Cálice do Conhecimento

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CÁLICE DO CONHECIMENTO CIÊNCIA | ARTE | TRADIÇÃO | RELIGIÃO

COLETÂNEA DE TEXTOS DE VÁRIOS AUTORES Compilação de Lucília Barata



CÁLICE DO CONHECIMENTO CIÊNCIA | ARTE | TRADIÇÃO | RELIGIÃO

COLETÂNEA DE TEXTOS DE VÁRIOS AUTORES Compilação de Lucília Barata


FICHA TÉCNICA Título: Cálice do Conhecimento Autor: Vários Texto Inicial: Lucília Barata Compilação de Textos: Lucília Barata Design Editorial: Pedro Sousa ISBN: 000-000-0000-000-0 Depósito Legal: 000000/00


CÁLICE DO CONHECIMENTO CIÊNCIA | ARTE | TRADIÇÃO | RELIGIÃO

COLETÂNEA DE TEXTOS DE VÁRIOS AUTORES Compilação de Lucília Barata



ÍNDICE Prefácio...................................................................................................................................9 Ciência, Arte, Tradição e Religião ....................................................................................... 11 Temas:................................................................................................................................... 18 Espaço..............................................................................................................................................19 Número............................................................................................................................................ 20 Pitágoras......................................................................................................................................... 21 O Número e a Música............................................................................................................. 23 O Número e a Arte................................................................................................................... 24 O Número e a Arquitetura...................................................................................................... 26 O Número e a Ciência............................................................................................................. 30 O Número e a Natureza.......................................................................................................... 34 Matemática..................................................................................................................................... 35 Monumentos, Mitos e Tradições................................................................................................ 40 Templo............................................................................................................................................. 41 Cânone Sagrado de Cosmologia............................................................................................... 44 Tradição........................................................................................................................................... 47 Tradição Religiosa................................................................................................................... 50 Hinduísmo........................................................................................................................... 53 Budismo.............................................................................................................................. 56 Taoísmo............................................................................................................................... 59 Judaísmo............................................................................................................................ 62 Cristianismo........................................................................................................................ 66 Islamismo............................................................................................................................ 70 Tradição Secreta.......................................................................................................................74 Símbolos......................................................................................................................................... 78


Flor da Vida............................................................................................................................... 81 Árvore da Vida.......................................................................................................................... 84 Vesica Piscis ............................................................................................................................ 86 Olho do Conhecimento........................................................................................................... 87 Estrela de David....................................................................................................................... 88 Yin Yang..................................................................................................................................... 89 Cruz............................................................................................................................................ 91 Cruz Grega e Latina........................................................................................................... 95 Cruz em T............................................................................................................................ 95 Cruz Egípcia (Ankh) .......................................................................................................... 96 Cruz Suástica..................................................................................................................... 97 Cruz Templária................................................................................................................... 99 Cruz de Cristo...................................................................................................................100 Graal......................................................................................................................................... 103 Zodíaco....................................................................................................................................104 Mandala................................................................................................................................... 105 Nova Criação ou Eterno Retorno?............................................................................................ 109 Bibliografia.......................................................................................................................... 113


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PREFÁCIO

E

sta coletânea de textos é formada por excertos de vários livros que li na fase inicial da minha pesquisa sobre Geometria Sagrada e vim a utilizar, como introdução, no primeiro livro que escrevi, precisamente com este título. Poderia ter optado pela divulgação do livro onde inseri esses textos. Mas, que interesse poderia ter um livro que nasceu da necessidade de começar a organizar o meu pensamento e os primeiros resultados da minha pesquisa, quando esta evoluiu e, depois dele, outros livros se seguiram? Na realidade, esse primeiro livro não foi senão o balbuciar de conceitos ainda não amadurecidos, de uma linguagem científica ainda experimental, e de um encadeamento de temas ainda mal articulado, embora ainda hoje, decorridas mais de três décadas, reconheça nele uma estrutura coerente e, sobretudo, a preocupação de expor a minha visão holística acerca do Homem e do Universo. Pelo interesse que, a meu ver, esses textos tinham para estabelecer pontes entre Ciência, Arte, Tradição e Religião, utilizei-os mais tarde como desenvolvimento de temas incluídos num artigo que escrevi sobre Espaçonumerática. É precisamente esse texto e o desenvolvimento desses temas que se encontram compilados neste livro, certa de que a sua abrangência poderá ser útil a qualquer leitor. Além disso, esta compilação de textos é indispensável para uma melhor compreensão do resultado global da minha pesquisa, pois não só a contextualiza como revela a sua verdadeira essência. De notar também que os símbolos gráficos apresentados neste livro, assim como outros aqui não referidos, são passíveis de ser relacionados e unificados no interior de um espaço teofânico conhecido por Cânone Sagrado de Cosmologia, qual retorno mágico ao mundo dos arquétipos onde o Múltiplo se revela Uno, numa unidade verdadeiramente surpreendente e fascinante, tanto no aspeto científico como simbólico Lucília

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CIÊNCIA, ARTE, TRADIÇÃO E RELIGIÃO

C

omeçarei por definir a palavra que me pareceu mais apropriada para designar a ciência pela qual estas áreas do Conhecimento podem ser interligadas num contexto holístico de pensamento. Refiro-me, obviamente, à palavra Espaçonumerática. Como o próprio nome indica, Espaçonumerática é a ciência que relaciona entre si os conceitos de Espaço e de Número, mas num plano simultaneamente científico e simbólico. Geralmente conhecida por Geometria Sagrada, pareceu-me, no entanto, que a palavra Geometria, do grego geo (terra) e metron (medida) era, de certo modo, insuficiente para expressar a universalidade de tais conceitos. Além disso, da minha pesquisa nesta área resultou uma sistematização de princípios capazes de relançar as bases desta ciência milenar, razão porque procurei uma palavra que a pudesse traduzir. E assim nasceu a palavra Espaçonumerática. Dizia Pitágoras que O Número rege o Universo. Contudo, bastou o problema levantado pela incomensurabilidade entre o lado e a diagonal de um quadrado para que a sua filosofia fosse rejeitada e se abrissem os caminhos que conduziriam à Matemática que conhecemos, o que fez com que o conceito de Número se afastasse cada vez mais daquele idealizado por Pitágoras, que fundamentava o seu aforismo no conceito de número inteiro. Apesar disso, e como que a confirmar a contestada frase do matemático Leopold Kronecker Deus fez os números inteiros, o resto é obra do Homem, eis que cientistas modernos se viram de novo para o pitagorismo, convencidos – tal como Pitágoras, Aristóteles ou Platão – que apenas a Estrutura e o Número contam na perceção do mundo que nos rodeia. Por trás de um mundo em permanente mudança ocultam-se estruturas fixas e leis básicas que comandam a aparição de formas e fenómenos, e a sua transformação. Logo, descobrir essas estruturas e leis significa descobrir a unidade básica do Universo, sendo esta unidade uma característica comum da ciência e do misticismo, como o afirma

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claramente Fritjof Capra no seu livro The Tao of Physics: A unidade básica do Universo não só é característica central da experiência mística, mas também uma das mais importantes revelações da Física moderna. (...) À medida que se estuda os vários modelos da física subatómica vemos que eles expressam sempre, de maneiras diversas, o mesmo ponto de vista: que os constituintes da matéria e os fenómenos básicos que os envolvem estão todos interligados, interrelacionados e interdependentes; que eles não podem ser compreendidos como entidades isoladas, mas sim como partes integrantes de um todo. (...) Embora as tradições espirituais difiram entre si em diversos pormenores, os seus pontos de vista sobre o mundo são essencialmente os mesmos. Eles são baseados numa experiência mística, cuja característica mais importante é a perceção da unidade e interrelação de todas as coisas e acontecimentos, a experiência de todos os fenómenos do mundo como sendo manifestações da mesma unidade básica. Todas as coisas são vistas como partes interdependentes e inseparáveis deste todo cósmico. (...) Enquanto o físico moderno sente o mundo através de uma extrema especialização do espírito racional, o místico sente-o através de uma extrema especialização do espírito intuitivo. Estas duas aproximações são completamente diferentes, embora sejam complementares. Nenhuma delas está compreendida na outra, nem nenhuma delas pode ser reduzida à outra. Ambas são necessárias, completando-se uma à outra para um melhor entendimento do mundo. A verdade é que a ciência não precisa do misticismo, e o misticismo não precisa da ciência; mas o homem precisa de ambos. Tudo indica que, em épocas remotas, a Humanidade soube combinar Ciência e Misticismo. A testemunhar esse Conhecimento existe uma série de Monumentos, Mitos e Tradições, e também uma vasta literatura de natureza sagrada. Essa sabedoria era preservada no Templo, que simultaneamente escondia e exibia, através de uma linguagem simbólica, o Cânone Sagrado de Cosmologia, não só integrado nos rituais do Templo, mas também nas leis e costumes do povo.

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Com a evolução dos tempos e o desenvolvimento de uma tecnologia científica cada vez mais aperfeiçoada, o ser humano foi-se afastando progressivamente dessa referência canónica e sagrada, passando a criar, ele próprio, os seus modelos nacionais, planetários e cósmicos. E, nessa dispersão do Conhecimento original, acabou por se perder num labirinto de saberes não comunicantes, fragmentados e autónomos. Daí a necessidade urgente do Homem recuperar o sentido do sagrado, a sua verdadeira memória e a dignidade da sua vocação primordial. Ajudar a consegui-lo é um dos principais objetivos da Espaçonumerática, esta ciência onde se cruzam duas formas de linguagem – uma científica, outra simbólica –, ambas essenciais para uma visão e compreensão holística do Homem e do Universo. Como linguagem científica ela resgata o conceito pitagórico de Número e propõe à Matemática novas soluções para alguns dos seus mais velhos problemas, sugerindo uma revisão de base a alguns dos conceitos em que está fundamentada. Como linguagem simbólica vai ao encontro da Tradição, no seu sentido mais lato, e restitui-lhe o profundo significado dos seus símbolos. Neste sentido abrangente, a palavra Tradição significa a transmissão ininterrupta do Conhecimento nos seus múltiplos aspetos, de modo a facilitar a tomada de consciência de princípios imanentes da ordem universal, podendo tomar dois aspetos diferentes: um exotérico (exterior), manifestado sob a forma de doutrina e ritual, outro esotérico (interior), apenas transmissível através de uma linguagem simbólica. Diz René Alleau no seu livro Les Sociétés Secrètes que a presença dos Símbolos – signos enigmáticos e de expressão misteriosa das tradições religiosas –, as obras de arte, os contos e os costumes do folclore provam a existência de uma linguagem universal espalhada no Oriente, assim como no Ocidente, cujo significado transhistórico parece situar-se na raíz da nossa própria existência, dos nossos conhecimentos e dos nossos valores. De facto, esta linguagem universal está presente em toda a parte e surge, quase sempre, num contexto sagrado. Basta ver como a Bíblia, por exemplo, está repleta de

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símbolos, muitos deles de natureza numérica, ou numérico - geométrica. Cito apenas dois exemplos: o número de dias da Criação, referido no Livro do Génesis, e as dimensões do Santo dos Santos do Templo de Salomão – o espaço mais sagrado do Templo, onde foi colocada a Arca da Aliança com as duas Tábuas da Lei. Quanto ao primeiro exemplo é óbvio que não se pode “levar à letra” a interpretação do número sete, tendo este por unidade de tempo o nosso dia terrestre. Basta dizer que, à escala cósmica, e comparando o ano cósmico com o ano terrestre, o aparecimento do Homem na obra da Criação apenas surge, como o disse Carl Sagan, nos últimos segundos do último minuto do último dia do mês do ano, o que significa que, até agora, 99,998% da história do Universo decorreu antes do aparecimento em cena da nossa espécie. Perante esta grandiosidade cósmica, tanto espacial como temporal, não resta dúvida que o número sete, associado a um processo cósmico, é simbólico, como simbólicos são os primeiros seis dias em que a Criação fica completamente acabada. No fundo, o que a Bíblia faz é atribuir um simbolismo especial a estes números em relação a um processo de desenvolvimento espacial e numérico que se completa com o número seis, mas se expande e finaliza com o número sete. Quanto ao segundo exemplo – o Santo dos Santos –, ele combina os conceitos de Forma e de Número através de um cubo de aresta igual a 20 côvados, sendo nestes dois conceitos que é alicerçada a construção do Templo, cuja função é a de servir de intermediário na ligação e correspondência entre o Homem (microcosmos) e o Universo (macrocosmos). Embora as medidas possam diferir de templo para templo, todas elas são, no entanto, passíveis de uma interpretação numérica através do Cânone Sagrado que as unifica. Citando John Michell no seu livro City of Revelation: Em todas as descrições da cidade santa é posta em relevo a importância das suas dimensões; e isto tem um significado literal, pois a construção do templo contém os segredos do mundo antigo, expostos de tal modo que podem ser lidos por qualquer

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pessoa, de qualquer época, que deseje retomar o estudo da linguagem em que foram escritos, ou seja, a linguagem da geometria e do número. Dos muitos livros sagrados onde esta linguagem é referida será de destacar a Bíblia – um livro que não se limita a expor uma doutrina, mas refere a história do Universo num plano simultaneamente natural e transcendente, desde o princípio ao fim da Criação, terminando com a referência a uma nova Criação. No seu contexto numérico, a Bíblia, assim como outros livros sagrados, são documentos cifrados. O mesmo acontecendo com alguns “livros de pedra” como, por exemplo, a Grande Pirâmide do Egipto e a Catedral de Chartres – verdadeiros repositórios de uma ciência aparentemente esquecida –, e com muitos dos símbolos numérico-geométricos ligados à história da Humanidade, cuja origem e significado parecem perdidos no tempo. Como diz Raymond Capt no seu livro The Great Pyramid Decoded a respeito desta pirâmide, É digno de nota que a estrutura geométrica da Grande Pirâmide (Keops) esteja desenhada com base no “número Pi”, a proporção matemática sobre a qual está desenhado todo o universo físico, e que ela também se adapte perfeitamente às reconhecidas leis da harmonia e beleza. Tanto os Egípcios, como os Cretenses e Gregos conheciam a “Regra de Ouro” da Arquitetura. A ela se adaptam obras de arte arquitetónicas como o Parténon na Acrópole, em Atenas, mas não com um tal grau de precisão matemática como se encontra nesta pirâmide, construída mais de 2.000 anos antes. Pode parecer surpreendente que estas correspondências numéricas existam entre Keops e Chartres, dois monumentos tão diferentes, duas formas de civilização tão afastadas no espaço e no tempo – acrescenta, por sua vez, Louis Charpentier no seu livro Les Mystères de la Catédrále de Chartres. – Mas não é surpreendente se não na aparência. Se as dimensões, as proporções se reencontram, é evidente que não foram

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copiados um pelo outro. Houve, no entanto, a aplicação diferente de uma mesma ciência. E isto implica a posse de uma mesma chave. Devido ao seu carácter universal, o Número é o mais alto grau de Conhecimento a que o Homem pode aspirar e, nesse Conhecimento, a Ciência está intrinsecamente ligada à Religião. Motivo porque urge reestabelecer a aliança entre ambas e pôr termo à aparente dualidade que opõe o mundo objetivo ao subjetivo, o racional ao intuitivo, a ciência ao misticismo. Se, no aspeto científico, se torna necessário ordenar e interligar os diferentes aspetos da Ciência, no que diz respeito à Religião, como sugere Réné Alleau no seu livro Les Sociétés Secrètes, seria necessário reconstituir num só corpo a unidade tradicional dos mistérios, a fim de propor à Ciência, à Filosofia, à Arte e à própria Religião, uma ecumenicidade fundada sobre uma ordem – a ordem dos mistérios – e não sobre uma Igreja. Como diz este autor: É aí que verdadeiramente está a chave não só de uma revolução económica e social que deve de qualquer modo intervir, a fim de restituir o mundo ao Homem. É o homem inteiro que é necessário mudar e não apenas o homem social e económico; e é o coração do homem, e não apenas o seu corpo, que deve ser o centro e finalidade de todos os esforços. Só desta maneira será possível que um dia venha a surgir uma nova consciência, a única capaz de realizar o equilíbrio que tão dolorosamente procuramos ainda entre conhecimento e evolução espiritual. A condição humana atual é de dispersão: dispersão no tempo, dispersão no espaço, dispersão nos desejos, dispersão no conhecimento, dispersão na ação. A humanidade de hoje é uma humanidade dispersa (...), e toda a dispersão tem por resultado a diminuição de consciência. Torna-se, por isso, necessário restituir-lhe o sentido do sagrado e, deste modo, a sua verdadeira memória e a dignidade da sua vocação primordial.

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Mas, será que é possível a unidade dos povos, das culturas, das tradições e das religiões? Acredito que sim, embora para que isso aconteça seja necessário que o ser humano se reencontre num contexto universal e ponha de parte todos os partidarismos ou sectarismos que o mantém artificialmente separado. Afinal, a nossa história começa com a história do Universo, e essa é igual para todos. É preciso, pois, descobri-la à luz de uma tradição original e de conhecimentos científicos modernos válidos para todos os povos e etnias. Deste modo, livres de preconceitos, poderemos ir ao encontro de uma pedagogia global válida para todos os seres humanos, através de uma linguagem que não é exclusiva de nenhum povo, mas sim património comum da Humanidade. Lucília

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TEMAS: ESPAÇO NÚMERO PITÁGORAS MATEMÁTICA MONUMENTOS, MITOS E TRADIÇÕES TEMPLO CÂNONE SAGRADO DE COSMOLOGIA TRADIÇÃO SÍMBOLOS NOVA CRIAÇÃO OU ETERNO RETORNO?

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ESPAÇO

E

spaço é uma curiosa abstração, significando literalmente nada em si mesmo, mas tornando-se, ainda assim, um campo fértil para toda a espécie de especulações. Na nossa época é natural que evoque nas nossas mentes os grandes empreendimentos dos astronautas e as naves enviadas a outros planetas para investigação. Noutras eras, porém, Espaço sugeria ideias totalmente diferentes, umas vezes puramente religiosas, outras vezes científicas e outras ainda filosóficas. Seja como for, a imagem que ele nos fornece é de tal maneira vasta que a nossa imaginação tem que se alargar até os seus limites máximos, de modo a poder abarcá-lo. No entanto, que diferença existe entre o conceito de espaço como o vácuo perfeito do mundo antigo – quase completamente destituído de matéria – e o conceito de um físico moderno, que o encara como um tecido de forças ligando o Universo inteiro!»[1] «De certa forma, o espaço é uma zona intermediária entre o cosmos e o caos. Tomado como o reino de tudo o que é possível, é caótico; considerado como a região em que todas as formas e estruturas têm sua existência, é cósmico. (...) Outro – e o mais importante – é o conceito de espaço como uma organização baseada nas suas três dimensões. Cada dimensão tem duas possíveis direções de movimento (...). Aos seis pontos deste modo obtidos, acrescentou-se um sétimo: o centro; e o espaço torna-se, assim, uma estrutura lógica.»[2]

1  Joan Salomon, The Structure of Space 2  J. E. Cirlot, A Dictionary of Simbols

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NÚMERO

O

Número é o raciocínio de Deus – escreveu o entomologista J.H.Fabre, poeta nas horas livres, num poema de alta inspiração, composto com o entusiasmo e fervor de um crente. (...) Todo o Número tem a sua Forma e toda a Forma tem o seu Número, do qual ele é a expressão material, a condensação no espaço. Temos disso uma prova na geometria analítica, que consiste em construir a forma correspondente a uma fórmula dada. O Número oferece três sentidos: um sentido próprio que é o principal, um sentido derivado que é uma extensão lógica do primeiro e um sentido figurado ou alegórico. Platão, para quem o Número significava o mais alto grau de Conhecimento, estabelecia as três definições seguintes: •  Os números percetíveis ou manifestados na matéria, formados pelos números simples da série dos nove números da numeração decimal. •  Os números matemáticos, primeiro degrau onde o raciocínio se eleva deixando as contradições do mundo percetível para procurar a concordância e a simplicidade do mundo intelectual (eles correspondem ao mundo da aritmética, da geometria, da música, da astronomia.) •  Os números ideais, essência primitiva de tudo o que há de belo, de bom, de verdadeiro nas coisas.»[3]

3  Ch. Barlett, citação de René Gilles em Le Symbolisme dans l’Art Religieux

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PITÁGORAS

N

ascido no século VI a.C., Pitágoras surge com uma cosmologia que viria a influenciar, como nenhuma outra, as ideias e destino da humanidade. É então que, pela primeira vez, surge uma visão unificadora do Universo, onde a Religião e a Ciência, a Matemática e a Música, a Medicina e a Cosmologia se entrelaçam como partes componentes de um todo.»[4] «A Pitágoras se deve o famoso teorema com o seu nome. Este teorema continua a ser até hoje o mais importante teorema isolado no todo das matemáticas. Esta afirmação poderá parecer ousada, embora não seja absurda, porque o que Pitágoras estabeleceu corresponde a uma característica fundamental do espaço em que nos movemos, pela primeira vez traduzida em números. E é o ajustamento exato de números que descreve as leis exatas que ligam o Universo.»[5] «Mesmo despida do seu misticismo religioso, a filosofia pitagórica encerrava a ideia fundamental de que apenas pelo Número e pela Forma o Homem poderia compreender a natureza do Universo.»[6] «O Número reina por toda a parte: no ritmo da música e do poema, no ritmo cardíaco e respiratório dos seres vivos, na simetria das pétalas das flores e divisões interiores do fruto, nas vibrações das cores, dos sons e dos perfumes, na estrutura do mais ínfimo dos seres assim como na dos astros.»[7] 4  5  6  7

Oscar Becker, O Pensamento Matemático J. Bronowski, The Ascent of Man Tobias Dantzig, Número, a Linguagem da Ciência René Gilles, Le Symbolisme dans l’Art Religieux

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O NÚMERO REGE O UNIVERSO O NÚMERO E A MÚSICA O NÚMERO E A ARTE O NÚMERO E A ARQUITETURA O NÚMERO E A CIÊNCIA O NÚMERO E A NATUREZA

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O NÚMERO E A MÚSICA

A

música é a linguagem do inconsciente por excelência. Foi Pitágoras o primeiro a encontrar uma relação básica entre a harmonia musical e o Número. Ele verificou que uma corda esticada vibrando como um todo produz uma nota básica. As notas que com ela soam em harmonia são produzidas pela divisão da corda num número exato de partes; exatamente em duas, três, quatro e assim por diante. Se o ponto fixo da corda, o nó, não estiver nesses pontos exatos, o som é dissonante. Pitágoras notou o facto interessante de que os intervalos musicais mais consonantes são redutíveis a uma proporção de pequenos números inteiros:

Intervalo

Proporção da Frequência

Uníssono

1:1

Oitava

2:1

Terceira Maior

5:4

Sexta Maior

5:8

De acordo com a experiência e a observação, o intervalo que dá maior satisfação à maior parte das pessoas é a sexta maior, de frequência na proporção 8:5, aproximadamente, correspondendo o prazer desta proporção àquele experimentado quando se olha um retângulo áureo, cujos lados estão na razão ϕ:1, que é aproximadamente igual a 8:5.»[8]

8  H. E. Huntley, The Divine Proportion

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O NÚMERO E A ARTE

D

esde os alvores da filosofia grega que o homem se esforça por encontrar uma lei geométrica, ou chave, que explique a Arte. A proporção geométrica conhecida por Regra de Ouro tem sido desde há muitos séculos considerada essa chave. A sua aplicação verifica-se de modo tão universal não só na Arte mas também na Natureza, que tem sido, por vezes, tratada com reverência quase religiosa. (...) Esta proporção encontra-se em duas proposições de Euclides, sendo a sua forma mais usual assim enunciada: cortar um dado segmento de reta de tal forma que a parte mais curta esteja para a mais comprida, como esta está para o todo. A secção resultante obedece, aproximadamente, à razão de 5 para 8 (ou 8 para 13, 13 para 21, etc.) sem nunca ser exata. É sempre aquilo que em matemática se chama um “irracional”, e esta peculiaridade tem contribuído bastante para a sua reputação mística. (...) Mas não só a Regra de Ouro como também outras proporções geométricas, tais como o quadrado contido num retângulo de lado igual à largura do mesmo, são usadas em combinações de número quase infinito para obter harmonias perfeitas. E é a infinidade relativa de tais combinações que impede a tentativa de qualquer explicação mecanicista da harmonia total de uma obra de arte, pois que, se bem que as regras do jogo sejam fixas, requer-se instinto e sensibilidade para as utilizar da melhor maneira.»[9] «No que diz respeito à questão do “planeamento” de uma obra de arte ser consciente ou subconsciente, pelo menos nos reinos da arquitetura e da arte decorativa, tornamos clara a nossa convicção de que, através de todos os grandes períodos da Arte Europeia, o “planeamento” organizado que a caracterizou foi, sem dúvida, consciente. (...) Inspiração, 9  Herbert Read, O Significado da Arte

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mesmo paixão, é de facto necessário na arte criadora, mas o conhecimento da ciência do Espaço e da Teoria das Proporções, longe de diminuir o poder criador do artista, abre-lhe uma infinita variedade de escolha dentro do reino de uma composição sinfónica. Como disse Claude Bragdon: um trabalho de arquitetura pode ser significativo, orgânico, imponente, mas não será uma obra de arte a não ser que seja também esquemático, significando esta palavra a disposição sistemática das partes que o compõem de acordo com um princípio que as coordene. Ou, de modo a expressar este mesmo ponto de vista nos termos com que o Mestre Construtor Gótico Jean Vignot o fez em 1392 perante os Anciãos da Cidade de Milão, quando solicitado para dar a sua opinião sobre a continuidade dos trabalhos da famosa Cúpula de mármore: «Ars Sine Scientia Nihil» (Não há Arte sem Ciência).»[10] «Número – assim o sabiam os antigos - não é simples cômputo, nem mero cálculo: é a arte da ciência e a ciência da arte (...).»[11]

10  Matila Ghyka, The Geometry of Art and Life 11  Lima de Freitas, Pintar o Sete

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O NÚMERO E A ARQUITETURA

A

Arquitetura, que hoje parece obedecer apenas a uma fantasia geradora de enormidade e de peso, foi em outros tempos regida pela lei do Número, criador do ritmo e da harmonia. Encontramos essa lei nas proporções dos templos egípcios e gregos, mais tarde nas catedrais, exprimindo um elevado pensamento filosófico e religioso com a ajuda de uma simetria fortemente distanciada daquilo que hoje designamos por esse nome.»[12] «Em termos arquitetónicos, entende-se por “numerus” as interligações modulares proporcionais e simétricas entre os diversos elementos de um objeto. Quer dizer que, para que uma obra arquitetónica fosse “bela”, era necessário que existissem determinadas relações numéricas e geométricas. Não relações arbitrárias ou dependentes de um querer pessoal de cada um, mas dependentes de regras definidas, regras universais que existencializam e essencializam, por exemplo, o fenómeno visual com o auditivo, com o elemento matemático e com a forma natural. Para Alberti – um arquiteto renascentista –, essas regras são fundamentalmente de três espécies: •  “Proporcionais” (harmónicas, matemáticas ou geométricas), quer dizer, relacionando segundo determinados quocientes numéricos básicos as partes componentes. •  “Humano - proporcionais”, ou “orgânicas”, quer dizer, relacionando o “número”, o fator de medida, com os quocientes existentes no corpo humano, com o módulo de medida. •  “Modulação Mística”, isto é, segundo algarismos básicos modulares, exprimindo elementos de significado transcendental. 12  René Gilles, Le Symbolisme dans l’Art Religieux

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Deste modo tem-se: •  Revalidação do pitagorismo ou do platonismo teórico em linguagem arquitetónica. •  Revalidação do corpo humano como paradigma da beleza formal universal, como a mais perfeita criação de Deus sobre a Terra, logo como fenómeno natural que conterá uma das chaves dessa equação numérica harmónica modular que envolve e explica o Universo. •  Fenomenologia qualitativa de alguns algarismos em si mesmo como bases quantitativas a considerar, como “módulos básicos” do espaço arquitetónico. Assim, por um lado, encontramos em Alberti uma mística orgânica do corpo humano e, por outro lado e inteiramente ligada à anterior, temos outra mística, aquela a que Souriau chama a “mística da estética pitagórica”, que é a da figuração geométrica e matemática pura e completa: a da proporcionalidade, da regra, da geometria e das leis da euritmia, simetria e proporção (estática e dinâmica). Estas duas místicas, que se ligam microcosmicamente nas figurações Vitruvianas criadas pelos Renascentistas como fundo de uma cultura, onde reside basicamente uma correlação feita pelo processo matemático ou numérico, ou mesmo por um conceito da própria divindade numa relação ideal de figuração mística – eis algumas das bases da teoria e cultura albertiniana clássica. Não tinha já Platão enunciado que determinadas figurações primárias geométricas eram os arquétipos de todas as formas naturais, não o tinha confirmado Ficino, não o diz Alberti no seu Tratado, quer quando teoriza filosoficamente, quer quando essencializa determinado elemento prático arquitetónico com essas configurações? Só nos resta saber quais seriam essas expressões básicas contempladas pela razão, que criavam a união perfeita do senso cosmogónico de uma filosofia e o senso arquitetónico de um pensamento. Elas eram principalmente duas: o círculo, com princípio e fim em si próprio, como condensação da forma ideal da natureza, e o quadrado, em que as relações dos lados são perfeitas e iguais à unidade. Estas figuras apresentavam

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particularidades curiosas a que a mente Renascentista, especulando a partir de uma base platónica, atribuía qualidades que chegavam, como nos diz Ficino, a ser “a própria definição de Deus”. (...) Para Alberti beleza é a harmonia de todas as partes, ajustadas em tal proporção e vinculação que não é possível agregar, tirar ou modificar qualquer uma delas sem detrimento da obra. Segundo esta frase de Alberti, o “numerus” engloba “a procura das proporções harmónicas”, proporções essas que já relacionavam em princípio o corpo humano e os seus membros. Mas há outras que têm na cultura Renascentista e mesmo na cultura atual – veja-se o caso de Le Corbusier, Louis Kahn ou Nelson – uma muito maior profundidade e importância, pois tendiam a conjugar quer os fenómenos visuais e auditivos numa mesma base matemática, num mesmo sistema de medidas, quer ainda pela sua complexidade, a relacionar entre os quantitativos inspirados em figurações geométricas. Essas bases tinham, como vimos quando falamos de Pitágoras e Platão, um consenso mágico e explicativo do Universo, tendendo para organizar o movimento, o ritmo, a forma, a cor, tudo o que no Universo vibra sem que o sintamos, mas que visualizamos ou, melhor, racionalizamos, a partir dessas medidas mágicas, dessas correlações, dessas simetrias.»[13] «Le Corbusier, por exemplo, estava convencido de que qualquer novo sistema não devia ser baseado numa única unidade, como o “pé” ou o “metro” – ambos arbitrários –, mas sim numa escala de dimensões diferenciadas mas relacionadas matematicamente, permitindo que cada uma delas pudesse ser usada em conjunção com qualquer outra. Le Corbusier sabia que, a este respeito, o seu Modulor não era novo; ele próprio o disse claramente: O Parténon, os templos Indianos e as Catedrais foram todos construídos de acordo com medidas precisas que constituíam um código, um sistema coerente: um sistema 13  Augusto Pereira Brandão, Retrato de um Arquitecto Renascentista – L. B. Alberti

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que proclamava uma unidade essencial. Os homens primitivos de todos os tempos e de todos os lugares, assim como os portadores das grandes civilizações, Egípcia, Caldaica, Grega, todos eles construíram e, por essa razão, mediram. Quais foram os instrumentos que usaram? Eles eram eternos e constantes, preciosos, porque estavam ligados ao ser humano. Os nomes desses instrumentos eram: o “cotovelo” (cúbito), o “dedo” (dígito), “polegar” (polegada), “pé”, “passo”, etc. Enfim, eles formavam uma parte integrante do corpo humano e, por essa razão, estavam aptos a servir como medidas para as cabanas, casas e templos que tinham que construir. Le Corbusier, como os outros arquitetos da Era Humanista, estava convencido de que qualquer sistema de proporção ou de medição harmoniosa deve, de qualquer forma, derivar do corpo humano em vez de qualquer outro produto da natureza, quanto mais de uma subdivisão altamente teórica da circunferência terrestre. No terceiro milénio a.C., Imhotep, o primeiro arquiteto do mundo, considerou cuidadosamente este problema quando desenhou a Pirâmide de Degraus em Sacara, com os seus grandes pátios de mármore e as suas capelas subterrâneas. E, no quinto século a.C., o Parténon foi um trabalho matemático incrivelmente complicado – matemática considerada como uma coisa divina ou mística em vez de uma coisa utilitária –, matemática como um fim e não como um meio. (...) As suas partes pareciam estar cuidadosamente relacionadas umas com as outras, ao fazer de todas elas múltiplos e submúltiplos de um módulo comum. (...) Este módulo – que tem sido minuciosamente calculado pelos arqueólogos modernos – não era certamente o corpo humano ou qualquer uma das suas divisões. Tudo leva a crer, portanto, que na arquitetura clássica era importante haver uma espécie de módulo, qualquer unidade de medida, qualquer sistema para preservar proporções e para relacionar cada uma das partes entre si.»[14]

14  Robert Furneaux Jordan, Le Corbusier

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Compilação de Lucília Barata

O NÚMERO E A CIÊNCIA

U

m eminente físico teórico dos nossos dias, W. Heisenberg, diz a respeito dos triângulos elementares de Platão:

Os triângulos não são matéria, são simples fórmulas matemáticas e as partículas elementares têm a forma que lhes é atribuída por Platão porque tal é a forma mais bela e mais simples. A última causa dos fenómenos, portanto, não é a matéria, mas a lei matemática, a simetria, a fórmula matemática. Heisenberg explica por esta mesma tendência à simetria a sua própria teoria sobre as partículas elementares hoje conhecidas, por mais que se tenha modificado a posição da física no decurso de mais de dois milénios. Com a descoberta feita por Planck dos quanta energéticos, de novo entrou na ciência natural a ideia platónica que na base da estrutura atómica da matéria está, em última análise, uma lei matemática, uma simetria matemática. Entretanto, também as leis físicas invariantes para grupos de transformações de vários tipos são, no fundo, nada mais do que fórmulas matemáticas abstratas que se referem ao espaço e ao tempo. Apontamos neste contexto para os estudos de Andreas Speiser sobre a análise matemática da simetria da ornamentação, na arquitetura e na música. Eis o que diz este notável matemático e filósofo sobre uma composição musical: Assim como para a equação algébrica existe uma metafísica – o grupo – cujo conhecimento encerra o cerne da equação, assim também para a obra de arte existe uma metafísica, isto é, um conteúdo simétrico, cujo conhecimento torna possível a composição de muitas belas peças, sendo a descoberta de tal configuração a verdadeira invenção artística. Tarefa da ciência seria então a descoberta da estrutura total dessas

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Cálice do Conhecimento

peças com todos os seus nexos múltiplos.»[15] Diz também Einstein: «É convicção minha que a pura construção matemática permite-nos descobrir os conceitos, com as leis que lhes dizem respeito, e nos dão a chave dos fenómenos naturais. A experiência pode, bem entendido, guiar-nos na nossa escolha dos conceitos matemáticos úteis; não pode praticamente ser a fonte de onde decorrem. Logo, em certo sentido, tenho como verdadeiro que o pensamento puro seja capaz de apreender o real, tal como sonhavam os antigos. Para Einstein o essencial era aquilo que podia servir de matéria prima ou de instrumento na elaboração de uma imagem verosímil do real. Ele pressentia que o sistema bem ordenado das teorias geométricas é uma expressão da harmonia do mundo. A noção inicial era a própria simplicidade: os objetos geométricos são “pseudónimos” dos corpos reais e, por natureza, não diferem destes últimos. A relação entre a geometria e a realidade é um dos aspetos, em ciência, das relações entre o que é lógico e o que é empírico. Einstein exprimiu os seus pontos de vista epistemológicos a este respeito, em muitas ocasiões: Honramos a antiga Grécia – escreve ele – como o berço da ciência ocidental. Lá se criou, pela primeira vez, essa maravilha do pensamento que é um sistema lógico, em que os enunciados se deduzem uns dos outros com um tal rigor, que cada uma das proposições demonstradas não levanta a menor dúvida: é a geometria de Euclides. Esta admirável obra da razão trouxe ao espírito humano a confiança em si mesma, na sua ulterior atividade.

15  Oskar Becker, O Pensamento Matemático

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Compilação de Lucília Barata

Esta homenagem à componente racional do Conhecimento é seguida por uma homenagem à componente empírica: Todo o Conhecimento da realidade vem da experiência e a ela conduz. A experiência – diz ainda – continua a ser, naturalmente, o único critério de utilização de uma construção matemática na física; mas o princípio verdadeiramente criador encontra-se na matemática. Ajudado pelo seu notável sentido de harmonia e, como ele próprio dizia, pela “musicalidade” do seu pensamento científico, Einstein dava grande importância às impressões estéticas que fazia depender da “perfeição interna” da teoria. Para ele o critério de “perfeição interna” permite selecionar sem ambiguidade uma teoria, de acordo com os factos experimentais. A teoria que goza em mais alto grau de “perfeição interna” é aquela que repousa num mínimo de suposições arbitrárias. Tal teoria está preparada, melhor do que qualquer outra, para descrever a estrutura e o desenvolvimento da imagem do mundo, na base de leis uniformes e universais da realidade física. É ela a que mais se aproxima da razão objetiva do universo.»[16] «Todas estas considerações são, no fundo, pitagorismo, uma vez que a ideia básica dos pitagóricos era que a essência das coisas se reduz a “números” -, leis definidas por meio de números – o que leva à afirmação de que as leis que regem as coisas coincidem com a simetria interna ou a “harmonia” das leis que presidem aos números. Vemos assim que existe uma ponte que une entre si os pitagóricos e Platão com a pesquisa atual. Assim, a tão frequentemente afirmada contingência das leis da natureza cede lugar a uma espécie de necessidade, que se poderia chamar “necessidade pitagórica”.»[17] 16  B. Kuznetsov, Albert Einstein I. 17  Oskar Becker, O Pensamento Matemático

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Cálice do Conhecimento

«(...) O pensamento Oriental e, mais genericamente, o pensamento místico fornece uma base filosófica consistente e relevante para as teorias da ciência contemporânea; uma conceção do mundo em que as descobertas científicas do homem podem estar em perfeita harmonia com seus objetivos espirituais e crenças religiosas.»[18] «Tanto a teoria quântica como a cosmologia fazem recuar sempre para mais longe os limites do saber, até roçarem o enigma mais fundamental que o espírito humano enfrenta: a existência de um Ser transcendente, simultaneamente causa e significação do grande universo. E, afinal de contas, não encontramos na teoria científica a mesma coisa que na crença religiosa? O que é a Realidade? Donde vem? Assenta ela numa ordem, numa inteligência subjacente? A teoria quântica diz-nos que, para compreendermos o real, é preciso renunciarmos à noção tradicional de matéria: matéria tangível, concreta, sólida. Que o espaço e o tempo são ilusões. Que uma partícula pode ser detetada em dois lugares ao mesmo tempo. Que a realidade fundamental não é conhecível. Nós estamos ligados ao real dessas entidades quânticas que transcendem as categorias do tempo e do espaço comuns. Nós existimos através de “qualquer coisa” de que temos dificuldade em perceber a natureza e as propriedades espantosas, mas que se aproxima mais do espírito que da matéria.»[19]

18  Fritjof Capra, The Tao of Physics 19  Jean Guitton, Deus e a Ciência

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Compilação de Lucília Barata

O NÚMERO E A NATUREZA

O

estudo da forma pode ser meramente descritivo, ou pode tornar-se analítico. Começamos por descrever a forma de um objeto através da simples linguagem falada: terminamos definindo-o na linguagem precisa da matemática; (...) A definição matemática de uma “forma” tem uma qualidade de precisão que faltava ao estágio anterior de mera descrição (...), e isso leva-nos ao encontro do aforismo de Galileu (...): o Livro da Natureza está escrito em linguagem matemática.»[20] A propriedade de produzir, por simples adição, uma sucessão de números em progressão geométrica, ou de formas idênticas, aquilo a que Sir D’Arcy Thompson chama “crescimento gnomónico” explica a importância do papel desempenhado pela “Regra de Ouro” na morfologia da vida e do crescimento, especialmente no corpo humano e em botânica. O corpo humano é a ilustração mais notável e óbvia da presença da “Regra de Ouro”. Para além do corpo humano esta regra aplica-se também ao mundo animal e os diagramas de proporções que daí resultam, embora arranjados de maneira diversa, podem ser decifrados pela mesma chave. A razão para o aparecimento em botânica da “Regra de Ouro” e da “série de Fibonaci”, com ela relacionada, deve-se ao facto de ambas produzirem um crescimento “gnomónico” ou homotético. Já em cristalografia, a lei fundamental é a “lei dos coeficientes racionais”, uma vez que os coeficientes que expressam as relações entre as diferentes faces de um cristal e as direções dos três eixos principais de simetria são dados por pequenos números inteiros. A verdade é que há uma “Geometria da Arte” assim como há uma “Geometria da Vida” e, como os gregos adivinharam, acontece que ela é a mesma.»[21] 20  D’Arcy Thompson, On Growth and Form 21  Matila Ghyka, The Geometry of Art and Life

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Cálice do Conhecimento

MATEMÁTICA

Q

ue haverá na Matemática que faz dela o padrão das ciências chamadas exatas e o ideal das novas ciências que ainda não alcançaram essa honra? Em vários campos, como o da biologia ou das ciências sociais, é objetivo declarado, pelo menos dos investigadores mais jovens, estabelecer normas e métodos que permitam incluir esses ramos da ciência no número sempre crescente das que já aceitaram o domínio das matemáticas. A matemática não é apenas o modelo sobre cujas diretrizes as ciências exatas se esforçam por traçar a sua estrutura, a matemática é o próprio cimento que mantém coeso essa estrutura. Na verdade não se considera resolvido um problema enquanto o fenómeno estudado não for formulado com uma lei matemática. Mas por que razão se considera que só os processos matemáticos podem facultar à observação, à experiência e à especulação, a precisão, a concisão e a certeza que as ciências exatas exigem? Se analisarmos os processos matemáticos verificamos que se apoiam em dois conceitos: Número e Função; que o conceito de Função, em última análise, se pode reduzir ao conceito de Número, e que o conceito geral de Número se baseia, por sua vez, nas propriedades que atribuímos à sequência natural: um, dois, três, etc. É, portanto, nas propriedades dos números inteiros que podemos esperar descobrir a chave desta fé tácita na infalibilidade do raciocínio matemático. (...) Não há dois ramos da matemática que apresentem maior contraste do que a Aritmética e a Teoria dos Números. A grande generalidade e simplicidade de regras, torna a aritmética acessível mesmo para a inteligência menos brilhante. A facilidade nas operações é apenas uma questão de memória. Já a teoria dos números é, de longe, a mais difícil de todas as disciplinas da matemática. É certo que o enunciado dos seus problemas é tão simples que até uma criança

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Compilação de Lucília Barata

pode compreender o que está em causa. Mas os métodos utilizados ​​são tão particulares que se exige, para a descoberta das vias de acesso aos nossos problemas, uma inteligência audaciosa e uma grande destreza. A intuição tem aqui o campo livre. A maior parte das propriedades conhecidas foram descobertas por uma espécie de intuição. Durante séculos revelaram-se falsos mais tarde e ainda hoje há problemas que, de há muito, vêm desafiando o engenho dos maiores matemáticos e continuam por resolver. A aritmética é a base de toda a matemática, pura ou aplicada. É a mais útil de todas as ciências e não há, provavelmente, outro ramo do conhecimento humano que esteja tão extensamente difundido entre as massas. Já a “teoria dos números” é o ramo da matemática que tem encontrado menos aplicações. Não só se tem conservado sem influenciar o progresso técnico mas, no próprio domínio da matemática pura, tem-se mantido em posição isolada, só muito remotamente ligada ao corpo geral da ciência. (...) A força da aritmética apoia-se na sua generalidade absoluta. As suas regras não admitem exceção: aplicam-se a todos os números. Todos os Números! Tudo se encerra nesta curta mas tremendamente importante palavra “todos”. Não há qualquer mistério ao redor desta palavra quando aplicada a qualquer classe finita de coisas ou circunstâncias. Quando dizemos, por exemplo, «todos os homens», ligamos a esta expressão um sentido bem definido. Podemos imaginar toda a humanidade disposta segundo uma ordem determinada: haverá nesta coleção um “primeiro” homem e haverá um “último” homem. Evidentemente, para se provar com todo o rigor que uma certa propriedade era verdadeira para todos os homens teríamos que o provar para cada um deles, mas, embora se compreenda que um trabalho desta natureza apresentaria dificuldades insuperáveis, a verdade é que as dificuldades seriam de carácter puramente técnico e não conceptual. E isto é verdadeiro para qualquer coleção finita, quer dizer para qualquer coleção que tenha um “último” membro do mesmo modo que tem um “primeiro”, por se poder esgotar toda a coleção pela contagem. Poderemos nós significar o mesmo quando nos referimos a «todos os números»? Também neste caso se pode conceber a coleção disposta segundo uma certa ordem e nesta ordem

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haverá um “ primeiro” número, o número “um”. Mas quanto ao último? A resposta é simples: não há último número! Não podemos conceber um limite à operação de contar. Todo o número tem um sucessor. Há uma “infinidade” de números. Mas se não há último número, qual o significado de «todos os números» e, particularmente, qual o significado de «propriedades de todos os números»? Como poderemos nós provar tais propriedades: não será certamente verificando cada caso individual, uma vez que sabemos de antemão que não podemos materialmente esgotar todos os casos. É, pois, no próprio limiar da matemática que se nos depara este “dilema do infinito”, como o dragão lendário guardando a entrada do jardim encantado. (...) Foi ao redor do infinito que nasceram todos os paradoxos da matemática, dos princípios de Zenão às antinomias de Kant e de Cantor. Estes paradoxos foram os instrumentos para a criação de uma atitude mais crítica em relação aos fundamentos da aritmética. Isto porque, se as propriedades dos números inteiros formam a base da matemática, e se essas mesmas propriedades podem ser demonstradas pelas regras da lógica formal, toda a matemática será então uma disciplina lógica. Se, porém, a lógica é insuficiente para estabelecer aquelas propriedades, a matemática fundar-se-á então em qualquer coisa que está para além da simples lógica: o seu poder criador dependerá dessa coisa ilusória, intangível, a que se chama intuição. Estas dúvidas dividiram os principais pensadores matemáticos em dois campos, o dos “intuicionistas” e o dos “formalistas”. Os “formalistas”, como Hilbert, Russel e Zermelo, entendem que o uso livre das palavras “todos”, “conjunto”, “correspondência” e “número” é inadmissível. Mas a solução não reside, segundo eles, na completa negação da teoria dos conjuntos, mas na remodelação da teoria de acordo com as linhas da razão pura: Teremos de idealizar um corpo de axiomas que possa servir de base à teoria e, para garantir que não nos deixamos levar por caminho errado pela nossa intuição, devemos construir o perfil esquemático puramente formal, logicamente consistente,

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para tal corpo, um mero esqueleto sem conteúdo. Construído esse sistema consistente, inclusivo, basearemos nesse alicerce a aritmética do infinito, absolutamente seguros de que nenhum paradoxo ou antinomia virá de novo para perturbar a paz do nosso espírito. Os “intuicionistas”, começando por Kronecker, depois reforçado por Poincaré, representados recentemente por espíritos da envergadura de um Brower na Holanda, Weil na Alemanha e, em certa medida, Borel na França, têm uma história diferente a contar. Diz Weil: Temos de aprender uma nova modéstia. Revolvemos os céus, mas não conseguimos senão amontoar nevoeiro sobre nevoeiro, uma neblina que não suportará quem seriamente se queira apoiar nela. Aquilo que é válido é tão insignificante que se pode seriamente duvidar se a análise é de todo em todo possível. Segundo os “intuicionistas”, a questão está muito para além dos confins da teoria dos conjuntos. Afirmam que, para um conceito merecer aceitação no campo das matemáticas, não basta que seja “bem definido”: tem que ser construível. Não basta que o conceito tenha nome, é preciso também construí-lo efetivamente para determinar o objeto que representa. E, no tocante à construção, os únicos processos admissíveis são os finitos ou processos infinitos que possam ser redutíveis a finitos por meio de um número finito de regras. O ato de conceber simultaneamente um número infinito de objetos singulares e de tratar o todo como um objeto individualizado não pertence a esta categoria de conceitos admissíveis e deve ser, a priori, banido da matemática. E isto não significa apenas a rejeição da teoria dos conjuntos: o próprio conceito de “número irracional” terá de sofrer uma modificação profunda, até se purgar a análise de todas as impurezas com que a poluiu o uso indiscriminado do infinito. Porque a matemática – diz Weil – mesmo nas formas lógicas em que se move, depende inteiramente do conceito de número natural.

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E assistimos ao estranho espetáculo oferecido pelos homens que mais alto proclamam que o império repousa em alicerces frágeis – vemos estes melancólicos profetas, de tempos a tempos esquecidos dos seus próprios avisos de alarme, aderindo à tarefa febril de alargar o império, de levar cada vez mais avante a já bem avançada linha de ataque.»[22] Daí a pertinente citação feita por Marcel Boll no seu livro As Etapas da Matemática: «Se os números “normais” não bastam para traduzir a geometria, não teria havido, no princípio, um “engano colossal” que acabaria por demostrar que a nossa confiança no número era errada, que não teríamos o direito de nos servirmos dele nas operações mais complicadas e que deveríamos rever tudo desde a base?»[23]

22  Tobias Dantzig, Número, a Linguagem da Ciência 23  Marcel Boll, As Etapas da Matemática

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MONUMENTOS, MITOS E TRADIÇÕES

T

em-se tornado evidente que não só os mitos e histórias sagradas de todas as raças obedecem a modelos cosmológicos idênticos, mas também que os monumentos pré-históricos espalhados por todo o mundo foram desenhados de acordo com um esquema de proporção em unidades de medida que são as mesmas por toda a parte. Do mesmo modo, as tradições relacionadas com esses monumentos são unânimes em afirmar que eles são relíquias de uma ciência elementar, fundada em princípios por nós ignorados atualmente, constituindo a essência destas tradições, em última análise, numa demonstração matemática de uma lei cósmica. (...) A busca visionária de uma simples fórmula para expressar o único processo criativo que governa a totalidade do movimento cósmico é atualmente olhada como quimera de uma era passada mais crédula do que a nossa. No entanto, e embora não pareça haver para isso uma explicação razoável, a visão de um sistema que englobe o mundo continua a ser uma verdade poética eterna, um estímulo infalível para a imaginação e, deste modo, uma influência potencial nos assuntos humanos. (...) A perceção transcendental da ordem cósmica é uma constante como é a própria ordem. É este reconhecimento de uma verdade unificadora que levou tantos homens iluminados a buscar uma linguagem comum nos esquemas de geometria, símbolos e números, fundamentais em toda arte e literatura sagrada.»[24]

24  John Michell, City of Revelation

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Cálice do Conhecimento

TEMPLO

A

noção de Templo como o lugar de união entre as forças cósmicas e terrestres tem sido reconhecida por todos os povos. Tanto a casa de Deus para os Babilónios, como o rochedo em Delfos para os Gregos, representava o centro universal da criação, encontrando-se exemplos idênticos em todos os territórios. Foi aos Judeus, contudo, que coube o honroso cargo de preservar a sua tradição viva até hoje, de maneira que a imagem do Templo de Jerusalém restaurado se tenha tornado aceite em linguagem simbólica na maior parte do mundo como representando a eterna aspiração dos místicos para testemunhar o regresso do espírito profético e a consequente aparição de uma ordem mundial revelada, necessária para o restabelecimento da civilização humana. Foi este sonho que inspirou os primitivos cristãos gnósticos, as sociedades herméticas, os Templários e a ordem de S.João, os cabalistas medievais e os mágicos. O primeiro objetivo dos pedreiros livres (maçons) era a restauração do Templo. Os Alquimistas trabalharam para o mesmo fim ao procurarem a Pedra Filosofal, o perfeito equilíbrio entre os elementos puros. (...) Estudiosos de todas as gerações têm examinado os livros sagrados e proféticos de modo a estabelecer as verdadeiras dimensões do Templo, no qual reside a chave para os segredos da primitiva harmonia perdida. A figura da Nova Jerusalém desempenha ainda uma parte importante na imaginação dos movimentos não conformistas e revivalistas, sendo particularmente proeminente nos mitos da fundação da América colonial, uma vez que o antigo sonho da ordem divina transportada para a terra é uma característica da raça humana. Depois da destruição do templo de Jerusalém, o Templo simbólico reapareceu entre os primitivos cristãos como a Nova Jerusalém, representando o regresso antecipado da era profética, na qual o contacto anterior com a fonte de revelação divina seria restaurado, e a vida retomaria o seu verdadeiro curso de acordo com o ritmo cósmico. Como símbolos não há nenhuma diferença entre o Templo e a Nova Jerusalém, pois a visão de unidade que ambos referem é eternamente a mesma, embora se possa revelar numa variedade

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infinita de formas de acordo com a educação e estado de espírito de quem o recebe. (...) O meio pelo qual todo o conhecimento do passado tem sido transmitido até ao presente é o da linguagem simbólica, e a criptografia que representa e contém os segredos do Cânone é a figura do quadrado em conjunção com o círculo. O quadrado e o círculo são, contudo, incomensuráveis, uma vez que não há maneira de provar que o perímetro de um círculo é exatamente igual ao de um quadrado. No entanto, o geómetra que queira criar a verdadeira imagem do Cosmos deve combinar quadrado e círculo de igual perímetro num mesmo esquema de proporção. Se ele for bem sucedido nessa tarefa, obterá a mais alta recompensa para si e para a comunidade – o plano do templo cósmico. (...) A finalidade do templo é perfeitamente expressa pelo símbolo desta conjunção “quadrado - círculo”, no qual foi fundada. E isto é a justificação pelo obsessivo interesse no que pode parecer um esquema de geometria antiquado: é que o plano do templo não é apenas uma expressão das noções religiosas e científicas de uma era, mas uma chave reveladora para a interpretação do movimento e mudança universal, verdadeira para todos os tempos.»[25] «As Escrituras falam de Deus como um “Sábio Mestre de Obras” e da Sua colocação da “pedra angular” da Criação. É pelo facto de Deus ser o construtor deste e doutros mundos que a Maçonaria Lhe chama o “Grande Arquiteto do Universo”. Logo, a arquitetura é tão velha como o Universo. As escrituras empregam também em várias ocasiões ideias tiradas da arquitetura para transmitir à mente humana coisas espirituais e celestes. O homem é chamado “pedra viva”, “casa espiritual”, “edifício de Deus” e “templo do Espírito Santo”. Quando Deus, o Supremo Arquiteto do Universo, quis uma casa terrena ou Templo, no qual pudesse “morar” entre os homens, deu aos homens o plano da construção que queria que fizessem. (...) 25  John Michell, City of Revelation

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Cálice do Conhecimento

«Templo» significa “casa grande” e, num sentido mais elevado, “casa de adoração”. E, num sentido mais elevado ainda, “ habitação de Deus”. Mas, uma vez que Deus é Espírito, por que é que aprova a construção de uma casa ou Templo feitos pelo Homem? A resposta é simples: se o Homem fosse completamente espiritual não precisaria de Templo, de formas de adoração. Ele veria Deus em todos os lugares e sentiria a Sua presença em todos os tempos. Mas, uma vez que se deu a “queda” do Homem, é unicamente através de formas que Deus nos pode guiar em direção a uma condição mais elevada ou restauração espiritual. Se não fosse pelo mundo visível em que vivemos, Deus nada seria para nós. Ainda que Deus exista como existe agora. É, pois, através da criação visível que o Deus invisível se torna uma realidade para nós. Deus não está mais num lugar que noutro, mas aos homens deve ser feito sentir que Ele está em algum lado, antes que se apercebam de que está em todo o lado. Foi por causa desta exigência humana que Deus nomeou homens para construir o Tabernáculo, que não era mais do que uma alegoria, uma imagem para esse tempo então presente até surgir «um Tabernáculo maior e mais perfeito, que não foi construído pela mão do Homem, isto é, não é desta criação» (Heb.9;11). Quando o Rei David desejou substituir o Tabernáculo por um edifício mais permanente, foi Deus novamente que lhe forneceu os planos do edifício que deveria construir. Assim como o Tabernáculo, cada detalhe da construção do Templo, desde a fundação ao teto, revestia um simbolismo expresso em formas, de modo a ensinar ao Homem verdades espirituais. A importância do simbolismo do Templo é revelada pela grande importância que lhe é prestada na Bíblia. Ele é constantemente referido pelos profetas, pelos apóstolos e até por Jesus. Cada homem é chamado a ser um “construtor do templo”, e espera-se de cada homem que seja o “templo do Espírito Santo”.»[26]

26  E.Raymond Capt, King Solomon’s Temple

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CÂNONE SAGRADO DE COSMOLOGIA

E

m todo o mundo, as unidades tradicionais de comprimento, área, peso e capacidade estão relacionadas entre si e derivam de um cânone original de cosmologia. (...) Em eras passadas, quando pouca distinção se fazia entre as necessidades físicas e psicológicas de uma sociedade saudável, a natural ansiedade humana por um verdadeiro entendimento de uma ordem cósmica como o modelo para uma vida mais harmoniosa era, de um modo geral, apreciada. O bem mais estimado de todas as raças era o seu Cânone sagrado de cosmologia, incorporado nas leis nativas, costumes, lendas, símbolos e arquitetura, assim como no ritual do dia-a-dia. Os segredos internos desta tradição geradora de vida eram preservados no templo principal, que simultaneamente guardava e exibia o cânone sagrado; o templo era, ele próprio, um trabalho canónico, um modelo de cosmologia nacional e, assim, da estrutura social e psíquica do povo. A sequência de eventos que levaram à destruição da memória humana e do seu senso de propósito nunca foi determinada com certeza, mas todas as tradições esotéricas estão de acordo sobre a natureza da sua missão original. A vida inteligente foi introduzida na Terra para que a própria Terra pudesse ser levada a um estado de perfeição em cumprimento do seu destino cósmico. O templo forneceu o modelo e a planta de base sobre os quais a obra deveria prosseguir e, ao longo da idade de ouro, assim aconteceu em conformidade.»[27] «Foi sempre sabido que os Gregos usavam um Cânone Secreto de Proporções, revelado a iniciados, e que esse cânone foi herdado dos Egípcios, que por seu turno o guardariam desde a mais remota antiguidade. (...) 27  John Michell, City of Revelation

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Do conjunto de investigações levadas a cabo no nosso século (XX) resulta o sentimento, se não a certeza, de que num passado remoto a Humanidade deteve o segredo de uma Unidade capaz de dar conta do Universo e do Homem, do sensível e do inteligível, do natural e do sagrado e onde as múltiplas faces do poliedro humano, o pensar, o agir, o amar, o imaginar, o conceber, se harmonizavam numa visão de conjunto estrutural, qualquer coisa como uma chave universal apta a fornecer, parafraseando Einstein (e não apenas no campo racional), a “unificação dos campos”. Conhecer a estrutura permanente, invariável, que comanda a aparição, transformação e propagação dos fenómenos vitais – e o Universo era para os antigos, como a Terra e o Homem, um ser animado – equivaleria a deter o segredo da Harmonia, da Beleza e da Verdade, do lugar Humano no Todo Divino.»[28] «Tudo começa, de facto, no Egito. Os Egípcios possuíam, indubitavelmente, um Cânone sagrado. O conhecimento profundo desse Cânone e das suas aplicações ao homem e à sociedade, às artes e às técnicas, ao culto e à governação, numa palavra, a toda a gama das atividades e criações humanas, possibilitou à civilização egípcia, nas palavras de Platão, uma estabilidade que durou mais de dez mil anos. Para um autor do nosso tempo que dedicou a sua vida ao estudo dos templos egípcios, a questão não oferece dúvidas. É evidente, escreve Schwaller de Lubicz, que não se constroem tais monumentos, em tão grande número, durante milénios, para camponeses incultos. Trata-se forçosamente da obra de uma elite, e mesmo (facto mais notável) de uma elite que não cessa de renovar-se, uma elite que parece ter sido particularmente rica de ciência e até de conhecimento das leis da Vida. Qual era, pois, essa fonte inesgotável e qual o meio tão poderoso e tão estável que permitia assegurar uma tal continuidade? Não pode tratar-se de uma evolução de ciência, 28  Lima de Freitas, Almada e o Número

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Compilação de Lucília Barata

mas, pelo contrário, duma base imutável, visto que a existência de uma língua e de uma escrita absolutamente completas desde as primeiras dinastias do período histórico parece confirmá-lo. Não se trata de uma investigação que começa: é a aplicação de um Conhecimento que se possui. (...) Aos mistérios egípcios foram depois beber os Gregos, de cujo pensamento e de cuja arte se nutriu grandemente o Ocidente medievo e moderno. (...) Outros transmissores foram os Judeus, que haviam aprendido, primeiro na Caldeia e depois no Egito, os valores numerais secretos e que guardam na árvore sefirótica a chave de leitura dos seus livros sagrados e da magia das transmutações: através do estudo da Kabbalah, empreendido não só por judeus europeus, mas também por filósofos e sábios cristãos, e também através do esoterismo joanita, a tradição judaica marcou igualmente de modo decisivo o Ocidente e a modernidade. (...)»[29] «Na linha de uma antiquíssima tradição iniciática universal, cada época, cada civilização, deu conta, à sua maneira do cerne in-dizível: os Judeus, por vocação semita iconoclasta, destrinçaram as relações do Número na estrutura abstrata da árvore sefirótica, pelos segredos da gematria e da cabala; os Gregos, voltados para a beleza das formas sensíveis, acharam na tradição egípcia dos traçados o cânone de proporções que abre as portas da harmonia (não cabe aqui falar de outras tradições). Foi Pitágoras o grande transmissor dessa herança, de que se alimentam os gnósticos e o mundo greco-latino, incluindo o esoterismo cristão.»[30]

29  Lima de Freitas, Pintar o Sete 30  Lima de Freitas, Almada e o Número

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TRADIÇÃO

C

onvém compreender o que significa o conceito (esotérico) de tradição geralmente negado, desnaturado ou desconhecido. Não se trata de cor local, de costumes populares, de hábitos curiosos colecionados por folcloristas, mas da própria origem das coisas. A tradição é a transmissão de um conjunto de meios consagrados que facilitam a tomada de consciência de princípios imanentes da ordem universal, já que o homem não deu a si mesmo a sua razão de viver. A ideia mais próxima, a mais capaz de evocar o que a palavra significa, seria a de uma filiação espiritual de mestre a discípulo, de uma influência criadora análoga à inspiração, tão consubstancial ao espírito quanto a hereditariedade ao corpo. Trata-se aí de um conhecimento interior co-existente à vida, de uma co-existência, e ao mesmo tempo de uma consciência superior reconhecida como tal, de uma co-ciência, neste ponto inseparável da pessoa que nasce com ela e constitui a sua razão de ser. (...) Em virtude desta tradição anterior à história, o conhecimento dos princípios foi, desde a origem, um bem comum à humanidade, que mais tarde desabrochou nas formas mais altas e mais perfeitas das teologias do período histórico. Todavia, uma degenerescência natural, que gerou especialização e obscurantismo, cavou um hiato crescente entre a mensagem daqueles que transmitem e daqueles que recebem. Uma explicação tornou-se cada vez mais necessária, uma polaridade apareceu entre o aspeto exterior, ritual, literal, e o sentido original tornou-se interior, quer dizer, obscuro e não compreendido. No Ocidente, o aspeto exterior tomou em geral a forma religiosa. Destinada à multidão dos fiéis, a doutrina dividiu-se em três elementos: um dogma para a inteligência, uma moral para a alma e os ritos para o corpo. Enquanto isso acontecia, o sentido profundo reduziu-se ao esotérico, que era resolvido cada vez mais em aspetos tão obscuros que foi preciso recorrer a exemplos paralelos das espiritualidades orientais

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Compilação de Lucília Barata

para se poder reconhecer a sua coerência e vitalidade. A obscuridade progressiva da ideia de tradição durante muito tempo impediu-nos de compreender a verdadeira face das civilizações antigas, orientais e ocidentais, e ao mesmo tempo interditou-nos a volta ao ponto de vista sintético que lhes era comum. Só a perspetiva dos princípios permite compreender tudo sem nada ter que suprimir, de fazer a economia de um novo vocabulário, de ajudar a memória, de facilitar a invenção, de estabelecer ligações entre as disciplinas aparentemente mais afastadas, reservando àquele que se coloca neste centro privilegiado a inesgotável riqueza das suas possibilidades, tudo graças aos símbolos. (...) Uma espécie de segredo prende-se ao simbolismo de qualquer expressão escrita ou falada, sobretudo se se tratar de um ensinamento espiritual. Permanecerá sempre na expressão da verdade alguma coisa de inefável, a linguagem não sendo apta para traduzir as conceções sem imagem do espírito. Enfim, e sobretudo, o segredo verdadeiro, como tal, é averiguado pela sua natureza, e a ninguém é dado o poder de divulgá-lo. Ele persevera inexprimível e inacessível aos profanos, e só pode ser atingido com a ajuda de símbolos. O que é transmitido pelo mestre ao discípulo não é o próprio segredo, porém o símbolo e a influência espiritual que torna possível a sua compreensão. (...) O que é segredo no esoterismo, torna-se mistério na religião. É preciso acrescentar que, se existe uma correlação lógica entre exoterismo e esoterismo, não há, entre eles, uma correspondência exata, pois o lado interior domina o lado exterior que ele integra, excedendo-o, mesmo que este aspeto exterior tenha tomado no Ocidente o aspeto religioso. O esoterismo não é, portanto, somente o aspeto interior de uma religião, porque o exoterismo não possui sempre, e obrigatoriamente, um aspeto religioso, e a religião não tem o monopólio do sagrado».[31] 31  Luc Benoist, O Esoterismo

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Cálice do Conhecimento

«A palavra Tradição reveste, portanto, dois sentidos diferentes. Designa, por um lado, a origem do Conhecimento e, por outro, o seu modo de transmissão. O primeiro é imutável e absoluto. O segundo é o resultado sincrético da busca multimilenária do Conhecimento pelas diferentes partes da humanidade e das suas sucessivas civilizações. Pode adaptar-se incessantemente, para se fazer compreender segundo os tempos e os meios, e acrescentar-se de novos segmentos. A maioria das religiões apela para uma noção idêntica a fim de ligar-se ao divino, mas confere-lhe o valor de uma revelação, pela qual se exprime o conteúdo sagrado dos livros santos, como a Bíblia ou o Alcorão. (...) Ligando-nos ao seu conteúdo esotérico, podemos perceber que as religiões assim sublimadas em princípio reduzem-se ao Esforço, à busca de Perfeição, à comunhão do Homem com o Ser no Conhecimento e no Amor, e através deles. Verificam também o historiador e o filósofo que as religiões, longe de se contraporem, têm muitos traços comuns. O seu esoterismo permite encontrar um elo comum, que eleva cada uma delas, elevando-as a todas. Essa identidade, fenómeno imemorial, faz pensar numa tradição, numa revelação –seja sobrenatural, seja sentida intuitivamente pela visão ultra-normal de alguns sábios –tradição hoje perdida sob os véus das diversas religiões e que importa redescobrir pela compreensão esotérica dos símbolos idênticos que a exprimem em cada um dos cultos e liturgias. (...)»[32]

32  Paul Naudon, A Maçonaria

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TRADIÇÃO RELIGIOSA

A

s cosmogonias encontram-se em todas as áreas habitadas da Terra, e em todas as tradições culturais. Dispomos de uma infinidade de relatos e de cantos poéticos, oriundos das zonas mais remotas às mais próximas: da Indonésia e da Polinésia, da Sibéria e das regiões da Europa setentrional, do Extremo e do Médio Oriente, do coração da África e de muitas regiões da América setentrional, central e meridional. E todos oferecem motivos de rara beleza e de alta religiosidade. (...) Não há tribo «selvagem», como não há gente «civilizada», que não tenha acolhido e cultivado, com o seu poder imaginativo, o símbolo itinerante da díade «Terra-Céu». Assim o cantam, quase em uníssono, tanto uma canção dos mares do sul, como este hino dos índios Pawnee: Ó Ceu, ó Terra que entrelaçais os dedos, cumes das montanhas e nuvens passageiras, instilai o vosso amor eterno no lago do nosso coração, celebrai o vosso matrimónio nas pequenas almas dos homens.»[33] «Para a maior parte dos europeus, “religião” significa uma relação fixa entre o homem e uma entidade não humana, o Sagrado, o Sobrenatural, a própria Existência, o Absoluto, ou simplesmente “Deus”. Contudo, a partir do Suez para Oriente, tal relação parece frequentemente ser considerada indescritível, ou descritível em termos de movimento como um “Caminho”. Assim, temos o “hodos”, ou caminho, dos Fariseus. A Cristandade primitiva no Livro dos Atos é chamada “Esse Caminho”; o Budismo é descrito como “os oito caminhos nobres”; e a religião nacionalista japonesa (se se pode usar este rótulo 33  Maurilio Adriani, História das Religiões

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Cálice do Conhecimento

europeu) é chamada Shinto, “o Caminho dos Deuses”; enquanto a Rússia comunista, fiel à sua descendência semi-oriental, rejeitou o Teísmo ou antes, o termo europeu “religião” a favor da rendição ao “Processo Dialético” – o que é, uma vez mais, um “Caminho”; também a mensagem de Confúcio é por ele chamada “O Caminho”.»[34] «Enquanto o Ocidente acentua a encarnação humana, e ainda a personalidade e historicidade de Cristo, o Oriente diz: «Sem princípio, sem fim, sem passado, sem futuro». De acordo com a sua crença, o Cristão subordina-se a uma pessoa superior e divina esperando obter a Sua graça; mas o oriental sabe que a redenção depende do “trabalho” que o indivíduo fizer sobre si mesmo. O Tao cresce a partir do indivíduo. A imitação de Cristo tem esta desvantagem: com o correr dos tempos adora-se como divino exemplo um homem que encarnou o mais profundo significado da vida e então, empenhados numa perfeita imitação, esquecemo-nos de tornar real o nosso desígnio mais profundo – a auto-realização. Tivesse Jesus feito isso e Ele teria sido provavelmente um respeitável carpinteiro e não o “rebelde” religioso que foi. A imitação de Cristo deveria ser entendida de uma maneira mais profunda. Devia ser tomada como o dever de tornar reais as nossas convicções mais profundas, com a mesma coragem e o mesmo espírito de auto-sacrifício revelado por Jesus. Deste modo, a pessoa de Jesus, situada fora no reino da história, poder-se-ia tornar para o homem contemporâneo o homem superior que existe dentro de si próprio, o que lhe permitiria alcançar, à maneira europeia, o estado psicológico correspondente à “iluminação” no sentido oriental.»[35]

34  A .C. Bouquet, Comparative Religion 35  The Secret of the Golden Flower, A Chinese Book of Life

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PRINCIPAIS RELIGIÕES HINDUÍSMO BUDISMO TAOÍSMO JUDAÍSMO CRISTIANISMO ISLAMISMO

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HINDUÍSMO

O

Hinduísmo, ao contrário do Cristianismo, Islamismo ou Budismo não teve nenhum fundador. Foi crescendo por um período de mais de 5.000 anos, absorvendo e assimilando todos os movimentos religiosos e culturais da Índia.»[36] «Não se pode dizer que o Hinduísmo seja uma filosofia ou religião bem definida. É, antes, um complexo e vasto organismo socio-religioso formado por inúmeras seitas, cultos e sistemas filosóficos, envolvendo vários ritos, cerimónias e disciplinas espirituais, bem assim como a adoração de incontáveis deuses e deusas.»[37] «Conforme aparece nos Vedas, a religião dos Arianos (o povo que invadiu a Índia no segundo milénio antes de Cristo e falava uma língua da qual deriva o sânscrito tal como hoje o conhecemos) era essencialmente politeísta e a mitologia védica parece revelar alguma similitude com a sua réplica europeia. No Upanishads (c. 800 a.C) a doutrina está centrada à volta de Brahaman e Atman. Por Brahaman quer-se dizer o “Deus que tudo penetra”, enquanto o outro termo, Atman, quer dizer “Ego”. O Upanishads aponta que Brahaman e Atman são o mesmo e ensina ao estudante de religião «Tu és Isso» (Tat tvam asi). No Bhagavad Gita, composto alguns séculos depois do Upanishads (cerca de 500 a.C.) são discutidos os deveres do homem no mundo. A indestrutibilidade da alma é reivindicada, o trabalho altruísta é apresentado como um ideal e os deveres de todo o ser humano são realçados. É neste período (entre 800 e 500 a.C.) que são lançadas as principais fundações do Hinduísmo moderno, o politeísmo dá lugar ao 36 K.M.Sen, Hinduism 37  Fritjof Capra, The Tao of Physics

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monoteísmo, surge claramente um código moral de conduta e as futuras tendências da religião são amplamente definidas. Entretanto surgem o Jaísmo e o Budismo, desenvolvendo ambos os Ideais Hindus de renúncia e de amor, usando a metafísica de documentos Hindus nos quais é dada ênfase às três maneiras de se alcançar Deus: Conhecimento (Jnãna), Ação (Karma) e Devoção (Bhakti). Na última parte do primeiro milénio d.C. a ideia de «avatãra» (“avatar” ou encarnação Divina) desenvolve-se e isso ajuda a devoção (bhakti), uma vez que é muito mais fácil para o homem amar um Deus pessoal do que o abstrato e todo penetrante Deus dos Upanishads. O movimento Bhakti está muitas vezes centrado em volta da encarnação (avatãras) como Krishna ou Rãma, embora por vezes se tenha baseado também na devoção a um Deus não encarnado. No entanto, mesmo no último caso, é atribuída uma forma Ao que não tem forma, sendo adorado sob a forma, digamos, de Vishnu, Shiva ou Kali. Este movimento floresceu particularmente na Idade Média e foi reforçado pela tradição muçulmana chamada Sufi. Na época moderna, em parte como reação à atividade missionária cristã, o interesse popular pelos antigos documentos hindus, como o Upanishads, tem aumentado. A maior parte dos hindus das classes mais instruídas parece acreditar no Upanishads, aceitando o mundo como uma manifestação de Brahman (Brama). O interesse pelas formas menos abstratas do culto religioso tem declinado entre estas classes e por vezes estas são executadas mais como costumes sociais do que atividades puramente religiosas. Contudo, uma grande maioria de hindus economicamente desfavorecidos aproxima-se de Deus através de simples métodos tradicionais usando os caminhos da devoção (bahkti) e atuação (karma) em vez do caminho do conhecimento (jnãna). E é precisamente a continuação destes métodos que é responsável pela falsa crença, de certo modo comum no Ocidente, de que o Hinduísmo é uma religião politeísta. Se a doutrina de Brahman não for entendida, este é um erro fácil de cometer, pois no Hinduísmo popular Deus é adorado em diferentes formas, embora não seja esquecido que Ele é UM. Uma ideia que não tem sido apenas expressa nas escrituras e textos eruditos, mas cuja verdade

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Cálice do Conhecimento

é aceite pela maioria dos devotos mais simples, o que em parte justifica a unidade na diversidade da “sãdhanã” (prática espiritual) indiana. Isto é o que Rajjab queria dizer quando há quatrocentos anos cantou: «a adoração de diferentes seitas, que são como muitos pequenos riachos, movem-se para encontrar Deus, que é como o Oceano.»[38] «Como pode ler-se em algumas passagens poéticas, como a Mundaka: Brahma, na verdade, é este Imortal: Brahma à frente, Brahma atrás, à direita e à esquerda. Compreendido no baixo e no alto. Na verdade, é todo este mundo, é esta extensão até ao Infinito.»[39]

38  K.M. Sen, Hinduism 39  Maurilio Adriani, História das Religiões

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BUDISMO

O

Budismo tem sido, por muitos séculos, a tradição espiritual dominante na maior parte da Ásia, incluindo os países da Indochina, como o Sri Lanka, Nepal, Tibet, China, Koreia e Japão. Assim como o Hinduísmo na Índia, tem tido uma grande influência na vida intelectual, cultural e artística destes países. Contudo, de modo diferente do Hinduísmo, o Budismo remete-se a um único fundador, Siddartha Gautama, o chamado “Buda histórico”, que viveu na Índia em meados do séc.VI a.C. durante o extraordinário período que viu o nascimento de tantos génios espirituais e filosóficos: Confúcio e Lao Tzu na China, Zoroastro na Pérsia, Pitágoras e Heráclito na Grécia. Se o sabor do Hinduísmo é mitológico e ritualista, o do Budismo é definitivamente psicológico. Buda não estava interessado em satisfazer a curiosidade humana acerca da origem do mundo, a natureza da Divindade ou questões semelhantes. Ele estava interessado exclusivamente na situação humana, no sofrimento e frustrações do ser humano. A sua doutrina, portanto, não era metafísica; constituía antes uma psicoterapia. Ele apontou a origem das frustrações humanas e a maneira de as ultrapassar, retomando para este fim os conceitos tradicionais indianos de ilusão (maya), ação (karma), salvação (nirvana), etc., dando-lhes uma relevante interpretação psicológica, fresca e dinâmica. (...) Como acontece sempre no misticismo oriental, o intelecto é visto meramente como um meio de preparar o caminho para a experiência mística direta, a que os budistas chamam «o despertar». A essência desta experiência é passar para além do mundo das distinções e oposições intelectuais, para alcançar o mundo impensável (acyntia), onde a realidade surge como “semelhança” não dividida e não diferenciada. Buda não desenvolveu a sua doutrina num sistema filosófico consistente, mas olhou-a como um meio de atingir a iluminação. As suas afirmações acerca do mundo resumiam-se ao realce que dava à impermanência de todas as “coisas”. Ele insistia na

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libertação de uma autoridade espiritual, incluindo a sua, dizendo que a ele só competia mostrar o caminho para o Budismo, e que dizia respeito unicamente a cada indivíduo seguir este caminho até ao fim através do seu próprio esforço. Nagarjuna, o maior filósofo intelectual pertencente à escola Mahayana, especulando sobre “impermanência”, afirma que a natureza essencial da realidade é o vazio, mas ele está longe de o interpretar no sentido niilista. O que se pretende dizer com o vazio é apenas que todos os conceitos acerca da realidade formados pela mente humana são, em última análise, vazios. Realidade ou Vazio, em si mesmo, não é um estado correspondente ao nada, mas a própria fonte de toda a vida e a essência de todas as formas. Estes pontos de vista da escola Mayana refletem o seu lado intelectual e especulativo, contudo, complementarmente, existe também a consciência religiosa budista que envolve fé, amor e compaixão. A verdadeira sabedoria iluminada (bodhi) é vista na escola Mayana como sendo composta dos dois elementos que D.T. Suzuki chamou «os dois pilares que suportam o grande edifício do Budismo». São eles «prajna», que é a sabedoria transcendental ou inteligência intuitiva, e «karuna», que quer dizer amor ou compaixão. (...) A culminância do pensamento Budista tem sido atingida, de acordo com vários autores, na chamada escola Avatamsaka que é baseada numa escritura (sutra) com o mesmo nome, e cujo tema central é a unidade e inter-relação de todas as coisas e de todos os acontecimentos.»[40] «Mas se aqui reside a culminância do pensamento budista, a filosofia Zen é, então, a apoteose do Budismo. Mais do que qualquer outra escola do misticismo oriental, a escola Zen está convencida de que as palavras nunca podem expressar a verdade definitiva. É natural que esta convicção tenha sido herdada do Taoísmo. Nas palavras de Tao Tê 40  Fritjof Capra, The Tao of Physics

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Ching «o Tao que pode ser expresso por palavras não é o Tao eterno, o nome que pode ser definido não é o nome imutável. Aquele que fala não sabe; aquele que sabe não fala.» O propósito do Zen é passar para além do intelecto. O intelecto é, em si mesmo, um dispositivo ou um meio, mas o Zen é o caminho para a iluminação direta. O intelecto é um instrumento desenvolvido para o uso do conhecimento, mas somente os sentidos e a intuição adquirem conhecimento em primeira mão. Qual é a finalidade do Zen? A resposta é Satori, o termo Zen para “Iluminação”. A ilumiação de Buda é o âmago e objetivo do Budismo, e Satori é «Dhyana» (Zen), Iluminação. Uma vez que Satori está para além do intelecto – o único que pode definir e descrever – não se pode definir Satori. É essa condição da consciência onde o pêndulo dos Opostos consegue repousar, onde os dois lados da mesma moeda são igualmente avaliados e igualmente vistos. Só o silêncio o pode descrever: o silêncio do místico, do santo, do artista em presença de grande beleza ou do amante ou do poeta quando as cadeias do espaço e do tempo se quebram. É o plano onde o Todo é visto como tal, ocupando as suas partes as devidas proporções. É o antegosto do Momento Absoluto, da Consciência Cósmica, da condição na qual «Eu e o Meu Pai somos Um.»[41]

41  Christmas Humphreys, Buddhism

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TAOÍSMO

T

aoísmo é o termo usado pelo mundo ocidental para referir um dos maiores movimentos do pensamento chinês. Mas, ao contrário do Confucionismo, não tem um ensino sistemático ou credo, nem pode ser transformado num conjunto de regras a seguir. Em primeiro lugar é uma religião cósmica, consistindo no estudo do Universo e no lugar e função do homem, de todas as criaturas e fenómenos dentro dele. A doutrina do Tao existiu provavelmente antes de Lao Tzu, o reputado fundador do Taoísmo. O Tao é o mistério derradeiro, «aquele do qual as palavras se desviam»; aquele que ultrapassa todas as definições e contingências e todo o pensamento finito. No entanto, embora o Tao não possa ser expresso em palavras, o silêncio também é inadequado. «Ele não pode ser transmitido pela palavra ou pelo silêncio. A sua natureza transcendental talvez possa ser apreendida nesse estado que não é palavra nem silêncio.» Daqui se depreende que o Taoísmo é uma religião puramente metafísica e mística. Outras religiões têm os seus aspetos místicos; o Taoísmo é misticismo. O Tao é mais a passagem do que o Caminho – escreve Okakuro Kazuko. É o espírito da Mudança Cósmica, o desenvolvimento eterno que volta sobre si mesmo para produzir novas formas. É o princípio de toda a energia, sem ser energia, mas apenas uma das suas manifestações. É o eterno princípio de toda a vida, mas que nenhuma vida pode expressar, e todos os corpos e formas materiais não são senão as suas vestes momentâneas. Todos os escritos e alegorias taoístas põem em evidência a unidade de toda a criação; a humanidade e todas as coisas que vivem são manifestações fragmentadas do Todo. No mundo das aparências elas parecem levar uma vida separada, mas isto é ilusório, na realidade eles são membros ou orgãos do mesmo corpo, assim como cada corpo é composto por várias partes. No estado perfeito e primordial havia uma sociabilidade mútua entre todas as coisas. Tradicionalmente, isto foi conseguido nos primeiros tempos da Idade de Ouro quando os homens e os animais falavam a mesma língua. Uma das características do Sábio é saber recapturar este estado e comunicar naturalmente com todas as coisas vivas.

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Compilação de Lucília Barata

Em nenhuma circunstância o Tao pode ser considerado ou usado como «Deus»; este termo é demasiado limitado, demasiado restrito e de qualquer modo não permissível, uma vez que o Taoísmo é uma religião não-teísta. No Taoísmo não há um Criador. É a operação do Tao que faz brotar uma Criação espontânea através da interação dos princípios «Yin Yang». O Princípio Supremo nunca foi formalizado, e o Confucionismo popular nos seus templos não tinha qualquer imagem, conservando antes a atmosfera do pensamento abstrato do adepto; mas enquanto o Confucionismo desenvolveu um código rígido de propriedades éticas e sociais, o Taoísmo estava completamente livre de qualquer dogma ou códigos sistemáticos de conduta ou aprendizagem. No Taoísmo a ênfase é colocada na situação existencial. O Caminho é o Caminho da Vida, não uma escola de Pensamento, e só pode ser entendido se for vivido, o que explica a pouca quantidade de material escrito deixado pelos primeiros Taoístas. Há quem encontre uma certa semelhança entre o Taoísmo e o Hinduísmo e, de facto, houve uma tradição que dizia que Lao Tzu tinha viajado até à Índia e ainda mais longe. Há certamente um forte sabor Bramânico nas doutrinas Taoístas de não violência e no princípio criativo de alegria no trabalho no Universo. Os Upanishads ensinam que o esforço só se pode tornar eficaz através da alegria. A alegria é o resultado de se viver de acordo com o Tao. A violência é uma reação infantil e impossível para uma pessoa com cultura e maturidade. É sempre sintomática de uma falta de controle e marca o fim da dignidade e do respeito humano, seja ela manifestada por um ato de agressão, destruição, roubo ou uma explosão de cólera ou ainda por impaciência de palavras ou pensamentos, todos surgindo de violência tanto do corpo como do espírito. A guerra é considerada a degradação última do Homem. O incitamento às armas, a mais baixa forma de virtude. Prémios e castigos, a mais baixa forma de educação. Cerimónias e leis, a mais baixa forma de governo. Uma vez identificados ou unidos com o resto da criação, a violência torna-se tanto absurda como impossível pois que, nessa altura, compreende-se que ferir ou fazer mal a quem quer que seja é infligir esse dano sobre si próprio e quem, a não ser um psicopata, faria isso? Assim também, qualquer violência contra a Natureza recai ultimamente sobre

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o explorador ou “conquistador” da Natureza. A violência é essencialmente desequilibrada e, como tal, acentua inevitavelmente as qualidades que geram mais violência. A agressão só pode gerar agressão e provoca muitas vezes uma resposta violenta e perigosa. O mesmo se aplica à violência de emoções e convicções, a qual conduz a perseguições e, por isso, fortalece a oposição. As seitas religiosas que tentaram colocar uma ênfase total e desequilibrada num único aspeto, em vez de aceitar a vida na sua totalidade, produziram os seus opostos. E o que deveria ser amor tornou-se ódio e luta. O Taoísmo não tem nenhuma doutrina do pecado. O pecado é, para o Taoísta, mais uma violação da harmonia do Universo do que qualquer transgressão de uma ordem divina e, como tal, cria desarmonia e, portanto, desassossego no indivíduo em particular e, como consequência, na sociedade em geral. O que nas religiões teístas é uma obrigação de submissão à vontade de Deus, no Taoísmo significa uma cooperação com a harmonia do Universo. A lei e ordem fundamental do Tao governam o Universo inteiro e é a isto que o Homem tem de se ajustar se quiser preencher as suas potencialidades e desempenhar a sua parte na manutenção da harmonia da ordem cósmica. O mundo dos animais e das plantas adapta-se “naturalmente” pelo instinto; só o Homem escolhe manter ou destruir o equilíbrio. A ignorância está na raíz de todo o mal-estar moral do Homem; ela significa a falta e conhecimento e de compreensão da sua verdadeira natureza e da sua identidade com o Tao. Uma vez que o pecado é considerado mais como ignorância do que desobediência à ordem divina, o Homem é aliviado do sentimento de culpa que tanto atormenta o espírito ocidental. A maturidade e totalidade só são alcançadas pela aceitação e reconciliação de todos os opostos, luz e trevas, bem e mal, vida e morte. Estar “para além da vida e da morte” é a característica do Sábio, o Homem que ora é descrito como o Homem Perfeito, o Homem Verdadeiro, aquele que alcançou a “Grande Unidade”. Paradoxalmente o Tao nada faz, mas executa todas as coisas. Ele próprio sem forma, é a origem de todas as formas; é imutável, mas no mundo da mudança ele está difundido em toda a parte. Ele é o eterno paradoxo do Nada e do Tudo.»[42] 42  J. C. Cooper, Taoism, the Way of the Mystic

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JUDAÍSMO

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oi Abraão que quebrou a idolatria e se virou para o serviço do único Deus que ele reconheceu como o Criador do céu e da terra. Crenças e tendências monoteístas já existiam antes de Abraão surgir. Mas estas pouco tinham em comum com o monoteísmo de Abraão. Foi a Abraão que Deus se revelou como YHWH (O Senhor) e mais tarde a Moisés como «Eu Sou Aquele que Sou». A história começa com a criação do mundo por Deus e pela formação do Homem à Sua imagem. Contudo, este processo criativo não cessou quando o mundo e o Homem foram feitos, porque aquilo que tinha sido criado tinha de ser alimentado e desenvolvido. Foi essa a tarefa que Deus confiou ao Homem. A base desta cooperação criativa é a obediência ao Criador, que se deve expressar na obediência à lei moral. Esta lei moral divide-se em duas categorias: Justiça, que diz respeito ao reconhecimento dos direitos humanos, e Retidão, que dá relevo à aceitação dos deveres. O primeiro preceito da lei de Justiça foi comunicado à humanidade através de Noé, quando, depois do Dilúvio, Deus fez um pacto com ele, em que impunha o respeito pela vida humana. Justiça, no entanto, mesmo no seu sentido mais lato, não é senão o aspeto negativo da lei moral. Justiça é regulamentadora e não criativa. Criatividade só entra em plena atividade tanto no homem, como na Divindade, quando é movida por Retidão. Esta foi a verdade que Abraão experimentou. E, como consequência, Deus fez uma aliança com ele dando-lhe direito a si e aos seus descendentes de servirem como instrumentos para dar a conhecer à humanidade «os Caminhos do Senhor, praticando a justiça e a retidão» e, deste modo, desempenharem o serviço universal para o qual ele e a sua semente tinham sido destinados. Foi em confirmação da Aliança com Abraão, com todas as suas implicações, que viria a ser feita posteriormente a Aliança de Deus com Israel no Monte Sinai, através de Moisés e dos Dez Mandamentos.

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Cálice do Conhecimento

Embora o Decálogo indicasse o alcance da “missão sacerdotal” de Israel ele não fornecia, no entanto, os deveres específicos e obrigações que se impunham ao povo como “nação santa”. Estas foram desenvolvidas numa série de revelações a Moisés que ele transmitiu ao povo e que, incorporando o Decálogo, finalmente se tornou a Torah, vulgarmente conhecido como a Lei, da qual o Pentateuco é o registo escrito. O Talmude, por sua vez, é a história escrita em Hebreu ou Aramaico da interpretação bíblica, do estabelecimento dos regulamentos e do acrescentamento dos conselhos práticos e sábios que os líderes intelectuais e religiosos do povo Judeu ensinaram por um período de quase mil anos. Interligada com a doutrina judaica da criação existe a doutrina da atividade providencial de Deus que preserva o mundo que Ele chamou à existência. No Judaísmo o Deus da Justiça é o Deus da Misericórdia (Amor), uno e inseparável. Além disto, o Judaísmo acentua a Imanência, Omnipresença, Transcendência, Omnisciência e Omnipotência Divinas. Imanente e Omnipresente porque a Sua Providência se estende sobre toda a Criação. Transcendente porque é puro espírito. Omnisciente porque conhece os atos e pensamentos mais secretos do Homem. Omnipotente porque nada poderá frustrar a realização definitiva do Seu Objetivo, embora para o cumprimento desse objetivo seja necessária a cooperação do Homem. Desenvolvendo a ideia bíblica do homem como cooperador de Deus, o Talmude concebe o homem como tendo sido escolhido como seu “parceiro” para o acabamento da Criação. E não foi apenas chamado para esta grande tarefa com fins materiais, mas também selecionado como um agente especial para a realização de um objetivo que transcende as fronteiras físicas do universo, embora seja através do domínio físico que esse objetivo se possa realizar. A ideia de acabamento da Criação está associada à visão do Reino de Deus (...), a ser anunciado pelo Messias. O Messias será a figura central dominante de uma era que testemunhará o reino da retidão na terra, uma retidão que trará paz universal e extrema abundância de coisas para uma vida reta, sem retirar a necessidade de sacrifícios em nome de ideais cada vez mais vastos. Mas o Messias na doutrina judaica não é um ser

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Compilação de Lucília Barata

sobrenatural, nem um ser divino tendo uma comparticipação no perdão dos pecados; muito menos deve ser confundido com Deus. Quando muito o Messias é um líder mortal que terá influência na total reabilitação de Israel na sua antiga pátria e, através de um Israel restaurado, traga a regeneração moral e espiritual de toda a humanidade, tornando toda a humanidade merecedora do Reino. Então, sim, o Reino do Senhor será universal. No seu contexto Messiânico e de realização terrena o Reino de Deus não é mais do que a preparação para a consumação do Reino num mundo supra - histórico e sobrenatural que há-de vir, um mundo que, na linguagem rabínica, «nenhum ouvido ouviu ou olho viu». (Is 64,3) A esta ordem supra-histórica e sobrenatural do Reino estão associadas as doutrinas da Ressurreição dos mortos e o universal Dia do Julgamento, quando o fim de todos os caminhos de Deus for conhecido e a consumação plena dos seus objetivos se realizar. A crença na realização do propósito divino neste contexto supra-histórico e sobrenatural é partilhado por outras religiões; mas o que é distinto no Judaísmo é a insistência de que a consumação no Além está condicionada à realização no contexto histórico e social da vida diária. Diferindo de outros credos, o Judaísmo recusa admitir o dualismo que opõe o “terrestre” ao “celeste”, o “temporal” ao “eterno”. Pelo contrário, o terrestre e o celeste estão em harmoniosa relação um com o outro, sendo o último olhado como resultado e desenvolvimento do primeiro. O Judaísmo nega a existência do pecado original. É certo que a ideia de que o pecado de Adão trouxe a morte a toda a humanidade não é desconhecida na doutrina judaica, mas refere-se invariavelmente à morte física, e isto não deve confundir-se com a morte espiritual de que a doutrina cristã diz ninguém poder ser salvo senão através da fé no Salvador. Portanto, o homem pode alcançar a sua própria redenção pela penitência, sendo encorajado que o próprio Deus está sempre pronto, na abundância do Seu Amor, a receber o pecador penitente e a purificá-lo de toda a iniquidade. (...) Evidência de temas místicos, tanto de carácter prático como especulativo, é

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encontrada com abundância na literatura Talmúdica. As especulações místicas do Talmude estão centradas principalmente no «Trabalho da Criação» (Maaseh Bereshit) descrito no primeiro capítulo do Génesis, e no «Carro Divino» (Maaseh Merkabah) do relato da visão de Ezequiel. O primeiro deu origem a especulações cosmológicas e cosmogónicas, e o último desempenhou uma parte importante nas especulações sobre os mistérios e atributos da Divindade. O trabalho místico mais importante de determinado período é, de longe, o «Livro da Criação» (Sepher Yetzirah) que, como o nome indica, se debruça sobre os problemas de cosmologia e cosmogonia. Nele há a fusão do misticismo e filosofia que formam os elementos constituintes da Kabbalah (Tradição). Linguagem e Número são a verdadeira chave na doutrina do Sepher Yetzirah, os quais, em conjunto, são considerados os instrumentos pelos quais o Cosmos, em toda a sua variedade infinita de combinações e manifestações, foi chamado à existência por Deus.»[43]

43  Isidore Epstein, Judaism

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CRISTIANISMO

C

ristianismo é a religião de que Jesus Cristo é, simultaneamente, a origem e o objeto, o princípio e o fim. Não se trata de pura doutrina, ou de um movimento cuja autoria se deve a Cristo. Ele próprio está no centro dessa doutrina e da correspondente atitude religiosa. Jesus veio para revelar Deus, o Deus que tem poder soberano no mundo. Veio para nos dizer o que Deus pensa de nós e quer de nós. Veio para proclamar o que Deus espera fazer por nós. Veio, sobretudo, para anunciar redenção e graça, e revelar uma nova criação. Jesus não veio resolver os problemas que o próprio Homem pode e deve resolver. Ele veio para que todos os homens tivessem Nele um amigo, um irmão que faz a paz e favorece a reconciliação. O que é particularmente notável na sua pregação é a sua insistência de que todos que O querem seguir não devem odiar ninguém, nem pagar o mal com o mal. De facto, Ele foi mais longe ainda, pedindo que amássemos os nossos inimigos. O que Ele queria, acima de tudo, era dar esperança a todos os homens.»[44] «Tem sido sugerido que Buda também fez uma exigência imperativa sobre o homem total. Mas Buda dificilmente pode ser considerado divindade no sentido transcendente. O primeiro objetivo de adesão ao Caminho apontado por Buda é realmente antropocêntrico, ou seja, consiste na realização da nossa própria beatitude. Não é teocêntrico, isto é, não incide sobre a glória de Deus. Isto inverte a ordem das coisas. Não é uma questão se se deve preferir o Budismo ou o Cristianismo. O que acontece é que representam duas maneiras distintas de encarar a Realidade. Para Jesus, Amor é a última palavra na natureza da Realidade, enquanto Buda, como disse Rénan, se preocupa mais com o «pensamento puro». 44  Ladislaus Boros, The Cosmic Christ

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Cálice do Conhecimento

Há, no entanto, entre a vida de Cristo e Buda um certo paralelismo. A morte de Buda, por exemplo, corresponde à transfiguração de Cristo. A vida terrena de Buda termina neste ponto, mas é precisamente aqui que a vida de Jesus começa – o Seu sofrimento, morte e ressurreição. A diferença entre Buda e Cristo está na necessidade que exigiu que a vida de Cristo continuasse para além da de Buda. Jesus não morreu fisicamente no momento da Transfiguração, quando a luz cósmica brilhou através dele. Nesse momento ele é um Buda. Mas, nesse mesmo momento, ele entra num estágio que se expressa no mais alto grau de iniciação. Ele sofre e morre. O elemento terrestre desaparece. Mas o elemento espiritual, a luz cósmica não. Segue-se a Sua Ressurreição. Ele é revelado aos seus seguidores como Cristo. Buda, no momento da sua Transfiguração, flui para a vida abençoada do Espírito Universal. Jesus Cristo desperta o Espírito Universal uma vez mais, mas numa forma humana, numa existência presente.»[45] «O Cristianismo proveio do Judaísmo. Logo, não é de admirar se encontrarmos implantados, tanto no Judaísmo como no Cristianismo, ideias místicas que são propriedade comum da vida espiritual Grega e Egípcia.»[46] «Enquanto as religiões pagãs são percursoras do Cristianismo a um nível natural, o Judaísmo é-o já num plano sobrenatural. Contudo, o Judaísmo não é ainda a consumação religiosa. Só com a vinda de Cristo a história religiosa atinge o definitivo, pois o Cristianismo vem precisamente integrar e prolongar aquilo que o Judaísmo tem de essencial. O livro sagrado dos cristãos é a Bíblia. Ele é um documento de uma história santa, e o que é notável é que entre todos os livros sagrados, o dos cristãos é o único que narra uma história e não se limita apenas a uma exposição de doutrina. Assim, o cristão tem plena consciência de viver em plena história ou, antes, num mundo em que Deus não cessa de agir e intervir. 45 A.Bouquet, Comparative Religion 46  Rufolf Steiner, Christianity as a Mystical Fact

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Compilação de Lucília Barata

O Cristianismo afirma que só esta ação de Deus pode salvar o Homem: quer dizer que não há para o Homem, salvação se não em Jesus.[47] «Se examinarmos as religiões populares encontramos várias conceções de espiritualidade; mas se, em qualquer dos casos, recuarmos até à profunda sabedoria dos sacerdotes, que parece constituir o núcleo central de todas elas, encontramos concordância por toda a parte. Platão sabe que ele próprio está de acordo com os sacerdotes do Egipto quando tenta representar a essência da sabedoria grega através da sua visão filosófica do Universo. Diz-se que Pitágoras viajou pelo Egipto e pela Índia e foi instruído pelos sábios desses países. Pensadores que viveram nos primeiros tempos do Cristianismo encontraram tanta concordância entre os ensinamentos de Platão e o profundo significado dos escritos mosaicos que chamaram a Platão um Moisés usando a língua Ática. Assim, a ciência dos antigos Mistérios existiu por toda a parte. No Judaísmo ela adquiriu a forma que tinha que assumir se viesse a tornar-se uma religião mundial. O Judaísmo esperava o Messias. Não admira, pois, que quando a personalidade de um iniciado singular apareceu, os Judeus não o conhecessem senão como o Messias. Na realidade, esta circunstância esclarece o facto de que aquilo que tinha sido um assunto individual em relação aos Mistérios se tornasse um assunto de toda a Nação. A religião judaica tinha sido desde o início uma religião nacional. O povo Judeu considerava-se um organismo. O seu Jeová era o Deus de toda a Nação. Por isso, se o filho deste Deus viesse a nascer, ele deveria ser o redentor da nação inteira. Vemos, deste modo, que era dentro da religião judaica que existia um solo no qual um iniciado de tipo único se poderia desenvolver. Ele deveria levar para o mundo aquilo que o eleito tinha experimentado nos Templos dos Mistérios. Tinha que estar disposto a assumir em si próprio, através da sua personalidade, de forma a servir de intermediário entre si e a sua comunidade, aquilo que o Culto dos Mistérios tinha previamente trazido àqueles que tomaram parte deles. Certamente ele não poderia dar de imediato a toda a 47  Extraído de um Caderno Universitário

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comunidade as experiências dos Mistérios, nem ele desejava fazê-lo. Apenas desejava dar a todos a certeza da verdade contemplada nos Mistérios. Ele queria fazer com que a vida, que circulava dentro dos Mistérios, viesse a circular através da evolução histórica da humanidade e, deste modo, elevasse a humanidade a um mais alto grau de existência. Ele queria implantar nos corações dos homens, de forma inabalável, sob a forma de fé, a certeza de que o divino realmente existe. E mostrar que o Reino de Deus não depende de cerimónias exteriores, mas existe dentro de nós. Se o Verbo tinha de se tornar carne, Ele deveria repetir o processo cósmico numa existência corporal. Tinha de se submeter a um facto real, um facto que fosse válido para toda a humanidade. O que tinha ocorrido anteriormente como um processo nos Mistérios tornou-se, através do Cristianismo, um facto histórico. Logo, o Cristianismo não era só a realização de tudo aquilo que fora predito pelos profetas judeus, como também a verdade que tinha sido prefigurada nos Mistérios. A Cruz do Gólgota é o «culto do Mistério da Antiguidade condensada num facto». A cruz é encontrada, pela primeira vez, nas cosmogonias antigas. No início do Cristianismo encontramo-la dentro de um acontecimento que passaria a ser válido para toda a humanidade. É deste ponto de vista que o elemento místico no Cristianismo pode ser compreendido. O Cristianismo, como um facto místico, é um marco na evolução humana; e são os acontecimentos dos Mistérios, com os seus efeitos consequentes, que servem de preparação para este facto místico. O único Mistério, o Mistério protótipo, o Mistério Cristão, deveria assim substituir os muitos Mistérios da antiguidade. Jesus, no qual o Verbo se fez carne, tornar-se-ia o Iniciador de toda a humanidade, e esta humanidade passaria a ser a sua própria comunidade de místicos – não uma separação de eleitos, mas o elo de ligação entre todos.»[48]

48  Rufolf Steiner, Christianity as a Mystical Fact

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Compilação de Lucília Barata

ISLAMISMO

O

s árabes são um povo semita, e o semita não é um monoteísta natural como se supôs cerca de meados do século XIX. Ele é um animista. No século VII d.C. os árabes ainda eram politeístas na expressão das suas crenças religiosas.»[49] «Ninguém sabe ao certo quando a Pedra Negra caiu do céu sobre o Deserto Árabe. Diodorus Silicus, o Grego, menciona-a na sua história universal, escrita no século que precede a Cristo. (...) Muitos povos vieram depois contemplar o prodígio, e em torno da pedra cresceu uma cidade. E tão preciosa se tornou esta pedra, tanto religiosa como economicamente, que os seus respeitados e prudentes guardiães decidiram protegê-la. (...) Para a mentalidade matemática dos árabes daquele tempo a perfeição era representada por um cubo. Por isso a casa que construíram, perto de uma antiga fonte sagrada, para abrigar a sua pedra enviada do céu, chamaram eles «Caaba» (Cubo). Existe uma outra tradição árabe que dá uma explicação diferente para a origem da Caaba. Diz ela que, quando o patriarca Abraão, a pedido da sua ciumenta mulher Sara, expulsou para o deserto a sua concubina Hagar e o seu filho Ismael, estes vagaram por muito tempo até chegarem ao vale de Meca, onde, por se acharem a morrer de sede, um anjo lhes revelou a fonte de Zem-Zem. Então, enquanto Hagar e o rapaz se debruçavam na fonte, a Pedra Negra caiu dos céus ao pé de Ismael, e foi-lhe então prometido que seus filhos se tornariam um dia mais poderosos dos que os de Isaac, filho de Sara. O próprio Abraão, assim conta a tradição, veio posteriormente ajudar Ismael a construir a Caaba.»[50]

49  A. C. Bouquet, Comparative Religion 50  Charles Potter, História das Religiões

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Cálice do Conhecimento

«Maomé – o fundador do Islamismo – nasceu cerca do ano 570 d.C. Durante as suas viagens como mercador, e mesmo na sua terra, Maomé entrou em contacto com judeus e cristãos, aprendendo com eles as histórias contidas nos seus livros sagrados. Admirou Abraão, Moisés e Jesus, embora não compreendesse a teologia do Judaísmo ou Cristianismo, ou a diferença entre elas. É mesmo de duvidar que Maomé tenha lido qualquer coisa na Bíblia ou lido e escrito qualquer coisa até então, já que se chamava a si mesmo o «profeta iletrado». Tinha, no entanto, boa memória e recordava-se das tradições orais do judeu, cristão e árabe pagão, com suave imparcialidade e limitada diferenciação. Sob o estímulo da atmosfera íntima e amigável de um grupo de discípulos, Maomé desenvolveu a sua mensagem, que resumiu nesta frase: Não há senão um Deus que é Alá; e Maomé é o Seu profeta. Maomé parece ter identificado Alá com Jeová e feito eco do mandamento mosaico «não terás outro Deus que não Eu». A recusa dos judeus em aceitarem o que Maomé considerava a pura religião de Abraão, levou-o a mudar a «Kiblah», ou direção da prece, de Jerusalém para Meca. A sua mensagem caiu sobre o panteísmo idólatra de Meca como uma espada da verdade. Denunciou os ídolos como destituídos de valor. A única realidade era Alá. O único dever a submissão a Alá. A palavra árabe que significa submissão era «islam», e Maomé tanto a incutiu no espírito dos seus ouvintes que a própria religião por ele fundada tomou o nome de Islamismo. A interpretação comum ocidental da filosofia do Islamismo é falsa: ela não quer dizer mera submissão por necessidade, a resignação fatalista em face do inevitável. A verdadeira doutrina cifrava-se em: o que tem que acontecer acontece, de conformidade com a vontade de Alá. Por conseguinte tudo está bem. Maomé procurou de toda a maneira tornar fácil a religião. Não sobrecarregou o povo com deveres prescritos, deixando-lhes simplesmente o ambíguo Alcorão e os cinco deveres principais do verdadeiro muçulmano:

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Compilação de Lucília Barata

•  Aceitação na crença Não há senão um só Deus que é Alá, e Maomé é o Seu profeta. •  Prece. •  Esmola. •  Observância do mês de jejum no mês do Ramadão. •  Peregrinação a Meca. Como muitas outras religiões, em particular o Judaísmo e Hinduísmo, o Islão põe grande ênfase na distinção entre revelação e inspiração. O Islão ensina que o Corão foi transmitido a Maomé por intermédio do arcanjo Gabriel e isso situa-se, portanto, ao nível de pura revelação, tendo o estatuto sacramental de discurso divino. O Profeta recebeu a revelação através dos vinte e três anos em que profetizou. De acordo com a tradição muçulmana, Maomé ouviu a primeira dessa revelações na gruta de Hirã, perto de Meca, com uma voz a comandar-lhe: Recita, em nome de Deus. E continuou a receber a revelação divina até à sua morte, em 632 d.C.»[51] «Para os Muçulmanos a religião está centrada em Wahy (Revelação). Neste sentido, o Islamismo é a «última das revelações universais à humanidade» e, como tal, uma «reafirmação da verdade primordial», da Verdade que sempre foi e será, nomeadamente a Unidade do Princípio e completa dependência e, de facto, insignificância de toda a contingência, perante a ofuscante Majestade d’Aquele que fundamentalmente é, Sozinho. Como asserção final da revelação primordial, o Islamismo é também um meio para a redescoberta do carácter sagrado da primeira revelação de Deus, que é a própria ordem criada. O Islamismo contém o meio de tornar possível que o Homem veja as formas da Natureza uma vez mais como o vestiggi-Dei e a multiplicidade como os muitos reflexos da Unidade que é, simultaneamente, o princípio e o fim da ordem da multiplicidade.

51  Martin Lings e Yasin Hamid Safadi, The Qu´rán

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Cálice do Conhecimento

Há no seio do universo espiritual do Islamismo uma dimensão que bem poderia ser chamada «Pitagorismo-Abraónico», isto é, uma maneira de ver os números e as formas como «chaves para a estrutura do cosmos» e como «símbolos do mundo protótipo», um mundo que também é visto como a criação de Deus no sentido do monoteísmo Abraónico. É esta possibilidade dentro do universo intelectual do Islamismo, e não qualquer influência externa, que permitiu ao Islamismo desenvolver uma filosofia da Matemática semelhante à tradição Pitagórico-Platónica da Antiguidade, mas num universo totalmente sagrado, liberto de nacionalismos e racionalismos que finalmente sufocaram e destruíram a dimensão esotérica da intelectualidade grega. É também este elemento nascido dentro da estrutura do Islamismo que permitiu a criação de uma arte sagrada de natureza essencialmente geométrica e de ciências da natureza que procuram penetrar a própria estrutura da existência física, não dividindo a molécula e o átomo, mas pela ascensão ao mundo protótipo das matemáticas para descobrir as estruturas principais que estão refletidas dentro do próprio coração da matéria.»[52] «Alguns grupos Sufi consideram os números como os princípios do ser e a raiz de todas as ciências (...). A sua personalidade e carácter são revelados através da geometria, a qual fornece um outro meio de conhecer o processo cósmico da natureza.»[53]

52  Keih Critchlow, Islamic Patterns (citação no prefácio de Seyyed Hossein Nasr) 53  Laleh Bakhtiar, SUFI expressions of the mystic quest

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Compilação de Lucília Barata

TRADIÇÃO SECRETA

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o seu conjunto, o conhecimento da correspondência subtil entre o Céu e a Terra, entre a interação do espírito e o trabalho da matéria, corresponde a uma filosofia, a uma ciência e a uma arte que foram ensinadas, tanto no Oriente como no Ocidente, por mestres cujas obras podem ser facilmente comparadas entre si: os Alquimistas. Quer sejam chineses, hindus, muçulmanos ou cristãos, estes tratados exprimem-se em termos análogos, propõem-se um fim comum e fazem alusão às mesmas operações de uma mesma «grande obra arquitetónica de magia natural». O problema está, portanto, em saber se, tanto no Extremo Oriente como no Ocidente, um mesmo saber esotérico foi ensinado sob os véus da iniciação. Deste modo, a origem das sociedades secretas não seria possível de ser determinada historicamente, mas podê-lo-ia ser filosoficamente, se se analisar a ciência sobre a qual estão fundadas as transformações iniciáticas.»[54] «Os Alquimistas atribuíam-se o título de «Filósofos» e, de facto, eram filósofos de um género particular, que se diziam depositários da Ciência por excelência, contendo os princípios de todas as outras, explicando a natureza, a origem e razão de ser de tudo o que existe, relatando a origem e destino do universo inteiro. Esta doutrina secreta era a mãe de todas as ciências, a mais antiga de todas, a que estudava o mundo e a sua história e que, segundo a tradição, fora revelada aos homens pelo deus Hermes (o Tote egípcio), donde o nome de «Filosofia Hermética» dada a esta doutrina. Mas é abusivamente que se confunda esta doutrina com as operações propriamente ditas: a alquimia era, antes de mais, uma prática e, enquanto prática, era a aplicação da filosofia hermética. A Alquimia prática – aplicação direta da Alquimia teórica – era a procura da «Pedra Filosofal». Revestia dois aspetos principais, complementares: a transmutação dos metais, 54  René Alleau, Les Sociétés Secrètes

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que era a Grande Obra no sentido estrito do termo, e a Medicina Universal. Há, contudo, uma outra conceção da Alquimia completamente diferente: segundo certos autores, e em particular segundo os pensadores da Franco-Maçonaria, a Alquimia era uma mística. A terminologia alquímica tinha, na realidade, um sentido figurado e designava o «Ouro Espiritual». O objetivo do Alquimista não era procurar o ouro material: era a depuração da alma, as metamorfoses progressivas do espírito. Os “metais vis” eram os desejos e as paixões terrenas, tudo o que é entrave ao desenvolvimento do ser humano autêntico. A «Pedra Filosofal» era o Homem transformado pela transmutação mística. A transmutação do chumbo em ouro era a elevação do indivíduo para o Belo, a Verdade e o Bem, a realização do arquétipo que cada homem traz dentro de si. Mas, a conceção mais grandiosa da Alquimia é a «Ars Magna» (a «Arte Magna» ou «Arte Real») desenvolvida na Europa principalmente por autores do século XV e posteriores, assim definida por um intérprete moderno, A. Savoret: A verdadeira Alquimia é o conhecimento da vida no Homem e na Natureza e a reconstituição do processo pelo qual esta vida, adulterada aqui na Terra pela queda adâmica, pode recuperar a sua pureza, o seu esplendor, a sua plenitude e as suas prerrogativas primordiais. A suprema Grande Obra («Obra mística», «Via do Absoluto», «Obra da Fénix») era a reintegração do Homem na sua dignidade primordial. A «Pedra Filosofal» dava ao adepto a excelência iluminativa, física e moral, a felicidade perfeita e influência sem limites sobre o Universo, a comunhão com a causa primeira. Encontrar a «Pedra Filosofal» era descobrir o Absoluto, a verdadeira razão de ser de todas as existências, possuir o conhecimento perfeito (Gnose). O Egipto era considerado pela unanimidade dos alquimistas europeus como a pátria de origem da «arte sagrada», tendo os conhecimentos esotéricos dos sacerdotes egípcios desempenhado nisso um grande papel. Mas, a Alquimia teve outras fontes e várias foram

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Compilação de Lucília Barata

também as etapas porque passou. A Babilónia desempenhou um papel de primeiro plano em tudo o que se refere às ciências ocultas. Já a Alquimia Grega parece ter-se formado no século III d.C. nesse período confuso e atraente em que todas as doutrinas aspiram ao mesmo tempo à salvação, à pureza e ao conhecimento pela iluminação (Gnose). Por outro lado, é aos árabes que se deve a passagem da Alquimia do Oriente para o Ocidente, como de resto é demonstrado pelo grande número de palavras árabes empregadas pelos adeptos e que passaram à linguagem corrente: alquimia, álcool, alambique, elixir, etc. A partir do século XII apareceu no Ocidente uma grande série de obras atribuídas a Hermes, a mais conhecida das quais é a célebre «Tábua de Esmeralda» («O que está em baixo é como o que está em cima»). No princípio do século XVI surge Paracelso, cujo centro de doutrina é a correspondência entre o macro e microcosmos, quer dizer, entre o Universo e o Homem. Quanto a Deus, ele vê-o como «centro e circunferência de todas as coisas», envolvendo toda a Criação, porque tudo emanou d’Ele por um processo cosmogónico. A Alquimia do início do século XVII é principalmente representada pelo movimento iniciático dos «Irmãos Rosa Cruz», cuja finalidade era atingir, pela iluminação, o conhecimento total e universal (Pansofia). Estas teorias são expostas por vários autores, sonhando estes com uma síntese universal que, combinando o êxtase e a observação, os métodos à priori e a experimentação, permita um contacto íntimo com a Realidade subjacente aos fenómenos. Finalmente, no século XVIII, a Alquimia parece desvanecer-se, ou melhor, torna-se a Química propriamente dita. Logo, a nossa ciência contemporânea contraiu uma dívida considerável para com estes discípulos de Hermes, que não merecem o profundo descrédito que rodeia as suas teorias e as suas práticas: aliás, não foram os alquimistas os primeiros que pressentiram a possibilidade de transmutar os elementos, um facto que hoje se encontra verificado pelas investigações sobre radioatividade e energia atómica? «Unidade da Matéria», «Transmutações provocadas», são expressões perfeitamente

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correntes na linguagem do cientista atual. Para a Alquimia, a transmutação aplica-se ao universo inteiro: o adepto esforça-se por regenerar o mundo, que o homem pecador arrastou consigo na queda. Torna-se o verdadeiro salvador, o que traz a salvação à humanidade sofredora e ao cosmos decaído. Existe, portanto, uma alquimia intelectual, uma Alquimia moral, uma social, uma fisiológica, uma astral, uma animal, uma vegetal, uma mineral, etc. Mas a Alquimia espiritual é o modelo, a chave e razão de todas as outras. Assim entendida, a Alquimia afasta-se singularmente dos seus fins vulgares, e torna-se uma espécie de religião de mistério, de cristianismo iniciático e esotérico. Foram principalmente os pensadores maçónicos que desenvolveram esta conceção altamente filosófica da Alquimia. Seria fácil multiplicar o número dos símbolos e das alegorias comuns à Maçonaria e aos seus adeptos: o esquadro e compasso, o pelicano, o selo de Salomão, a estrela flamejante, etc. De resto, basta recordar o papel desempenhado pelas teorias herméticas no esoterismo das corporações medievais, principalmente nas dos construtores medievais. Um grande número de edifícios religiosos da Idade Média é muito rico em signos herméticos que passaram à Franco-Maçonaria contemporânea.»[55]

55  Serge Hutin, Alquimia

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Compilação de Lucília Barata

SÍMBOLOS

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uitas têm sido as definições e análises acerca do simbolismo e da própria natureza dos símbolos. Para o Hindu Ananda K. Coomaraswamy, por exemplo, simbolismo é «a arte de pensar em imagens». Diel, por sua vez, considera o símbolo «um meio de expressão preciso e cristalino», correspondendo em essência à vida interior (intensiva e qualitativa) em oposição ao mundo externo (extensivo e quantitativo). Nisto ele concorda com Goethe, que afirmou: «no símbolo o particular representa o geral, não como um sonho, não como uma sombra, mas como uma revelação viva e momentânea do inescrutável». Marc Saunier, por outro lado, aponta para uma característica importante dos símbolos quando afirma: «eles são a expressão sintética de uma ciência maravilhosa, agora esquecida pelos homens». Já Jules La Bêle lembra que «cada objeto criado é como se fosse o reflexo da perfeição divina, um sinal natural e percetível de uma verdade sobrenatural». Enquanto Landrit insiste que «o simbolismo é a ciência das relações que unem o mundo criado a Deus, o mundo material ao mundo sobrenatural; a ciência das harmonias existentes entre as diversas partes do Universo (correspondências e analogias)». A essência do símbolo está na sua capacidade de expressar simultaneamente os vários aspetos (teses e antíteses) da ideia que representa. Por isso René Guénon salienta que «a verdadeira base do simbolismo é a correspondência que liga todas as ordens da realidade, juntando-as umas às outras e estendendo-as, consequentemente, desde a ordem natural, como um todo, à ordem sobrenatural».[56] «O simbolismo, linguagem ao mesmo tempo misteriosa e reveladora, destinada a encobrir aos profanos as Verdades sagradas e deixando-as visíveis àqueles que as sabem ler, ficou nas civilizações passadas, assim como na nossa, estreitamente ligada à Arte, 56  E. Cirlot, A Dictionary of Symbols

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tanto assim que os artistas, sob a alta e sábia direção dos sacerdotes, consagraram o seu talento a esculpir ou a adaptar temas religiosos. Se analisarmos o ciclo imutável da Arte, descobriremos que ela foi mágica no início, religiosa em seguida, e por fim cívica. Neste último estádio ela desvia-se do alto ideal que a caracterizava, abandona e procura a essência invisível das coisas através da sua forma e não se interessa senão pelos aspetos materiais da vida. É, no nosso mundo presente, a queda neste famoso realismo onde pintores, escultores, escritores e músicos são lançados em competição, resultado deste “humanismo” falsamente admirado. Não é preciso acrescentar que o Simbolismo, não tendo mais razão de existir, desaparece logo que o indivíduo abandona o plano divino.»[57] «O símbolo revela certos aspetos da Realidade – os mais profundos – que desafiam qualquer processo de conhecimento. Lançando uma ponte entre o corpo e o espírito, os símbolos permitem tornar sensível todo o conceito inteligível. Eles são mediadores do domínio psíquico e possuem, por conseguinte, um carácter dual, que os coloca em posição de comportar um duplo sentido e até múltiplas e coerentes interpretações, igualmente verdadeiras nos seus pontos de vista. Eles envolvem um conjunto de ideias de um modo total e não analítico, e cada um pode interpretá-las dentro de qualquer nível, à medida da sua capacidade.»[58] «Em suma, o simbolismo é a chave que abre os segredos, o fio de Ariadne que liga as diferentes ordens da realidade.»[59]

57  René Gilles, Le Symbolisme dans l’Art Religieux 58  Paul Naudon, A Maçonaria 59  Luc Benoist, O Esoterismo

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Compilação de Lucília Barata

SÍMBOLOS FLOR DA VIDA ÁRVORE DA VIDA VESICA PISCIS OLHO DO CONHECIMENTO ESTRELA DE DAVID YIN YANG CRUZ GRAAL ZODÍACO MANDALA

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FLOR DA VIDA

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ma das formas geométricas mais interessantes, mais antigas, e que atualmente é muito usada em práticas místicas e para facilitar a transmissão de ensinamentos de certos movimentos espiritualistas é a chamada Flor da Vida. Este é o nome moderno dado a uma figura geométrica composta de vários círculos de igual diâmetro, sobrepostos de maneira padronizada, formando uma estrutura semelhante a uma flor composta, em seu núcleo, por seis pétalas simétricas. Numa cadeia infinita de círculos que formam uma teia harmoniosa dentro da qual emergem figuras geométricas sagradas para muitas tradições espirituais antigas, o centro de cada círculo está posicionado exatamente sobre a circunferência dos seis círculos que o cercam. Muitos consideram a Flor da Vida como um dos mais importantes símbolos da Geometria Sagrada, pois dentro dela estariam codificadas as formas fundamentais que constituem aquilo que conhecemos como tempo e espaço. Estas formas seriam as estruturas conhecidas como a Semente da Vida, o Ovo da Vida, o Fruto da Vida e a Árvore da Vida. A Flor da Vida é o padrão geométrico da criação e da vida, em todo lugar. Na verdade, não há nenhum conhecimento, absolutamente nenhum conhecimento no Universo que não esteja contido neste padrão da Flor da Vida. Todos os harmónicos da luz, do som e da música encontram-se nessa estrutura geométrica, que existe como um padrão holográfico, definindo a forma tanto dos átomos como das galáxias. (...) O código da Flor da Vida contém toda a sabedoria similar ao código genético

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Compilação de Lucília Barata

contido no nosso ADN. Portanto, ela contém em si mesma as diversas etapas do desenvolvimento da vida, desde o surgimento com a Semente, sua expansão através do Ovo, sua proteção através do Fruto, a manifestação de sua beleza através da Flor e sua expressão final na Árvore, de onde nascerão as novas sementes, retomando assim o ciclo natural de expansão da natureza. (...) A Flor da Vida é reverenciada desde tempos imemoriais, tendo servido como elemento de construção simbólica para muitas culturas antigas e alguns dos mais ilustres sábios da humanidade. Com muito pouca pesquisa é possível encontrar a Flor da Vida em muitos templos, obras de arte e manuscritos de culturas antigas espalhados por diversas partes do mundo. (...) Por muito tempo pensou-se que a representação mais antiga da Flor da Vida havia sido gravada nas paredes do Templo de Abidos, no Egito, um lugar sagrado dedicado a Osíris, divindade crística que representa os ciclos de vida, morte e ressurreição (...). Está talhada em granito e poderia representar o “Olho de Rá”, um símbolo de autoridade do faraó. Contudo, o exemplar mais antigo estava num dos palácios do rei assírio Assurbanípal, e hoje pode ser encontrado no Museu do Louvre, em Paris. Está espalhada por Israel, no interior das antigas sinagogas da Galileia e de Massada, e na região do Monte Sinai. Foram encontradas em mesquitas no Oriente Médio, em antigos sítios arqueológicos romanos localizados na Turquia, bem como em Marrocos e em obras de arte italianas datadas do século XIII. Muitos templos japoneses e chineses, além da própria Cidade Proibida, ostentam diversos exemplares da Flor da Vida. Na Índia, ela pode ser vista no Harimandir Sahib, o Templo Dourado, e nos templos localizados nas Grutas de Ajanta. Ela também foi encontrada na Bulgária, na Hungria e na Áustria, assim como no México e no Peru. Outros exemplos podem ser encontrados na arte fenícia, assíria, hindu, no Médio Oriente e Medieval. Em regiões como a Polônia e outras culturas influenciadas pelos eslavos era costume esculpir a Flor da Vida em diversos tipos de arte feita com cerâmica. Além disso, foram encontradas muitas representações esculpidas nos caibros de madeira que serviam de sustentação para os telhados das casas destes povos, como uma forma de proteção contra relâmpagos. (...)

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Um dos maiores gênios da humanidade, o renascentista italiano Leonardo da Vinci, realizou estudos a respeito da Flor da Vida e de suas propriedades matemáticas. Através da Flor da Vida, Leonardo desenhou de seu próprio punho diversos de seus componentes geométricos, como é o caso dos cinco sólidos platónicos e da Semente da Vida. (...) Segundo algumas tradições judaicas e cristãs, os estágios de construção da Semente da Vida correspondem aos seis dias da Criação descritos no livro do Gênesis. E logo nas primeiras etapas desta construção podem ser encontrados outros dois símbolos religiosos antigos, que são a Vesica Piscis, símbolo do eterno feminino, e os Anéis Borromeanos, correspondentes à trindade divina. (...) Seguindo o desenvolvimento natural da Semente, da Flor e do Fruto da Vida, encontramos a Árvore da Vida, um conceito presente em várias teologias e filosofias herméticas, e uma metáfora muito importante para o conjunto de ensinamentos místicos de origem judaica, conhecido como Cabala. A ideia cabalista da Árvore da Vida é usada para compreender a natureza de Deus e a forma como Ele emana seus atributos de forma a constituir todo o universo. Ela pode ser entendida como um mapa da Criação e das energias presentes nos seres humanos, e corresponde tanto biblicamente como esotericamente à Árvore da Vida mencionada no livro do Genesis.»[60]

60  www.oarquivo.com.br/extraordinario/temas-inexplicados/5253-flor-da-vida-e-a-geometria-sagrada.html

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Compilação de Lucília Barata

ÁRVORE DA VIDA

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ncontramos na Cabala uma ênfase paradoxal na consonância entre intuição e tradição. É esta ênfase, juntamente com a associação histórica já sugerida pelo termo “Kaballah” (algo transmitido pela tradição), que aponta para as diferenças básicas entre a Cabala e outros tipos de misticismo religioso que são menos intimamente identificados com a história de um povo. No entanto, existem elementos comuns à Kaballah e ao misticismo grego e cristão, e até mesmo às ligações históricas entre eles. Como outros tipos de misticismo, a Cabala também se baseia na consciência do místico da transcendência de Deus e Sua imanência dentro da verdadeira vida religiosa, sendo cada facto uma revelação de Deus, embora o próprio Deus seja mais claramente compreendido através da introspeção do homem. (...)»[61] «No coração da Tradição Ocidental, a Cabala é um caminho de desenvolvimento pessoal e de auto-realização baseado em um mapa de consciência chamado Árvore da Vida. É uma constante inspiração para aqueles que buscam a sabedoria interior, seja qual for a sua religião ou crença. A Cabala enfatiza a relevância das nossas vidas cotidianas como expressão da nossa espiritualidade. Ela oferece-nos uma visão detalhada e coerente do mundo, tanto da natureza da existência humana quanto da relação entre nós, outros seres, o nosso planeta e até o universo como um todo. (...) 61  Gershom Scholem, Kabbalah

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Cálice do Conhecimento

O diagrama cabalístico conhecido como a Árvore da Vida é um guia para o corpo, para a personalidade, para a alma e para o Espírito. Ela engloba uma filosofia e uma psicologia de grande profundidade teórica e prática que diz respeito à pessoa como um todo, não apenas ao intelecto, e é chamada “O Misticismo do Ocidente”. (...) A Tradição Ocidental dos Mistérios inclui todo o conhecimento e ensinamentos esotéricos que vêm do “Oriente”, como o Yoga e o Tantra. As disciplinas da Tradição dos Mistérios do Ocidente incluem, portanto, a Alquimia, o Gnosticismo, os contos de fadas, runas, tarô, várias outras ciências e artes ocultas e a Cabala. De fato, a Cabala tem sido descrita como a base da Tradição Ocidental dos Mistérios, e é verdade que ela sustém muitas teorias e práticas modernas. Algumas vertentes da Tradição são, sem dúvida, bastante distintas e de modo algum têm origem na Cabala. No entanto, um dos aspetos particularmente úteis – eu diria mesmo maravilhoso – da Cabala, é a capacidade de incluir todo o resto através do sistema de correspondências. Não apenas diferentes aspetos da Tradição dos Mistérios Ocidentais, mas também todos os outros sistemas de desenvolvimento pessoal e espiritual. Qualquer que seja a sua origem, podem ser remetidos à Árvore da Vida, e isso inclui todas as tradições Orientais. (...).»[62]

62  Will Parfitt, The Elements of the Qabalah

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Compilação de Lucília Barata

VESICA PISCIS

A

figura da Vesica Piscis, também chamada mandorla ou amêndoa mística, define o espaço teofánico da aparição ao homem das manifestações divinas, da maneira como os mestres de obra, escultores e pintores cristãos a traçaram sobre os pórticos das catedrais, nas iluminuras e sobre um número infinito de frescos e quadros. Este espaço, onde tantas vezes é representado o Cristo “em glória”, e também a Virgem e outras figuras sagradas, é gerada pela intersecção de duas circunferências com o mesmo raio.»[63] «Após ter sondado as diferentes propriedades desta figura – que está longe de se esgotar! – e de ter aplicado a “chave” a problemas concretos, verifiquei que era possível encontrar rapidamente soluções fáceis, por exemplo, na planta e alçados de certas catedrais de que é possível obter medidas suficientemente exatas... Os retângulos de base, para só falar de um aspeto, são ditados imediatamente pelo «olho da Vesica», cujo posicionamento dá o tipo de divisão do círculo diretor, etc. Já na Idade Média, julgo, este género de “segredos” se transforma, até certo ponto, num conjunto de fórmulas utilitárias; nem todos os mestres-de-obra deviam conhecer os fundamentos ontológicos, teológicos e até mesmo metafísicos desta geometria, embora pudessem conhecer-lhe as aplicações construtivas. Mas estou persuadido de que se trata de uma tradição muito antiga e conhecida de vários povos; a inclinação dos lados da pirâmide de Gizé, para dar um exemplo, resulta imediatamente do traçado da Vesica, o que faz suspeitar que os arquitetos egípcios conheciam perfeitamente as suas propriedades. Na Índia encontramos a mesma “chave”, como na China, como na Europa cristã...Trata-se, evidentemente, de um traçado verdadeiramente importante.»[64] 63  Lima de Freitas, 515, Le Lieu du Miroir 64  Lima de Freitas, Pintar o Sete 86


Cálice do Conhecimento

OLHO DO CONHECIMENTO

A

tradição da Filosofia Perene fala de um terceiro olho, o olho acima e entre os olhos da cara. É este olho que Cristo refere e que, na tradição Hindu, é chamado Ajna, o Olho da Sabedoria ou Olho do Conhecimento.»[65] «O olho é considerado, quase que universalmente, o símbolo da perceção intelectual. O olho integra a função de receção da luz, o olho frontal, que é o olho do sentido ou olho de Shiva, e o olho do coração, que recebe a luz espiritual. (...) Ele também é o ponto relacionado com a intuição (por estar conectado com a glândula pineal), premonição, iluminação e autoconsciência. É igualmente o polo responsável pela conexão entre o mundo visível e o mundo espiritual. (...) O terceiro olho abre a comunicação com plataformas elevadas de consciência, por isso diz-se que o ponto está ligado à imaginação e à criatividade. Na Cabala, a palavra “terceiro olho” quer dizer “sabedoria”. Para os praticantes, é o centro da consciência cósmica e do autoconhecimento. O yoga busca, através de exercícios práticos e da meditação, promover um trabalho de abertura e equilíbrio do chakra do terceiro olho. Os ensinamentos procuram transmitir paz de espírito àqueles que o praticam. O olho que tudo vê, também conhecido como o olho da providência, é muitas vezes representado dentro de um triângulo e significa conhecimento espiritual ou omnisciência. (...) A Maçonaria é outra sociedade secreta em que o olho que tudo vê está presente. Ele faz referência ao “Grande Arquiteto” que observa e acompanha as ações dos membros da 65  José e Miriam Argüelles, Mandala 87


Compilação de Lucília Barata

loja maçónica, com o intuito de que todos ajam de forma correta. (...) Ele também pode fazer parte do Hamsá, ou Mão de Fátima, que é um símbolo da fé islâmica em formato de mão onde o olho que tudo vê pode estar no seu centro.»[66]

ESTRELA DE DAVID

É

sobretudo entre o universo e o ser humano que os alquimistas procuraram correspondências subtis. O homem é chamado «microcosmos» (pequeno mundo) porque oferece em resumo todas as partes do universo. O homem é, de resto, construído segundo as mesmas leis – «O que está em baixo é como o que está em cima» (Tábua de Esmeralda) – e que é representado por certos diagramas como o selo de Salomão: dois triângulos equiláteros entrelaçados, representando um o Macrocosmos e o outro o Microcosmos.»[67] «Estes dois triângulos entrelaçados formam uma estrela de seis pontas ou hexagrama, também chamada Estrela de David, a qual se tornou o símbolo do Judaísmo. Mas o símbolo é, na realidade, um sinal mágico comum a muitos povos, que apareceu pela primeira vez num selo hebraico em Sídon no século VII a.C.. Na origem era provavelmente um emblema divino, depois tornou-se o símbolo da insurreição de Bar Kõkheba e mais tarde um sinal cabalístico que devia representar o mundo trespassado pelo poder divino.»[68] 66 www.dicionariodesimbolos.com.br/terceiro-olho 67  Paul Naudon, A Maçonaria 68  Elmuth von Glasenaap, Religiões não Cristãs

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Cálice do Conhecimento

YIN YANG

U

m dos símbolos mais conhecidos do Extremo Oriente é talvez o Yin Yang, também conhecido com Ti-T’ien, o Céu e a Terra, o princípio de dualidade do mundo manifestado. Ele não é na sua origem Taoísta ou Confucionista, apesar de ser utilizado por um e outro desde sempre, pois foi adotado por uma filosofia anterior a ambos. Mas, no Taoísmo, ele torna-se o símbolo cósmico da unidade e harmonia primordial e da dualidade manifestada fenomenalmente, ou como Chang Tzu lhe chama, «o símbolo das Duas Forças da Natureza», as duas forças reguladoras da ordem cósmica no mundo fenomenológico. O diagrama do Yin Yang mostra as duas grandes forças do Universo, escuridão-luz, negativo-positivo, feminino-masculino, em completo equilíbrio e igualdade de força; juntas, elas controlam tudo no reino da manifestação. Há um ponto, ou embrião, de preto no branco e branco no preto. Isto não é fortuito, mas essencial ao simbolismo, uma vez que não há um ser que não contenha dentro de si mesmo o seu oposto. As duas forças são mutuamente interdependentes e nenhuma delas pode ser considerada isolada ou completa em si mesma. Estas duas forças completamente equilibradas estão agregadas no círculo da unidade que tudo inclui, e a figura simboliza, na sua totalidade, a origem primordial. O dualismo do Yin Yang não é radical. Embora chamado algumas vezes «Os Grandes Extremos», qualquer oposição é apenas aparente; na realidade é uma “unidade harmoniosa”. Elas não são duas forças opostas absolutas e irreconciliáveis, como em filo-

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Compilação de Lucília Barata

sofias e religiões dualísticas que negam qualquer possibilidade de solução derradeira numa unidade transcendente; elas são os diferentes aspetos do todo. Os dois lados de uma moeda. São ao mesmo tempo uma divisão e uma reunião, e se se diz que são forças contendoras, elas são também forças co-operadoras, e a tensão na qual se mantêm é de harmonia, de funcionamento mútuo da criação, e não de conflito. Outro símbolo do Yin é o quadrado, que representa a terra, enquanto o círculo, representando o céu, é o Yang. O Yin Yang não é só relação e dualidade perfeita em manifestação. O símbolo total está também contido dentro do círculo da unidade, o «Tao», de modo que a totalidade seja ao mesmo tempo o símbolo da dualidade e não dualidade. É a grande Mónada e a dualidade que surge a partir dela. «A existência e não existência dão origem uma à outra». É uma união divina, a própria essência de toda a vida espiritual e terrena. O «Dois» surge a partir do «Um» e são inseparáveis. Como símbolo, o diagrama do Yin Yang é a própria perfeição. O seu simbolismo é o auge da simplicidade, e a profundidade total da profundidade. Ele é inesgotável, pois contém todas as possibilidades dentro de si mesmo.»[69]

69  J. C. Cooper, Taoism, The Way of the Mystic

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Cálice do Conhecimento

CRUZ

O

geral significado simbólico da cruz é o da conjugação de opostos: o positivo (vertical) com o negativo (horizontal), o superior com o inferior, a vida com a morte. A ideia básica por trás da ideia da crucifixão é o da experiência da essência dos antagonismos, uma ideia que se encontra na base da existência, expressando a agonizante dor da vida, as suas encruzilhadas de possibilidades e impossibilidades, de construção e destruição. Evola sugere que a cruz é uma síntese dos sete aspetos do espaço e do tempo, porque a sua forma é tal que tanto mantém como destrói o movimento; por isso a cruz é a antítese de Ouroboros, a serpente ou dragão que significa o dinamismo primitivo e anárquico que precedeu a criação do cosmos e a aparição da ordem.»[70] «A cruz é um símbolo que, nas suas variadas formas, é encontrada em toda a parte e desde os tempos mais remotos; está, portanto, longe de pertencer particularmente ou exclusivamente à tradição cristã, como algumas pessoas podem pensar. Deve até ser dito que o Cristianismo, pelo menos no seu aspeto externo e geralmente conhecido, parece ter de algum modo perdido de vista o carácter simbólico da cruz e passou a encará-la como se ela não fosse se não o símbolo de um acontecimento histórico. Na verdade estes dois pontos de vista não são de modo algum exclusivos; de facto, o segundo é consequência do primeiro. Se Cristo morreu numa cruz pode dizer-se que isto foi devido ao facto da cruz possuir em si mesma um valor simbólico, valor que tem sido reconhecido sempre por todas as tradições; assim, sem diminuir em nada o seu significado histórico, este pode ser encarado como derivado diretamente do significado simbólico que ela tem. Ao referir-se à serpente de bronze levantada no madeiro, Jesus disse: «Assim como Moisés levantou no deserto a serpente, assim também tem de ser levantado o Filho do 70  Leonard Bosman, The Meaning and Philosophy of Numbers

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Compilação de Lucília Barata

Homem, para que todo aquele que acreditar nele tenha a vida eterna. Porque Deus não enviou o Seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que seja salvo por Ele». Deste modo Ele mostra-nos uma relação entre o mistério da cruz e o agrupamento de todas as coisas em Si. O aspeto universalista aparece simbolizado na Missa no momento em que o sacerdote, no Ofertório, depois de ter oferecido o cálice, traça com ele um grande sinal da cruz sobre o corporal. Por esse gesto toma posse, de certo modo, em nome da cruz, de todo o mundo, representado pelas oblata, pelas oferendas, para assim o consagrar ao Pai pelo sinal de Cristo. E o que é significado por este sinal da cruz é a característica cósmica da salvação: designa as quatro direções do espaço, norte, sul, este, oeste, abrangendo, portanto, todas as nações. Na epístola de S. Paulo aos Efésios ele diz-nos que Cristo veio para unir as duas raças antes separadas, isto é, a raça judaica e a raça pagã, para fazer cair o muro que as dividia e para estender-se às outras nações e, por consequência, ao universalismo cristão. A obra de Cristo, com efeito, consiste essencialmente em refazer a unidade do homem. Cristo é o homem novo, aquele que reúne em Si o homem todo e todos os homens. O facto de cada um querer constituir-se em centro tem sido, desde sempre, o grande obstáculo à unidade. Quando uma nação, por exemplo, pretende construir a unidade do mundo, quer fazê-lo em seu redor. Do mesmo modo que os judeus queriam que todas as nações viessem adorar em Jerusalém e, consequentemente, fossem seus servidores, assim hoje cada nação quer imperar sobre todas as outras e chama a isso unidade. Contudo não é a isso que Cristo ou a Igreja chamam unidade. O que eles chamam unidade é uma unidade que resulta de uma conversão e não de um domínio. Só na medida em que soubermos amar todos os outros povos, sem os querer assimilar a nós próprios, é que estamos a trabalhar para a unidade. O respeito pelo outro no que tem de essencial é a condição da unidade na caridade e opõe-se à unidade pelo imperialismo ou qualquer

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Cálice do Conhecimento

outra espécie de pressão exterior. Isto pressupõe a cruz, a renúncia ao egoísmo, ao imperialismo, à vontade de domínio. Cristo realizou esta renúncia; a Sua morte é símbolo da morte dos privilégios para o povo judeu, de modo que os gentios possam entrar na Igreja. Ele é como que a encarnação da comunidade judaica, que morre n’Ele, a fim de ressuscitar na Ressurreição como homem universal. O que morre é um judeu; o que ressuscita é o homem total; o que morre no Calvário é Cristo, nascido da raça judaica; o que ressuscita no dia da Ressurreição é o Cristo, chefe da raça unida de todos os homens.»[71]

71  Jean Danielou, O Mistério do Advento

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Compilação de Lucília Barata

DIFERENTES TIPOS DE CRUZ CRUZ GREGA E LATINA CRUZ EM T (Tau) CRUZ EGÍPCIA (Ankh) CRUZ SUÁSTICA CRUZ TEMPLÁRIA CRUZ DE CRISTO

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Cálice do Conhecimento

CRUZ GREGA E LATINA

A

Cruz grega e latina correspondem, respetivamente, à mandala cruciforme que a estrutura da própria Igreja Cristã tomou na época medieval. As igrejas gregas e bizantinas desenvolveram uma cruz perfeita com uma abóbada central, enquanto as do final românico e gótico ocidental adquiriram a forma de cruz alongada, ou latina, como mais tarde vem a ser chamada.»[72]

CRUZ EM T

O

Tau (cruz em T) é a última letra do alfabeto judaico e a décima nona letra do alfabeto grego. É mencionado na Bíblia e tornou-se um dos mais importantes símbolos franciscanos.» 72  José e Miriam Argüeles, Mandala

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Compilação de Lucília Barata

CRUZ EGÍPCIA (Ankh)

E

ste símbolo aparece na Escrita hieroglífica com o significado de Vida, Saúde, Harmonia, Felicidade, sendo frequente vê-lo também representado nas pinturas que os antigos egípcios nos legaram, suspenso muitas vezes nas mãos ou braços de divindades, de membros da classe sacerdotal ou de outras figuras. Da sua estrutura faz parte uma cruz em T encimada por uma ansa em forma de amêndoa – a asa ou ansa pela qual essas figuras seguravam esse símbolo, donde também o seu nome Cruz Ansata. Esta cruz está intrinsecamente associada a um Cânone, conhecido por Cânone de Proporções Egípcio ou Cânone Sagrado de Cosmologia – a “chave” que tudo unifica e interliga. Como diz Lima de Freitas no seu livro Almada e o Número: Platão, para quem os números, como afirma no «Epinomis», são o mais alto grau de conhecimento – melhor ainda, «o Número é o próprio conhecimento» - faz referência à existência dessa «chave» num fragmento obscuro do «Epinomis» e numa passagem das «Leis», onde fala de um método capaz de relacionar diferentes classes de fenómenos por meio de um único sistema numeral, cujo conhecimento era susceptível de abrir ao adepto a compreensão do princípio unificador da Natureza. Os egípcios do seu tempo, acrescenta Platão, guardavam ainda o segredo desse cânone sagrado de proporções, que havia garantido a estabilidade da sociedade durante milhares de anos; e no livro II das «Leis» vemos Clínias, o Cretense, ficar maravilhado com o relato feito pelo ateniense acerca das aplicações do cânone sagrado, consubstanciado no traçado de templos, à música, à pintura e a todas as artes.»[73] 73  Lucília Barata, EspaçoNumerática – Uma Linguagem Científica e Símbólica

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Cálice do Conhecimento

CRUZ SUÁSTICA

U

ma das formas mais notáveis da cruz “horizontal”, isto é, da cruz traçada no plano que representa um certo grau de existência, é a Suástica, que parece na verdade estar ligada à Tradição primordial, uma vez que é encontrada nos mais diversos países, afastados uns dos outros e desde os períodos mais remotos. Longe de ser um símbolo exclusivamente oriental, como às vezes se pensa, a suástica é um desses símbolos mais espalhados, desde o Extremo Oriente ao Extremo Ocidente, uma vez que até existe entre certos povos indígenas da América. É certo que, no presente, tem sido preservada especialmente na Índia e Ásia central e oriental, as únicas regiões onde o seu significado é ainda conhecido, embora ela não tenha desaparecido completamente da Europa. Na antiguidade este símbolo aparece entre os celtas e a Grécia pré-helenística e, ainda no Ocidente, ela era um dos emblemas de Cristo, permanecendo assim até ao fim da Idade Média.»[74] «A mais antiga significação que lhe foi dada é a do simbolismo solar. Este símbolo existe em várias partes do mundo: na Índia, no México, na Palestina e na Europa. Deve ter sido introduzido no nosso continente pelos druidas, que eram grandes iniciados, detentores de um conhecimento originário do Oriente. A sua presença sob os altares e nos santuários prova que foi objeto de um culto. (...) René Guénon, o filósofo do esoterismo, sempre a propósito do mesmo sinal, também conhecido na China, escreve: 74  René Guénon, Symbolism of the Cross

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Compilação de Lucília Barata

Há um símbolo que está em conexão direta com o Yin Yang: tal símbolo é a espiral dupla... Esta dupla espiral oferece a imagem do ritmo alternado da evolução e involução, do nascimento e da morte, numa palavra, representa a manifestação sob o seu duplo aspeto... Observa-se imediatamente que isto se encontra em estreita relação com os dois sentidos da rotação da suástica, representando estes, em suma, a mesma revolução do mundo à volta do seu eixo, mas vistos prospectivamente um e outro de cada um dos seus polos; e estes dois sentidos de rotação exprimem bem, com efeito, a dupla ação da força cósmica, que, no fundo é a mesma coisa, sob todos os aspetos que a dualidade do Yin Yang.»[75] Quanto à direção da rotação indicada por esta figura – afirma René Guénon: «A sua importância não afeta o significado geral do símbolo. De facto, ambas as formas são encontradas, quer indicando uma rotação no sentido dos ponteiros do relógio, quer na inversa, e isto não quer dizer que seja sempre intencional de forma a estabelecer uma oposição entre os dois sentidos. É certo que em certos países e épocas devem ter ocorrido cismas da tradição ortodoxa, e os separatistas, de modo a manifestarem o seu antagonismo, devem ter dado, deliberadamente, uma orientação contrária àquela adotado no meio do qual eles desejavam sentir-se desligados. Mas isto não afeta, de nenhum modo, o seu significado essencial, que permanece o mesmo em todos os casos. Além disso, as duas formas são encontradas muitas vezes associadas e podem então ser interpretadas como representando a mesma rotação olhada de cada um dos polos.»[76]

75  Jean-Michel Angebert, Hitler e as Religiões da Suástica 76  René Guénon, Symbolism of the Cross

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Cálice do Conhecimento

CRUZ TEMPLÁRIA

E

sta cruz, adotada preferencialmente pelos Templários portugueses, já era conhecida em território português, pelo menos desde o século VI. (...) É conhecida por várias designações; cruz pátea, cruz de braços curvilíneos. Nós preferimos a designação de Garrett: cruz orbicular. (...) Como se pode observar, resulta da fusão de quatro círculos com o quinto, o círculo central onde está inserida.»[77] «Os Cavaleiros do Templo pertencem a uma Ordem religiosa-militar, a primeira a ser fundada (1118) com o propósito de defender os lugares santos e os peregrinos que para lá se dirigiam. Fundada por Bernardo Clairvaux, esta Ordem, que adota a regra semimonástica beneditina, é organizada a princípio como a Ordem dos Cavaleiros Pobres de Cristo, chamada depois Cavaleiros do Templo, pelo facto de possuir a sua sede no Templo de Salomão, em Jerusalém. Os seus membros usavam um manto branco no qual estava inscrito uma grande cruz vermelha e sobre a sua bandeira podia ler-se a seguinte divisa, tirada dos Salmos: Non nobis, Domine, non nobis, sed nomini tuo da gloriam” (Não para nós, Senhor, não para nós, mas para glória do Teu nome.»[78]

77  Paulo Alexandre Loução, Os Templários na formação de Portugal 78  Collier’s Encyclopedia

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Compilação de Lucília Barata

CRUZ DE CRISTO

H

á um ponto que é necessário não esquecer quando se propõe aprofundar a questão dos Templários, que é a de que estes defensores dos lugares santos foram não só cristãos, mas também católicos. Eles estavam convencidos, como o Concílio de Latrão proclamou a 11 de Novembro de 1215, que «não há se não uma Igreja Universal, fora da qual ninguém pode salvar-se». Por outro lado, eles dão sinais evidentes da sua piedade. Três vezes por ano consagram-se à adoração da cruz, em grande procissão de cabeça descoberta e fazendo várias estações para dizer, ajoelhados, em voz alta e inteligível: Ador te Crist, et benedise te Crist, Qui per la sancta tua crou resimit. (...) A cruz continua a ser para eles o símbolo que apareceu a Constantino e conduziu a sua armada à vitória: In hoc signo vinces. (...) Acusou-se os Templários de serem gnósticos. Mas pode dizer-se à vontade de não há uma gnose, mas gnoses cujos ensinamentos diversos se estendem pelos séculos e povos muito diferentes. Têm uma base, ao que parece: o pitagorismo, de essência helénica. Contudo, este pitagorismo varia segundo as “nuances” que lhes traz os elementos judaicos, egípcios, árabes ou persas. (...) A sua primeira ambição, como o nome indica (Gnosis quer dizer Conhecimento) era tornar acessível à inteligência o Grande Mistério. Ela ensinava aos seus zeladores que todos os seres espirituais emanam de uma só luz, que é Deus. (...) Os gnósticos creem no pecado original, pelo que a sua doutrina é fundada na ideia de resgate, de redenção. (...)

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Cálice do Conhecimento

A tendência dos Templários era francamente eclética, já que visava reconciliar o pensamento do Ocidente com o do Oriente, e vice-versa. (...) A importância que davam ao Número, sobre o qual está fundado o ensino de Pitágoras, mostra-se por toda a parte do que se conhece deles. Como os pitagóricos, eles vêm na decifração do Tetraktys – a década toda poderosa –, o meio mais seguro de tornar a Natureza inteligível. A Idade Média não conhece se não o pitagorismo alegórico, quer dizer, convencional. Os Templários interpretam-no simbolicamente. (...) É a essência do Número que ensina a compreender tudo o que é obscuro e desconhecido. A Verdade só convém à natureza do Número e nasceu com ele – disse Filolao. Nada disto o Cristianismo condena ou reprova. Sabe-se, pelo contrário, até que ponto os números estão carregados de sentido e como é rico de espiritualidade o que se lhes pede que exprimam. O triângulo aparece em todas as figuras que os Templários nos deixaram e vê-se que a maior parte das suas igrejas estão construídas segundo um plano octogonal. Mas fica-se impressionado pela sua predileção pelo número Três. (...) Eles veneram a mui Santa e Indivisível Trindade, as três hipóstases do Um – Pai, Filho e Espírito Santo –, mas também os três Logos, as três almas de Platão, a manifestação perfeita da Unidade. A Igreja é a casa de Deus, mas o Espírito Santo não tem ainda morada, se é no coração dos puros que quer ser adorado. Tudo amadurece, dissera já Tertuliano, e a Justiça também. No seu berço ela não foi se não natureza e temor a Deus. A Lei e os Profetas foram a sua infância e o Evangelho a sua juventude; o Espírito Santo dar-lhe-á a sua maturidade. O que os soldados de Cristo querem é construir um Templo do Espírito Santo. O seu objetivo supremo é conhecido: uma sinarquia. A ideia foi neles estimulados pelo exemplo de Alexandre, o jovem herói macedónio, com auréola de pura glória. Alexandre apoderou-se do mundo oriental para o recriar na harmonia, dando-lhe um elevado e fecundo ideal. Faltava-lhe, no entanto, a fé que eleva montanhas, cujo ponto de apoio está

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Compilação de Lucília Barata

num outro mundo sem ser este. Não se pode dizer que os Templários tenham traído a causa cristã, pois eles conceberam a possibilidade de realizar um equilíbrio entre o Oriente e o Ocidente, não só de ordem material, mas também espiritual. Mas, sem dúvida, o começo do ideal de entendimento espiritual e de união política dos Estados da Europa, de acordo com o Papa e o rei de França, foi prematuro. Depois das terríveis acusações feitas aos Templários e da sua exterminação em França, os Milicianos espanhóis e portugueses foram declarados inocentes pelo Bispo de Lisboa e pelos Concílios de Tarragona e Salamanca. Assim, em Portugal, depois da sua absolvição, D. Dinis estabelece as negociações necessárias para restaurar a Ordem abolida. E, depois de debates que duram seis anos, os seus membros recebem de volta os seus bens e passam a chamar-se «Cavaleiros de Cristo». Estes cavaleiros tornam-se os defensores da Coroa e da Nação Portuguesa e distinguem-se nas funções que lhes são designadas. Mais tarde, sob a liderança de D. Henrique, o Navegador, que se torna Grão-Mestre da Ordem, estes cavaleiros revelam-se hábeis marinheiros e desempenham papel relevante nos Descobrimentos. Depois do Cabo Bojador não era permitido a nenhum navio português navegar se não sob a bandeira dos Cavaleiros de Cristo. É sob esta bandeira que Vasco da Gama descobre a Índia, e que Albuquerque e D. João de Castro a subjugam – escreveu Correia da Serra sobre os verdadeiros sucessores dos Templários.»[79]

79  John Charpentier, L’Ordre des Templiers

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Cálice do Conhecimento

GRAAL

A

interpretação simbólica do Graal, correntemente admitida, consiste em identificá-lo com a taça de que Jesus se serviu na Última Ceia e onde José de Arimateia recolheu o sangue do Salvador, proveniente da ferida feita por uma lançada do centurião Longin. (...) Para os partidários da unidade da Grande Tradição, ou seja, da unidade fundamental e transcendente de todas as religiões, lendas e mitologias, os cristãos anexaram o mito do Graal, transformando-o em taça esmeralda, contendo o sangue de Cristo, desviando assim o símbolo do seu sentido original. Para os tradicionalistas, o mito do Graal reflete um ensinamento perdido. Em Le Roi du Monde, René Guénon não quis dar por findo o debate quando declarou: o Graal representa duas coisas ao mesmo tempo, estreitamente ligadas entre si: aquele que possui integralmente a “tradição primordial”, que chegou a um grau de conhecimento efetivo que implica essencialmente tal possessão, está com efeito, e por isso mesmo, reintegrado na plenitude do “estado primordial”». Com “estado primordial” e “tradição primordial” se relaciona o duplo sentido inerente à palavra Graal, visto que, por uma das assimilações verbais que no simbolismo tem muitas vezes inegável importância e frequentemente com razões mais profundas do que à primeira vista pareceria, o Graal é ao mesmo tempo um vaso (do occitano grasale) e um livro (gradale ou graduale); neste último sentido designa manifestamente a tradição, ao passo que o outro diz respeito mais diretamente ao estado.Todo o debate sobre o Graal pode ser, portanto, resumido nesta dupla significação que é também uma interrogação: vaso sagrado, símbolo da fé, ou livro secreto, símbolo do conhecimento perdido?»[80] 80  Jean-Michel Angebert, Hitler e as Religiões da Suástica

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Compilação de Lucília Barata

ZODÍACO

O

Zodíaco é um dos símbolos mais divulgados, apesar da sua complexidade. As suas características são as mesmas em quase todas as terras e épocas – a forma circular, as dozes subdivisões com os signos correspondentes e a sua relação com os sete planetas. O nome desta forma circular vem de Zoe (vida) e diakos (roda); e o elemento básico desta “roda da vida” encontra-se no Ouroboros (a serpente mordendo a sua própria cauda), simbolizando o Aion (duração). (...) O significado geral do Zodíaco diz respeito ao processo pelo qual a “energia primordial”, uma vez fecundada, passa do potencial ao virtual, da unidade à multiplicidade, do espírito à matéria, do mundo não formal ao mundo das formas, e depois regressa ao longo de um caminho idêntico. Isto está de acordo com o ensino ontológico oriental, que afirma que a vida do universo está dividida em duas fases opostas embora complementares: involução (ou materialização) e evolução (ou espiritualização). Todas as tradições de «Roda da Fortuna» ou «Roda do Ano» apontam para um simbolismo solar e zodiacal profundamente enraizado.»[81]

81  J. E. Cirlot, A Dictionary of Symbols

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Cálice do Conhecimento

MANDALA

A

Mandala apareceu através da história da humanidade como um símbolo essencial de integração, harmonia, e transformação. (...) Em Sânscrito, Mandala quer dizer literalmente círculo ou centro. O seu desenho tradicional utiliza muitas vezes o círculo – símbolo do Cosmos na sua integridade – e o quadrado – símbolo da Terra ou do mundo feito pelo homem. (...) A Mandala é fundamentalmente uma construção facilmente captada pelos olhos, pois corresponde à experiência visual primária, assim como à estrutura do orgão da visão. A pupila do olho é, ela própria, uma forma de Mandala. O olho recebe a luz e projeta a sua imagem para o exterior através da forma da pupila, isto é, através do centro de um círculo elementar. A forma mais pura e simples, mas ainda assim a mais abrangente, é o círculo; a mais rudimentar, mas ainda assim a experiência contínua de um organismo vivo é a luz, sendo o sol a sua fonte visível. Entre a forma e a função do sol, o orgão da visão e a experiência da luz existe uma relação definida. O Olho é o intermediário humano entre a dádiva da luz externa e a luz que arde dentro. De acordo com Mateus, Cristo disse: «O olho é a luz do corpo; se, portanto, o teu olho for límpido, o corpo inteiro ficará cheio de luz». A tradição da Filosofia Perene fala de um «terceiro olho», o olho acima e entre os olhos do corpo. É este olho que Cristo refere, e que na tradição hindu é chamado «Ajnã», o olho da sabedoria ou olho do conhecimento. Este «terceiro olho» é muitas vezes simbo-

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lizado por um lótus de pétala dobrada, que pode ser visto também como sinal de infinito, o que denota a qualidade dos dois olhos do corpo desenhados juntos deixando de ver separadamente e finitamente, mas intuitivamente e infinitamente. A universalidade da Mandala está na sua constante única, o princípio do centro, sendo o centro o símbolo do potencial eterno. Há uma lei estrutural, um princípio cósmico pelo qual as formas são sustidas, e que governa o processo de transformação de todas as coisas. Isto só pode ser compreendido porque o princípio do centro se manifesta através do homem, da mesma maneira que o faz através da flor ou da estrela, sendo nele que podemos descobrir a nossa cósmica comunalidade – a nossa cósmica comunidade. (...) Sentindo o impulso em direção à totalidade, o homem aplica-o a tudo o que faz. Ele motiva os pensamentos, penetra as suas atividades e reside em tudo o que constrói. Em suas casas, assim como na maior parte do mundo “primitivo” e pré-industrial, há um lugar, um altar, um fogo ou uma pedra que é o centro, não apenas da casa, mas de todo o Cosmos. Isto não é contradição, pois estamos a lidar com o que é essencialmente um princípio sagrado ou estado sagrado de consciência, no qual todos os seres e todas as coisas são igualmente realizadas como emanações de Um Todo Divino. (...) Um arranjo de símbolos, por si só, não cria necessariamente uma Mandala ou um modo de consciência. Por mais perfeito que seja matematicamente, se não incluir um princípio inclusivo e integrativo, não terá vida. Os antigos adeptos da alquimia praticavam o que hoje podemos chamar ciência. Mas a ciência deles era uma ciência de “orientação” – que literalmente significa encarar o Oriente, onde o sol nasce. Orientação tem um significado mais abrangente que se baseia no conhecimento das coordenadas cósmicas, ou seja, do todo. O conhecimento holístico opera sobre o que Einstein descreveu como uma teoria de campo unificada – uma fórmula, ou princípio integrado pelo qual todos os diferentes processos e funções do universo estão relacionados. Tal fórmula abarcaria também os diferentes corpos e técnicas classificados sob o amplo nome de ciência. Arte e religião, porque são também formas de conhecer, seriam então integralmente ligadas

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ao que é mais estreitamente definido como ciência; e estes três seriam um todo gnóstico. (...) Os cientistas não integraram os corpos do conhecimento (ciências) em uma interpretação unificada do homem, do seu lugar na natureza e das suas potencialidades para criar uma boa sociedade. (...) Do ponto de vista da Mandala não há “bons” ou “maus” aspetos para situações, e muito menos boas e más experiências: todas as experiências são iguais na medida em que acontecem. A tarefa do indivíduo não é atribuir definições éticas às suas experiências, mas aceitá-las igualmente, assimilá-las e compreender a lição que elas lhe proporcionam. E isso é possível porque a Mandala, como construção, fornece um plano ou esquema mais geral sobre o qual elas podem ser projetadas e representadas em relação aos seus opostos e antíteses. Deste modo, alcançada a união dos opostos, a totalidade de qualquer situação é compreendida e integrada, iniciando-se um outro grau de crescimento. (...) Num certo sentido, todas as estruturas sagradas religiosas partilham o princípio da Mandala: as pirâmides egípcias, e mexicanas; os templos da Índia; as stupas budistas; as mesquitas muçulmanas, os pagodes da China e do Japão, e os tipis e kivas da América do Norte. A forma mais elevada de mandala cruciforme está nas igrejas e catedrais do mundo cristão. Na Europa medieval a própria estrutura da igreja cristã tomou a forma rudimentar da mandala cruciforme. As igrejas gregas e bizantinas desenvolveram uma cruz perfeita com uma abóbada central. As igrejas do final românico e gótico ocidental adquiriram a forma de cruz alongada ou latina, como mais tarde vem a ser chamada. O lugar significativo é o altar no centro da cruz: tudo é orientado para este ponto. As igrejas principais eram orientadas para Oriente, o lugar do nascer do sol, símbolo de ressurreição. Estas catedrais e templos hindus do mesmo período eram os depositários dos ensinamentos das suas respetivas culturas: gravadas na pedra exterior e interiormente; pintadas onde podiam ser pintadas; e, no caso das catedrais, estas «rosáceas» formam algumas das mais belas mandalas circulares orgânicos criados pelo homem.

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As catedrais góticas do século XIII marcam a última fase grandiosa de uma tentativa para criar um complexo cultural integrado, altamente concentrado na Europa Ocidental. Este complexo de templos faz parte de um ponto elevado na onda planetária da cultura humana. Apesar do isolamento geográfico, torna-se evidente na construção de catedrais, mesquitas e templos, no período geral que vai do século X ao século XV, um propósito, um traçado e um significado humano unitário: Khajuraho na Índia; Borabadur em Java; Ankor Wat na Indochina; Chartres em França; Córdoba na Espanha muçulmana e Chichen Itza em Yacatan. O ponto de vista universal que estes edifícios têm em comum é que cada homem é uma unidade cósmica e que a sociedade em que vive é um reflexo de um mapa do universo. (...) Significativamente, foi o Tibete o último bastião cultural onde a arte da Mandala foi praticada a um nível de força, complexidade e beleza talvez inigualável em nenhuma outra cultura do globo. Mas estes últimos espelhos de unidade foram quebrados quando o Tibete foi conquistado, em 1959, pelos exércitos de uma China nova e racionalizada. Contudo, a Mandala está livre para renascer em qualquer ponto do globo, de iniciar um novo ciclo de desenvolvimento. E isto, também, é parte de um processo que eleva a um mais alto grau de consciência uma fase total de desenvolvimento humano: a história como um processo mandálico.»[82]

82  José e Miriam Argüelles, Mandala

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NOVA CRIAÇÃO OU ETERNO RETORNO?

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efende a Bíblia uma conceção linear da história ou considera ciclicamente o decurso do acontecer do mundo? Dar-se-á no fim da história uma nova criação, ou decorre a história num eterno círculo, de tal modo que não haja um verdadeiro fim? Quem de algum modo se familiarizou com a Bíblia sabe que esta descreve o acontecer do mundo numa tensão entre dois polos: a criação do mundo e o dia do Juízo. A criação é o princípio, o fim do mundo é o final da história. No princípio Deus criou o mundo a partir do Nada; mas, no fim, Ele não o quer lançar no aniquilamento: no fim, o mundo será é transformado, será criado de novo. Em contraste com esta conceção bíblica da história estão outras conceções do mundo, que defendem a ideia do retorno aos primórdios. Estas conceções entendem fundamentalmente que o acontecer do mundo retorna periodicamente; o círculo do vai-vem, da morte e do vir a ser – assim se pensa – não conhece fim algum. Quem segue coerentemente na esteira do pensamento do retorno, tem de negar não apenas um verdadeiro fim do mundo, mas também um verdadeiro princípio. Existe, portanto, um contraste fundamental entre as duas conceções. Do lado da Bíblia, vê-se a história linearmente com princípio e fim; do lado da conceção cíclica do tempo, pensa-se num eterno retorno das mesmas coisas. Para o Antigo Testamento, a criação não é exclusivamente um facto de um passado longínquo: a criação dá-se também e, sobretudo, quando Deus, com a plenitude do seu poder, intervém maravilhosamente na história. O relato da criação torna-se em parte histórico, em parte escatológico. Deriva-se assim para uma conhecida convergência entre a ideia universal da Criação e a ideia da Aliança com o Povo. O Homem é o ponto culminante da obra criadora feita por Deus no princípio. Mas é, além disso, o objeto próprio do ato escatológico e criador de Deus.


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Sobre isto falam precisamente os profetas Jeremias e Ezequiel: «Eis que chegarão dias – oráculo de Javé – em que farei uma aliança nova com Israel e Judá: não será como a aliança que fiz com os seus antepassados, quando os tomei pela mão para os tirar da terra do Egipto; aliança que eles quebraram, embora Eu fosse o seu Deus: colocarei a Minha Lei no seu peito e escrevê-la-ei no seu coração; serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. Ninguém mais precisará de ensinar o seu próximo ou o seu irmão dizendo: procura conhecer Javé. Porque todos, grandes e pequenos, Me conhecerão. Pois a todos perdoarei as suas culpas e esquecerei os seus erros.» (Jer.31;31-34) «Dar-vos-ei um coração novo e colocarei em vós um espírito novo. Tirar-vos-ei o coração de pedra, e dar-vos-ei um coração de carne. Colocarei dentro de vós o Meu espírito, para que vivais de acordo com os Meus estatutos, observeis e punhais em prática as Minhas normas. Então habitareis na terra que dei aos vossos antepassados: vós sereis o Meu Povo e Eu serei o vosso Deus». (Ez. 36;26-28) Embora Ezequiel não fale expressamente de um “criar” de Deus, o ato de Deus é, sem dúvida, uma nova criação, já que transforma profundamente os homens no seu interior. O chamado texto da Aliança apresenta, em Ezequiel, não o restabelecimento da antiga Aliança, mas sim, precisamente, aquilo que Jeremias qualifica de «nova Aliança»: a perfeita comunidade do homem com Deus. Esta relação com Deus, do homem que em plena vida foi recriado na sua essência interior, constitui a finalidade e meta da Redenção do Povo. E quando, na terceira parte do Livro de Isaías, se afirma a promessa escatológica de um novo céu e de uma nova terra, então é que a ideia da nova criação atinge o ponto culminante do Antigo Testamento: «Olhai! Eu vou criar um novo céu e uma nova terra. As coisas antigas nunca

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mais serão lembradas, nunca mais voltarão ao pensamento (Is.65;17). (...) Da mesma forma como durarão para sempre diante de Mim os novos céus e a nova terra que criarei, – oráculo de Javé – assim também durarão a vossa descendência e o vosso nome.» (Is.66;22) Mas a ideia de uma nova criação fá-la Paulo incidir, sobretudo, sobre a humanidade, reconhecendo e defendendo, por outro lado, a esperança de uma nova criação do Cosmos. Em Paulo, contudo, a ideia da nova criação tem um timbre absolutamente cristológico. O acontecimento histórico da morte redentora de Cristo abre as portas à nova criação. O Apóstolo está assim na esteira dos Profetas Jeremias e Ezequiel, que tinham anunciado a nova criação do Homem no seu interior. Muito embora o termo «nova criação» não figure nas palavras de Jesus, deixa-se decerto entrever que a consciência messiânica de Jesus compreende duas ideias: Jesus é, por um lado, sob o ponto de vista ético, o restaurador do ordenamento original da criação e, por outro lado, o portador messiânico de um novo mundo. A nova criação que se dá em Cristo refere-se em primeiro lugar ao homem interior, Se alguém está em Cristo, é uma nova criatura. As coisas antigas passaram; eis que uma nova realidade apareceu (2Cor.5;17), enquanto a ressurreição dos mortos na Parusia trás consigo a nova criação do homem exterior: De facto, já que a morte veio através de um homem, também por um homem vem a ressurreição dos mortos. Como em Adão todos morrem, assim em Cristo todos receberão a vida. A seguir chegará o fim, quando Cristo entregar o Reino a Deus Pai, depois de ter destruído todo o principado, toda a autoridade, todo o poder. Pois é preciso que Ele reine, até que tenha posto todos os inimigos debaixo dos Seus

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pés. O último inimigo a destruir será a morte, pois Deus tudo colocou debaixo dos pés de Cristo. Mas, quando se diz que tudo Lhe será submetido, é claro que se deve excluir Deus, que tudo submeteu a Cristo. E quando todas as coisas Lhe tiverem sido submetidas, então o próprio Filho se submeterá Àquele que tudo Lhe submeteu, para que Deus seja tudo em todos. (1Cor.15;21-28) Também na literatura apocalíptica a imagem da renovação do mundo, no fim dos tempos, desempenha um papel significativo e tem um cunho ao mesmo tempo cosmológico e escatológico: Vi, depois, um novo Céu e uma nova Terra. O primeiro Céu e a primeira Terra haviam desaparecido e o mar já não existia. Vi também descer do Céu, de junto de Deus, a Cidade Santa, uma Jerusalém nova, pronta como a esposa que se enfeitou para o seu marido. Nisto, ouvi uma voz forte que saía do trono e que dizia: «Esta é a tenda de Deus entre os homens. Ele vai morar com eles. Eles serão o seu povo e Ele, o Deus-com-eles, será o seu Deus. Ele enxugará as lágrimas dos seus olhos, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem gritos, nem dor. Sim, as coisas antigas desapareceram». Aquele que está sentado no trono declarou: Eis que faço novas todas as coisas. E disse-me: escreve, porque estas palavras são fiéis e verdadeiras. (Ap.21;1-5) A Nova Jerusalém está no centro de um novo mundo, e não é a pátria de um povo apenas, mas de todos os povos. No cenário da visão – a única vez no Apocalipse – o próprio Deus toma a palavra e assegura que criará tudo de novo, de modo que o que o vidente viu há-de ser de facto realizado por Deus: um mundo completamente novo brota uma vez mais das mãos do Criador.»[83] 83  Gerhard Schneider, Nova Criação ou Eterno Retorno

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A condição humana atual é de dispersão: dispersão no tempo, dispersão no espaço, dispersão nos desejos, dispersão no conhecimento, dispersão na ação. A humanidade de hoje é uma humanidade dispersa (...), e toda a dispersão tem por resultado a diminuição de consciência. Torna-se, por isso, necessário restituir-lhe o sentido do sagrado e, deste modo, a sua verdadeira memória e a dignidade da sua vocação primordial. René Alleau, in Les Sociétés Secrètes


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