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Copyright © Escape, 2021. Os meus mais belos contos e poemas de mistério e suspense © Janaína Mello, 2021. Editor Daniel Santos da Cunha Assistente editorial Juliane Sperotto Moschini Revisão ortográfica: Juliane Sperotto Moschini Capa, projeto gráfico e diagramação Daniel S. da Cunha | DSC studio: www.dancunha.com
A000p Mello, Janaína Os meus mais belos contos e poemas de mistério e suspense / Janaína Mello. – 1. ed. – Morro Reuter (RS): Revista Escape, 2021. 102 p.; 21 cm. Capa de Daniel Santos da Cunha ISBN 000-00-00000-00-0 1. Contos brasileiros. 2. Poesia. 3. Ficção brasileira. I. Título. 000-000-00 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Fulano de Tal – CRB 0 0000 Índice para catálogo sistemático: 1. Contos: Literatura brasileira 000.00 2. Poesia: Literatura brasileira 000.00 3. Ficção: Literatura brasileira 000.00 Todos os direitos desta edição reservados à: Revista Escape – Selo Editorial Cavalo Sombrio Rua Bela Vista, 801 Centro – Morro Reuter – RS (51) 9 9272-0253 revistadigitalescape@gmail.com www.escapemov.com
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Janaína Mello
Os meus mais belos contos e poemas de mistério e suspense #3 Caderno Escape Contos e Poesias
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CONTOS Apresentação.......13 Vício.......21 Cíntia.......33 O breve sentido de Alfredo.......51 Caroline.......63 Vínculo sarcástico.......77
Sobre a autora.......97
POESIAS 19.......Quem eu sou 30.......Supra 48.......Eu; eu sou 60.......Etéreo 74.......Ela 87.......Presença 89.......Ela 2 91.......Cena 93.......Poesia
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Apresentação
Ler Janaína Mello é desfrutar de contos envolventes, tensos e abismais, mesclado de suspense, mistério e o sobrenatural. A autora apresenta um aparato gótico muito bem dosado, com ou sem alcáceres tem-se a sensação de estar mergulhado em recintos misteriosos e anacrônicos, envolto a névoas, penumbras e sombras noturnas. Nessa atmosfera cruzar com personagens estereótipos e nebulosos. Revela em seus contos uma habilidade incrível ao penetrar imperiosamente nas camadas mais sutis e dissimuladas. É marcante nos seus roteiros o modo em que coloca seus personagens vis a vis, sob colisão intrigante. Como num jogo, as tensões avançam, eclodindo em debates reveladores, evidenciado por diálogos que vão de uma acidez perversa a uma sutileza assombrosa,
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mas sempre sob um intento filosófico. Suas reflexões recheadas de profundidade, deixam evidente sua crítica aos viciosos paradigmas e a mecanicidade que parece se apoderar cada vez mais das almas alheias. Um outro ponto perceptível em sua escrita é o quanto explora a polarização e distribui rigorosamente por toda tessitura. Fazendo lembrar uma frase do mestre de suspense Alfred Hitchcock “Loiras fazem as melhores vítimas. Elas são como neve virgem, que mostra as sangrentas pegadas”. — Ora, o que pretende o mestre revelar com essa colocação? Para mim, me parece muito claro, que os conflitos são formados de contrapontos, e essa matéria prima é o germe vital para uma trama perfeita. Janaína parece seguir esses rastros, explorando ao natural tal recurso imprescindível para um verdadeiro suspense. Pode-se ver isso, nesses trechos do conto “Caroline”:
“O ambiente estava escuro, e recebia Luz entrecortada por cortinas brancas. Num silêncio sepulcral, jazia abaixo da luz solar vinda da janela, um corpo pálido e imóvel”. “Elisabete procurava a sobriedade em meio à tantas flutuações bizarras, e tão poderosa persuasão que aquela que seria uma simples menina exercia todas às vezes. Assim, tentava novamente falar, mas antes que conseguisse, um vislumbre tão rápido a precipitou aos níveis do terror. Pois ocorria que, da mesma janela pela qual há pouco entrava a mais viva luz solar, agora emoldurava um céu nebuloso e negro, da mais densa noite. Seus olhos giraram confusos, procurando a saída daquele sonho estranho.”
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Já em sua poesia, de versos livres e simbolistas, no rastro constante da transcendência, embrenha-se nas pantaneiras sombras, procurando aliança com os elementos embriagantes, inquietos e intimidadores. Sua subjetividade tem uma autenticidade alarmante e bela. É evidente que Janaína causa uma vertigem incomum, algo que guarda um mistério e força residual. Eis um fragmento do poema, “Ela 2”: “...Vivia ela nas colinas mais obscuras da Terra onde todas as passagens já foram feitas ela aterrissa negra... invisível... amiga das criaturas da noite, Bailarina dos mortos. Nota dos refugiados do sol.”
O mais incrível de tudo isso, é a lucidez de sua ficção e propósito, como se costurasse com uma linha incomum as teias de suas prosas e versos, fruto de quem sabe operar num campo místico e obscuro. Janaína Mello é uma escritora nata que mostra maestria na aplicação do suspense, sabendo o que fazer dos elementos, ciente de como deve ser manipulado a preciosa substância para o leitor, que bem poderíamos rotular de belo veneno. Ednézer von Ritter Ocultista e Dramaturgo
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Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas. — Machado de Assis
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Quem eu sou esconde-se em uma colina de difícil acesso junto às aves quase humanas. minha morada é o celeiro dos que regressam dos segredos todos, o cenho dos que vivem sós onde residem as verdades que por obscuras vivem ocultadas por escombros escondidas atrás de máscaras, dentro de árvores estáticas, cavernas...
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porque digna não é a luz, de as receber Santuário de criaturas geradas, do que as mais densas trevas puderam conceber entre os nativos. Acostumo-me com quem jamais conhecerá um mundo iluminado pelo sol nem a nenhuma geração antecederá. Já conheci a luz, agora, na escuridão repouso sem necessidades conflitos ou razão sem mais antiga identidade e mais nenhuma maldição.
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Vício
Sou um perturbado. Isso afirmo, à luz de dias sem fim, nos quais intentava curar-me; dias inúteis! Vivo aterrorizado por devaneios irracionais, e assim absorveu-se minhas décadas em sofrimentos sem sentido. Não obstante, contraí matrimônio, e me fatiguei com o teatro onde, podeis imaginar, meus demônios ganharam proporções extravagantes. As ocorrências mundanas e sociais se realizavam como uma corrente natural que afluía em um cenário antagônico, e minhas ilusões me acompanhavam... Sob o jugo de poderosas paranoias vivi por anos infinitos naquela cidade suja. Por ruas desoladas e sombriamente vazias perambulei. Havia gritos naquelas esquinas. Os anos passaram pesados sobre mim e moviam os potenciais de minha existência. Toda a vida transmutava-se
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ao ponto até de não mais reconhecê-la, e minhas ilusões ainda estavam comigo. Já o denunciou minha narrativa, que sou esquizofrênico, e o efeito do palco me foi devastador, e diante de vasto campo de potencial imaginativo, meus fantasmas iam e vinham com livre curso. Por não só uma vez deixei a peça à hora de entrar; mudava os textos no momento mesmo em que encenava, e perdia de uma única vez a simpatia de muitos. E tudo fazia eu pelo medo, e para livrar-me dele. E dissipei então minha atratividade artística, assim indo enfurnar-me nos enredos melancólicos da escrita. Embora minha criatividade necessitasse também travar competição constante com minha doença mental, a solidão cada vez aumentada em que eu laborava me rendia alguma produtividade, e o dinheiro, que agora milagrosamente eu ganhava com aqueles textos me influenciava a assim permanecer. Ademais, com reverência eu trabalhava, duvidando de que se não fosse isso, eu tivesse capacidade de sair à rua, para qualquer outra coisa. Assim, minhas inspirações se tornaram finalmente cinema, e assim se detiveram, cônscio seu criador de que precisava desse claustro distante, ainda que o mesmo irremediavelmente representasse sua definitiva ruína. Passo agora a retratar ataques nervosos de natureza obscura, um tanto vergonhosos à concepção humana. Segredos que julgamos esconder, como quem prende um pensamento e o proíbe de se facetar. Assim escondemos o que achamos ser de natureza sólida em nosso caráter, e com horror convivemos com esses julgadores. Pois tais mistérios existenciais me vitimaram, até ao ponto de me separarem gradativamente da convivência co-
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mum. Assim, confraternizava com meus demônios, e ouvia de sua redenção, enquanto recusava com nervosismo aos convites de qualquer pessoa. Não era de minha ignorância que Antônia sofria intensamente por isso, e não era sem arrependimentos que eu afligia aquela que me vinculava à vida. Acaso me julgaríeis? Desconsideraríeis minhas convicções por andar bêbado e às vezes drogado? Pois para constrangimento vosso é que afirmo que é ao passo que não esclareço uma simples charada popular, que desvendo os mistérios mais inacessíveis do universo. Não obstante a tudo, a resiliência de minha vida social me espantava e escravizava de maneira inexorável. Meu círculo de afeiçoados se renovava tão logo os antigos conhecidos cansavam de minhas manias, e trazia novos delírios e ansiedades. As pessoas, não entendendo eu como, se interessavam por minha persona, e me era motivo de peso o ser impossível a mim retribuir, já que o afeto em mim só eclodia diante da face de Antônia. Era a ela que me achegava, e nela me aconchegava, quando meu laboratório de criações esfriava demais, e o arrepio percorria a espinha sem admitir controle. Orgulhosa de minha emergente fama, ela mantinha todas as relações que eu facilmente e em pouco tempo destruiria. Ela, mais do que qualquer outra criatura, sofreu a pena de meus mistérios. Permanecia sozinha por dias, enquanto eu me isolava em meu quarto e laboratório, onde por anos eu não lhe concedia ingresso. Diríeis que pela inquietação do vinho é que a ofendia com rispidez, porém eu era obstinado no controle de minhas sensações, pensamentos e atividades cotidianas. Era na iminência e ameaça desse desregramento que me tornava irritadiço como um viciado. Ela, no entanto, não me tinha mais para sonhos etéreos apenas, mas da nuvem que
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costuma confundir o amor imaturo, surgia um vínculo mais perene e lúcido, não condicionado ao retorno e compreensão a que estaria passível, porém passivo, não pretende interferir no que flui por virtude, e os arrebata de entorno tamanhamente vulgar. Por esse siso é que sofria e era vítima. Assim, de fato, em certo dia ela me apareceu junto a um produtor de cinema de considerável influência, interessado em minha obra. Ele demonstrou respeito e decência ao expor suas intenções, mas certo é que eu não tinha condições cognitivas para me comunicar. Mais certo ainda é que eu não queria nem financiamento, nem compromisso ou contrato, e aquele homem me proporcionava gradações de repulsa cada vez mais intensas. A forma como sentava-se, os detalhes de seus gestos, sua camisa! A textura daquela camisa não deixava a ponta dos meus dedos! Julgara eu mal ao ver uma passageira expressão arrogante de sarcasmo? Quem era aquele desocupado, para olhar-me de cima? A essas horas eu já me dirigia a ele com rispidez, controlando a raiva. Ele pareceu-me em certo momento notar, e sua expressão de espanto atiçou ainda mais meu furor. Voltei a mim quando pude ouvir a segunda parte do que do que Antônia lhe dizia. — ...ele é um excêntrico. Por isso peço que lhe entenda se lhe for relapso ao comunicarem-se virtualmente. Você pode me contatar no momento em que precisar, para que eu fale em nome de Daniel. Bem, essas singularidades não lhe devem ser estranhas. Daquela vez o tolerei, mas eu bem sabia que ele fora com a firme intenção de me afrontar. Agora todos dizem, certo é que dizem: estás louco! Mas eu! Eu que vi o desdém, eu é que explico que o sofrimen-
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to me consumia e coagia, ó indignados! Continuo, a despeito do que julgais. Meu espírito velava o momento de subjugá-lo, e assim que vi suas costas e se passaram as impressões daquele dia, empenhei-me em marcar um abstruso encontro com aquele com quem tinha contas a acertar. Chamei-o àquele encontro de aspecto esdrúxulo, culpando por isso a extravagância de minha personalidade. Eu bem poderia ter conseguido domar-me, e contentar-me-ia em envenenar sua autoconsciência e minar sua confiança devorando-o e depois o cuspindo. Naquela noite, porém, minha perturbação estava acentuada, e o ódio e a dor (sim, a dor!), assolavam qualquer disposição para a ética. Toda a minha ira era razoável! Na noite da data marcada, um anseio febril levava-me de uma janela à outra, e exultei ao ouvir seus passos ecoando no piso inferior. Certamente, ele estranhou ter de adentrar a casa fria, sem ninguém que o recebesse. Mais ainda certamente o impressionou o silêncio opressivo, antes que o ambiente se enchesse de uma música clássica e dramática, que fiz ecoar propositadamente. Foi também para divertir-me com suas impressões que deixei meia taça de vinho sobre uma mesa, e todas as janelas abertas, o que àquela hora da noite, sugeriam um estranho e total abandono. Ao adentrar o quarto, ele achou-me prostrado entre muitos livros, de onde parcialmente tirei a visão para saudá-lo. Eu vestia um roupão de veludo negro, que me cobria dos pés à cabeça, peça das apresentações de teatro. Seu espanto divertia-me, e tudo aquilo eu fazia para que lhe parecesse ser desdém, para lhe esconder que desejava molestá-lo como se fosse o único no mundo.
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Mostrei-lhe uma poltrona, onde ele sentou-se depois de alguma relutância. Descobri em seu olho, revelado pelo único clarão de luz que iluminava o quarto, que ele estava retraído e com medo. Livrei-me dos muitos volumes que me rodeavam e encaminhei-me para servir duas taças de vinho. Uma delas lhe ofereci, cujo veneno, o negror vergonhoso daquela noite omitia. O belo líquido que tingia a taça aparecia soberano, e ofuscava até mesmo minha astúcia e malignidade. Teria o poder, a vergonha daquela noite, de encobrir também uns pinguinhos de meu ansiolítico, que lhe dei com o fim de deixá-lo mais receptivo aos meus apelos à sua imaginação? — Bem, Daniel, como já te mencionei, acho interessante sua ideia no roteiro que li... Percebi o quanto o ambiente lhe oprimia, e acendi um abajur, para lhe desimpedir a fala. Antes tivesse eu me abstido de tal gentileza. Antes, poupar-lhe-ia o direito à existência. Não tivesse eu acendido aquela luz sobre seu espírito teria eu esquecido, quem sabe, sua repugnante ignorância, sua altivez infundada, e aquela... camisa macilenta, agarrada à sua pele. — o drama de um viciado... — ele continuou. Oh! Ele entendia minha obra assim como um cachorro que ladra para nossas conversas. — Bem, permita-me dizer que não reproduzo histórias, e na referida, tive muito empenho em depositar diversas nuances de caráter ético e literário. Ele levantou-se um pouco distraído agora, e sem me dar resposta, caminhou enquanto bebericava do vinho condenado. Minha exposição o havia dado confiança, e isso reacendia minha ira inicial. Diante de seu silêncio, que permanecia, agravei o tom de voz e dei livre curso à fala, que usava,
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como todo o resto, para impressionar e atrair atenção. Ele não demonstrava refletir, era certo que o remédio lhe concedia os primeiros lapsos. — Quando criamos nosso enredo, sempre nos sussurra o anjo da luxúria, morador das paredes, violador dos homens e sua livre escolha. Aqui, porém, longe de meu fascínio particular, de minha disposição irrompida, a mais límpida história concebi. Deixei o capuz do roupão cobrir um pouco mais meus olhos, aumentando o contraste com minha face alvejada pela maquiagem. Decerto direis agora que sou um desocupado, e estaríeis certos, não fosse a legião de considerações que me põe a trabalhar diuturnamente. — A contemplação do objeto criado — perseverei — sempre é adentrar onde está a “coisa” incriável, que lá jaz para excitar-nos perpetuamente com a consciência de sua existência. De forma alguma, porém, a alcançamos, nessa inatingível sublimação. Eu, desconhecendo se seu silêncio era ignorância, desdém ou efeito do remédio associado ao álcool, tinha os nervos gradativamente mais afligidos. Seria com prazer que concluo esse drama? Minha carne treme e desespera da vívida lembrança daquela taça meio bebida onde despejei todo o conteúdo de minha receita alucinógena. Ele aceitava a bebida que brilhava, esquecendo daquele com quem estava conjurada. Cada gole que entornava lhe extorquia as faculdades mais básicas. Lembrem-se do início de minha discorrência. Em mim não se ausenta o sentimento, nem mesmo a culpa, mas aquele verme que antes habita minha cabeça me engana e me prende àquela ignóbil noite.
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Eu ainda falava, quando ele estendeu-me a mão para ir embora, e senti em sua sudorese repulsiva, que havia algum tempo, seu interior se agitava. — Sabes o que pretendo se estiveres decidido, avise-me. — Bem sei que vieste para me importunar — assim vociferei, segurando sua mão, e ele me lançou em rosto uma expressão de espanto que infamava minhas justificativas, me infundindo uma incontrolável raiva. Uma vertigem o levou cambaleante em direção à poltrona. — Bebi tanto assim? Ora, se todos os espectros naquele quarto me eram favoráveis testemunhas, ao inquiri-lo de sua perseguição. Apenas uma vez me assaltou a ideia de que eu não tivesse razão. Ainda, porém, que ele estivesse sob meu domínio, o via em posição superior. Ainda que o deixasse em uma poltrona de agonia, seu sorriso de arrogância me expunha ao seu julgamento infame. Assim, eu o privava permanentemente do convívio com os homens, e o assistia minguar por horas derradeiras e silentes. Antônia hoje, ao adentrar o quarto de minha vergonha, perscruta intuitivamente por minha ignomínia, e assediada por sombras que lhe sussurram do mal, entranhando nas paredes, procura por minha natureza decaída. Antônia! Não foi tua decência que te levou aos armários, às estantes tão cheias de histórias, aos recessos onde habitam as contradições de minha identidade? Quem te enviou à poltrona onde descanso minha cabeça e a fez, atraída por emanação repulsiva, trinchar o móvel que acolhia aqueles ossos denunciadores, sobre os quais todos
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os dias eu deitava meu domínio? Ingênua foste tu! Meu segredo não era nobre ou artístico, mas um cemitério de pecados. Sim, eu a morte promovi, e dela me apossei, como se assim me tornasse mais eterno. Se quiserdes me julgar, vão em frente, acrescentem dores à esta existência, soneguem à minha consciência o direito de respirar. Receberia eu absolvição, após a luz ter alcançado a escuridão daquele quarto, por mim julgado o mais perene dos esconderijos? É certo que não me justificaríeis, afinal não sou nenhum justiceiro, nem matei por delírio ou vingança, mas por brio. E a frustração os consumiria se dissesse que nunca paguei pelo que fiz. Sequer uma afronta suportei, não houve agonia que me atormentasse, nem sangue que me sujasse. Me deixaríeis terminar meu enredo ao som de uma beleza triste sem perguntar-me quando desobrigarei minha alma? Alguém aí está dizendo que não se trata senão de uma alucinação vaidosa e narcisista. Deus me concedesse isso! Pois a vaidade é mais frívola do que a loucura. Não! Antes, estou preso ao abismo da consciência. E quando ando pela casa, de onde não posso mudar-me, a impressão de cura vem das paredes que me apartam, embora das mesmas venha a voz, não sei se esquizofrênica ou amiga, que diz: “— Deste crédito demais à tua loucura!”
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No topo da montanha A quem eu acharia? Outro além de alguém que já estivesse lá? Pai da Criação, Anel de autoridade Vim buscar, contra a densidade que chega de uma noite que jamais amanhecerá. A quem encontraria eu? Um poeta das luzes com insígnia sacerdotal Guardião da receita mágica que matará a morte. A quem encontrarei eu? A quem encontrarei... Eu?
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Cíntia
Cintia era. Da flor o jardim; antes, o adubo perante o qual o jardim com devoção lhe estende e caules dependentes de sua força. O lado de cá da narrativa me concede algumas palavras espontâneas, que não ousaria dizer ante sua face, posto que não minto. Pois ela não tinha nenhum interesse em ser a flor que enfeita, nem adubo que fortalece, nem mesmo jardim inteiro, mas o jardineiro, que controla, interfere e decide. Suas mãos escolhem o que nascerá; se a natureza não lhe convém, nenhum pudor terá em alterá-la, exterminá-la, replantá-la. Era isso o que Cintia era, ou antes seu último ensejo Era do tipo tinhosa, que fazia dar certo e se ria de potenciais e probabilidades. Não podia ser chamada intelectual, posto que estudasse dia e noite. Era se todo o conhecimento mundano lhe fosse apenas exercício sem os quais se senti-
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ria terrivelmente entediada. Não era feia e era difícil dizer se era bonita, sua face de uma palidez incomum não transmitia nada além de uma frieza muito distante. Não usava adereços e nem mesmo suas roupas permitiam alguma definição sobre si mesma. Apesar de não usar maquiagem, seus olhos, sua pele, ou algo que não poderia ser mais bem definido do que a aura de seu rosto era estranhamente escura. Um dia se apresentou tal situação, mas ela não conhecia nada que fosse maior que sua soberania, pouco caso fazia das ameaças que a vida tentava imprimir. Sua passagem pelos pisos santificados das universidades não lograram limpar a profanidade de suas solas, nem lhe impuseram manifestação bélica. Andava envolta em um espírito um tanto animalesco, do qual ela mesma não era consciente. Seus colegas, embora não confessassem, a temiam. Seu impulso pelo conhecimento não a permitia que visse mais muita coisa. Trazia sempre a tensão onde sentasse. Isso nem um pouco a irritava; que não conseguissem permanecer em sua presença, até preferia. Não se detinha em tais puerilidades, e o tempo que lhe sobrava lhe parecia sempre insuficiente. Assim, o prazer da interatividade ia minguando à sombra de seu mundo individual, que parecia ocupar tão bem todos os espaços. O contato social cada vez mais lhe parecia improdutivo, e motivo para ansiedade. Ela sabia que contavam com alguma vulnerabilidade sua, a fim de ver sujeito seu espírito impregnado de uma superioridade misteriosa, mas permanecia insensível a isso. Apesar de uma servilidade cega a um razoável mundo de enigmas, para os quais já se tinham respostas exatas, Cíntia não desconhecia o teor atômico da natureza que carregava. Em momentos em que estava a sós, após longas leituras em meio às quais se esquecia de vigiar o chegar da noite; em que
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parecia trair sua noção temporal e pular aleatoriamente para um vácuo impressionante, onde a noite era desprendida do dia, ou de qualquer subsequência. Em tais momentos, essa lembrança se revelava de forma tão presente, que ela afirmava estar gerando outro ser no silêncio da casa vazia. Outro ser, que olhava por seus olhos. A ansiedade a oprimia então de tal forma, que com vexame de espírito corria a desligar a música clássica, com suas notas efusivas e dramáticas. O vento, porém, daquela cidade cinza, com rajadas estranhamente comunicativas, sustentava a sensação, que ela lutava para que se descolasse de si. Nas aulas, se um dos professores, por malogrado que visse seu efeito de superioridade sobre Cíntia, abandonava o desafio, e alguém logo se intrometia a expor conhecimento análogo ao assunto, para que o mesmo morresse mais adiante, com louros mundanos e superficiais. Todos se esforçavam para tê-la por apenas mais uma nerd, mas não podiam, e sua presença os incomodava. Seu distanciamento desafiava aqueles que tinham por certa sua inferioridade e sua inflexibilidade lhes era uma afronta, e um tormento. Quando a isolavam, ela não estava ali, obstruíam o corredor que ela não escolheria, lhe deixavam os piores trabalhos e ela se deliciava ou cuspiam no chá que ela não beberia, e de maneira alguma a alcançavam. No tumulto das saídas pelos corredores alguém como que na ânsia em ver aquele caráter desconcertado pelo tangível e julgando-se recôndito, alcançou-a e lhe puxou as calças, deixando-a seminua por um momento. Cíntia olhou ao seu redor e reparou algumas expressões de satisfação em ver sua figura finalmente desmistificada, bem como, algumas de espanto, porém nenhuma de empatia. Sentiu uma vibração violenta e um tanto desconhecida. Pas-
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sara pela infância e adolescência sem experiências emocionais significativas. Seus órgãos eram agitados por tal energia, que a impelia como expressão mais primitiva e autêntica ao que seus sentidos determinassem. Era o ódio! Não obstante seu sarcasmo, o malfeitor se viu estranhamente subjugado por uma força atmosférica. A sensação de peso e domínio era real, física. Desejou em segredo consigo jamais ter se dado àquela brincadeira maldita, ainda que achasse tudo aquilo impressionantemente ridículo e inacreditável. Todavia a força que lhe dominava lhe arrebatava o controle e se fortalecia, ao ponto das atenções de todos irem se voltando a ele. Todos perscrutavam aquela emblemática figura do jovem ajoelhado aos pés da extravagância que tinha diante de si. Os olhos de Cíntia, estáticos, pouco viam senão um rosto assustado e antes de tudo, digno da mais inquestionável culpa. O menino procurava recompor-se, grunhindo baixo, na expectativa de recobrar o domínio e escapar da vergonha presente. A força, no entanto, que lhe prendia em sujeição era real e aumentava rapidamente seu assombro e ansiedade. O zelador do campus, ao ver os estudantes concentrados, e o abatimento do aluno, julgou certo que alguém passara mal. Este, que cuja natureza peremptória o permitiria passar por toda a vida sem que a ausência de movimentos o angustiasse minimamente – sabe-se que há pessoas assim, que possuem a habilidade de permanecerem naquilo que são sem ansiedades, e causam grande desconforto aos de persona mais volátil, ou antes, para não incorrer em injustiça, passível de volatilidade – não sabia o que fazer com a variável que se insurgira a ele. O aspecto gélido e concentrado de Cíntia junto à reminiscência espectral daquele quase homem lhe provocara
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um arrepio de ansiedade. Como um desenho sujeito aos arroubos artísticos de algum ser sádico, andava agora por todo o ambiente uma nuvem opressora, saída das paredes arcaicas, como se fosse sempiterna. Minava os corredores, através das portas. Todos a sentiam, e não a confessavam. — Olá, Cíntia! Cumprimentou a Reitora, que não partilhava de uma natureza passiva, e tinha pressa em contemplar algo da vida que a fizesse morrer sem temor. Desejava antes perecer de um coração ativo e jovem que sucumbisse ao exagero, em lugar da inércia que o fizesse pesar. Essa mulher tinha olhos grandes para o que lhe desafiasse. Era de uma elegância intimidadora, e nenhuma vez se deu que perdesse o controle de alguma situação. — Olá! Respondeu Cíntia, sem nenhuma perturbação. — Você deixou alguém assustado lá fora. Cíntia limitou-se a manter os olhos firmes em sua direção, sem ironia ou desrespeito, apenas como alguém que trata de um assunto que dispensa reflexão. Sua figura era impressionante. Como já está registrado, era naturalmente obscura, e deduzir-se-ia facilmente ao vê-la que nunca fizera nada em favor de sua estética. O aspecto de seus cabelos mostrava que cresciam e apareciam livres, e seu tom escuro destacava a cara lívida, muito lívida. Entre bonita e feia era coisa nenhuma. Ou melhor, era bonita, mas os padrões não se solidificavam sob suas formas. A roupa que vestia parecia ter sido escolhida por mordomo sobrenatural que conhecia sua disposição de espírito. O suéter cinza puído por cima de uma saia à moda senhora, de forma alguma lhe prestava ares de desleixo. Ao contrário, caía-lhe tão bem que passava a impressão de fazer parte de si. — Cíntia... sabemos o quanto a especialização de to-
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dos é importante, mas percebemos que você estuda como se estivesse correndo contra o tempo, e parece não admitir conhecimento que não caiba... Ane, da biblioteca, nos reportou do teor abrangente de suas pesquisas, e que me confessou — o que ela considerou uma lisonja, visto que você praticamente não se comunica com os colegas — os cursos que tem em mente fazer, alguns de naturezas um tanto opostas como matemática e filosofia. Ela ainda preocupou-se com o tempo que você tem passado na biblioteca, e podemos supor que ela não veja comportamentos similares entre alunos de sua idade. A reitora, chamada Elisabete, examinava-a a expressão, a fim de deduzir algum contraste produzido pelo que disse. Com efeito, Cíntia sofria o tipo de uma convulsão interna, embora demonstrasse disso muito pouco. Seus dedos magros contorciam-se e se esfregavam em suor, e seu olhar parecia lutar contra uma hiperatividade. Uma rara manifestação mais emotiva, ou algo difícil de conter que lhe chegava com mais intensidade. — Embora minhas inclinações não lhes sejam muito patentes, eu lhe asseguro que sei o que faço e escolho. Somente pretendo entregar meu tempo a algo que me faça sentido, e imagine em que isso possa me beneficiar, e em que possa me acarretar em prejuízo. Senhora Elisabete, não tenho facilidade em cálculos que não estejam agregados a um conceito teórico, cálculo por cálculo não assimilo, tem que fazer sentido; preciso saber o que estou calculando, e o porquê do cálculo. Não poderia fazê-lo, sem de forma automática me fatigar com a análise... — ela interrompeu-se, como se estivesse a falar o que não convinha. Ao longo do que dizia, sentia uma ansiedade aumentando em gradações sutis, mas desconfortáveis. Dando um salto da cadeira, passeava pela sala e dizia: — Carreira... o que para você é carreira... a mim pouco
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importa. Preciso acessar esse opressor em minha mente, tirar suas forças... A Reitora a olhava admirada, sentindo afastar-se suavemente da realidade, atônita com aquele espetáculo, e a julgar que a aluna seguramente estivesse perturbada. Era provável que os muitos estudos lhe tivessem provocado tal histeria. Que fascinante! O fascínio, porém, que lhe inspirava tão terrenamente, tomava formas abstrusas, que beiravam o transcendental. Com horror, constatou que as cortinas se moviam sem aparentemente estar ventando. E ainda mais assombrosa era a observação de que seus movimentos simultaneamente acompanhavam os gestos de Cíntia! Quis interrompê-la, lançar uma frase, mas como? Como interromper? Como malograr tão singular manifestação? Semelhante a alguém que é encantado pela magnificência de um redemoinho, e inevitavelmente contempla sua beleza misteriosa, antes que procure emergir, assim explorava seus movimentos; estudava aquele fenômeno de potencial destruidor antes que a devorasse. E como alguém que está sendo atingido com recorrência, sua boca não obedecia. Cíntia continuava com ainda mais comoção: — Tudo, tudo o que absorvo é como uma fraca chuva, que deixa o solo temporariamente úmido... Aquilo já era demais! A chuva caiu, não como é o habitual da natureza, com prelúdios, pingos escassos, não, mas toda de vez, de uma só vez, no momento em que ela pronunciou a palavra “chuva”! Não vendo seus sentidos ou razão, nenhuma margem para truque, não pôde deixar de considerar que se achava diante de um tipo de encantamento. Seria ela algum tipo de espécie mística? Oh, no que estava ponderando!
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— Cíntia! — a voz finalmente desimpediu-se — Vá para casa! Estás visivelmente alterada. Ela falou de forma brusca, e conseguiu a atenção de Cíntia, que mostrou estranheza, e suspendeu seu monólogo para ouvi-la. — Minha orientação pessoal, e também em nome da instituição que dirijo, é a de que você suspenda seus estudos por hora. Cíntia a olhou, totalmente admirada. — Não vejo nenhum motivo válido para tal recomendação! Como promotora de ensino, não deveria me aconselhar a isso... — Olhe! — ela a interrompeu pela segunda vez — Vejo-te perfeitamente responsável por si, e não tenho necessidade de comprovação além da que pessoalmente vejo em você. Se havia alguma particularidade intelectual em Cíntia que mais se chegasse à semelhança de algum déficit, essa seria a de que ela costumava ser lenta para palavras dúbias. Porém, a situação e o aspecto ameaçador das palavras que ouvia, a constrangia a que evocasse sua sagacidade. Ela lhe dirigiu um olhar tão firme, majestosamente firme, e ainda espectral, que quase fez Elisabete titubear. De um raio próximo ecoou um estrondo, e novas rajadas agora visíveis violentavam as cortinas. A chuva, agora em sua máxima intensidade quase impedia que conversassem. — Vá descansar, menina! Desafogue um pouco a mente para pensar com calma em que rumo quer tomar! — concluiu a Reitora. Cíntia apenas despediu-se com um rápido aceno e saiu, deixando com Elisabete o alívio. Saiu levando consigo a nuvem opressora, sem a qual Elisabete, na sensação de um sonho, jazia em ponderações, sem saber afinal qual a diferença
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real baseava-se em um fundamento lógico, que provasse que o que acreditava ver fosse razoável, pois nos sonhos também se apresentam situações de tamanha lógica, que convencem integralmente o sonhador da veracidade do absurdo que sonha. Ao acordar, ele se ri e percebe que não faz sentido, mas no sonho fazia. Que padrão volúvel era esse então? O que faria do sonho acordado mais idôneo? Porque na verdade, nada precisa ser razoável para existir. Seu intelecto pesquisava algo de sóbrio, e recaía em impotência. Com efeito, aquela menina carregava um mistério não passível de uma elucidação racional. E assim, embebia-se daquela beleza um tanto sombria. Para Cíntia, os dias posteriores foram como os cúmplices mais silenciosos de horas cheias, povoadas, tumultuadas de informações e atividades que a iam enfiando em um estado meditativo tal, que se esquecia de todo e qualquer mundo. Suas estranhezas interiores instigavam violentamente sua compulsão pelos estudos. E assim passava dias inteiros e incansáveis a investigar fórmulas e toda matéria avançada de seu currículo acadêmico. A pobre criança julgava subjugar através do conhecimento de elementos convencionais, o monstro que ela hospedava, ou antes, que emergia de si e apropriava-se de suas células, fundindo-se em cada vez mais outra nova consciência. Ou ao menos esperava não ouvi-lo ou perceber sua presença. E assim passava, sem a capacidade de assimilar nenhum marcador natural que a fizesse comer, dormir ou observar os aspectos da estação de forma definida. À tardinha, parava a meditar diante do movimento da rua, que se apresentava de forma tão alheia, que ali ela permanecia por horas a observar espectros, e a meditar acerca do potencial de seus estudos. Com essa fissura no espírito
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adentrava na casa escura, onde os elementos com os quais convivia lhe tornavam-se cada vez mais etéreos e distantes. Seus sentidos lhe traíam, ou com efeito adentrara um mundo de percepções mais acuradas. Ela lutava por entender aquele movimento que lhe ocorria de forma constante, lhe conduzindo a transformações várias, que lhe convertiam a deduções espantosas. E assim via sólidos objetos a movimentarem-se em sua frente, na infinidade potencial desse novo universo. Assim seus dias transcorriam, em uma migração do que havia nos livros para algo que jamais fora registrado ou descrito. A nuvem chamada Cíntia desimpregnara os compartimentos da Universidade, embora formasse ainda neblina densa nas memórias. À Elisabete recorrera a preocupação com o que se dera com a aluna, de quem ela agora se recordava não conhecer nenhum parente ou conhecido. Se a menina realmente sofresse de algum mal da mente, que a tivesse levando a acessos esquizofrênicos e maníacos, essa responsabilidade poderia muito bem recair sobre ela. No fundo, nem ela sabia que a lembrança de tal preocupação era obra também desse vermezinho da subconsciência, que era instigado a, comendo aos poucos, chegar aos domínios conscientes da mente, a fim de desvendar aquele enigma novo, que nutrira sua imaginação e lhe escapara, como se fosse mera impressão. Pois o mesmo verme a conduziu, sempre consumindo devagar para que não recuasse envergonhada. E assim Elisabete estava onde Cíntia escondera-se quase que involuntariamente do mundo. O ambiente estava escuro, e recebia luz entrecortada por cortinas brancas. Num silêncio sepulcral, jazia abaixo da luz solar vinda da janela, um corpo pálido e imóvel. Aquele corpo terrivelmente magro, dava à Elisabete a certeza de suas
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suposições, e de que acertara na decisão de estar ali. Para ela, era certo que em seu ataque maníaco, Cíntia definhara sozinha, sem o conhecimento de ninguém. Porém, como a nota alta e surpreendente de uma melodia ela pôs-se de pé, e falava com desimpedimento e energia. — Elisabete! O que veio ver? Elisabete, procurando recuperar o poder de dicção, disse com toda a formalidade que encontrou, mas sem frieza: — Vim porque estou certa de sua aptidão para continuar seu curso conosco – Na verdade ela não cria nisso, mas sentia-se tão exposta que falava a fim de aplacar seu constrangimento. O olhar incisivo de Cíntia, porém, a fazia ainda mais constrangida – ...e também todos os cursos que pretenda fazer, dedicando-se tão intensamente aos estudos... Cíntia não conteve um sorriso irônico. Era de impressionar como sua lucidez e vitalidade destoavam do aspecto mórbido de seu físico. — As coisas mudaram um pouco. Veja, que óbvio você aqui comigo. Bastou apenas uma questão, e você está onde a ilusão e a realidade se confundem. Elisabete procurava a sobriedade em meio a tantas flutuações bizarras, e tão poderosa persuasão que, aquela que seria uma simples menina exercia todas às vezes. Assim, tentava novamente falar, mas antes que conseguisse, um vislumbre tão rápido a precipitou aos níveis do terror. Pois ocorria que, da mesma janela pela qual há pouco entrava a mais viva luz solar, agora emoldurava um céu nebuloso e negro, da mais densa noite. Seus olhos giraram confusos, procurando a saída daquele sonho estranho. Cíntia, como uma visão, caminhava em direção à porta, descalça e pouco vestida. Tão leve, tão fluída, que parecia...
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transparente. Ingressaram naquela noite distópica e gélida, mas Cíntia não demonstrava sentir frio. Ela certamente estava perturbada. Elisabete precisava sacudir de cima de si tais efeitos, e resgatar aquela jovem, o que agora era responsabilidade sua. Mas Cíntia andava cada vez mais rápido, até atingir velocidade absurda. Nenhum carro passava naquela avenida! Que horas deveriam ser, já que não havia mais nenhum parâmetro que a retomasse da loucura? Mas havia neblina, por entre a qual Cíntia desaparecia e ressurgia, como um vulto de outros mundos. A Reitora a perseguir, como cúmplice daquela noite de devaneios, mas não a alcançava, podendo apenas observá-la percorrer rapidamente aquele caminho e adentrar a mata densa, onde pareceu desaparecer por instantes. Já sem saber se movida pela curiosidade ou por ética pessoal, ela seguiu também em meio àquela floresta. Como uma ébria, pisava a relva molhada com violência, a fim de não perder a menina de vista. Àquelas alturas ignorava também onde estava, e seu único norte era o espectro de Cíntia em meio à escuridão daquele lugar sem saída. Um arrepio frio percorreu sua espinha. Seus pés pisaram uma nódoa gelatinosa. Estava cansada, sentia medo. Nunca acreditara em sensações místicas, ou que não estivessem debaixo da luz científica, mas seus sentidos lhe traíam com insistente resistência, e lhe causavam as mais pavorosas impressões. Nuvens cerradas abriram-se para a lua, e assim ela pôde perceber que pisara o limiar de um pântano, extenso e amedrontador. E como poderia ser possível que Cíntia o tivesse atravessado? Tal vislumbre poderia ser real? Quem acei-
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taria posterior descrição? Elisabete, que chegara ao ponto de recuar, num arrojo de coragem, anuiu à imagem que lhe convocava, e procurava chegar a Cíntia. O incidente, porém, mais fantástico e perturbador que jamais presenciara antes se revelou a ela, e ela contemplou a beleza daquele desconhecido, que mesmo parecendo ter saído das profundezas de um mundo sepulcral, ainda assim vivia dentro de uma poesia. A lua, agora aparente, parecia acolher formas e luminárias, como uma festa noturna por trás das nuvens. Quando sua visão recuperou a imagem de Cíntia, esta, como se todos os seus órgãos falissem de uma vez, a um só instante caiu desfalecida. Ao Elisabete debruçar-se sobre o corpo agora gelado, uma luz branca e fantasmagórica subiu serpenteando por entre a floresta fechada, e o pântano nodoso refletiu aquele espetáculo sombrio. Assim debruçada, Elisabete permaneceu por um tempo que não pôde contar. Teria ela ouvido algo vindo daquele vulto em sua ascensão? Era impressão sua, ou realmente ouvira um lamento? Um murmúrio talvez? O dia ia amanhecendo sobre o corpo pálido estendido. Não havia nada que pudesse induzir a dedução da causa de sua morte. Tudo estava íntegro, apenas desfalecido e torpe. A floresta passava a se revelar sob um tom que conseguia unificar o branco e o negro, o claro e o escuro. Não que um desse lugar a outro, mas os dois integrados formavam aquela cor que cobre a natureza ao anoitecer ou amanhecer. Sentiu mais uma vez aquele corpo gelado em sua pele, já que é provavelmente impossível ter consciência de que se está sonhando e assim permanecer. Talvez acordasse...
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Aquela coisa foi embora, e levou metade de seu segredo. A que primeiro era flor, de seu jardim disse: elevá-lo-ei ao nível de paraíso! Não havendo vencedor, a história perdura; não havendo vencedor, venceu o mistério!
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Todos dormem, eu velo. Eu que sou a procedência da chuva. A chuva, espero de pingos comedidos. Eu velo o sono de quem da noite. Não conhece seus perigos. Apenas em sonhos calcula sombras. Eu zelo com espada multiforme pelo que não pode fazê-lo Eu enfrento a neblina desse zelo que procura confundir. Vontade de desistir. Sem descanso pra prosseguir. A chuva comedida espero que salvará aos que dormem. Enquanto eu, eu velo. Me deixaste na escolta Anjo dourado de luz. Teus gestos de sangue puro o espelho pra mim reluz a chuva de pingos comedidos. Eu invejo, Eu que sou, Eu que sou luz.
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O breve sentido de Alfredo
Espreitei a noite, com seus mantos de neblina. O vento tocou-me o rosto, trazendo um viço repentino. Observava eu a lúgubre paisagem, quando o assobio de um pássaro noturno despertou minha alma absorta em tal eclipse romanesco. O fervilhar de minhas ideias entravam noite adentro. Sou volúvel, irritadiço, maníaco, meu mal é a misantropia. Alguém certamente pensará, dirá ou romanceará que eu deva ser mais... equilibrado. Sabe, equilíbrio, e eu não ousarei questionar o valor do ônix do cidadão moderno. Não questionaremos então, mas façamos um rápido experimento teórico. Sim, dispomos de tempo. Vejamos! Pensemos em dois homens. Enquanto um está a viver as experiências mais excitantes de sua vida, sem jamais estabelecer uma relação de custo-benefício para com suas atitudes, temos
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por contraponto um comedido cidadão, que passeia com a família aos domingos. Este desfrutará longos anos em um lar aconchegante, e na segurança de um trabalho perene. Ao alcançar a meia idade, ou quem sabe antes, sossegará em estabilidade financeira, e é bem provável que continue a trabalhar depois da aposentadoria. Enquanto isso, seu antônimo terá como seu mais íntimo e fiel amigo o prazer, até que esconder-se-á de si mesmo aos trinta anos, e aos quarenta, estará a desfrutar as dívidas da existência, caminhará melancolicamente, e carregará uma arma, por escusos motivos. É certo que o primeiro se arrependerá, mas não mais do que o segundo. As aventuras não vividas do cidadão prudente lhe renderam alguns trocados para a velhice, e ele pode dormir à noite, mas quanto ao outro... Certo é que pode nenhum desses desdobramentos ocorrer, devido à natureza relativa dos movimentos da vida. Oh, é claro, algum crente de leis físicas, palpáveis e previsíveis objetará que isso trata-se da lei da semeadura. Sendo assim, colocamos em delicada situação os agricultores da vida. Notamos, porém, interessante semelhança entre nossos dois modelos. Semelhança essa que os aproximará, e quem sabe até os unirá. Tal ponto em muitas fases de suas vidas, ou quem sabe em todas, os intrigará, causará desconforto e um olhar soturno de questionamento interior. Eles farão muitas coisas, motivados pelo desejo de preencher essa lacuna marcante em suas existências. Talvez esse desejo sobrepuje a ganância, os valores e até o amor. Há os que apostam tudo por causa desse desejo, há os que perdem tudo. O fato é que nenhuma das duas pessoas em questão encontrará um sentido, real e fundamental, para sua existência. Assim caminharão dia após dia, sombria e resignadamen-
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te para seus túmulos escuros, ignorantes do que os espera, se algo os espera. É o papel de todo homem, isso é lógico, até demais. Consideremos ainda outra situação: o indivíduo é extremamente religioso, e acredita ter lugar reservado e certo no pós-morte, mas o primeiro fato terrível em sua existência o força a confessar prematuramente que acreditou em algo que julgava nunca aproximar se. Faço essas declarações com o fim de introduzir-te ao mote dessas poucas páginas. Enfado-te leitor, eu sei, falto-te com atenção com estes devaneios e aparentes digressões. A pertinência de tal relato talvez sejas a ti motivo de assombro, se não estiveres, assim como estou hoje, com os olhos pregados aos mistérios que a noite reserva aqueles que suportam acordados perante horas de esterilidade noturna. Há os que desejam com paixão, presenciar as ocorrências durante o sono coletivo. O que ainda nos resta de verdadeiro é a vontade, para isso é preciso estar desperto. Passo a vos narrar a peculiar história de José Alfredo. O outono ainda esparramava suas reminiscências, quando sua figura saudou-me após uma porta que com pouca frequência se abria. — Mas olha! — Boas disposições me trazem, amigo meu. De fato, estava ele com um viço juvenil. — Fico feliz que venhas até mim com boas notícias. Oh, meu amigo! Depois de observar a sala, como a certificar-se de que eu me encontrava sozinho, consultou o relógio e sentou-se. — E então, Carlos, o que tem achado da vida em frente à uma lareira? — Ora... você me falando nesses termos.”O isolamen-
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to é identidade da razão”, discurso teu. — A razão tem suas etapas... tenho projeto novo. Por um momento, pensei que zombava. — Você, que me censurava até o hábito do vinho? — Somos velhos, Carlito. — Qual não foi minha surpresa quando o mirei se dirigir até o bar e servir-se de uísque — Até agora tantos ventos nos carregaram. Por não haver alcançado justaposição em doutrina alguma, hoje sigo outra entidade. Seu nome: tu podes. Observei-o quase involuntariamente por dois segundos. Ele pareceu não se importar, e me ofereceu da bebida com um aceno. Ora, Alfredo era o personagem que vos descrevi ao iniciar esta narrativa. Um tipo mais conservador do que eu conseguia ser. Trabalhava no comércio, no ramo da pecuária, e apesar de dominar muito bem nossa língua e a exuberância de nossa gramática, era de poucas palavras, e repelia com veemência a conceitos que lhe parecessem estranhos. — Venho a lhe comunicar que desde já viverei uma outra vida, que não tive oportunidade antes de escolher. — Poder libertar-se de hábitos antigos é uma habilidade muito útil — procurei dar-lhe razão. O canto de sua boca sorriu, como se eu estivesse sendo ingênuo. — Trata-se de um pouco mais do que isso. É certo que tudo são hábitos, mas não se trata assim de tirar a tevê do quarto, ou tornar-se vegetariano, você entende? — Veio com o propósito de instigar-me, então! — Verás! Não deixaria ignorante um amigo de tanto tempo. — Me parece um tanto aventureiro, meu amigo — tentei debochar, mas palavra fiel é que não consegui. A resolução que trazia em sua expressão me seduzia.
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Sua certeza me fazia concordar com tudo. Era como o calor de um aquecedor, que nos envolve e convence, ao ponto de nos fazer esquecer que lá fora está frio. — Ah, Carlos! Não tenho mais a quem causar dano ou falta. Desde que Elzira nos deixou, não tenho mais vínculo de compaixão. Ele abriu os olhos, como se estivesse lembrado de algo, e continuou: — Sabe, há os que exaltam o poder do sangue. Porém, eu que sou devoto da livre escolha, antes que da genética, não estranho que o Homem tenha o costume de se desvencilhar de sua primeira família, para formar outra, onde sua vontade participe mais efetivamente... E também não me admira que a segunda lhe inspire mais afeto que a primeira, pois representa justamente sua escolha livre, seu domínio, após um jugo de anos. — Observaste bem, estimamos nossas escolhas ou o que as representa. — Pois bem, conforme deixamos de ser criança, e nos passa a descortinar-se um horizonte de muitas possibilidades, passamos aos poucos a desenvolver a habilidade da rotina. Isso a fim de evitar escolhas equivocadas. Presumimos alcançá-lo ao não adotarmos novidades. Se em algum momento, por acaso, nos pegamos a caminhar às dez da noite, isso nos inquieta, e é possível até que nos traga sensação de mau agouro. Procuramos organização, e o tempo, tão alheio aos julgamentos a respeito de si próprio, é representação disso. — Ora, e precisamos —repliquei— Todos temos muitas obrigações, e são inevitáveis.... Mesmo aos aposentados hehe. Imagine tudo isso sem uma ordem a nos manter o norte? Seus olhos brilharam de um reflexo assim, como o de
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um farol, que vem de algum lado, e ofusca de repente. — Desde agora, viverei uma vida diferente! A compaixão da família nos tolhe a muitas coisas, e não é de admirar. Mas digo que há o que foge de nosso controle de poder escolher. Por isso e mais um pouco, certas decisões só são tomadas a custo de bastante idade. — Mas porque me diz tudo isso, Alfredo? Procurei o que retorquir, mas não achei. Continuei, procurando um tom mais prático, mas a resposta não me veio no mesmo pé: — Meu amigo, a vida frequentemente eclode de uma interrupção entre duas atividades, mas por vezes não reconhecemos tal evento, e a adiamos para um momento ideal posterior ou póstumo, para onde a epifania já se tornou estéril. Não compreendi de imediato. Tal como o vinho se confunde pela estética ao sangue, não sabia se sua ilustração tratava-se de nascimento ou morte, prazer ou fisiologia bruta. Não vendo outra forma de pôr termo ao assunto que se tornava cada momento mais nebuloso, procurei trazê-lo ao nosso modesto mundo palpável: — Almoçaremos juntos, claro. — Seria muito agradável, mas já estou indo. — O que? Que visita é esta? — Preciso ir, meu amigo. — Mas não me dirás, com efeito, quais são seus planos? — O homem é encarregado de suas desventuras, sem ter efetivamente a quem recorrer, e nisso há uma só lição: a de que ele é o dono de seu bem, e não há quem o possa tolher. Farei algo por mim, pois não há salvação fora de nós mesmos. Tendo dito essas sublimes palavras, ele foi-se, e eu per-
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maneci ali, a pairar na nuvem que ele deixou, sem por isso isentar-se de carregá-la consigo. Minha reclusão providencia-me luxos, dentre estes está o de que não preciso medir o tempo de minhas reflexões, e até imaginações. Alfredo trouxera-me inspiração, e assim fiquei, criativo e imaginativo, e menos que meia dúzia de horas depois, recebi via e-mail uma notícia vestida de tristeza. E vinha assim, tentando proporcionar conforto a algo inevitável, pretenciosa de conhecer o mal do Homem: “Sr. Rafael. Somos cientes da amizade e consideração mútuas entre você e Alfredo Diniz. Portanto, com muitos sentimentos lhe informamos de seu falecimento. Como é certo que saiba, nem ainda vinte e quatro meses após o sepultamento de sua esposa e muito amiga, esperava por notícias de sua única filha, desaparecida há algumas semanas. Todos nós aqui de sua família receamos tais sucessos terem sido carga pesada demais a nosso amigo. Seu corpo foi encontrado em aspecto irreconhecível não muito longe da encosta do rio onde pessoas repararam a presença de um barco que estava ancorado e vazio fazia dois dias. Bem, você sabe, ele não costumava entrar em água, muito menos a dez graus. Apesar do horror, todas as evidências apontam para que não estejamos diante de um crime, e nós aqui também não temos esta suspeita. Basta que nos convençamos de que foi um acidente. Que Deus nos providencie essa certeza!” Toda a teia se conectou para mim, e contemplei-a com horror inicial, ascendendo meus escrúpulos, e por fim, minha curiosidade mais profunda. Como se a informação daquela mensagem representasse meus desejos mais reprimidos.
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Como Alfredo conseguira tal feito? Sublimei sua coragem, invejei-o, chamei-o frio, inteligente. No entanto, a pergunta capital não era como ele empreendera tal aventura, mas o porquê. De fato, para viver de uma forma que nunca antes o fez, o anonimato é confortável. Sem as influências, convenções e conselhos de seu círculo. O pior, as censuras, escrachadas ou tácitas, escrachadas depois tácitas, de pior forma, daquelas que pretendem lhe descobrir seu mais horroroso destino. E sim, é preciso estar muito decidido quanto ao que se acredita, para que se rompa vínculos tão próximos. Seria romper com as próprias referências. Ora, o olhar alheio talvez enxergue como tolice ou exagero, mas certo é que um conceito liberado pelo pai, enquanto somos adolescentes, quase com a despretensão, beleza e sedução de qualquer historinha moralista para crianças, pode às vezes ter o poder de influenciar decisões por uma vida inteira. Não que eu creia que tais sugestões não tenham acompanhado meu amigo aos confins que tenha escolhido. Porém, quando nosso sofisticado sistema psicológico se nega a encontrar sua autenticidade por si mesmo, necessário se faz uma ajuda artificial, para que entre nos trilhos. Tolo é aquele que rejeita tais atalhos. Em minhas análises, de cunho quase terapêutico, me sobreveio uma ideia, quase uma epifania. A de que Alfredo queria, não no âmbito mais concreto, coletivo ou trivial, mas no subjetivo, interior, queria ele ser livre de suas associações mentais. Nisso me excitou uma curiosidade um pouco sádica. Estaria ele praticando algo de ilícito? Eu poderia estar romanceando demais suas atitudes, e esquecendo de sua inclinação utilitarista e prática?
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Teria ele alterado o horário de seu café da tarde? Minha mente envergonhada migrou para essa questão mais trivial, mas não menos importante. Tal e qual questão, os métodos de meu amigo, por hora me encobriram. A garoa, agora muito fraca, já não molhava a vidraça. A claridade que se seguia sugeria até a possibilidade de uma olheira de sol ainda naquele dia. Isso deprimiu-me um pouco. Fechei as cortinas de um golpe e servi-me de meia taça de vinho. Sorvi um gole, arrependido lancei mão da garrafa e completei a taça. Sentei-me em frente a lareira, estava frio, e refleti mais um pouco. Refleti, gostosamente refleti.
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Tenho toda a esfera sem limites a ser colonizada e um campo energético vazio, e o rio, e o vento, e todo elemento de vinte e quatro horas. Para manipular como convém tenho toda a covardia das três dimensões. Na retina, tenho os pregos ignorados e uma fronte cauterizada por quantidade imensa de idade e vida cristalizada, comovida e convencida por cada uma das sete cores de uma eletricidade translúcida convergente, resplandecente. Eu tenho coragem suficiente para amar e o céu para voar!
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Caroline
A primeira vez em que vi Caroline, insondável prazer e espanto não poderia eu supor, que aquele dia de sol trivial me trouxesse. O vestidinho cor creme era suntuoso, porém vestia-lhe de forma despretensiosa. O tecido grosso adornava-lhe os ombrinhos, que ainda não tinham uma década. Assistida pela percepção de toda a previsibilidade do que ocorria em meu consultório, passei a inquiri-la. Não sem medo de que a névoa encantadoramente mística que a cercava se dissipasse, e tendo quase certeza de tal ocorrência. O verbo, porém, sem prurido jorrou, confirmando e radicando minhas impressões mais românticas. — Olá, Caroline, é um prazer conhece-la. Como você está?
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Ela estendeu-me a mão, rígida, e a minha foi encontrá-la, sem discernir muito bem se o fazia a uma adulta ou criança. — Estou bem, senhora Juliana. Ela sentou-se inteligentemente na beirada da cadeira, acomodando o vestido, e mantendo os pés o mais próximo do chão que podia. — Como você se sente hoje? Foi à escola? O que acha de seus colegas? A menina me respondia com enfado. Seus olhos azeviche corriam pelo consultório, pareciam contar as persianas... E eu em minha afetação, não sabia mais como outorgar praticidade e credibilidade a meu quase monólogo. Enfim, ela me interrompeu com um gesto de mão, e eu parei, interessada em ouvi-la. — A senhora pode pedir para que eu faça um desenho. O que acha? Tal sugestão debilitou toda a linha analítica que eu adotara até então, e me desconcertou acentuadamente. Como, diante da inconsistência das respostas obtidas até ali, não me ocorrera tal método... Antes que à ela? Caroline indubitavelmente não se tratava de uma criança comum. Minhas habilidades de forma alguma permaneceriam veladas diante dela, e nem minha ignorância. A ideia se fazia impositiva, e estendi-lhe ofício branco, e um estojo, com cores e tudo o que ela precisaria. — Gostaria de ter sua opinião, senhora Juliana... — ela começou, coreografando a cabeça sobre o papel. E cada palavra que ela dizia me arrebatava totalmente o interesse. — Pois não... — Certa vez, moramos em uma casa grande e antiga – ela falava, sem tirar os olhos do papel. — Havia muitos
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aposentos. Era uma casa alta. Eu me sentia, de alguma forma, distante dos humanos lá dentro. À tardinha, eu gostava de observar a rua de uma das sacadas. O quintal era de uma imensidão verde, e eu até tinha a sensação de ter um jardim encantado, onde o espaço vinha servir-me. Havia um quarto, que ocupava todo o terceiro andar. Este não possuía janelas, mas por todos os lados havia vitrais, que transmutavam a luz solar em raios multicoloridos. Por conta disso, o quarto nunca estava escuro, e também nunca estava iluminado. Uma corrente de vento sacudia as enormes cortinas e as agitava constantemente. Sabe, o vento podia não estar na rua, mas constantemente estava lá, atrás das cortinas daquele imenso e alto quarto. Algo exercia um poder alheio sobre mim, quando eu subia para ali. E ali desenvolvi precocemente muitas de minhas habilidades, inclusive verbais, embora minha mãe tenha sido uma exímia e rija instrutora... — Você fala como uma adulta... – afirmei, espantada. — Isso não deveria ser motivo de surpresa para ninguém. A inteligência é tendência humana, e a memória, se soubéssemos de sua capacidade... — ela disse, depois continuou – Havia uma presença naquele quarto, e às vezes chegava a crer que ela ali residia única e exclusivamente com intenção de convencer-me por bem, que passasse horas em meditações, impossíveis de se transmitir a outro. Essa presença em grande parte me formou, e acredito também que a meus pais. Era palpável e convincente, de forma que eu sentia-me sempre recompensada, de todas as tarefas em que o uso da imaginação era vetado, das brincadeiras extenuantemente triviais que eu encontrava na escola... Pela primeira vez ela tirou os olhos do papel, e os dirigiu a mim, de uma profundidade que só aquele negro poderia possuir. E continuou, estendendo-me o papel desenhado:
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— Você acredita que tal coisa ocorreu apenas em minha imaginação? — Veja, linda. Nossa imaginação é despertada por nossos desejos e temores mais profundos. Você acha que havia algo nessa casa que a influenciava de forma positiva... Peguei o desenho facilmente dedutível, apesar de nitidamente não ter sido traçado por mãos muito eficientes. Ela usara apenas o lápis preto! Que peculiar! Havia uma figura cadavérica velando o sono de alguém que parecia ser uma criança. A imagem apesar de simples era tão impactante, que me fez esquecer o que eu dizia. — O que você desenhou Caroline? – perguntei. — Um anônimo. — Ah! E o que isso significa? — Alguém que participa da vida das pessoas, sem que estas saibam, ou o vejam. Alguém que está acostumado a viver escondido, sem ser percebido. Uma presença... Concluí que aquela menina já estava me manipulando e impressionando além dos limites, e encaminhei a sessão para o seu final. Ela não se mostrou surpresa nem descontente, mas ficou quietinha enquanto eu anotava seus dados, e antes de sair me disse: — Doutora Juliana, se me visitásseis, não tenho dúvidas de que ficarias mais inteirada de meu estilo de vida e do que me norteia. Ela fala como um adulto; ela olha como um adulto! Ela ainda disse: — Só não apareça à noite, pois talvez não consigamos recebe-la da melhor forma. Apenas a despedi, sem considerar em nenhum nível, sua sugestão. Porém, não podia esquecer de modo algum, aquela persona tão peculiar. Nos dias que se seguiram foi
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igual. Algo ali me despertara severamente o interesse, e isso se acentuava quase que linearmente. Naquela noite eu estava só, e tinha isso por privilégio. Minha alma agradecia por estar desconectada do mundo externo. Após a terceira taça de vinho, porém, o mesmo se intrometia a expiar a todo evento sensorial que destoasse de nossos padrões perceptivos. O vinho, entretanto, ou através de tal, me fizera em tal noite considerar o que está vetado, nos banquetes de cardápio pré-estabelecido. Os quais garante a seus participantes, vida curta, porém previsível. Eu precisava de vida longa, e pensava nas sutilezas de Caroline. Suas ponderações de sabedoria precoce interceptaram-me violentamente, tomaram conta de minha embriaguez, do aposento todo em que me espalhara. Tinha tomado conta também do quarto. Enfim, entreguei-me profundamente a algo que se faz certo em meio a erros. E eu sabia que não era perfeito; e eu sabia que estava certa. A lua estava indiscreta, prateada e enorme. Metade dela pendia, com beleza obscura, da vidraça da janela. De uma sacada insensível e alheia a uma cidade ainda frenética, apesar de ser altas horas, adornada pelo véu escuro da noite densa, cravejada por todas as luzes antiletárgicas, que procuram nortear aqueles que insistem em locomover-se em hora não usual, ao luzeiro maior da noite, dirigi afirmações em idioma particular. Aquela noite, assim como o que há de mais sagrado, não teve fim, e pareceu-me não começar. Apenas amanheci. O quanto eu acreditava na presença que a movera? O quanto sua imponência intelectual, e suas feições etéreas e pálidas poderiam sugerir que fosse ela nativa apenas da Terra? Como disse, o vinho me pusera de largo aos mais doutrinários conceitos acadêmicos. Ademais, eu cansara de andar por
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um caminho todo iluminado, em que eu podia ver até ao final dele, e não havia nada de interessante. Caroline parecia vaguear por noite escura, e eu cortejava sua coragem, embora buscasse fugir de sua adorável anomalia. “Não apareça à noite”, ela dissera. A lembrança me assaltou efusivamente. Seria um convite implícito? Teria intenção efetiva de repelir-me à ideia de visitá-la, ou através de simples psicologia reversa, cumpria o intento de impelir-me, cônscia da elementar regra natural que nos faz desejar impulsivamente pelo que nos é ilícito? A recorrência de sua observação, porém, imperava e abduzia-me na resolução em fazer-me testemunha das insólitas ocorrências a mim descritas. Atraída pelo verbo vivaz do espectro que me falava, logo estava a explorar as ruas escuras. Trafeguei algumas quadras, onde deixei o carro para seguir a pé. Se houvesse nisso algum risco, não me persuadiu mais do que o de ser abordada pela polícia, dirigindo não propriamente sóbria. Com efeito, eu sentia medo de pouca coisa, e escolhi as ruas mais desertas. Mesmo por tais caminhos, a cidade apelava e procurava dissuadir-me. Entretanto, eu sentia a necessidade de permanecer em um estado meditativo, do qual frequentemente informações externas com eficácia me fariam emergir. Tais questões me pareciam tão inverossímeis, que dessa forma eu tinha impressão de conseguir advogar por minhas deduções a partir de minha fonte lógica. Nesse espírito fiz todo o percurso, e neste mesmo, cheguei até o endereço de Caroline, relacionado em seu prontuário. De fato, a estética da casa impunha mistério, de forma um pouco menos que caricata. Seu tamanho, e o aspecto peculiar de sua cobertura, me fizeram praticamente concluir que Caroline contou por passado, o que pertencia ao presente. Bem municiada por um parecer clínico, que expiaria
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qualquer suspeita de insanidade ou afetação, adentrei até a porta da frente. Mas, poderia eu justificar-me perante mim mesma? Teriam meus sentidos sido manipulados pelo ardil de uma menina, uma criança? Toquei a campainha. Galhos secos faziam sombra à parede, balançados violentamente pelo vento. “O vento prognosticador...”, pensei. Segundos depois, percebi que inacreditavelmente a porta estava entreaberta. Ousei entrar na sala, que estava totalmente escura. O que passo a narrar agora, não tenciona, nem de longe, lograr algum crédito por parte de quem tome conhecimento. E como pretenderia? Eu mesma jamais aventuraria meu pensamento à aparência de tamanha falácia. Eu mesma, em minha atividade diária como psicóloga e rodeada por tanto ofício, e ensinamentos formais, não recorreria senão a estes, para diagnosticar aquele que me chegasse com tal relato. Por isso é que exponho tais fatos amparada por pseudônimos, e alguns outros recursos, que colocam a parte o que não é fundamental. Preciso viver negando o que viram meus olhos, de outro modo sei que comprometeria minha reputação. Ao adentrar, ouvi como que uma espécie de canto litúrgico, só que em uma língua totalmente estranha a qualquer idioma já acolhido no mundo. Ora três vozes o recitavam, ora duas. Fui atraída irremediavelmente a rastrear o som. Tinha a nítida impressão de ser minha presença conhecida, e até monitorada. À essa altura, minha razão reaparecia a lembrar-me de perigos mais palpáveis. Não digo toda a estética, pois seria desleal, mas toda a casa, me transportava para dois séculos atrás. Toda ela parecia estar em um estilo vivido de forma empírica. Os tapetes pesados, que cobriam quase todo o soalho, móveis bem dese-
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nhados, com beleza particular... Sempre achei uma pena que nosso padrão estético tenha passado a se manifestar de forma tão simplista. E sempre achei que isso seria o reflexo fiel de nosso culto desmedido às ciências exatas e da cauterização de nossa sensibilidade, causada pelos nossos muitos trabalhos e sobrecarga. Cheguei até a porta, que como por uma provação irônica, estava fechada. E digo, antes de julgamento, que cem dentre cem abririam. Eu abri... consciente de minha inconsequência. A história que eu desvendava, até onde eu vira, poderia ter inúmeros caráteres que a definiriam, e eu presumia que mais da metade deles me seria nocivo. Empurrei a porta sem anúncio algum, numa espécie de astúcia e irreverência, que vinham não sei bem de onde. O que vi ninguém me convenceria se o contasse. Caroline estava de joelhos, com os olhos vendados. Ouvia-se em tom quase perturbador, a voz de seus pais a entoarem, a sua volta, aquela estranha composição. Depois a de Caroline... mas... posso afirmar, sim e com toda a firmeza, a voz era ouvida, mas seus lábios não se moviam. Definitivamente, não era ela quem cantava! Achas este o mais estranho dos episódios? Porém, agora que tua lógica racional já te fez menear a cabeça e expelir essa ideia estranha como se fosse uma bactéria nociva, agora te relato a parte mais sombria. Como o brilho que antecede o ocaso, que logo nos escapa e se torna luz opaca, assim eu vi que todo objeto físico que a rodeava estava suspenso. Mesa, cadeira, candelabro... tudo orbitava, literalmente, dominados por uma força oculta. Não pude conter um suspiro, que involuntária e discretamente ecoou na sala. E tudo desmoronou, perdeu o encantamento que o mantinha no alto. Tudo foi por terra, de onde a sã teoria einsteiniana declarou que jamais sairiam.
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A voz anônima parou de cantar. E Caroline (tão delicada!) caiu como morta, como se lhe tivessem arrancado subitamente o “sopro”. Não obstante, eu nem mesmo acreditar no que vira, inevitavelmente deduzi que Caroline era vítima de loucos, e corri para acudi-la. — Doutora! Estou feliz em vê-la, mas não sei se posso dizer que chegaste da forma mais adequada. Apesar do pai de Caroline tratar-me como se minha presença fosse inesperada e inconveniente, sua expressão não me convencia disso, e fazia-me ter a impressão de que tudo havia sido previsto e premeditado. Como eu passasse a examinar a menina, ignorando-o. A mãe por sua vez disse: — Ela nunca esteve tão bem. Já passa da hora de nos recolhermos, ficamos felizes por sua visita. Eu ia responder algo, mas com a mesma precipitação com que Caroline desmaiou, ela voltou a si. Seus olhos abriram-se de súbito, assustando-me até. — Você está bem? Ela livrou-se de meus braços, e falou calmamente: — Senhora Juliana, sempre entre aqui com cautela... –levou o indicador aos lábios, reivindicando silêncio, depois concluiu – Não queremos afastar a presença. Um sarcasmo frio tomou conta de suas feições, e eu fui deixando aquele lugar, com uma sensação ameaçadora de que não teria tempo de chegar à rua antes que visse mais uma ocorrência insólita. Assim, como que querendo acordar de um pesadelo, saí de lá na velocidade que minhas pernas permitiram. Antes de cruzar a porta, tive a impressão de ouvi-la rindo, mas segui sem voltar-me para ver. Teriam meus sentidos sido assim manipulados? Ou poderia eu lança-los à confiança do que meus olhos não negam terem visto? Embora eu estivesse razoavelmente tenden-
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ciosa para um dos lados, digo que não ousei seguir em minha investigação. Mas arquivei-a como meu íntimo segredo. Porém, poderia eu fazê-lo perante mim mesma? Encaminhei Caroline a outro profissional, mas continuei a monitora-la de longe, com uma preocupação maternal, mas também curiosidade. Por esse viés, absolutamente nada de anormal chegava ao meu conhecimento. Teria eu que aproximar-me dela uma vez mais, para reencontrar o que a circundava? Certo é que doravante carrego uma mente mais investigativa, uma fronte mais reticente, e a austeridade de uma alma que transcendeu aos limites inflexíveis de nossa formação racional.
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A flor, que flor não é, mas pétala cinzenta de outono... no outono se fechar, assim escolheu... sustentar-se da hemorragia da noite. Compreensão ela clama, e escolhe o mundo que carrega... carrega ela... ela carrega... vasto mundo de sombras. Translúcida vida tinhas no casulo que te acolhia... hoje rompido por transcendente melodia Acostumaste a solidão escolhida assim negas... o escuro que te gerou abandonas um lado do complemento mataste a sensação na qual viveste... a mentira mais verdadeira... o teatro mais autêntico... Tudo... pela mais nebulosa luz.
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Vínculo sarcástico
Era final de junho quando recebi, escrita com letras grandes, uma carta, que após reticentes saudações, pedia por minha presença. Tratava-se de um antigo amigo, que não via há um bom tempo. Não estranhei a forma usada para comunicar-se, Rafael tinha suas peculiaridades. Cheguei a sua casa na data combinada, e toquei a campainha, que estava coberta pela vegetação. Isso estranhei, pois meu amigo sempre fora muito cuidadoso. Ao abrir-se a porta, não me impressionei menos. A mulher que me atendeu não moveu um músculo do rosto, enquanto disse: — Pois não... O tailleur preto, de ombreiras e gola alta que ela vestia, denunciava sua magreza e brancura extremas. Seus cabelos, muito bem alinhados no alto da cabeça, deixavam a mostra
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um rosto congelado, e cheio de rugas. Por um momento, me senti em um dos mistérios de Poe. Estranhezas a parte, entrei. Entreparei à porta, observando a cabeleira loura de um homem sentado na poltrona. Não preciso descrever minha surpresa, quando vi que se tratava de Rafael. Salvo falha da lógica, deveria estar desfrutando de longas e prazerosas horas, ao lado da companheira escolhida, e um ou dois cachorros, para suprir a falta dos filhos já casados. No entanto, a atmosfera que deslumbrei fugia radicalmente disso. Meu amigo me recebeu com a simpatia de sempre. Talvez com um pouco menos de... polidez. — Oh, meu amigo, os anos te fizeram bem! —Estou bem. —Sente-se, deve estar cansado. — Você está um tanto mudado! — Sim, enfim cansei. Quem precisa manter as convenções, depois da metade da vida? Quisera eu tê-las mantido aos meus quinze. Agora não. Às vezes precisamos de um pouco mais de... intensidade — Ele me olhou, como se lhe ocorresse algo — Você deveria tentar. Encarei-o, atônito. Indiferente, ele prosseguiu: — Venha! Ana está acamada. Meio permanente, sabe? Essas coisas... ainda bem que temos a Joana. Não sei o que seria dessa casa sem ela. Rafael conduzia-me ao quarto, usando um tênis adolescente ridiculamente discrepante com sua idade. Estaria ele sofrendo da síndrome de Peter Pan? No quarto, muitos livros obscuros, com temáticas ocultistas, cobriam as estantes. Ana permaneceu estendida sobre a cama e assim me lançou um olhar muito breve. “Ela está abalada, mas é a única que preserva a lucidez nesta casa”, pensei. Desde que eu entrara ali, Ana era o único lampejo de lucidez que eu encontrara, e a isso eu queria vincular-me, para ao menos conseguir passar a noite em lugar tão psicodélico. Ademais, estava preocupado com Ana, enferma e em meio aquela loucura. — O tempo te fez bem, amiga.
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Ela levantou olhos súplices, devagar. — Obrigada! — Deus lhe proporcione ainda muitos anos. — Eu sou uma prisioneira deles – ela disse, agarrando meu braço. – Não se preocupe comigo. Fiquei aturdido. Seria aquele, um explícito pedido de ajuda de Ana? — Vou lhe mostrar seu quarto. Você está com cara de cansado. Eu agora estava envolvido na história daquela casa, fosse ela qual fosse. Eu agora fazia parte, e só fugiria se fosse covarde. Chafurdei entre os livros, para ver se haveria algum título capaz de suavizar minha noite. Eu, que era inclinado à literatura obscura, agora procurava como a um tesouro, algo com a banalidade de um guia turístico. Acordei tão agitado quanto quando dormi, meia hora antes, e a insônia invadiu, impertinente e imperiosa. — Ainda pensa as mesmas coisas, Roger? Tomei um susto, e enxerguei Rafael no corredor, a cabeça velada pela sombra da noite, com o livro que eu escolhera para ler antes de dormir em mãos. Eu teria deixado a porta aberta? Não lembrava disso. — Você me assustou, Rafael. — O homem e o Sagrado. O homem, o Sagrado — Ele balbuciou, folheando o volume de capa dura, cujo gênero poderia ser definido como um autoajuda sofisticado. — Está tudo bem, Rafael? Seu rosto apareceu à luz do corredor. — Você se informa a respeito desses assuntos. Me diga, você já pensou em todo o brilho que o Homem carrega? Toda a sua bondade reluz em seu corpo. Temos que considerar a existência do fosco, Roger. Há algo mais fugidio do que
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a justiça? Há algo mais fácil de aparecer e desaparecer? Não temo o fosco. O brilho, um pouco, o fosco não, mas não ignoro sua existência. O desjejum do dia seguinte, por um momento, quase me fez achar que eu visitava uma residência normal. Apesar de toda estranheza, eu era bem tratado. Mas logo me veio a lembrança de Ana, pedindo socorro silenciosamente. E essa tal de Joana? Eu nunca vira criatura mais esquisita. Precisava olhar para algo que me colocasse na história de forma concreta. A casa era grande, e Rafael e Joana, muito presentes. Mas eu precisava aventurar-me. Passei pelos corredores, dei uma olhadela rápida em cada quarto. Tudo parecia estranhamente normal. Parecia uma casa fria, ausente de história, apesar de sinistra e cheia de objetos que eu não sabia identificar. A porta do sótão estava entreaberta. O sótão será que eu deveria? Adentrei com relativo esforço, o lugar, que estava um tanto empoeirado. Fiquei estupefato ao deixar a luz do dia adentrar o ambiente. Havia objetos religiosos de todos os tipos. Ideias misturadas: livros satânicos, terços, velas, uma adaga. Em um canto, uma espécie de forca. Como se fosse, não sei bem o que digo, mas era como uma forca. — Você perseguiu o fosco, Roger. Como Rafael subira sem eu perceber? Estaria ele já ali antes de mim? — Eu só vim procurar algo para dar um jeito naquela grama... se você não se importar. Quase corri para a porta... trancada! Vi-me encurralado. Rafael se aproximava, e eu ia tentando manter distância. Estaria ele armado? Eu já não sabia nada sobre aquela casa. A única coisa em que eu pensava, era em sair dali, nem que fosse pulando a janela. Foi muito, muito rápido. Senti a corda grossa sob meus pés, um soco violento em meu corpo, e eu
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estava de cabeça para baixo. Fosse aquele objeto uma forca, no mínimo, não estaria sendo usada da forma convencional. Minha vida agora estava nas mãos de um louco. É certo que também estava nas de um antigo amigo. Naquela situação, entretanto, me soava mais clara a primeira sugestão. Eu já me sentia extremamente desconfortável por estar de cabeça para baixo. Rafael pegou a adaga. Eu agora tinha certeza, minha vida acabara. — Você já acertou algum ser vivo na jugular? Não. – Respondi – e nem conseguiria. Ele seguiu com uma explicação torturadora. — Não é para emotivos... o processo é mais demorado do que a compaixão humana possa tolerar. Em minha experiência de mais ínfima esperança, vi um milagre acontecer. Joana apontava a arma para Rafael com firmeza. A postura sisuda, com as pernas entreabertas, não combinava com a saia lápis preta e o coque clássico no alto da cabeça. Ela parecia... — Me entregue a arma! Rafael olhou-me com uma expressão que continha ódio e desprezo, mas não ousou se mover. Joana repetiu: — Entregue a arma! Com uma das mãos erguida, ele virou-se cuidadosamente, e passou a adaga às mãos de Joana. — Joana, o que houve? — Você está preso em flagrante delito — Joana pronunciou, apresentando o distintivo policial. Para minha alegria, após algema-lo, ela não demorou mais de três minutos para soltar-me. — Obrigado — Eu pronunciei, um tanto envergonhado de mim mesmo. Ouviu-se um barulho pelo corredor, e Joana saiu arrastando Rafael com muita rapidez e violência. Adentrou o quarto do casal, que estava vazio. Parecendo formular uma pensamento em menos de um segundo, ela o
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algemou a cama e saiu, trancando o quarto. Ao embarcarmos em seu carro, ela acionou a polícia com uma ligação, antes que desse a partida. — Ela deve ter se assustado... — falei, na verdade porque não sabia o que convinha perguntar. — Roger — fiquei surpreso quando ela pronunciou meu nome de forma tão pessoal. — Nós os temos investigado a algum tempo. — Imagino... — Ana é a mentora dele — eu começava a compreender. — Esse casal enlouqueceu depois de perder um filho que possuía uma doença rara, que o envelhecia precocemente. — Eram meus amigos de longa data. — Sinto muito. Após perderem o filho, eles passaram a ficar obcecados com questões referentes a rejuvenescimento, juventude, velhice. Então, passaram a frequentar religiões diversas, que ensinavam a respeito de tal assunto. Não conseguimos apurar por quantas eles se aventuraram. No entanto sabemos que o suficiente para absorverem a ideia do sacrifício humano para através do sangue oferecido, alimentar a própria vida e juventude. Não pude evitar o ato quase inconsciente de persignar-me, ao que Joana riu... bastante. — Nossa! — Ana não queria fazer o trabalho sujo. Então, ela o persuadia através de uma falsa fraqueza que dizia sentir. E creia, Roger, ela o ensinou a sacrificar. Visualizamos Ana caminhando na calçada, já com dificuldades. Ela fugira por longo trecho. Ao nos ver, ela inesperadamente deitou-se. Joana abandonou o carro, e foi em sua direção. — Eu lutei muito tempo contra ela — Ana balbuciava
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palavras difíceis de compreender. — Eu resisti por muito tempo, mas agora já era, ela ganhou. — Vamos — Joana a conduziu para o carro. Eu me perguntava quanto tempo eu precisaria para digerir aquela história. Quando o mal se aproxima, uma luz nos alerta às nossas prioridades. Em frente à casa, haviam duas viaturas estacionadas. Joana passou Ana às mãos de um policial, e entrou novamente na casa, e eu também. Enquanto os policiais olhavam a casa e seus objetos, Rafael estava deitado na cama, tão letárgico que parecia morto. Tinha sobre a barriga, um sinistro livro de capa dura. Enquanto o pegavam, ele apenas pronunciava: — Eu agora só posso esperar; só posso esperar... Dessa experiência, ponderei que a dor é o verdadeiro mal. Há o que chamam de trevas, mas a dor sim o é. E o que era trevas, na verdade, era o gosto pelo controverso. O que era trevas era, na verdade, ausência de medo!
Outros poemas
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Presença Deixe-a na escuridão da vida que emana de ti, ela veste-se... do negro que precisa que a gerou e libertou para mais nobre escravidão. Olhe, Olhe de novo! Ela não está lá, mas sempre deixa alguma marca seja no poder mais frágil que você já conheceu ou na fraqueza mais nobre que já te consumiu. Na área mais sensível do planeta ela está!
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Ela 2 Ela... que saiu de seu mundo vermelho que amanhece ao luar... De uma simples nota fabricou asas. Sombrio luar que a agarrava arrebatava seu mundo vermelho... Vivia ela nas colinas mais obscuras da Terra onde todas as passagens já foram feitas ela aterrissa negra... invisível... amiga das criaturas da noite, Bailarina dos mortos. Nota dos refugiados do sol. Ela carrega em si o dom de sofrer e o de amar, mas não o de chorar. Noite dessa, não muito longe, ela irá aterrissar.
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Cena A nova cena ensaiada Praticada. Sem contato de mãos instiga mais íntima melodia do silêncio destilado... interrompido e repetido. Na mais pura sequência da mais pura dança incompreendida dança pelo senso comum e bruto. Entorpecente, porém, a toda presença de vida.
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Poesia Poesia não nasceu. Não reivindica o sentido mor e natural. Poesia existe... Como Bálsamo sem pretensão. Poesia também não cura mas dá-te a beber da cruel ciência do bem e do mal. Poesia existe... enquanto poesia não se torna vida ela existe...
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Sobre a autora
Janaína Mello é autora de obras com suspense, muito mistério e uma dose de espiritualidade, declarada ou nas entrelinhas. Teve textos publicados em uma coletânea pela editora “Palavra é Arte”, que reuniu autores de todo o Brasil. De forma independente, publicou o livro “O outro lado”, e desde sempre obedece aos impulsos da escrita.
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Esta obra foi composta em Minion Pro, em agosto de 2021, para a revista Escape.
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Este livro é um suplemento da revista digital Escape, editado pelo selo editorial de livros independentes Cavalo Sombrio, utilizando recursos gráficos de macrovector / Freepik.