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Brahman e Iswara

Shankara fala aqui de dois estágios inerentes ao processo de sobreposição. Primeiro a idéia do ego é sobreposta ao Eu profundo, à existência-realidade. Depois a idéia do ego, exteriorizando-se, por assim dizer, identifica-se com o corpo e com os atributos e as ações físicas e mentais do corpo. Dizemos, como se fosse a coisa mais natural, “eu sou gordo”, "eu estou cansado", "eu estou andando”, “eu estou sentado”, sem nos determos para considerar o que vem a ser esse “eu”. E vamos mais longe. Reivindicamos como nossos objetos e condições puramente exteriores. Declaramos que "eu sou republicano" ou que “esta casa é minha”. À medida que se multiplicam as sobreposições, afirmações insólitas tomam-se possíveis e normais - tais como "afundamos ontem três submarinos” ou “tenho um excelente seguro”. De certo modo, identificamos o nosso ego com cada objeto do universo. E, enquanto isso, o Eu profundo atua como espectador, totalmente dissociado desses esgares e disposições de ânimo - mas tomando-os possíveis pelo fato de proporcionar à mente aquela luz da consciência sem a qual Maya não poderia existir.

Que Maya não tem princípio pode ser igualmente demonstrado se retomarmos por um momento a imagem da corda e da cobra. A sobreposição da cobra à corda só é possível se pudermos lembrar da aparência da cobra; uma criança que nunca viu uma cobra nunca faria essa sobreposição. Como pode o recém-nascido, então, sobrepor a “cobra” (aparência de mundo) à “corda” (Brahman)? Só poderemos responder a essa pergunta se postularmos uma “memória da cobra” universal, comum a toda a humanidade e existente desde um tempo sem princípio. Essa “memória da cobra" é Maya.

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Maya, diz Shankara, é não apenas o universal mas também o que não tem princípio nem fim. No entanto, deve-se fazer uma distinção entre Maya como princípio universal e a ignorância (avidya), que é individual. A ignorância individual não tem princípio, mas pode terminar a qualquer momento: ela desaparece quando o homem alcança a iluminação espiritual. Desse modo, o mundo pode desaparecer da consciência de um indivíduo e ainda assim continuar a existir para o resto da humanidade. Nisso a filosofia de Shankara difere essencialmente do idealismo subjetivo do Ocidente.

Brahman e Iswara

Em certo sentido, Brahman é a causa primordial do universo -já que, pela ação de Maya, a aparência de mundo é sobreposta a Brahman. Brahman é a causa, Maya, o efeito. Todavia, não se pode dizer que Brahman. se transformou no mundo ou que o criou, porque a Realidade absoluta é, por definição, incapaz de ação ou de mudança temporal. Outra palavra, lswara, pode pois ser empregada para descrever o princípio criativo. lswara é Brahman unido a Maya - a combinação de Brahman e seu poder que cria, preserva e dissolve o universo num processo sem princípio e sem fim. lswara é Deus personificado, Deus com atributos.

De acordo com o sistema de filosofia Sankhya, o universo é uma evolução da Prakriti - matéria indiferenciada, composta de três forças chamadas gunas. A criação é uma perturbação no equilíbrio dessas forças. As gunas começam a passar por uma enorme variedade de combinações - mais ou menos como na teoria ocidental da estrutura atômica - e essas combinações constituem os elementos, os objetos e as criaturas individuais. Esse conceito da Prakriti corresponde, até certo ponto, ao conceito de Maya formulado por Shankara, mas com esta importante diferença: Prakriti é considerada distinta e independente de Purusha (a Realidade absoluta), enquanto Maya é vista como destituída de realidade absoluta, mas como dependente de Brahman. Portanto, é lswara, e não Prakriti, que pode ser descrita como a causa primordial do universo.

Existem então dois Deuses - um impessoal Brahman, outro o pessoal lswara? Não - porque Brahman só aparece como lswara quando visto pela relativa ignorância de Maya. lswara possui o mesmo grau de realidade que Maya. Deus, a Pessoa, não é a natureza primordial de Brahman. Nas palavras de Swami Vivekananda, “o Deus Pessoal é a leitura do Impessoal pela mente humana”.

Sri Ramakrishna, que viveu ininterruptamente na consciência do Brahman absoluto, serviu-se da seguinte ilustração: “Brahman. pode ser comparado a um oceano infinito, sem princípio nem fim. Assim como, devido ao frio intenso, algumas partes do oceano se congelam e a água informe parece adquirir forma, do mesmo modo, graças ao intenso amor do devoto, Brahman parece assumir forma e personalidade. Mas a forma toma a desaparecer quando o sol do conhecimento volta a brilhar. Então todo o universo também desaparece e não há senão Brahman, o infinito."

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