. Ser cidadã significa agir como Conforme bem assevera PINHEIRO, sujeito de direitos e obrigações, fazendo de “as pautas definidas como prioritárias para sua ação a forma de expressão de sua cidaa promoção dos direitos humanos das mu- dania.”29 lheres traduzem apenas em parte os diverPor derradeiro, frise-se que a garantia sificados aspectos mapeados nas últimas dos direitos humanos e, em especial das mudécadas, contudo revelam com densidade a lheres e meninas, tem reflexos que extraporelevância das mulheres enquanto sujeitos lam os limites do campo do indivíduo, mas políticos na arena de disputa global sobre ramifica-se e produz frutos para o sistema os sentidos do que são e do que devem ser econômico de todas as sociedades. Mulheos direitos humanos e sua função central na res protegidas e empoderadas produzem promoção do desenvolvimento e da ´paz.”27 riquezas, participam e suportam processos Diante do arcabouço de tratados, leis, decisórios; são pilares do desenvolvimento decretos e políticas implementadas ao lon- sustentável, além de emblemas de uma sogo das últimas décadas, vale lembrar as sá- ciedade sã, evoluída, justa e humanizada. bias ponderações de BOBIIO no sentido de que “... o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não é mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los...”28. Assim, ousamos acreditar que de fato o problema no tocante aos direitos das mulheres e meninas já não é de justificar ou fundamentar, mas sim abraçar e implementar. Vis-à-vis o hercúleo esforço da ONU no cenário internacional e das organizações, governos e setores privados, no âmbito territorial, tirar as mulheres e meninas de situações de vitimização, submissão e desigualdade 26 Plano Estratégico das Mulheres da ONU 2018-2021. Disponível em https://www.unwomen.org/en/digital-library/publications/2017/8/un-women-strategic-plan-2018-2021. Acesso em 06.02.2020 27 PINHEIRO, Ana Paula Lobato – Direitos Humanos das Mulheres. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/retrato/ pdf/190327_tema_i_direitos_humanos_das_mulheres.pdf . Acesso em 10.02.2020 28 BOBBIO, Norberto, 1909- A era dos direitos; tradução Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. — Nova ed. — Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. — 7ª reimpressão; p 17 29 Centro de Direitos Humanos/Ministério Público Federal/ Procuradoria Regional da República – 3ª Região/ Escola Superior do Ministério Público da União. CDH. 2005; p 13

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A PROTEÇÃO DA MULHER E O PAPEL DO DIREITO DO TRABALHO Taís de Souza Manoel

Advogada, formada em Direito (2019), Especialização em Conciliação e Mediação (2019/2020), ambos pelo Centro Universitário Eurípedes da Rocha de Marília/ SP – Univem.

Alessandra Carla dos Santos Guedes

Advogada, formada em Direito (2004), Especialização em Conciliação e Mediação (2019/2020), ambos pelo Centro Universitário Eurípedes da Rocha de Marília/ SP – Univem; atuante na área de direito previdenciário; advogada do Sindicato dos Agentes de Segurança Penitenciária do Estado de São Paulo subsede Marília/SP; integrante da Comissão da Mulher Advogada da Subseção Marília.

SUMÁRIO Introdução 1. Evolução Histórica Jurídica do Direito da Mulher 1.1 O Papel da OIT na Defesa dos Direitos das Mulheres 1.2 Dos Direitos da Mulher na Constituição Federal de 1988 1.3 As Mulheres e seus Direitos na CLT 2. A da Desigualdade de Gênero no Mercado de Trabalho 2.1 O Assédio Moral Contra a Mulher no Ambiente de Trabalho 2.2 Uma Batalha em Busca do Combate à Desigualdade de Gênero 3. A Inserção das Mulheres no Mercado de Trabalho Conclusão Referências Bibliográficas.

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RESUMO O presente artigo abordará questões sobre relações entre o gênero feminino, o direito fundamental social ao trabalho, o princípio jurídico da fraternidade e a pós-modernidade que precisam ser evidenciadas a fim de se comprovar sobre o poder de igualdade que vivemos hoje. Trará em pauta as dificuldades que as mulheres enfrentaram para se colocarem no mercado de trabalho em pé de igualdade com os homens e a luta pelos direitos que lhe foram garantidos em nosso país. Um estudo sobre a obra da autora: Olga Maria Boschi de Oliveira, em seu livro intitulado de: Mulheres e o Trabalho foram uma inspiração e uma base bem fundamentada sobre o tema a ser discutido, pois a mesma nos explica de forma clara e precisa que mulheres, crianças e negros foram desprezados com a total evidência da desigualdade e da discriminação, sendo também vítimas de violência e maus tratos. Assim, veremos também o que nos traz a Constituição Federal de 1988, a OIT (Organização Internacional do Trabalho) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que relata o momento em que a mulher ganhou o mesmo direito do homem, no quesito trabalho, no âmbito civil e o que acontece nos dias atuais.

ABSTRACT This article will address the relationship between the female gender, the fundamental social right to work, the legal principle of fraternity and postmodernity that need to be highlighted in order to prove the power of equality that we live today. It will bring to the table the difficulties that women faced to put themselves on the job market on an equal footing with men and the struggle for the rights that were guaranteed to them in our country. A study on the work of the author: Olga Maria Boschi de Oliveira, in her book entitled: Women and Work were an inspiration and a well-founded basis on the topic to be discussed, as it explains to us in a clear and precise way that women, children and blacks were despised with the full evidence of inequality and discrimination, and were also victims of violence and mistreatment. Thus, we will also see what brings us the Federal Constitution of 1988, the ILO (International Labor Organization) and the Universal Declaration of Human Rights of 1948, which reports the moment when women gained the same right as men, in the question of work , in the civil sphere and what happens today.

PALAVRAS-CHAVE Mulheres. Igualdade. Trabalho. Fraternidade. Direito Social.

KEYWORDS Women. Equality. Job. Fraternity. Social Law.

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INTRODUÇÃO Antigamente, na época da revolução industrial não se pensava em direito do trabalho, nem em sua proteção para o trabalhador, nessa época, conservava-se a mulher em um patamar de inferioridade em relação aos homens. Com o tempo a tecnologia foi avançando e as máquinas sendo implantadas para produção. Os trabalhadores viviam em péssimas condições de trabalho sem qualquer auxílio das empresas que prestavam serviço, então eles se mobilizaram para reivindicar direitos. Se para os homens já era difícil, imagina para as mulheres que sofriam discriminação pelas diferenças físicas, a maternidade e a diferença no salário que era bem inferior a do homem, restringindo a mulher apenas aos afazeres domésticos e tão somente cuidando da casa, filhos e marido.

dos conflitos sociais no país, especialmente para as mulheres já que trouxe em seu texto a tão buscada “igualdade” entre homens e mulheres. Essa igualdade, no entanto, encontra-se muito distante da realidade feminina já que as mulheres, de um modo geral, apesar da previsão constitucional de 1988, ainda precisam lutar para alcançar o seu espaço e a garantia de oportunidades em pé de igualdade com os homens.

Feitas essas considerações, o tema proposto para esse trabalho tem como objetivo as questões relativas à discriminação sofrida pelas mulheres, assunto que cada vez nos mostra que não foi superado, de modo particular a proteção da mulher e o papel do direito do trabalho. Demostrar a evolução e as O trabalho é entendido como conjunto conquistas do trabalho feminino, bem como de princípios, regras e instituições atinentes à seus esforços para acabar com a diferenciação relação de trabalho subordinado e situações entre homens e mulheres. análogas, visando assegurar melhores condições de trabalho que estão contidos na CLT, A pesquisa busca analisar as atividades para maioria dos doutrinadores. desenvolvidas pelas mulheres em seu âmbito de trabalho, seus rendimentos em relação Com o passar do tempo o direito ao traao homem, a discriminação em que as trababalho, inclusive à mulher, foi ganhando força lhadoras são submetidas, com especial fulcro e começaram a surgir às primeiras proteções no art. 5º da Carta Magna, que homens e muaos trabalhadores e a Constituição Federal lheres são iguais em direitos e obrigações, e a de 1998 sem dúvida foi um grande marco já forma que os legisladores tratam o tema. experimentado na evolução jurídica brasileira, um modelo democrático de administração

1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA E JURÍDICA DO DIREITO DA MULHER A mulher por muito tempo sempre foi educada a servir, dentro de sua casa, por seu pai ou marido, decorrentemente da herança do nosso país na época colonial, em que as igrejas eram o único lugar para a educação, e as mulheres já eram excluídas delas, o que era ensinado a elas eram as tarefas domésticas, para se dedicar ao seu lar, e as mulheres que não seguiam esse estilo sofriam discriminação, e tinham certa dificuldade em manter o casamento ou uma família, ou o mercado de trabalho. Não bastasse a escolha, era tratada com diferença por conta de sua forma física ser mais frágil que a do homem, sendo ele

quem decide e ela submissa as suas decisões. A ciência não comprovou qual sexo tem superioridade sobre o outro, tendo eles suas funções para reprodução da espécie. Sob a Constituição de 1824 havia escolas para mulheres, mas também era para afazeres domésticos, cânticos e ensino brasileiro de instrução primária. A mulher não podia frequentar a mesma escola que os homens, pois para a igreja poderia ocasionar relacionamentos espúrios, e só o homem tinha direito de ter um ensino mais elevado. Somente no século XX que homens e

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mulheres puderam estudar juntos. O Código Civil de 1916 manteve a ideia conservadora do homem como chefe, limitando a capacidade da mulher, e quando havia discordância entre os dois, prevalecia a decisão do homem. Em seu artigo 242 o CC trata dos atos que a mulher não pode praticar sem a autorização do marido, in verbis:1

polonesa. O próprio artigo 140 da referida Carta era claro no sentido de que a economia era organizada em corporações, sendo considerados órgãos do Estado, exercendo função delegada de Poder Público. Instituiu o sindicato um único imposto por lei, vinculado ao Estado, exercendo funções delegadas de poder público, podendo haver intervenção estatal direta nas suas atribuições. Foi criado o imposto sindical, sendo que o Estado participava do produto de sua arrecadação. Estabeleceu-se a competência normativa dos tribunais do trabalho, que tinha por objetivo principal evitar o entendimento direto entre trabalhadores e empregadores, A greve e o lockout foram considerados recursos antissociais, nocivos ao trabalho e ao capital e incompatível com os interesses da produção nacional.3

Art. 242: A mulher não pode, sem autorização do marido: I - praticar os atos que este não poderia sem consentimento da mulher; II - Alienar ou gravar de ônus real, os imóveis de seu domínio particular, qualquer que seja o regime dos bens (arts. 263, ns. II, III e VIII, 269, 275 e 310); Ill - Alienar os seus direitos Havia várias normas trabalhistas esparsas. reais sobre imóveis de outrem; IV - Contrair Por isso, foi necessária a sistematização dessas obrigações que possam importar em alheação regras, por meio de Decreto-lei n° 5.452, de 1° de bens do casal. de maio de 1943, aprovando a Consolidação das

Leis do Trabalho (CLT). A CLT não é um código,

Não há dúvidas que a opinião da mulher pois não traz um conjunto de regras novas, mas sempre ficava em segundo plano, cabendo apenas reúne as já existentes de forma sistemaapenas ao marido todas as decisões do casal. tizada. Atualmente, no Código Civil de 2002, a A Constituição de 1946 prevê a participamulher tem os mesmos direitos que seu mari- ção dos trabalhadores nos lucros (art. 157, inciso do, só não poderá exercer atos que o cônjuge XII), direito de greve (art. 158) e outros direitos está impedido de realizar sem a assistência da que estavam na norma constitucional anterior. mulher. A lei n° 605, de 1949, versou sobre o repouEm nosso país a política trabalhista bra- so semanal remunerado; a Lei n° 3.207, de 1957, sileira começa a surgir com Getúlio Vargas em trata das atividades dos empregados 13° salário; a Constituição de 1967 manteve os direitos tra1930. O ministério do Trabalho, Indústria e balhistas estabelecidos nas Constituição anterioComércio foi criado no mesmo ano, passando res, no artigo 158; a Emenda Constitucional n° 1, a expedir decretos, sobre profissões, trabalho de 17 de outubro de 1969, repetiu praticamente a das mulheres (1939) etc. Norma Ápice de 1967, no artigo 165, no que diz A primeira Constituição a tratar de Direito do Trabalho foi a de 1934, como nos mostra garantindo a liberdade sindical, a isonomia salarial, o salário mínimo, a jornada de oito horas de trabalho, a proteção do trabalho das mulheres, o repouso semanal, férias anuais e remuneradas2.

respeito aos direitos trabalhistas.

No âmbito da legislação ordinária foram editadas outras leis: a Lei n° 5.889, de 1973, versando sobre o trabalhador rural; a Lei n° 6.019, de 1974, tratando do trabalho temporário; o Decreto-lei n° 1.535, de 1977, dando nova redação A Carta Constitucional de 1 de novembro de ao capítulo sobre férias da CLT. 1937 é decorrente do golpe de Getúlio Vargas. Em 5 de outubro de 1988 foi aprovada a atuEra uma constituição corporativista, inspirada al Constituição, que trata de direitos trabalhistas na Carta del Lavoro, de 1927, e na Constituição 1 Barreto, Ana Cristina Teixeira. Carta de 1988 é um Marco Contra Discriminação. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2010-nov-05/constituicao- 1988>. Acesso em: 05 jan 2020. 2

MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p.10.

3

MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p.133-134.

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nos artigos 7° a 11. Os direitos trabalhistas foram incluídos no Capítulo II, “Dos Direitos Sociais”, do Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, ao passo que nas Constituições anteriores os direitos trabalhistas sempre eram inseridos no âmbito da ordem econômica e social, a Constituição de 1988, também igualou os direitos e obrigação entre homens e mulheres, acabando com a superioridade masculina ao longo do tempo em nosso país, e com a discriminação sofrida pela mulher.4

Com a nova constituição veio o direito à licença gestante de 120 dias, sem prejuízo do emprego ou salário, realização de ações que visassem à proteção do trabalho da mulher, proibição de diferenças de salários, estabelecimento de critérios de admissão e exercício de função em razão do gênero e igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres.

de uma libertação de estereótipo de que as mulheres são sexo frágil e submisso. O trabalho profissional pelas mulheres vem crescendo cada vez mais, porém ainda existe a diferença de salários, entre trabalhadores do sexo feminino e masculino, e também no exercício das mesmas funções.5 Além disso, sabemos que existem sim diferenças biológicas entre homens e mulheres, mas isso não pode ser usado como forma de preconceito e de incapacidade para desenvolver trabalhos semelhantes, o direito precisa continuar buscando promover a igualdade de gênero, a luta deve ser por um respeito mútuo entre homens e mulheres, bem como a efetiva aplicação dos direitos adquiridos por elas, para um desenvolvimento social, econômico, real e pleno em um país que todos ganham.

Os mesmos problemas que afligiam as mulheres no período antes da Revolução Industrial Hodiernamente, sabe-se que houve vá- continuam a limitá-las na sociedade pós-Revolurios progressos e o avanço é visível, porém ção em diversos aspectos.

tem muitas conquistas a serem realizadas ainda, principalmente porque muitas pessoas acham que esse assunto mulher e trabalho já foi solucionado e está resolvido, e pelo contrário ainda existe diferenciação em pleno século XXI. Precisamos de mudanças de valores,

A sociedade moderna evolui a todo instante e as alterações normativas devem ser feitas a fim de regulamentar e organizar a sociedade, possibilitando o bem estar social e efetivação do princípio da igualdade e dignidade da pessoa humana.

1.1.DO PAPEL DA OIT A OIT foi criada em 1919 como parte do Tratado de Versales8, com o final da Primeira Guerra Mundial, onde foram colocadas normas de proteção à mulher, como a proibição do trabalho noturno, a vedação de trabalho em minas subterrâneas, e proteção quando estiverem grávidas. O trabalho da OIT é promover um trabalho digno, produtivo onde não tenha nenhuma forma de discriminação e se obtenha um trabalho em igualdade, seguro com uniformidade aos trabalhadores, seja o trabalho formal, informal, autônomo, ou em domicílios privados onde as mulheres predominam. Sempre houve uma preocupação em relação ao trabalho da mulher e a OIT sem4 5

pre promoveu ações para que seu trabalho seja realizado em igualdade com as normas, incluindo a maternidade e seu papel reprodutivo. Entretanto a principal divergência para a aplicação dessas normas na prática é a falta de conhecimento de seus direitos, sendo a divulgação um meio para que as mesmas tomem ciência para impulsionar a igualdade de gênero e a justiça social, estando sempre informada e atualizada com as constantes mudanças que a sociedade tem, moldando seu futuro, sendo responsável pela aplicação de normas internacionais elaboradas pelas convenções anuais que, sendo ratificadas, passam a fazer parte do ordenamento jurídico.

MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 169-201. MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 438.

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As Convenções e Recomendações Internacionais do Trabalho desempenham um papel importante na promoção da igualdade porque representam um consenso internacional e tripartido sobre normas mínimas. Embora geralmente estas normas se apliquem tanto a trabalhadores como trabalhadoras, algumas estabelecem direitos específicos das mulheres trabalhadoras e da igualdade de gênero, que devem ser respeitadas e seguidas em todos os programas da OIT. […] Estas normas respeitam à igualdade de remuneração, à igualdade de oportunidade e de tratamento entre homens e mulheres no trabalho, à proteção da maternidade, aos trabalhadores com responsabilidades familiares, e ao trabalho a tempo parcial e no domicílio.6 A OIT tem em sua composição três órgãos: o Conselho de Administração e a Repartição Internacional do Trabalho, a Conferência ou Assembleia Geral, que faz a deliberação da OIT. As reuniões são feitas todo ano, no mês de junho, em 7Genebra, não sendo uma regra, podendo ser realizada em outros países.

Sendo que na Conferência participa cada representante de seu país dos Estados membros, e são discutidas diretrizes básicas dentro da OIT, a função executiva quem faz é o Conselho de Administração que é composto de empregados e empregadores, e representantes do governo, onde são decididos os dias e locais das reuniões. A vigência internacional de uma convenção, geralmente de 12 meses, após aprovada o governo do estado membro deve submetê-la no prazo de 18 meses não podendo tal período ser ultrapassado.

As normas trabalhistas no Brasil tiveram lugar nas Constituições brasileiras de 1891,1934, e 1937 e também o Código Civil de 1916 garantindo as relações de trabalho. A Consolidação corresponde a um estágio no desenvolvimento do processo Jurídico. Entre a compilação ou coleção de leis e um Código – que são respectivamente, os momentos extremos de um processo de corporificação do direito – existe a consolidação, que é a fase própria da concatenação dos textos e da coordenação dos princípios […]. Esse o significado da Consolidação, que não é uma coleção de leis, mas a sua coordenação sistematizada. A matéria contida na CLT, após várias modificações ao longo dos anos ainda está em vigor. A proteção do trabalho da mulher encontra-se no Capítulo III da Consolidação das Leis do Trabalho e estabelece no Artigo 372, que “os preceitos que regulam o trabalho masculino são aplicáveis ao trabalho feminino, naquilo que não colidirem com a proteção especial instituída por este Capítulo”. (Nesse caso está se referindo ao artigo 5º da Constituição Federal que elucida que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, no inciso I); impondo a proteção do mercado de trabalho da mulher, no Artigo 7º, inciso XX); fala da proibição de diferença de salário, no exercício da função e, de critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil. A lei nº 7.855 de 1989 foi alterada devido a novos direitos adquiridos pelas mulheres com a Constituição de 1988, que efetivou alterações na CLT.8

A OIT sempre teve uma preocupação com as mulheres desde a sua primeira convenção em 1919, que tratava sobre a maternidade, no século XX as mulheres eram consideradas mais frágeis que os homens e por esse motivo não poderiam desempenhar funções específicas, podendo trazer risco a sua saúde e futuramente a sua reprodutividade. 6 OLIVEIRA, Olga Maria Boschi Aguiar de. Mulheres e trabalho: desigualdade e descriminalização em razão de gênero - o resgate do princípio da fraternidade como expressão da dignidade da pessoa humana. Lumen Juris. 2016. 7 O Tratado de Versalhes (1919) foi um tratado de paz assinado pelas potências europeias que encerrou oficialmente a Primeira Guerra Mundial. Após seis meses de negociações, em Paris, o Tratado foi assinado como uma continuação do armistício de Novembro de 1918, em Compiégne, que tinha posto um fim aos confrontos. 8

MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 618.

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1.2. DOS DIREITOS DA MULHER NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Ao longo do tempo a superioridade do homem em relação à mulher era totalmente visível e divulgada em nosso país, não somente em âmbito doméstico, mas também no cenário público com as diferenças de salários, sem contar a participação política da mulher que sempre foi ignorada em nosso país, porém a atual Constituição Federal trouxe a igualdade de direitos e obrigações, ensejando uma condição de igualdade entre ambos os sexos, no âmbito de trabalho e o familiar também. Nossa Constituição Federal de 1988 assegura em seu artigo 5º, inciso I que a mulher tem plena igualdade de direitos e obrigações como o homem e afirmou essa igualdade no parágrafo 5º do Artigo. 266, sobre a sociedade conjugal, se tratando de direitos trabalhistas, com o objetivo de igualdade e não a discriminação, diferenças salariais, contratações referentes a idade, cor ou sexo e seu inciso

XXX do artigo 7º da Carta Magna. O movimento de mulheres, que havia ampliado seu protagonismo no final dos anos setenta, lutando para a melhoria das condições de vida, teve sua atuação política fortalecida na criação, em 1985, do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) e na participação no processo constituinte de 1988. O CNDM tornou-se um marco significativo na trajetória da conquista de direitos básicos das mulheres e no fortalecimento da democracia participativa. Esse processo, protagonizado pelo chamado lobby do batom, formado pelo CNDM, pelas feministas e pelas 26 deputadas federais constituintes, obteve importantes avanços na nova Constituição Federal, ao garantir igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres perante a lei.

1.3. A MULHER E SEUS DIREITOS NA CLT Segundo o Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região, mais de 10 milhões de mulheres desenvolvem algum tipo de atividade remunerada no Brasil, de acordo com dados do IBGE. No Distrito Federal, segundo o Dieese10, elas já são cerca de 590 mil, quase a metade de toda a força de trabalho. A participação feminina no mercado cresceu 11% nos últimos 10 anos, fruto do avanço cultural iniciado na década de 70, quando as mulheres começaram a buscar independência financeira e realização profissional. A legislação brasileira também acompanhou essa mudança. A Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), apesar de ser de 1943, destina um capítulo com 27 artigos em vigor, destinados à proteção do trabalho da mulher.

10ª Região, os direitos assegurados na lei ordinária (CLT e outros textos correlatos) não são regras estanques e bastantes a garantir as necessidades da mulher no contexto das relações de trabalho. Segundo ela a garantia maior está nos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. Na medida em que o artigo 5º, inciso I, da Constituição Federal, estabelece que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações nos termos desta Constituição, Princípio da Isonomia derivado princípio da Dignidade da Pessoa Humana (Artigo 1º, inciso III da CF), as decisões devem se pautar na concretização das normas do direito constitucional.9

Ainda podemos verificar nos entendimentos do artigo publicado no TRT 10 sobre o tema em questão que: “Quando falamos em gênero, ainda são muito debatidas nos tribunais, em especial Para a desembargadora Elaine Vasconce- na Justiça do Trabalho, já estão se pautando por los (2013), do Tribunal Regional do Trabalho da esta visão constitucionalista, para além das normas engessantes da lei ordinária. A questão de 9 DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio Econômico) é uma instituição de pesquisa, assessoria e educação do movimento sindical brasileiro. O DIEESE atua em temas relacionados ao mundo do trabalho e às políticas públicas, desenvolvendo: Assessoria às negociações e pesquisas, estudos e estatísticas e educação e formação sindical.

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gênero vai muito além das questões trabalhistas. essa previsão foi a de 1934 e, em seguida, É uma concepção cultural”, pontua.10 veio a CLT, em 1943.

Por fim, a juíza do Trabalho Flávia Fragale (2013), nos diz que: a criação dessas normas específicas para a mulher é fruto de um contexto protecionismo que permeou o texto celetista. Esse foi um reflexo das leis que surgiram na Europa na época da Revolução Industrial quando havia muita contratação e exploração da mão de obra feminina, que acabou por inspirar o legislador brasileiro a produzir normas semelhantes, a fim de evitar que os mesmos abusos acontecessem em nosso País. A primeira Constituição do Brasil a ter

Essas afirmações nos mostram que há décadas as mulheres sofreram explorações e violências, e quando nosso país foi elaborar lei específica que trata sobre o mercado de trabalho em relação às mulheres, não cometeram o erro que houve na Europa, onde as mulheres não tinham seus direitos garantidos e tampouco um trabalho digno, mas houve o cuidado que o assunto requer.

2. AS CONSEQUÊNCIAS DA DESIGUALDADE DE GÊNERO NO MERCADO DE TRABALHO Para combater esse problema, é essencial entendermos quais os principais fatores que o precedem. Ele se origina em uma cultura machista que desperta crenças e associações implícitas nos profissionais, inclusive nas próprias mulheres. Há uma ideia (obviamente falsa) de que as mulheres são menos comprometidas ou não possuem as competências exigidas para ocupar cargos de liderança.

Dessa forma, profissionais do sexo feminino possuem menos oportunidades de seguir a car-

reira que desejam. É necessário um nível de qualificação mais alto para ocupar o mesmo

cargo de um homem, uma vez que a capacidade da mulher é colocada à prova com mais frequência. Além disso, dentro de uma organização elas estão mais propensas a sofrerem assédio por parte dos seus colegas.

2.1 O ASSÉDIO MORAL CONTRA A MULHER NO AMBIENTE DE TRABALHO Embora o princípio da igualdade esteja positivado tanto na Constituição Federal, quanto na legislação infraconstitucional e ainda que haja uma vasta legislação visando garantir a evolução dos direitos das mulheres no mundo do trabalho, na prática, a trabalhadora brasileira sofre discriminação em razão das relações de gênero, de modo que o princípio da igualdade não se materializa, o que é demonstrado através de dados estatísticos abordados.11

ções de gênero continuam prejudicando as mulheres trabalhadoras em termos de salários, ascensão profissional ou oportunidades de trabalho, sendo a trabalhadora constantemente preterida em razão de suas responsabilidades familiares”. Além disso, as relações de gênero também são o predominante motivo para que a trabalhadora seja a principal vítima de discriminação no ambiente de trabalho.

Maria Coutinho entende que: “as rela-

Nos estudos da autora já acima citada, a

10 B.N. imprensa@trt10.jus.br.2013. Disponível em < http://trt10.jusbrasil.com.br/noticias/100383526/mulheres-contam-com-protecao-na-clt > Acesso em 23 de janeiro 2020. 11 COUTINHO, Maria Luiza Pinheiro. Discriminação no Trabalho: Mecanismos de Combate à Discriminação e Promoção de Igualdade de Oportunidades. OIT Igualdade Racial, 2003, p. 39-40.

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Organização Internacional do Trabalho sobre O autor ainda ressalta: os mecanismos de combate à discriminação Por inferência lógica, sendo as mulheres e promoção de igualdade de oportunidades, a mesma incluiu o assédio moral como práti- as que ocupam as colocações mais precárias ca discriminatória em razão de gênero e as- do mercado de trabalho, as que sofrem com discriminação baseada na ideia de que hosim o justifica:12 mens são mais fortes e que, portanto, podem Embora estudado como violência moral, impor suas ordens a partir da posição supeo assédio moral laboral é incluído neste estu- rior, conclui-se que elas também são as que do como uma modalidade de discriminação mais usualmente são levadas a suportar os em face do gênero, não apenas porque este transtornos do assédio moral no transcurso se manifesta através de relações de gênero, da relação de trabalho.14 como também aparece fortemente articulado Em razão da divisão sexual no trabalho, com outras formas de discriminação. Notea mulher é vítima mais frequente de assédio -se ainda que a violência moral seja percebida como instrumento por meio do qual se pra- moral, pois é concebida como obstáculo à retica a discriminação. Muitas vezes, fica difícil alização dos fins empresariais por não estar distinguir uma conduta de assédio moral de integralmente dedicada ao trabalho em razão uma conduta discriminatória, já que a primei- das tarefas domésticas e familiares que são ra, além de provocar desigualdades de opor- de sua responsabilidade e diminui o tempo tunidades e tratamento entre trabalhadores, disponível ao trabalho, o que, não ocorre com apresenta-se, quase sempre, como um os homens. Nesse sentido, a autora Regina15 Rufino expõe para um melhor entendimento: modo de manifestação da discriminação. Considerando que a mulher trabalhadoAssim, o Ministério do Trabalho e Emprego considera que as trabalhadoras mulheres ra tem que dividir suas responsabilidades no são o grupo mais atingido pelo assédio moral. trabalho com as tarefas domésticas e de mãe, Além disso, a violência psicológica da traba- muitas vezes é vista como um “problema” para lhadora brasileira pode ser aferida também o empregador, um obstáculo à alta produtiviem razão de que o número de concessão de dade e disposição necessária ao crescimento benefícios de auxílio-doença acidentário em da empresa. Com intuito de livrar-se desse razão de doenças psicológicas às trabalhado- “problema”, muitos empregadores passam a ras mulheres é superior a este mesmo número agir com violência contra a mulher, impondo metas impossíveis de ser alcançadas, além de em relação aos trabalhadores homens. humilhá-las quando não atingem os objetivos 13 Para Uchôa os trabalhadores homens impostos pela empresa, ou simplesmente irotambém sofrem assédio moral, mas são as nizando quando se ausentam para tratar de mulheres as vítimas mais frequentes dessa enfermidades dos filhos menores ou outras prática dada a “sua condição de fragilidade condições fisiológicas peculiares, o que confidiante do predomínio da cultura sexista e da gura o assédio moral vertical descendente. posição vulnerável em que normalmente a Em razão dessa herança cultural, muitas trabalhadora se vê imersa no ambiente labotrabalhadoras são discriminadas pela simples ral”. condição de ser mulher e, principalmente, por 12 Art 5o. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição. 13 UCHÔA, Marcelo Ribeiro. Mulher e Mercado de Trabalho no Brasil: Um Estudo sobre Igualdade Efetiva Baseado no Modelo Normativo Espanhol. São Paulo: Editora Ltr, 2016, p. 102. 14 UCHÔA, Marcelo Ribeiro. Mulher e Mercado de Trabalho no Brasil: Um Estudo sobre Igualdade Efetiva Baseado no Modelo Normativo Espanhol. São Paulo: Editora Ltr, 2016, p. 94. 15 RUFINO, Regina Célia Pezzuto. Assédio Moral à mulher trabalhadora. Florianópolis: Revista de Psicologia CESUSC, n. 2, 2008.

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ser uma mulher trabalhadora transpondo o limite do espaço público e de carreiras que antes eram privilégios masculinos. A rejeição da mulher nesses espaços muitas vezes transparece no assédio moral sofrido por essas trabalhadoras. Para um melhor entendimento sobre o assunto pautado, daremos um destaque de ao acórdão 0000370-84.2013.5.04.013 prolatado em 2015 pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região em uma ação ajuizada por uma trabalhadora da CORSAN16, que sofria assédio moral discriminatório por parte de sua chefia, então, o chefe a deixava sem tarefas para executar por entender que o serviço a ser realizado não era trabalho para ser feito por uma mulher. Além da negativa de tarefas, a prova testemunhal produzida comprovou que o chefe frequentemente se referia à obreira como “biscate” (nomes de baixo calão) bem como lhe isolava dos demais colegas de trabalho: A sentença não comporta reforma. A situação que decorre da prova dá conta que o superior hierárquico da autora, Sr. Edson Terra, agia de forma abusiva e discriminatória com relação à autora, mediante insultos machistas e isolamento. [...] Confirma que a prática discriminatória era corriqueira na ré o fato de que, além do Sr. Edson Terra não gostar de mulheres trabalhando na rede, o fato do gestor José Olímpio referir-se à autora como “biscate”, conforme relatou a testemunha ouvida á convite da autora. Assim, constatasse que houve, de fato, violação da honra e da imagem da autora, ensejando a indenização por danos morais. 17 Ou seja, a trabalhadora se especializou para uma carreira, estudou para passar num concurso público, conseguiu assumir um cargo público e, ainda assim, ficou impedida pela

sua chefia de exercer a sua profissão, por esta entender que o trabalho a ser realizado não era para ela, sendo desqualificada e teve todo seu esforço desmerecido por ser mulher. O assédio moral sofrido por esta trabalhadora é reflexo direto das relações de gênero que historicamente ditaram que o papel da mulher era em casa, servindo ao marido e aos seus filhos e que por este motivo o mundo do trabalho e, principalmente, algumas carreiras, não lhe eram acessíveis, além de lhe atribuir um papel inferior e de submissão ao homem, ao mesmo tempo em que permitia que o homem ditasse a uma mulher o que ela poderia ou não fazer, e quais eram as suas capacidades e seus limites. Buscamos então, demonstrar que do mesmo modo que as relações de gênero refletiram diretamente na inserção da mulher no mercado de trabalho e refletem nas condições de trabalho que a mulher encontra, aferidas pelos dados estatísticos trabalhados, as relações de gênero também estão presentes no dia a dia da trabalhadora brasileira, no modo em que a mesma é concebida e tratada em seu ambiente de trabalho, refletindo em situações de assédio moral. Sendo assim, enquanto as desigualdades persistem, faz-se importante proteger a mulher das discriminações sofridas. Por esse ângulo, Marcelo Ribeiro Uchôa 18 defende que: “as discriminações sofridas pelas mulheres, inclusive no que toca à discriminação por meio do assédio moral, trazem a necessidade de conferir à trabalhadora mulher um tratamento jurídico diferenciado do dado aos homens, possibilitando-lhes sanar o processo discriminatório sofrido”. Ele esclarece que esse tratamento diferenciado não pode implicar na redução das oportunidades das mulheres no mercado de trabalho, o que tradu-

16 Sociedade de economia mista responsável pelo abastecimento de água tratada no estado do Rio Grande do Sul, abrangendo a mais de sete milhões de gaúchos. Sua sede está localizada em Porto Alegre, a Rua Caldas Júnior, n° 120, 18° andar. 17 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho. Acórdão nº0000370- 84.2013.5.04.0131, da 4ª Região do Estado do Rio Grande do Sul 13 dez.2013. Disponivel em: <http:///www.trt4.jus.br/portais/trt4/sistema/consulta-processual/ pagina-Processo?numeroProcesso= 0000370-+84.2013.5.04.0131>. Acessado em 10 nov 2019. 18 UCHÔA, Marcelo Ribeiro. Mulher e Mercado de Trabalho no Brasil: Um Estudo sobre Igualdade Efetiva Baseado no Modelo Normativo Espanhol. São Paulo: Editora Ltr, 2016, p. 105.

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ziria uma nova discriminação por via indireta, a CF/88 nos dá a garantia de igualdade entre reforçando a repressão à participação femini- homens e mulheres. na no mercado de trabalho. Esclarece-se que o ativismo do JudiciáO combate à desigualdade de gênero rio possui quatro campos de atuação e pensamento, os chamados ativismos contra majoriNos tempos de hoje, ainda vivemos tário, jurisdicional, criativo e remedial. Assim, em uma democracia que “tenta” assentar a o primeiro é compreendido como a negativa diversidade à participação das mulheres no dos tribunais em aplicar decisões governamercado de trabalho, pois elas ainda estão mentais; já o segundo consiste em uma maior em uma constante luta para que a igualdade intervenção do Judiciário, visando a atuar de entre elas e os homens seja reconhecida de modo a suprir a falta de lei ou determinações; fato, onde os cargos que eles ocupam pospor sua vez o criativo consiste em utilizar-se sam ser preenchidos também por mulheres da interpretação das normas jurídicas, objetisem que haja tantas críticas e desvalorizavando a criação de novos direitos; finalmente, ção. o remedial traduz-se na obrigação do poder 19 Segundo Habermas, é essencial a Judiciário de criação de políticas públicas e participação efetiva dos cidadãos na demo- órgãos. cracia, e somente eles, quando envolvidos, Podemos observar então que o Direito poderão lutar pelos seus direitos, e no caso não é estático, ele deve acompanhar as alteradas mulheres, pela igualdade. A teoria de Hações da sociedade, portanto, mesmo que não bermas, apesar de não considerar a divisão exista uma determinada norma para aquela sisexual do trabalho, é um dos primeiros estutuação excepcional, incumbe ao poder Judicidos a propor uma inclusão e uma democracia ário dar uma resposta e atender aos anseios da participativa. população da melhor maneira. Nesse contexA função do Estado perante a socieda- to, diante da desigualdade de gênero e pelos de, como podemos perceber no decorrer do mais diversos modos de violência enfrentados tempo, modificou-se, e atualmente a ordem pelas mulheres, será função do Estado garaneconômica é descrita como neoliberal, pos- tir a promoção da justiça social, principalmensuindo o Estado o dever de promover e ga- te a eficácia dos direitos fundamentais, não rantir o bem-estar de todos os cidadãos como apenas na mera previsão no corpo legislativo. já podemos observar nos tópicos abordados mais acima nesse trabalho, onde falamos que

3. A INSERÇÃO DAS MULHERES NO MERCADO DE TRABALHO Neste tópico falaremos da importância que as mulheres ganharam no mercado de trabalho, um cenário do qual elas passam de filhas, esposas, mães e donas de casa a integrar com muita intensidade funções que até tempos atrás, somente os homens exerciam. Hoje, podemos observar que temos mulheres até nas boleias de caminhões, tocando a vida e promovendo o sustento de sua família com muito amor e muita garra, mostrando-nos que o lugar de uma mulher pode ser alcançado de diversas formas, basta ter oportunidade.

Apesar das intensas atividades realizadas, de sua contribuição e colaboração nos diversos eventos da história nacional e internacional, as mulheres não foram inicialmente, reconhecidas como sujeito titular de direitos, o que limitou a garantia e o exercício do princípio de liberdade e igualdade, principalmente, em relação aos direitos políticos civis que eram quase inexistentes, mesmo com a positivação dos direitos positivados, que foram insuficientes para evitar as desigualdades sociais, que entre diversos fatores impediram,

19 HABERMAS, Jürgen. Era das transições. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 53.

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por exemplo, a igualdade entre os gêneros. Desta forma, podemos analisar que este cenário também não garantiu de forma efetiva a igualdade de oportunidade e de tratamento no emprego e na profissão. O direito de acesso à educação também era diferenciado, onde meninos e meninas eram tratados de forma diferente privilegiando a superioridade masculina. Com entrada do século XXI, as inovações tecnológicas, o capitalismo, e em si globalização vemos a impulsão e especialização das mulheres para o mercado de trabalho. Atualmente, podemos acompanhar cada dia mais nas lideranças de grandes empresas e em profissões técnicas mulheres ganhando espaço.

na maioria das vezes religiosas, o que acabou repercutindo na sua inserção no mercado de trabalho em condições distintas daquelas oferecidas aos homens, o que conhecemos como: divisão sexual no trabalho. Podemos então dizer, que a possibilidade concreta da relação complementar entre ambos os sexos, juntamente com a formação de um núcleo familiar democrático e formação da sociedade venham garantir a efetivação do clamor de uma sociedade justa que podem ser trilhados pela recente história cultural de nossa sociedade, juntamente, pela produção teórico- conceitual sobre as diferenças e uma melhor clareza sobre o processo de desigualdade entre bons trabalhadores e trabalhadores de sexo opostos que veio acontecer somente agora no início do novo século. Apesar, então, de não ser um fato, é sim, uma tendência de se tornar justo anos a fio em busca de igualdade profissional.

Para Teixeira20 os últimos cinquenta anos o contínuo crescimento da participação feminina, é explicado por uma combinação de fatores econômicos e culturais. “Primeiro, o avanço da industrialização transformou a estrutura produtiva, a continuidade do proO número de mulheres em cargos imporcesso de urbanização e a queda das taxas tantes cresceu bastante nas empresas. de fecundidade, proporcionando um aumenProvavelmente num futuro próximo o to das possibilidades das mulheres encontraperfil etário da População Economicamente rem postos de trabalho na sociedade”. ativa feminina será igualado, pois há um cresÉ necessário que a própria mulher en- cimento da taxa de atividade para as mulheres tenda a necessidade de separar casa e o tra- em todas as faixas etárias. De acordo com as balho ou até mesmo vida pública e privada, estatísticas há mais mulheres que homens no valorizando então sua participação constante Brasil, por isso há mais empregos para elas, o no complemento da renda salarial familiar, in- que se deve também a maior dedicação desclusive, em muitos casos, deixam de ser com- tas para desempenhar suas funções. plementar para se tornarem a única renda que sua família tem mensalmente, partindo do princípio de se analisar os grandes índices de abandono do lar por parte dos maridos e da falta de ensino e participação dos filhos em um mercado de trabalho, cada vez mais complexo para jovens que não têm experiência profissional. Tradicionalmente, às mulheres, independentes de sua classe social ou etnia, sempre lhes foram impostas atividades domésticas, ditas naturais, apoiadas em explicações que buscavam tal justificativa com base em aspectos biológicos, no caso, a reprodução e 20 TEIXEIRA, Zuleide Araújo. As Mulheres e o Mercado de Trabalho. Disponível em :<http://www.universia.com. br/html/materia_daba.html>. Acesso em 11 janeiro 2020.

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CONCLUSÃO No decorrer deste artigo, podemos observar que a mulher vem ganhando um grande espaço no mercado de trabalho e também um enorme reconhecimento de que trabalhar estudar, cuidar da casa, de filhos, é plenamente possível e ainda ter uma vida social ativa. Mesmo com todo esse reconhecimento ainda há uma constante luta para que haja igualdade entre homens e mulheres neste âmbito, em um mundo que homens ainda gritam em alto e bom som para uma mulher: - Vá pilotar um fogão! tentando de todo o modo fazer com que ela se sinta inferior a ele, porém, temos mulheres pilotando sim: caminhões, aviões, submarinos e indo até trabalhar na NASA21, mostrando que elas podem sim, ser algueḿ sem necessariamente estar só em afazeres domésticos. No Brasil, até meados do século 20, a mulher não tinha liberdade de escolha profissional, devendo o marido autorizá-la a laborar. Conforme a ótica patriarcal, as mulheres deveriam corresponder às expectativas masculinas, elas eram educadas para exercer trabalhos domésticos, e foi apenas a partir da Idade Moderna, com o Renascimento, que as mulheres começaram a exigir sua liberdade e autonomia. Foi somente com a Revolução Industrial, no entanto, que a mão de obra feminina foi inserida em grande escala, todavia, não por motivos nobres, como a defesa da igualdade, apenas por ser considerada uma mão de obra barata. Sendo assim, a igualdade não deve ser vista em seu aspecto formal, mas sim no material, de modo que sejam respeitadas as condições especiais dos grupos sociais considera-

dos como as minorias, que lutam diariamente por essa mesma igualdade e pela devida efetivação de seus direitos. Foi analisado também que as mulheres ainda são sujeitadas ao assédio moral quando tentam exercer uma função cuja sociedade ainda vê como uma tarefa a ser exercida somente por homens, embora a Carta Magna proponha em ser artigo 5º que homens e mulheres são considerados iguais perante a lei, esse aspecto ainda não é efetivado em meia tanta modernidade em que vivemos hoje. Para concluir, aduzimos então, que vivemos uma grande luta para que haja a concretização das leis e dos princípios que regem todo ordenamento, principalmente em relação à mulher, faz-se imprescindível à atuação do Estado por meio do ativismo do Judiciário e que, a igualdade de gêneros é um problema de toda a sociedade, que afeta, por conseguinte, não apenas as mulheres, mas também meninas, meninos, homens e idosos. Trata-se de um impedimento da verdadeira aplicação dos direitos humanos, fundamentais e trabalhistas, visando que a mulher não precisa viver entre uma constante escolha, como por exemplo: ser mãe ou trabalhar, ela tem a capacidade de cuidar dos filhos e exercer a profissão que seja de sua preferência, onde o Direito deverá procurar essa aproximação para que a igualdade por fim seja algo na luta contra a cultura machista em que vivemos.

21 NASA é uma agência do Governo Federal dos Estados Unidos responsável pela pesquisa e desenvolvimento de tecnologias e programas de exploração espacial. Sua missão oficial é “fomentar o futuro na pesquisa, descoberta e exploração espacial”.

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REFERÊNCIAS BARRETO, Ana Cristina Teixeira. Carta de 1988 é um Marco Contra Discriminação. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2010-nov-05/constituicao1988>. Acesso em: 05 jan 2020. BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho. Acórdão nº0000370- 84.2013.5.04.0131, da 4ª Região do Estado do Rio Grande do Sul 13 dez.2013. Disponivel em: <http:///www.trt4.jus.br/ portais/trt4/sistema/consulta-processual/pagina-Processo?numeroProcesso= 0000370+84.2013.5.04.0131>. Acessado em 10 nov 2019. CARMONA, Georgia Lage Pereira. A propósito do ativismo judicial: super poder judiciário? Revista Âmbito Jurídico.com. Disponível em: <ambitojuridico.net>. Acesso em: 26 nov de 2019. COUTINHO, Maria Luiza Pinheiro. Discriminação no Trabalho: Mecanismos de Combate à Discriminação e Promoção de Igualdade de Oportunidades. OIT Igualdade Racial, 2003. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 10. ed. São Paulo: Ltr, 2011. DIAS, Maria Berenice (2010). Homens e Mulheres: a isonomia conquistada, in Revista Virtual Direito Brasil- Volume 4 – nº 2 – 2010. Disponível em <https://www.direitobrasil. adv.br/arquivospdf/revista/revistav42/artigos/Cnpq20102.pdf >. Acesso em 14 dez 2019. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2010. FERNANDES, Marco Antônio Oliveira. Constituição da República Federativa do Brasil. 20. ed. São Paulo: 2014. HABERMAS, Jürgen. Era das transições. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 22/27. ed. São Paulo: Atlas,2006/ 2011. OIT,Organização Internacional do Trabalho. ABC dos direitos da mulheres, 2007.Disponívelemhttps://www.ilo.org/public/portugue/region/eurpro/lisbon/pdf/abc.pdf Acesso em 10 fevereiro 2020. OLIVEIRA, Olga Maria Boschi Aguiar de. Mulheres e trabalho: desigualdade e descriminalização em razão de gênero- o resgate do princípio da fraternidade como expressão da dignidade da pessoa humana. Lumen Juris. 2016 PEREIRA, ANDRESSA RIBAS. O assédio moral nas relações de emprego sob a perspectiva das relações de gênero. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/174613/001061412. pdf?sequence=1> acesso em 22/01/2020. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional. 12. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2011.

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CRIMES CONTRA A HONRA NO ÂMBITO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Tulio Emer Damasceno

SUMÁRIO 1. Introdução 2. Daviolência Moral 2.1 Da Violência Moral na Vida da Mulher 2.2 Das Consequências da Violência Moral para a Vítima 2.3 Dos Tipos de Honra 3 Dos Delitos 3.1 Da Calúnia 3.2 Da Difamação 3.3 Da Injúria 4. Dos Crimes Contra a Honra como Ação Penal Pública 5. Das Medidas Protetivas de Urgência 6. Do Ônus da Prova no Processo Penal 7. Da Aplicabilidade do Juizado Especial Criminal 8. Da Reparação Civil 9. Das Considerações Finais Referências

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RESUMO O presente trabalho visa unificar as previsões legais dos crimes contra a honra a desfavor da mulher no âmbito doméstico e suas consequências tanto legais para o autor quanto práticas para a vítima, consequências estas tão ou mais gravosas quanto as dos crimes contra a vida ou contra a integridade física. Para tanto, trouxemos no presente trabalho as previsões legais do ordenamento jurídico pátrio, pesquisas da violência moral na prática, doutrina e jurisprudências.

PALAVRAS-CHAVE Crimes, honra, mulher, violência, consequências.

ABSTRACT The present work aims to unify the legal predictions of crimes against honor to the disadvantage of women in the domestic sphere and its consequences, both legal for the author and practical fot the victim, consequences that are as more serious as those of crimes against life or against physical integrity. To this end, we bring in this work the legal provisions of the national legal system, research on moral violence in practice, doctrine and jurisprudence.

KEYWORDS

Crimes, honor, women, violence, consequences

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1. INTRODUÇÃO A proteção à mulher tem sido alvo de grandes manifestações na sociedade pátria, de modo que com a Lei Maria da Penha, se tem buscado cada vez mais punir os agressores, prestar assistência à vítima e diminuir o índice de agressores contra a mulher no âmbito doméstico, sendo uma, se não a principal violência que existe e que traz graves consequências para a mulher, a violência moral. Para tanto, vemos a necessidade de estudar a lei pátria, a fim de unificar todos os direitos da mulher com relação à violência moral no âmbito doméstico e familiar. A fim de atingir o êxito das pretensões do presente trabalho, veremos como é elevado o índice de ocorrências de violência moral

contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, bem como suas gravíssimas consequências. Veremos também quais são os delitos contra a honra contra a mulher, tanto no nosso ordenamento jurídico quanto na doutrina, de modo que veremos como são diversos os tipos de ofensas que são condenadas pelo ordenamento jurídico pátrio, bem como quais são os tipos de honra reconhecidos e como eles poderiam ser lesionados pelo agressor. Veremos tambémcomo a jurisprudência e o legislativo têm lidado com essa questão, bem como medidas que a mulher pode tomar por direito tanto para ter a violência como cessada e até mesmo a responsabilidade civil do agressor em decorrência desse tipo de violência.

2. DA VIOLÊNCIA MORAL A Lei Maria da Penha buscou prever todos os tipos de violência doméstica possíveis em seu artigo 7º, quais sejam violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. A violência moral, muito embora muitas vezes seja confundida com violência psicológica até por ter muitas consequências em comum para a mulher como veremos no decorrer deste trabalho, consiste em qualquer conduta que configure os crimes contra a honra, quais sejam calúnia, difamação e injúria, vide inciso V do mesmo artigo.

2.1 DA VIOLÊNCIA MORAL NA VIDA DA MULHER Quando pesquisamos a respeito de violência contra a mulher, habitualmente nos deparamos com informações, seja em trabalhos e pesquisas, focando abarcar a respeito daqueles considerados como crimes de maior potencial ofensivo, tais como as violências físicas e sexuais, respectivamente feminicídios, lesões corporais e crimes sexuais, havendo uma certa escassez quanto a informações sobre a violência moral.

A verdade, é que a violência moral está, se não mais, tão presente quanto as demais violências na vida da mulher. Veremos a seguir o resultado de um levantamento feito peloG1realizadaem novembro de 2019 no Distrito Federal, levantamento este disponível em <https://g1.globo.com/ df/distrito-federal/noticia/2019/11/19/lei-maria-da-penha-df-recebeu-129-mil-denuncias-

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-de-violencia-domestica-nos-ultimos-dez-a- nos.ghtml>1, vejamos:

Como podemos ver, a violência moral co acima é o crime de ameaça, o qual exige o está extremamente presente na vida da mu- mesmo tipo de conduta executória dos crimes lher e isso se explica por alguns motivos: contra honra pra se dar como consumado, alterando apenas o conteúdo da mensagem di1º - São crimes de menor potencial ofenrigida do agressor para a vítima. Isto porque, sivo, consequentemente suas penas são mais para caracterizar a violência moral, na maioria baixas; das vezes, o ato executório compreende ape2º - Os atos executórios são simples, exi- nas uma simples mensagem do agressor para gem menos esforço do agressor do que as de- a vítima, ou seja, uma única palavra do agresmais violências. Tanto, que o crime que mais sor pode caracterizar a violência moral. se aproxima da violência doméstica no gráfi-

2.2 CONSEQUÊNCIAS DA VIOLÊNCIA MORAL PARA A VÍTIMA A violência moral, apesar de exigir um ato executório simples de se praticar pelo agressor, traz consequência muito graves para a mulher, a qual pode se sentir humilhada, desvalorizada e até mesmo desprotegida, pois a agressão viria dentro de seu lar, ou dentro de sua família, motivo pelo qual a mulher se viria acuada por não ter alguém de confiança para recorrer. Foi verificada recentemente também a figura do assédio moral, figura esta que é capaz até mesmo de mitigar aspectos essenciais da personalidade humana. No tocante ao assédio moral, nosso or-

denamento jurídico ainda não tem um delito propriamente dito para tanto, porém, dependendo da conduta do agressor, podem estar presentes os crimes contra a honra, qual sejam crimes de calúnia, difamação e injúria, os quais serão estudados no decorrer do trabalho. Neste sentido, Almir Garcia Fernandes e Aline Helen de Resende nos ensinam: Violência Psicológica é agressão, tão ou mais grave, que a física. O comportamento típico se dá quando o agente ameaça, rejeita, humilha ou discrimina a vítima, demonstrando prazer ao ver o outro sentir-se amedrontado, inferiorizado, infeliz e diminuído, denominado a vis compulsiva2.

1

CRUZ, CAROLINA. LEI MARIA DA PENHA: DF RECEBEU 129 MIL DENÚNCIAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NOS ÚLTIMOS DEZ ANOS. G1 DF, 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2019/11/19/lei-maria-da-penha-df-recebeu-129-mil-denuncias-de-violencia-domestica-nos-ultimos-dez-anos.ghtml>. Acesso em: 10 fev. 2020.

2

FERNANDES, Almir Garcia; RESENDE, Aline Helen De. APONTAMENTOS SOBRE O DANO MORAL NAS RELAÇÕES CONJUGAIS SOB A ÓTICA DA LEI MARIA DA PENHA. RKL Escritório de Advocacia. 2017. Disponível em: <http://www.rkladvocacia.com/apontamentos-sobre-o-dano-moral-nas-relacoes-conjugais-sob-otica-da-lei-maria-da-penha/>. Acesso em: 11 fev. 2020.

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As consequências do assédio moral são diversas, tais como falta de apetite, diminuição da libido, crises de choro, palpitações, distúrbios digestivos, tremores, tortura e até mesmo sentimentos de inutilidade. Nesse contexto, Paula Drummond de Castro e Cristiane Bergamini nos ensinam: As implicações de ordem física e mental sofridas são diversas, aponta o estudo publicado na Revista Panamericana Salud Publica, como depressão, abuso de substâncias psicoativas e em problemas de saúde como cefaleias, distúrbios gastrintestinais e sofrimento psíquico. Além disso, impacta também na saúde reprodutiva, como no caso de gravidez indesejada, dor pélvica crônica, doença inflamatória pélvica e doenças sexualmente transmissíveis. Pode, ainda, relacionar-se à ocorrência tardia de morbidades como artrite, problemas cardíacos e hipertensão.

malmente desenvolve alguns quadros associados à depressão e ansiedade, que podem evoluir para doenças físicas e psicossomáticas, relata Ralmer Rigoletto. A vítima pode também se tornar um agente agressor. “Antes disso, ela tenta a autoagressão, como o suicídio. Se escapa, transpõe um limiar no qual consegue culpabilizar ao agressor pela tentaria de suicídio e, então, passa a agredi-lo. Normalmente, a agressão é física, tentando até, em casos extremos, o assassinato”, expõe Rigoletto3. Neste contexto, são vários os motivos que fazem com que a mulher não denuncie seu agressor, tais como: dependência econômica do agressor, desconhecimento da lei, aumento da violência com a denúncia, por selar pela preservação do casamento, dentre outras.

Quem sofre esse tipo de agressão nor-

2.3 DOS TIPOS DE HONRA Como já vimos, a Lei Maria da Penha, ao trazer o que caracterizaria violência moral contra a mulher, trouxe que tal definição seria a prática dos crimes de injúria, calúnia e difamação, ou seja, a prática dos chamados Crimes Contra a Honra.Desta forma, vemos que é necessário entender quais tipos de honra existem e que são amparados pela lei pátria. Assim, vemos que a honra é dividida em 6 tipos, quais sejam: honra objetiva, honra subjetiva, honra dignidade, honra decoro, honra comum e honra profissional. Com relação à honra dignidade e à honra decoro, a professora Priscilla Moura nos informa:

à honra objetiva, que é aquela que se refere à conceituação do indivíduo perante a sociedade. É o respeito que o indivíduo goza no meio social. A calúnia e a difamação ofendem a honra objetiva, pois atingem o valor social do indivíduo. Este, em decorrência da calúnia ou difamação, passa a ter má fama no seio da coletividade e, com isso, a sofrer diversos prejuízos de ordem pessoal e patrimonial. Assim, por exemplo, ao se imputar falsamente a alguém a prática de fato definido como crime, esse indivíduo poderá perder o seu emprego, ser excluído das rodas sociais e sofrer discriminações. Em tais casos, pese embora a aplicação da sanção penal contra o ofensor, é possível, inclusive, que o ofendido veja tais danos reparados na esfera cível por meio da competente ação de reparação de danos, conforme assegurado constitucionalmente.

Honra objetiva: diz respeito à opinião de terceiros no tocante aos atributos físicos, intelectuais, morais de alguém. Quando falamos Honra subjetiva: refere-se à opinião do que determinada pessoa tem boa ou má resujeito a respeito de si mesmo, ou seja, seus putação no seio social, estamos nos referindo 3

CASTRO, Paula Drumond de; BERGAMINI, Cristiane. VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA TEM DIFÍCIL DISGNÓSTICO E CAUSA DANOS GRAVES. Com Ciência. 2017. Disponível em: <http://www.comciencia.br/violencia-psicologica-causa-danos-graves-ainda-pouco-estudados/>. Acesso

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atributos físicos, intelectuais e morais; em suma, diz com o seu amor-próprio. Aqui não importa a opinião de terceiros. O crime de injúria atinge a honra subjetiva. Dessa forma, para sua consumação, basta que o indivíduo se sinta ultrajado, sendo prescindível que terceiros tomem conhecimento da ofensa4. A violação da honra objetiva está presente, por exemplo, quando o marido diz à sua esposa que a mesma “está tão magra que parece uma vara de pescar, que está tão feia que parece uma bruxa”, dentre outras; já um exemplo de um episódio em que há a violação da honra subjetiva da mulher é quando, por exemplo, a mulher se considera uma boa mãe por sempre cuidar bem do seu filho, mas o marido ridiculariza tal colocação, dizendo, por exemplo, que a mesma “não sabe fazer nada, tão pouco ser uma mãe de verdade e que não presta para cuidar de seu filho”, essesdentre outros diversos exemplos.

Honra dignidade: compreende aspectos morais, como a honestidade, a lealdade e a conduta moral como um todo. Honra decoro: consiste nos demais atributos desvinculados da moral, tais como a inteligência, a sagacidade, a dedicação ao trabalho, a forma física etc5. Ainda neste sentido, o professor Estefam nos ensina que a honra decoro, diferente da honra dignidade que visa a proteção de atributos morais de bons costumes e de honestidade, a honra decoro é definida como o respeito dos dotes ou qualidades individuais.

Temos a violação da honra dignidade, por exemplo, quando o cônjuge fala para terceiros que sua mulher não faz nada direito na casa e que todos os lugares onde ela passa fedem; já como exemplo da honra decoro, podemos assinalar um episódio de alguém espalhar para terceiros que sua namorada, por ser de deterEm ambos os casos, tanto da violação da minada religião, “irá sofrer muito e não tem honra objetiva e da violação da honra subjetisalvação”, ou até mesmo quando a mulher é va, não é necessário que a violação chegue a chamada de “burra” pelo seu marido. ser conhecida por terceiros. O fato do agente divulgar a outrem atos desonrosos, verídicos Adiante, temos a honra comum como ou não da mulher, apenas interferirá na capi- sendo aquela que é comum perante todos de tulação do delito ou no concurso de crimes, forma indistinta, a exemplo do namorado chamas qualquer desses atos executórios é pre- mar sua namorada de chata, de burra, dentre visto como crime no nosso ordenamento ju- outras; enquanto que a honra profissional se rídico, conforme veremos nos capítulos pos- diz a uma determinada categoria profissional teriores. de cada pessoa, como, por exemplo, a mulher é aeromoça e o marido a chama de empregaAssim sendo, podemos afirmar que a da de aviões. honra objetiva faz menção a opinião de outrem a respeito de uma pessoa, enquanto que a honra subjetiva ou interna é um juízo de valores que a pessoa faz de si mesma de acordo com suas qualidades e condições. Muitos doutrinadores, tais como Cezar Bitencourt e André Estefam, entendem que a honra subjetiva possui como seus tipos a honra dignidade e a honra decoro. Neste contexto, a professora Moura ensina: em: 14 fev. 2020. 4 MOURA, Priscilla. UM RESUMO DOS CRIMES CONTRA A HONRA. Jusbrasil., 2019. Disponível em: <https://priscillatgmoura.jusbrasil. com.br/artigos/658434152/um-resumo-dos-crimes-contra-a-honra?ref=serp>. Acesso em: 10 fev. 2020. 5 MOURA, Priscilla. UM RESUMO DOS CRIMES CONTRA A HONRA. Jusbrasil., 2019. Disponível em: <https://priscillatgmoura.jusbrasil. com.br/artigos/658434152/um-resumo-dos-crimes-contra-a-honra?ref=serp>. Acesso em: 10 fev. 2020.

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3. DOS DELITOS Como já trouxemos no início do trabalho, também previstos. são três os delitos contra a honra, quais sejam: Neste capítulo iremos analisar cada um calúnia, difamação e injúria. de seus dispositivos, relacionando os mesmos Destes, o delito que possui uma subdi- com o que vemos no dia a dia das mulheres visão é a Injúria, a qual possui três tipos: in- no âmbito da Violência Doméstica, sem nos júria simples, injúria real e injúria qualificada esquecermos do fato de que qualquer desses pelo emprego de elementos ligados a precon- delitos, quando praticados no âmbito de Vioceitos. Oportuno destacar que o assédio mo- lência Doméstica, ou seja, prevalecendo-se de ral não possui um delito próprio em nosso or- relações domésticas, familiares ou de qualdenamento jurídico, mas sua prática, em razão quer relação íntima de afeto contra a mulher, das condutas exercidas pelo agressor, poderá terão suas penas agravadas conforme alínea configurar tanto os crimes contra a honra pre- “f”, inciso II do artigo 61 do Código Penal. vistos no Código Penal como outros crimes

3.1 DA CALÚNIA

alguém não o cometeu, restará presente a calúnia. Assim sendo, a calúnia protege a honra Nosso Código Penal prevê o crime de caobjetiva, ou seja, o bom nome da mulher, o lúnia em seu artigo 138, vejamos: conceito da vítima no meio social. Art. 138 – Caluniar alguém, imputandoObservamos também que a lei se aten-lhe falsamente fato definido como crime: tou tanto para a calúnia que é feita diretamenPena – detenção, de seis meses a dois te para a vítima (caput), ou seja, aquela cuja mensagem vai do autor diretamente para a anos, e multa. vítima, quanto para aquela em que a calúnia §1º - Na mesma pena incorre quem, sa- é cometida pelo autor através de acusações bendo falsa a imputação, a propala ou divulga. da vítima para terceiros (§1º). Ou seja, não §2º - É punível a calúnia contra os mor- importa o método ou a quem é direcionada a calúnia, pois em qualquer das hipótetos. ses e métodos o crime estará configurado. Exceção da verdade Oportuno salientar que, caso o autor, ao acu§3º - Admite-se a prova da verdade, sal- sar falsamente a vítima, não alegue que a vítima cometera um crime, mas sim uma convo: travenção penal, não haverá crime de calúnia, I – Se, constituindo o fato imputado cri- mas de difamação conforme veremos mais me de ação privada, o ofendido não foi conde- adiante. nado por sentença irrecorrível; Neste sentido, a calúnia estará presente, II – Se o fato é imputado a qualquer das por exemplo, quando o marido acusa falsapessoas elencadas no nº I do art. 141; mente sua esposa de ter furtado sua carteira, III – Se do crime imputado, embora de ou de ter maltratado seus filhos.Caso o maação pública, o ofendido foi absolvido por rido acuse falsamente a esposa de não parar de perturbar sua tranquilidade, faria o mesmo sentença irrecorrível6. marido menção à contravenção penal de perEm outras palavras, o autor imputar a al- turbação de tranquilidade do artigo 65 da Lei guém fato definido como crime quando esse das Contravenções Penais, o motivo pelo qual 6

BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União.

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a conduta do marido não se enquadraria no crime de calúnia, mas sim no crime de difamação que estudaremos a seguir.

3.2 DIFAMAÇÃO Vejamos que nosso Código Penal prevê Em outras palavras, o tipo penal foi claro o delito de difamação em seu artigo 139, con- do prever que, para configuração do crime de forme a seguir: difamação, basta a imputação de fato ofensivo a sua reputação, ou seja, haverá crime tamArt. 139 – Difamar alguém, imputandobém quando a imputação do fato desonroso -lhe fato ofensivo à sua reputação: se der diretamente do autor para a vítima. Pena – detenção, de três meses a um Neste sentido, podemos citar como ano, e multa. exemplo do crime quando o cônjuge fala para sua mulher que a mesma o traiu, assim como Exceção da verdade também haverá crime de difamação quando Parágrafo único – E exceção da verdade o mesmo marido disser para terceiro que sua somente se admite se o ofendido é funcioná- mulher lhe traiu. Observa-se que, em ambos rio público e a ofensa é relativa ao exercício os exemplos, houve a descrição de um fato, de suas funções7. portanto, caso ao invés de descrever o ato, o cônjuge a chamasse de “traidora”, não estaria presente o crime de difamação devido à A difamação é crime que busca prote- ausência da descrição do fato, mas não quer ger, assim como a calúnia, a honra objetiva, dizer que não haverá crime, pois, na verdade, em razão de proteger a reputação e o bom estará configurado o crime de injúria do artigo nome da mulher. 140 do Código Penal em razão da ofensa diri Em outras palavras, qualquer ocasião gida à mulher, conforme veremos no próximo em que um indivíduo narra ato desonroso de tópico. outrem, seja o ato verdadeiro ou não, será passível de condenação pelo crime de difama3.3 Da Injúria ção. Muitos confundem este tipo penal, acreditando que o crime de difamação estará Por fim, chegamos ao último delito dos presente apenas quando o ato desonroso for crimes contra a honra, qual seja o delito de indivulgado a terceiros. Nesse sentido, o profes- júria.Para tanto, vejamos sua previsão no artisor André Estefam nos ensina: go 140 do Código Penal: Muito embora não exista expressa dispoArt. 140 – Injuriar alguém, ofendendosição no Código Penal a respeito, como há na -lhe a dignidade ou o decoro: calúnia, quem propala ou divulga a difamação Pena – detenção, de um a seis meses, ou é tão difamador quanto o que imputou fato ofensivo à reputação da vítima. Em outras pa- multa. lavras: propalar ou divulgar a difamação signi§1º - O juiz pode deixar de aplicar a pena: fica incorrer no tipo do art. 139 do CP8. I – quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria; 7 8

BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União. ESTEFAM, André. DIREITO PENAL PARTE ESPECIAL (ARTS. 121 A 234-B), 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 309.

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II 0 no caso de retorsão imediata, que Há ainda a injúria oblíqua, quando atinconsista em outra injúria. ge pessoa diversa do ofendido, mas que lhe é muito querida (ex: “seu filho é um vagabun§2º - Se a injúria consiste em violência do”). ou vias de fato, que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes: A injúria explícitaé a que não dá margem à dúvida quanto à ofensa e a equivoca, a que Pena – Detenção, de três meses a um contém duplo sentido, não sendo claro o aniano, e multa, além da pena correspondente à mus injuriandi (ex: chamar uma mulher de “caviolência. ra”)11. §3º - Se a injúria consiste na utilização Assim, sendo, temos no âmbito da violênde elementos referentes a raça, cor, etnia, recia doméstica, temos a injúria imediata quanligião, origem ou a condição de pessoa idosa do um rapaz pessoalmente chama sua irmã de ou portadora de deficiência: “imprestável, irritante, chantagista”, enquanto Pena – reclusão, de um a três anos e mul- que, na mediata, as mesmas ofensas são levadas ao conhecimento da vítima através de ta9. outros métodos, tais como um mensageiro. Já vimos que os crimes de calúnia e diAdiante, no tocante a injúria direta, esta famação visam proteger a honra objetiva, já a injúria, alem de proteger a honra objetiva, estará presente quando a única pessoa ofenditambém visa proteger a honra subjetiva, como da por aquela para a qual for dirigida a ofensa; nos ensina o professor André Estefam, veja- se a ofensa atingir terceiros, qualquer ofensa que seja, restará evidenciada a injúria indireta, mos: como, por exemplo, um homem falar que sua Consubstancia-se na honra subjetiva, ou irmã, casada, é “chifruda”. seja, o autoconceito, a opinião que a pessoa No âmbito da violência doméstica, tetem de si, de seus atributos físicos, morais ou mos a injúria obliqua, por exemplo, quando intelectuais. Pode ser que, com a ofensa, exista também violação à honra objetiva do sujei- um homem diz para sua prima que ela é “filha to passivo, mas este efeito não é indispensável de uma galinha”. à existência do crime e, se presente, implicará Qualquer injúria pode também pode ser em reflexos na dosimetria da pena10. efetuada em diversas formas, envolvendo Doutrinariamente, além dos tipos penais qualquer ato que ofenda o decoro ou a dignique veremos a seguir, temos as chamadas es- dade da vítima, não necessitando, necessariapécies de injúria, como o professor Estefam mente, de ser por palavras, pois gestos desonrosos também a caracterizarão. nos ensina a seguir: Há a injúria imediataquando praticada pelo próprio agente (o autor xinga alguém); mediata quando se utiliza de outra coisa para cometê-la, como uma criança ou um papagaio. A injúria direta atinge a vítima unicamente e a indireta ou reflexa, além da pessoa a quem se dirige a ofensa, atinge terceiro (ex: chamar alguém de “corno” é ofendê-lo e à sua esposa). 9 10 11

Oportuno frisar, que poderá estar presente mais de uma espécie de injúria em uma única ofensa, por exemplo: o primo ofende sua prima, dizendo que ela é “corna”. Vemos aqui que estão presentes a injúria explícita, a injúria direta, a injúria imediata e a injúria oblíqua, mas, para efeitos de condenação penal, é irrelevante a quantidade de espécies de injúria presentes na ofensa, sendo determinante apenas o tipo penal que ela caracteriza.

BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União. ESTEFAM, André. DIREITO PENAL PARTE ESPECIAL (ARTS. 121 A 234-B), 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 311. ESTEFAM, André. DIREITO PENAL PARTE ESPECIAL (ARTS. 121 A 234-B), 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 312.

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Pra tanto, no nosso ordenamento jurídi- homem cospe na sua namorada, ou mesmo co penal, o crime de injúria, como já adianta- pega um copo e arremessa o líquido de uma mos, é dividido em três tipos: bebida em sua cara. Vejamos que, nessas oportunidades, o homem não teve a intenção Injúria simples (caput do artigo 140 co de agredir ou lesionar a mulher, mas sim de Código Penal); afetar a sua honra, desmoralizar a mesma e, Injúria real (§2º do artigo 140 do Código por essa razão, mesmo os atos executórios sendo físicos, restará configurado o crime de Penal); injúria real, um dos tipos de injúria qualificada Injúria qualificada pelo emprego de ele- cuja pena, como vimos em seu tipo penal, é mentos ligados a preconceitos (§3º do artigo superior à da injúria simples. 140 do Código Penal). Por fim, como o último dos tipos penais A primeira, conhecida como injúria sim- do crime de injúria, temos a injúriaqualificada ples, é aquela tida como mais natural, sem pelo emprego de elementos ligados a preconvinculação por com qualquer tipo de precon- ceitos. Por este tipo de injúria, haverá o crime ceito e sem envolver vias de fato do ofensor à se a ofensa à dignidade ou ao decoro se der vítima. Assim sendo, temos a injúria simples, através de elementos que se refiram à raça, por exemplo, quando o marido fala para sua cor, etnia, religião, origem ou a condição de esposa que a mesma é uma “burra, imprestá- pessoa idosa ou portadora de deficiência.Ou vel, traidora” (como vimos no tópico anterior), seja, atos de preconceito que visem atingir a dentre diversas outras ofensas. honra da vítima.Neste sentido, podemos citar Já a segunda, tida como injúria real, es- como exemplo no âmbito da violência doméstará presente quando houver algum tipo de tica o fato do primo dizer que sua prima, de violência cuja finalidade da mesma não seja etnia negra, “parece uma macaca” ou mesnecessariamente a agressão física, mas sim a mo quando um pai chama sua filha de “aleihumilhação da mulher, a ofensa à honra da jada”pelo fatodela ser paraplégica, ou o neto que chama sua avó de “velha acabada” dentre mulher. diversos outros exemplos. Um clássico exemplo da injúria real no âmbito da violência doméstica é quando um

4 DOS CRIMES CONTRA A HONRA COMO AÇÃO PENAL PÚBLICA De regra, os delitos são ações penais pú- exceções estas que, se a vítima enquadrasse blicas, condicionadas ou incondicionadas de- em suas condições, tornariam o crime de ação pendendo de sua previsão legal. penal privada em ação penal pública. Para tanto, vejamos a antiga previsão do artigo 225 do Mas os crimes contra a honra são exceCódigo Penal: ção à regra, sendo os únicos tipos penais no nosso ordenamento jurídico a serem classifiArt. 225 – Nos crimes definidos nos capícados como ações penais privadas. tulos anteriores, somente se procede mediante queixa. Diferente da ação penal pública condicionada, a ação penal privada não dá poderes ao §1º - Procede-se, entretanto, mediante Ministério Público para oferecer a ação, sendo ação pública: a vítima a única parte legítima para tanto. BasI – se a vítima ou seus pais não podem ta lavrar o Boletim de Ocorrência, e oferecer a prover às despesas do processo, sem privar-se queixa crime, que a ação penal é movida. de recursos indispensáveis à manutenção próOcorre que até pouco tempo a lei trazia pria ou da família; algumas exceções nos crimes contra a honra, 201


II – se o crime é cometido com abuso do VADA. ILEGITIMIDADE ATIVA ‘AD CAUSAM’ pátrio poder, ou na qualidade de padrasto, tu- DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. tor ou curador12. TRANSCURSO DO PRAZO PARA OFERECIMENTO DE QUEIXA-CRIME. DECADÊNCIA. A partir do momento que a vítima posPARECER ACOLHIDO. 1. O Ministério Público suísse as características previstas nos incisos estadual, mesmo em se tratando de suposto I e II do §1º do artigo 225 antigo do Código delito de injúria simples praticado no âmbito Penal, a ação poderia ser movida pelo repredoméstico contra a mulher, é parte ilegítima sentante do Ministério Público através de sua para propor ação penal pública condicionada requisição, não sendo a vítima parte legítima à representação, porquanto, no caso, é de exexclusiva para oferecer a ação. clusiva iniciativa privada, nos termos do art. Porém tais exceções foram abolidas com 145, ‘caput’, do Código Penal. 2. A ausência do a nova redação do mesmo artigo 225, veja- oferecimento de queixa-crime no prazo de 6 meses, contado a partir do conhecimento da mos: autoria do fato, impõe o reconhecimento da Art. 225. Nos crimes definidos nos Capí- decadência do direito de tal exercício, como tulos I e II destes Título, procede-se mediante na espécie. 3. Recurso provido para rejeitar a ação penal pública condicionada à represen- denúncia quanto ao crime de injúria. Ordem tação; expedida de ofício, para, declarando a decaParágrafo único. Procede-se, entretanto, dência do direito de apresentar queixa, extinmediante ação penal pública incondicionada guir a punibilidade do agente quanto ao delito se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou em questão.” (RHC 32.593/AL, Rel. Min. SEBASTIÃO REIS JÚNIOR – grifei) 3. Assinalo, pessoa vulnerável13. finalmente, para efeito de mero registro, que Ou seja, a nova redação do dispositivo a vítima, ela própria, esclareceu “que não tem deixou claro que os crimes contra a honra não mais interesse” (fls. 11) na concessão das mese aplicam à sua previsão, vez que os crimes didas protetivas de urgência a que alude a Lei contra a honra estão no Título I, Capítulo V da nº 11.340/2006, razão pela qual, quanto a tais Parte Especial do Código Penal, enquanto que providências, nada há a prover no caso. Seno artigo 225 se encontra no Título IV do mes- do assim, tendo em vista que a vítima, segunmo Código e Parte Especial. do ela mesma declarou (fls. 11), compareceu Não obstante, nosso Supremo Tribunal ao Instituto Médico Legal (IML) para exame Federal foi provocado no tocante a presente pericial de corpo de delito (Memorando nº questão, proferindo sua decisão e consequen- 3702/2017 – 1ª Delegacia Policial), ouça-se o eminente Procurador-Geral da República no te entendimento, vejamos: que se refere, unicamente, à suposta prática, Cumpre destacar, de outro lado, por re- pelo ora requerido, do crime de lesões corpolevante, que, em relação ao suposto crime de rais. (PETIÇÃO 7115 DISTRITO FEDERAL – injúria, que constitui uma das modalidades de grifo nosso)14. delito contra a honra (CP, art. 140), a respecDesta forma, prevalece a previsão do artiva ação penal instaura-se mediante queixa (CP, art. 145, “caput”), ainda que alegadamen- tigo 145 do Código Penal, vejamos: te cometido, no âmbito doméstico, contra a Art. 145 - Nos crimes previstos neste Caprópria mulher ou companheira: “RECURSO pítulo somente se procede mediante queixa, EM ‘HABEAS CORPUS’. INJÚRIA SIMPLES. salvo quando, no caso do art. 140, § 2º, da vioLEI MARIA DA PENHA. AÇÃO PENAL PRI- lência resulta lesão corporal15. 12 13

BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União. BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União.

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STF. PETIÇÃO 7.115 DISTRITO FEDERAL. Relator: Ministro Celso de Mello. DJ: 27 jun. 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/ dl/celso-manda-abrir-inquerito-admar.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2020. 15 BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União.

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Se da violência moral resultar lesão corporal, o agente responderá tanto pelo crime de lesão corporal quanto pelo crime de injúria real. É o caso, por exemplo, do marido que dá um tapa no rosto de sua mulher, com a vontade de denegrir sua honra, mas o tapa causa lesão na vítima. Neste caso, responderá o

agente pelo crime de lesão corporal e injúria real, sendo a injúria real precedida também de representação criminal por, nessa hipótese, se enquadrar como ação penal pública condicionada à representação.

5. DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA Oportuno frisar que a violação da moral III – proibição de determinadas condutambém é causa para que a mulher adquira tas, entre as quais: as chamadas medidas protetivas de urgência, aproximação da ofendida, de seus famivez que o artigo 22 da Lei Maria da Penha torliares e das testemunhas, fixando o limite mínou as medidas protetivas possíveis mediante nimo de distância entre estes e o agressor; a presença de qualquer tipo de violência. contato com a ofendida, seus familiares Vemos que parte das medidas adotae testemunhas por qualquer meio de comunidas pelas medidas protetivas de urgência são cação; contribuidoras para que as agressões morais se cessem, medidas estas que estão previsfrequentação de determinados lugares a tas nos incisos II e III do artigo 22 da Lei, pois fim de preservar a integridade física e psicolóimpedem que o agressor mantenha qualquer gica da ofendida16. tipo de contato, físico ou a longa distância, Não obstante, a jurisprudência brasileira com a vítima, vejamos: firmou entendimento de que, em razão dos Art. 22. Constatada a prática de violên- crimes de violência doméstica ser cometidos, cia doméstica e familiar contra a mulher, nos rotineiramente, às escondidas, a palavra da vítermos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de ime- tima assume total relevância para a concessão diato, ao agressor, em conjunto ou separada- de medidas protetivas de urgência. mente, as seguintes medidas protetivas de urO descumprimento das medidas protegência, entre outras: tivas de urgência caracteriza crime do artigo (...) 24-A da Lei Maria da Penha, com pena de detenção de 3 (três) meses a 2 (dois) anos. II – afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

6. DO ÔNUS DA PROVA NO PROCESSO PENAL De regra, no nosso ordenamento jurídico PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REpenal, sabemos que o ônus da prova pertence GIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESa quem alega, ou seja, se alguém alega que o PECIAL. mesmo lhe ameaçou, deve juntar ao judiciário VIOLAÇÃO A DISPOSITIVOS CONSprova inequívoca da ameaça do autor. TITUCIONAIS. VIA INADEQUADA. DIOcorre que nosso Superior Tribunal de VERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO Justiça firmou entendimento de que o caso DEMONSTRADA. CRIME DE AMEAÇA. de violência doméstica é exceção à regra, ve- VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. ESPECIAL REjamos: LEVÂNCIA À PALAVRA DA VÍTIMA COMO 16

_____. LEI MARIA DA PENHA. Lei N.°11.340, de 7 de Agosto de 2006.

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FUNDAMENTO PARA A CONDENAÇÃO. INCIDÊNCIA DO ÓBICE DA SÚMULA N. 7 DESTA CORTE. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. […] 3. A palavra da vítima tem especial relevância para fundamentar a condenação pelo crime de ameaça, mormente porque se trata de violência doméstica ou familiar. (...) 5. Agravo regimental improvido. (Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 423707 – RJ 2013/3677705)17.

Neste sentido, Geisa Oliveira Daré nos ensina:

A produção da prova no caso da violência psicológica que gera agravos à saúde da mulher ocorrerá por meio de perícia médica psiquiátrica, a ser requisitada pelo Ministério Público ou a requerimento dos agentes públicos da rede de proteção à mulher. As lesões representarão transtornos psiquiátricos tais como: depressão, estresse pós-traumático, Em outras palavras, há, na hipótese de síndrome do pânico, transtorno obsessivoação de violência contra a mulher no âmbito compulsivo, anorexia, entre outros18. da violência doméstica, a inversão do ônus da prova pela palavra da vítima ter especial relevância na ação penal, mas, para condenação, é preciso haver nexo entre a palavra da vítima e outros indícios carreados nos autos.

7. DA INAPLICABILIDADE DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL De regra, por suas penas serem baixas, 106212)19. consequentemente serem crimes de menor No mesmo sentido do nosso Supremo potencial ofensivo, as ações penais envolvenTribunal Federal, o professor Renato Brasileiro do delitos contra a honra são oferecidas no de Lima vem a nos ensinar: Juizado Especial Criminal. Apesar do dispositivo referir-se apenas Ocorre, que o artigo 41 da Lei Maria da aos crimes, a vedação diz respeito a toda e Penha previu a inaplicabilidade do Juizado qualquer infração penal praticada com violênEspecial Criminal nos delitos praticados com cia doméstica e familiar contra a mulher, inviolência doméstica e familiar contra a mulher clusive contravenções penais20. independentemente da pena prevista. Com efeito, a decisão também tornou O Supremo Tribunal Federal foi provocaimpossível a aplicação de institutos despenado, e entendeu que o referido artigo não só lizadores trazidos pela Lei nº 9.099/95, como é constitucional como também é aplicado nas a suspensão condicional do processo. chamadas contravenções penais, vejamos: Entendeu-se, na oportunidade, que os VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – ARTIGO 41 crimes de violência contra a mulher são graDA LEI Nº 11.340/06 – ALCANCE. O preceito ves, sendo incompatíveis com o Juizado Espedo artigo 41 da Lei nº 11.340/06 alcança toda cial, vez que este é competente apenas para e qualquer prática delituosa contra a mulher, apreciar delitos leves, de menor potencial até mesmo quando consubstancia contravenofensivo. ção penal, como é a relativa a vias de fato. (HC 17

STJ. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL: AGRG NO ARESP 423707 RJ 2013/0367770-5 – REL. E VOTO. 2015. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/153371784/agravo-regimental-no-agravo-em-recurso-especial-agrg-no-aresp-423707-rj-2013-0367770-5/relatorio-e-voto-153371787?ref=juris-tabs>. Acesso em: 11 fev. 2020.

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DARÉ, Geisa Oliveira. A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: ANALISE CRÍTICA. 2019. Disponível em: <http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/62830>. Acesso em 08 fev. 2020. 19 STF. HABEAS CORPUS 106.212 MATO GROSSO DO SUL. Data do Julgamento: 24 mar. 2011. Relator: Ministro Marco Aurélio. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=1231117>. Disponível em: 14 fev. 2020. 20 LIMA, Renato Brasileiro de. LEGISLAÇÃO CRIMINAL ESPECIAL COMENTADA, 2. ed: EDITORA JusPODIM. 2014, p. 943.

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8. DA REPARAÇÃO CÍVIL Realizada a análise dos crimes contra a honra no âmbito da violência doméstica na esfera criminal, passamos a analisar suas consequências na esfera cível, mais precisamente na ação de reparação de danos.

bunal de Justiça havia declarado em quais hipóteses o dano moral seria presumido, quais sejam: cadastros de inadimplentes, responsabilidade bancária, atraso de voo, diploma sem reconhecimento, equívoco administrativo e credibilidade presumida. Observamos que os É bastante comum se falar em indenizacrimes contra a honra não estão neste rol, ção de danos morais quando há um episódio sendo os casos de violência doméstica a exem que envolva os crimes de calúnia, injúria ceção. e difamação. O que muitos não sabem é que o dano moral, mesmo na presença desses criPorém, muito se engana quem tem o mes, de regra não é presumido, devendo ser pensamento de que o dano moral é o único demonstrado o efetivo prejuízo à honra da ví- possível nos casos de crimes contra a honra. tima, prejuízo este que pode ser comprovado Como foi dito no começo do trabalho, os por testemunhas, laudos psicológicos e psicrimes contra a honra tem fortes consequênquiátricos ou até mesmo na troca de convercias para a vítima, a qual, devido às ofensas, sas em que se prove que o que a vítima suporpode, por exemplo, não ter condições morais tara em razão dos fatos não seja tão somente ou psicológicas para ir trabalhar. É o caso, por um “mero aborrecimento”. exemplo, da mulher que é ridicularizada pelo Porém, no direito vemos que toda a regra seu marido através de ofensas e difamações tem uma exceção, e, no tocante aos crimes de forma tamanha, que, por estar muito abacontra a honra, estamos diante desta exce- lada, com crises de choro e sentindo-se inseção, vez que a matéria foi discutida em nossos gura, não conseguiu ir trabalhar, por exemplo, tribunais, afinal seriam presumidos os danos no desfile que participaria como modelo namorais em razão de violência doméstica? Em quele dia, ou caso em que a mulher desenvolresposta, o Superior Tribunal de Justiça, ao ve doenças psiquiátricas e passa a ter gastros julgar recurso repetitivo, se pronunciou po- para realizar o tratamento médico adequado. sitivamente, isto é, a ocorrência de violência Vejamos que, nesses casos, não só houve um doméstica presume os danos morais, os quais enorme abalo como também a vítima teve um deverão ser expressamente requeridos pela prejuízo financeiro em razão de ter de faltar vítima sob pena de não serem devidos pelo a um compromisso de trabalho e ter sofrido agressor. problemas psiquiátricos a ponto de ter de gastar dinheiro com seu tratamento, razões pelas Neste sentido, se manifestou o Ministro quais cabe a indenização por dano material, Rogério Schietti Cruz: ou seja, indenização sob o prejuízo financeiro A simples relevância de haver pedido ex- suportado pela vítima em razão da violação de presso na denúncia, a fim de garantir o exer- sua honra. cício do contraditório e da ampla defesa, ao Neste sentido, nos ensina André Barreto meu ver, é bastante para que o juiz sentenLima: ciante, a partir dos elementos de prova que o levaram à condenação, fixe o valor mínimo a Dada importância do direito a honra, título de reparação dos danos morais causa- como um direito inerente à personalidade do dos pela infração perpetrada21. indivíduo, bem como um direito fundamental na esfera constitucional, ver-se que a mesma Oportuno destacar que, antes do refequando ferida pode causar danos imensuráveis rido pronunciamento, o mesmo Superior Trinas esferas psíquica e moral da pessoa humana, 21

STJ. CONDENAÇÃO POR VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER PODE INCLUIR DANO MORAL MÍNIMO MESMO SEM PROVA ESPECÍFICA. Jusbrasil. 2018. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/noticias/551503474/condenacao-por-violencia-domestica-contra-a-mulher-

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de forma que, além disso, referido dano pode impactar até mesmo na órbita patrimonial das pessoas.Nesse sentido, Cahali, 36 diferencia o que é um dano patrimonial do dano moral, este último que para o referido autor é dado pela: Privação ou diminuição daqueles bens que têm um valor precípuo na vida do homem e que são a paz, a tranquilidade de espírito, a liberdade individual, a integridade individual,

a integridade física, a honra e os demais sagrados afetos; classificando-se, desse modo, em dano que afeta a parte social do patrimônio moral (honra, reputação, etc.) e dano que molesta a parte afetiva do patrimônio moral (dor, tristeza, saudade etc.); dano moral que provoca direta ou indiretamente dano patrimonial (cicatriz deformante, etc.) e dano moral puro (dor, tristeza, etc.)22.

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho nos trouxe a pos- deria ter sido alterado, com sua antiga previsibilidade de estudarmos tudo o que diz res- são abolida. peitoaos crimes contra a honra no âmbito da Adiante, apesar dos grandes avanços da violência doméstica. Lei Maria da Penha, eis que nos deparamos Vimos que pesquisas comprovaram que com um retrocesso ao analisarmos um dispoa violência moral é a violência mais presente sitivo que, apesar de novo, nos parece não ter no âmbito doméstico contra as mulheres, até acompanhado o entendimento do legislador porque envolve meios executórios muito fá- e dos tribunais com relação aos crimes conceis de serem praticados, porém que trazem tra a mulher no âmbito da violência domésticonsequências tão ou até mais gravosas que a ca: o artigo 24-A da Lei Maria da Penha. Isto violência física para a mulher. porque, entendemos que ridiculamente o dispositivo prevê pena de detenção ao agressor Vemos que, apesar dos crimes contra a que descumprir as medidas protetivas de urhonra ter a sua redação completamente obgência. Ora, quer dizer, que a mulher pode ter jetiva, nossa doutrina pátria trouxe todos os sido vítima de qualquer tipo de violência, seja tipos de honra e injúrias possíveis a fim de que ela física, sexual, moral e psicológica, terem qualquer violação contra a honra se caracterisido deferidas as medidas protetivas de urzar crime. gência, mas o descumprimento destas, após a Diante da gravidade do âmbito domés- mulher possivelmente ter sofrido com violêntico, entendemos nesta oportunidade que foi cias sejam elas quais forem, caracterizar um um tanto que equivocada a substituição do crime com pena máxima de detenção? Nossos artigo 225 do Código Penal pela atual reda- tribunais têm entendido que violência no âmção, vez que, apesar dos avanços que tivemos bito doméstico contra a mulher é grave, tancom a Lei Maria da Penha, sabemos que mui- to que é incompatível com o Juizado Especial tas ainda não denunciam seus agressores e, Criminal, logo a punição do descumprimento dentre as causas, estão o desconhecimento de medidas protetivas de urgência também é da lei e pelo fato de muitas vítimas depende- completamente incompatível com a punição rem do agressor, seja devido ao pátrio poder de tão somente detenção, devendo o disposiou mesmo financeiramente, quer dizer, essas tivo ter, portanto, previsto punição em reclumulheres se encontram em um grau de vul- são. nerabilidade maior, por essa razão, não só os Portanto, dadas essas observações, confatos são mais graves como viram de interescluímos que a lei se encontra avançada com se público que o agressor seja punido e, assim relação aos crimes contra honra no âmbito da sendo, entendemos que o dispositivo não po-pode-incluir-dano-moral-minimo-mesmo-sem-prova-especifica>. Acesso em: 11 fev. 2020. 22 LIMA, André Barreto. O DIREITO À HONRA DO INDIVÍDUO NAS PERSPECTIVAS DOS DANOS MORAL E MATERIAL. 2017. Disponível em: <https://andrebarretolima.jusbrasil.com.br/artigos/417408178/o-direito-a-honra-do-individuo-nas-perspectivas-dos-danos-moral-e-material>. Acesso em: 11 fev. 2020.

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violência doméstica, mas dadas as observações trazidas acima, não cremos que os legisladores estão atribuindo à violência contra a mulher no âmbito doméstico a mesma gravidade que nossos tribunais e jurisprudências.

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REFERÊNCIAS BARRETO, André. O DIREITO À HONRA DO INDIVÍDUO NAS PERSPECTIVAS DOS DANOS MORAL E MATERIAL. Jusbrasil. 2017. Disponível em: <https://andrebarretolima.jusbrasil.com. br/artigos/417408178/o-direito-a-honra-do-individuo-nas-perspectivas-dos-danos-moral-e-material>. Acesso em 11 fev. 2020. BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940. BRASIL. Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006.Lei Maria da Penha. BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940. _____. LEI MARIA DA PENHA. Lei N.°11.340, de 7 de Agosto de 2006. CASTRO, Paula Drumond de; BERGAMINI, Cristiane. VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA TEM DIFÍCIL DISGNÓSTICO E CAUSA DANOS GRAVES. Com Ciência. 2017. Disponível em: <http:// www.comciencia.br/violencia-psicologica-causa-danos-graves-ainda-pouco-estudados/>. Acesso em: 14 fev. 2020. CRUZ, CAROLINA. LEI MARIA DA PENHA: DF RECEBEU 129 MIL DENÚNCIAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NOS ÚLTIMOS DEZ ANOS. G1 DF, 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2019/11/19/lei-maria-da-penha-df-recebeu-129-mil-denuncias-de-violencia-domestica-nos-ultimos-dez-anos.ghtml>. Acesso em: 10 fev. 2020. DAHER, Maluse Pestana. O POLÊMICO ART. 16 DA LEI MARIA DA PENHA. JUS.COM.BR. 2011. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/19769/o-polemico-art-16-da-lei-maria-da-penha>. Acesso em: 10 fev. 2020. DARÉ, Geisa Oliveira. A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: ANALISE CRÍTICA. 2019. Disponível em: <http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/62830>. Acesso em: 08 fev. de 2020. ESTEFAM, André. DIREITO PENAL PARTE ESPECIAL (ARTS. 121 A 234-B), 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. FERNANDES, Almir Garcia; RESENDE, Aline Helen De. APONTAMENTOS SOBRE O DANO MORAL NAS RELAÇÕES CONJUGAIS SOB A ÓTICA DA LEI MARIA DA PENHA. RKL Escritório de Advocacia. 2017. Disponível em: <http://www.rkladvocacia.com/apontamentos-sobre-o-dano-moral-nas-relacoes-conjugais-sob-otica-da-lei-maria-da-penha/>. Acesso em 11 fev. 2020. LIMA, André Barreto. O DIREITO À HONRA DO INDIVÍDUO NAS PERSPECTIVAS DOS DANOS MORAL E MATERIAL. 2017. Disponível em: <https://andrebarretolima.jusbrasil.com.br/ artigos/417408178/o-direito-a-honra-do-individuo-nas-perspectivas-dos-danos-moral-e-material>. Acesso em: 11 fev. 2020. LIMA, Renato Brasileiro de. LEGISLAÇÃO CRIMINAL ESPECIAL COMENTADA, 2. ed: EDITO208


RA JusPODIM. 2014. MIGALHAS. STJ DEFINE EM QUAIS SITUAÇÕES O DANO MORAL PODE SER PRESUMIDO. 2012. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/quentes/158699/stj-define-em-quais-situacoes-o-dano-moral-pode-ser-presumido>. Acesso em: 11 fev. 2020. MOURA, Priscilla. UM RESUMO DOS CRIMES CONTRA A HONRA. Jusbrasil., 2019. Disponível em: <https://priscillatgmoura.jusbrasil.com.br/artigos/658434152/ um-resumo-dos-crimes-contra-a-honra?ref=serp>. Acesso em: 10 fev. 2020. STELATO, Ellisson. CRIMES CONTRA A HONRA. OABSP. Disponível em: <http://www.oabsp. org.br/subs/santoanastacio/institucional/artigos-publicados-no-jornal-noticias-paulistas/crimes-contra-a-honra>. Acesso em: 10 de fev. 2020. STF. HABEAS CORPUS 106.212 MATO GROSSO DO SUL. Data do Julgamento: 24 mar. 2011. Relator: Ministro Marco Aurélio. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=1231117>. Acesso em 14 fev. 2020. STF. PETIÇÃO 7.115 DISTRITO FEDERAL. Relator: Ministro Celso de Mello. DJ: 27 jun. 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/celso-manda-abrir-inquerito-admar.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2020. STJ. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL: AGRG NO ARESP 423707 RJ 2013/0367770-5 – REL. E VOTO. 2015. Disponível em: <https://stj. jusbrasil.com.br/jurisprudencia/153371784/agravo-regimental-no-agravo-em-recurso-especial-agrg-no-aresp-423707-rj-2013-0367770-5/relatorio-e-voto-153371787?ref=juris-tabs>. Acesso em: 14 fev. 2020. STJ. Condenação por violência doméstica contra a mulher pode incluir dano moral mínimo mesmo sem prova específica. Jusbrasil. 2018. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/noticias/551503474/condenacao-por-violencia-domestica-contra-a-mulher-pode-incluir-dano-moral-minimo-mesmo-sem-prova-especifica>. Acesso em: 11 fev. 2020.

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ASSÉDIO MORAL E SEXUAL NO AMBIENTE DE TRABALHO Yves Patrick Pescatori Galendi Advogado, Pós Graduado em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Anhanguera, Pós Graduado em Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera, Pós Graduado em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Paulista de Direito – Faculdade Estácio e Pós Graduado em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito – Faculdade Estácio. Pós Graduado em Direito do Direito Corporativo e Compliance pela Escola Paulista de Direito – Faculdade Estácio. Pós Graduado em Direito Imobiliário Aplicado pela Escola Paulista de Direito – Faculdade Estácio. Pós Graduando em Direito Constitucional e Administrativo pela Escola Paulista de Direito. Pós Graduando em Direito e Processo Tributário.

SUMÁRIO 1. Introdução 2. Problema De Pesquisa 3. Conteúdo Da Pesquisa 4. Conclusão Referências Anexos

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RESUMO O presente trabalho científico busca proporcionar o encorajamento feminino, na medida em que contribuí para elucidação dos direitos das mulheres, especialmente no ambiente de trabalho. Ao longo do estudo são abordados casos práticos de assédio moral e sexual, bem como utilizada a legislação protetiva combatendo a supremacia machista busca a diminuição de uma série de abusos presentes no dia a dia feminino. Diversas organizações e instituição que realizam estudos voltados ao bem estar das mulheres, comprovam a necessidade e a pertinência do presente tema, que é de interesse público, e diário dos operadores do direito. Ressalta-se ainda todas as peculiaridades e particularidades do assédio moral e sexual no ambiente de trabalho, abordando questões de incidência, a regionalidade, a intenção do legislador e ilustrando o tema com dados científicos e estatísticos. Por fim a análise do tema de forma pertinente, objetiva e concreta, se mostra justa e necessária a formação de opiniões e diferentes correntes e linhas de pensamento, sempre, em busca da proteção da mulher.

PALAVRAS CHAVE Assédio moral; Assédio Sexual; Direito das Mulheres; Ambiente de Trabalho.

ABSTRACT This scientific work seeks to provide female encouragement, as it contributes to elucidating women’s rights, especially in the work environment. Through outth estudy, practical cases of moral and sexual harassment are addressed, as well as the use of protective legislation to combat male supremacy seek storeduce a series of abuses present in women’sdailylives. Several organizations an dinstitutions that carry out studies focus edonthe well-being of women, prove the necessity and therelevance of the present theme, whichis of public interest, and the diary of the operators of the law. It also high light sall the peculiarities and particularities of moral and sexual harassment in the work place, add ressingissues of incidence, regionality, the intention of the legislat orand illustrating thet heme with scientificandstatistical data. Finally, theanalysis of thetopic in a pertinent, objectiveand concrete way, isshowntobejustandnecessarytheformation of opinionsanddifferentcurrentsandlines of thought, always in search of theprotection of women.

KEYWORDS Bullying; Sexualharassment; Women’sRights; Workplace.

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1. INTRODUÇÃO Trata-se de pesquisa jurídica elaborada especialmente para o 1º Congresso Regional de Direito das Mulheres, buscando o aprimoramento dos operadores do direito, possibilitando uma representação adequada as vítimas, bem como, a conscientização de toda a sociedade acerca deste tema de grande relevância, o assédio sexual e moral no ambiente de trabalho.

questões pertinentes e relevantes.

O objetivo do trabalho é esclarecer aos operadores do direito as informações e conhecimento necessário, assegurando assim uma prestação jurisdicional mais célere e eficaz as cidadãs vítimas de assédio moral e/ou sexual, evitando consequentemente, a aplicação incorreta e prejudicial da legislação, e especialmente, um aspecto conscientizados Embora tratados como fenômenos re- acerca deste tema presente no dia-a-dia de centes, o assédio moral e sexual no ambiente nossa sociedade. de trabalho, estão presentes há muito tempo Quando em questão assunto de interesno dia-a-dia das vítimas, em sua grande maiose público e de uma classe historicamente frária, as mulheres. gil e desprotegida, medidas como a presente O presente estudo aborda dados científi- se mostram pertinentes e necessárias para cos da ocorrência dos casos de assédio moral evolução e debate do tema, propicionando e e sexual, as questões sobre o empoderamento fomentando, não só os operadores do direito, feminino, os seus princípios, a base legal tan- mas como, o desenvolvimento de toda a soto na Constituição Federal, na CLT e também ciedade em que vivemos. no Código Penal, a distinção entre o assédio moral e o sexual, bem como, diversas outras

2. PROBLEMA DA PESQUISA Em virtude das recorrentes práticas indevidas de assédio moral e sexual, tratando essa questão social, como a mais recorrente no âmbito trabalhista, perdendo apenas, a distinção salarial entre homens e mulheres.

Por iniciativa e realização do Sindicato das Secretárias do Estado de São Paulo (SINESP)foi realizada pesquisa entre as mulheres filiadas, e destas, 25% disseram ter sidoassediadas sexualmente pelos seus respectivos chefes.

O problema de pesquisa é objetivo, envolve especialmente os constantes abusos O Tribunal Superior do Trabalho através patronais face as trabalhadoras do sexo femi- deseus indicadores, confirma que a maioria nino. dos processos sobre assédio sexual e moral são ajuizados por mulheres. Segundo recentes dados da Organização Internacional do Trabalho – O.I.T. – mais da Vale ressaltar que ocorre assédio moral metade de todas as mulheres economicamen- em virtude de estratégias de cumprimento de te ativas já foram vítimas de assédio sexual no metas extremamente agressivas, que na maioambiente de trabalho. ria das vezes passam do limite e constrangem funcionários. Exemplo deste fato é a Companhia de Vale ainda destacar que segundo a Força Bebidas das Américas (Ambev) que foi conSindical, ao lado dos baixos salários, oassédio denada e terá de indenizar um funcionário sexual e moral no ambiente de trabalho, é o em danos morais por, supostamente, consmaior problema enfrentado pelas mulheres. trangê-lo a comparecer às reuniões matinais 212


onde também estavam presentes garotas de programa, e, também, por submetê-lo a situações humilhantes, indignas e vexatórias, com o objetivo de alavancar e proporcionar o cumprimento de metas.

AMRO Real S/A sofreu condenação poisum de seus superiores humilhava e ofendia uma funcionária, na presença de seus pares e colegas ao cobrar o cumprimento das metas estabelecidas pelo banco, para isso, valia-se inclusive de adjetivos tal qual: “burra”, submeOutro exemplo de assédio moral é a tendo a trabalhadora a tratamento ofensivo à grande instituição financeira o Banco Santandignidade. der, que por sua vez, e no mesmo sentido, fora condenado a pagar indenização por danos Pequenas empresas e seus prepostos morais a uma funcionária bancária. De acordo também são causadores de assédio moral, com a matéria, publicada no site do Tribunal como por exemplo, um salão de beleza que Superior do Trabalho, ela havia se sentido hu- foi condenado a indenizar uma funcionária, da milhada e constrangida, pois, em determinada função de manicure, que sofreu assédio sexureunião junto ao gerente regional com os su- al do proprietário. bordinados, a mesma foi instigada a se supeReferido assédio sexual foi comprovarar e alcançar as metas fixadas pelo Banco sob dotambém pela prova testemunha, com base o seguinte argumento de seu superior: “nem nos depoimentos dos colegas de trabalho que que fosse necessário rodar bolsinha na esquiconfirmaram os constrangimentos sofridos na”. pela reclamante, entre eles, os constantes eloOutro caso clássico, foi decidido pela gios desnecessários e descabidos, e também Terceira Turma do TST que manteve uma con- os comentários insinuantes do reclamado, seu denação do Banco Bradesco S/A e outros para proprietário, quando tocava as partes do corefetivamente pagarem quantia indenizatória po dela. no valor de R$ 5 mil por danos morais, em virPortanto, o problema de pesquisa, resta tude de assédio moral sofrido por uma fundevidamente delimitado, qual seja, o abuso e cionária que era chamada constantemente de a fragilidade das mulheres, não somente no “imprestável” pelo seu supervisor. Através de ambiente de trabalho, mas em toda sociedaprova testemunhal, comprovou-se o assédio de, motivo pelo qual, necessariamente, devesofrido pela reclamante, o que gerou a repamos unir forças e lutar por elas, as mulheres! ração. Em outro caso julgado pelo Tribunal Superior do Trabalho – TST –, o Banco ABN

3. CONTEÚDO DA PESQUISA Ao longo da pesquisa jurídica são trata- defesa da mulher. das todas as peculiaridades do assédio moral Além disso, o trabalho é elaborado de e sexual no ambiente de trabalho, sua incidênforma a elucidar também a população os dicia, dados científicos e estatísticos. reitos das mulheres, agindo desta forma, de Questões relacionadas a regionalidade e forma conscientizadora, colaborando para a da intenção do legislador também são anali- diminuição da incidência dos casos de assédio sadas. moral e sexual. Conteúdo distribuído de forma programática a propiciar aos operadores do direito a aplicação das mudanças e avanços trazidos pela legislação, refletindo assim, uma justiça correta, eficaz e ética, quando em questão, a

Tendo em vista as recorrentes práticas de assédio moral e sexual, aborda-se de forma didática e simplificada o conteúdo, proporcionando uma descomplicada e rápida absorção do conteúdo e mudanças nas formas de pen-

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sar.

Vale ressaltar que o índice mais baixo de denúncia envolvendo assédio moral e sexual Discutindo e analisando todos os lados no ambiente de trabalho entre os profissionais da questão, tanto a segurança social e o carádo sexo masculino tem explicação psicológica. ter punitivo da legislação penal com o intuito da diminuição da incidência das práticas de Não é que não ocorra assédio sexual e abuso moral e sexual, dentro e fora do am- moral entre os homens, mas, para eles, muitas biente de trabalho, como também, a análise vezes, denunciar um caso de assédio pode decriminal em do tipo penal, conferido lacunas monstrar fraqueza — ainda mais se a assediapara atuação profissional e indenização na es- dora for mulher. fera trabalhista, cível e criminal. Sabemos que em nosso país – Brasil, a Dados assustadores trazidos pela revista lei que criminaliza o assédio sexual é relativade circulação nacional VOCÊ S/A, em maté- mente recente, não completou ainda nem 10 ria publicada no dia de hoje, 09 de março de (dez) anos,pois entrou em vigor em 2001. 2020, comprovam que 1 a cada 5 profissionais sofreu assédio sexual no trabalho.

4. CONCLUSÃO Em se tratando de tema de interesse público, especialmente quando em questão a mulher, por natureza, de ordem pública, pertinente se faz a discussão do tema, afim de formar opiniões e diferentes correntes e linhas de pensamentos quando em questão o assédio moral e sexual no ambiente de trabalho, nas condições discutidas no presente trabalho científico. O fato de propiciar aos operadores do direito de forma ampla a constante atualização e aprimoramento dos seus conhecimentos, a possibilidade de atuação técnica e precisa quando em questão assédio moral e sexual no ambiente de trabalho, em matéria de interesse pública, ser especializada e atualizada em pequenos detalhes como o estudo em questão, conferindo maior segurança jurídica e eficiência técnica, e também, por outro lado, a conscientização da população acerca da grande ocorrência de assédio moral e sexual,mostram-se o caminho para construirmos dia a dia uma justiça mais eficaz e reduzirmos o índice de incidência dessa prática abominável, cruel e absurda.

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REFERÊNCIAS BRASIL.Constituição da República Federativa do Brasil de 1988; Presidência da República. Subchefia para Assuntos Jurídicos. BRASIL. Decreto Lei 5.452/43 - Consolidação das Leis do Trabalho; Presidência da República. Subchefia para Assuntos Jurídicos. MATHIES, Anaruez. Assédio Moral e Compliance na Relação de Emprego. Dos Danos e dos Custos e Instrumentos de Prevenção. 1a Edição. São Paulo. Editora Juruá. 1 de Janeiro de 2018. HELOANI, Roberto; BARRETO, Margarida. Assédio Moral. Gestão por Humilhação. 1a Edição. São Paulo. Editora Juruá. 1 de Janeiro de 2018. TEIXEIRA, José Luiz Vieira. O Assédio Moral no Trabalho – Conceitos, causas e efeitos, liderança versus assédio, valoração do dano e sua prevenção. 3a Edição. São Paulo. Editora LTR. 2016. LFG.Entenda a diferença entre assédio moral, dano moral e assédio sexual. Disponível em: https://www.lfg.com.br/conteudos/artigos/geral/entenda-a-diferenca-entre-assedio-moral-dano-moral-e-assedio-sexual Acesso em: 10 de janeiro de 2020. EMPÓRIO DO DIREITO.Assédio moral e sexual no ambiente de trabalho. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/assedio-moral-e-sexual-no-ambiente-de-trabalho Acesso em: 11 de janeiro de 2020. TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO – TST. TST julgou diversos casos de assédio moral e sexual em Disponível em: <2012http://www.tst.jus.br/institucional?p_p_id=101&p_p_lifecycle=0&p_p_state=maximized&p_p_mode=view&_101_struts_action=%2Fasset_publisher%2Fview_content&_101_returnToFullPageURL=http%3A%2F%2Fwww.tst.jus. br%2Fweb%2Fguest%2Finstitucional%3Fp_auth%3DGPLMlIJB%26p_p_id%3D3%26p_p_ lifecycle%3D1%26p_p_state%3Dnormal%26p_p_state_rcv%3D1&_101_assetEntryId=3414777&_101_type=content&_101_urlTitle=tst-julgou-diversos-casos-de-assedio-moral-e-sexual-em-2012&inheritRedirect=true>

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ANEXOS

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REVISTA CIENTÍFICA DA ESA OAB SP São Paulo 2020 DIRETORIA OAB SP Caio Augusto Silva dos Santos Presidente OAB SP Ricardo Luiz de Toledo Santos Filho Vice-Presidente OAB SP Aislan de Queiroga Trigo Secretário-Geral OAB SP Margarete de Cássia Lopes Secretária-Geral Adjunta Raquel Elita Alves Preto Tesoureira DIRETORIA ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho Diretor ESA OAB SP Letícia de Oliveira Catani Vice-Diretora ESA OAB SP Conselho Curador ESA OAB SP Edson Roberto Reis Presidente do Conselho Curador ESA OAB SP Sueli Aparecida de Pieri Vice-Presidente do Conselho Curador ESA OAB SP Silvio Luiz de Almeida Secretário do Conselho Curador ESA OAB SP Conselheiros Marcos Antonio Madeira de Mattos Martins Luiz Henrique Barbante Franze Luciano de Freitas Santoro Patrícia Romero dos Santos Weiz Representante do Corpo Docente Ana Laura Simionato Victor Coordenador de Curso de Especialização Eduardo Arantes Burihan Representante do Corpo Discente Ricardo Carazzai Areasco Adriano Ferreira Coordenador Geral ESA OAB SP Fale Conosco: Largo da Pólvora, 141 - Sobreloja Tel. +55 11 3346 6800 Praça da Sé, 385 - 6º, 7º, e 8º andar Tel. +55 11 3291 8100 faleconosco@esa.oabsp.org.br www.esaoabsp.edu.br


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