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Jornal Araguaia A notícia do jeito que você quer Goiânia Ano

Dezembro de 2014

Diversidade em pauta De acordo com o artigo 1o da Declaração Universal dos Direitos Humanos, “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Dotados de razão e de consciência, nós todos devemos agir, uns para com os outros, dentro dos princípios da igualdade e da fraternidade, respeitando também o que garantem preceitos constitucionais. (página 7) Miss Gay 2014

Em busca de uma casa

Na luta pelo direito constitucional à moradia, famílias vivem rotina de inúmeras dificuldades em ocupação, sem perder de vista a esperança

De acordo com dados da Agência Goiana de Habitação (Agehab), 78 áreas estão ocupadas de forma desordenada, atualmente, em Goiás. Em Goiânia, segundo o MP-GO, 15% dos lotes não têm escritura. De acordo com a Agehab, algumas ocupações, no Estado, chegam á 20 anos sem a regularização fundiária. (página 2)

Os invisíveis da sociedade Dentro do atual sistema, é notória a ausência de políticas públicas capazes de atender, de fato, às demandas sociais. Você já olhou para o lado, sob pontes e viadutos e nas calçadas? Ali vivem pessoas, seres humanos como nós, esquecidos em algum canto da rua. O armador de circo, Walter S. Souza, e o encarregado de obra, Riglei Gonçalves Wilian Siríaco Pereira, servente de obras


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Os invisíveis da sociedade

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Dentro do atual sistema, é notória a ausência de políticas públicas capazes de atender, de fato, às demandas sociais. Você já olhou para o lado, sob pontes e viadutos e nas calçadas? Ali vivem pessoas, seres humanos como nós, esquecidos em algum canto da rua

O armador de circo, Walter S. Souza e o encarregado de obra, Riglei Gonçalves Wilian Siríaco Pereira, servente de obras A última pesquisa oficial data de agosto de 2007 a março de 2008. Foi realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome (MDS), em 71 cidades com mais de 300 mil habitantes, e apontou que, naquela época, o número de pessoas vivendo nas ruas, em todo o Brasil, chegava a 31.922 adultos, sendo 563 em Goiânia. Hoje, no entanto, à primeira vista, é certo que essa população de rua seja maior, ao menos para quem circula pelas vias públicas da cidade. “Atualmente, não temos índices indicando a quantidade de pessoas em situação de rua, em Goiânia, pois o último censo foi feito em 2008. De lá para cá, esses dados, com certeza, já baixaram ou subiram”, afirma a coordenadora da Divisão de Alta Complexidade da Secretaria Municipal de Assistência Social (SEMAS), Mara Sandra Almeida – na capital, é a SEMAS é o órgão responsável pela implementação da Política de Assistência Social, o que inclui essa parcela da população. O encarregado de obra Riglei Gonçalves, pai de dois meninos e uma menina, foi casado por 14 anos. Foi encontrado pela reportagem do Jornal Laboratório da Faculdade Araguaia sentado em um banco, à noite, na Avenida Goiás, região central de

Goiânia. Chorava muito. E apresentava sinais de embriaguez. Ao lado dele, estavam outros três homens deitados na calçada. “As pessoas nos discriminam, acham que todos somos bandidos”, lamentou Riglei, que diz ter a profissão de pedreiro e entender tudo sobre construção. Há quatros anos na rua, garante que não usa drogas, porém, é viciado em álcool. Segundo o último senso do MDS, 82% das pessoas em situação de rua são do sexo masculino, 53% têm idade entre 25 e 44 anos, e, 67%, são negros. Como Riglei Gonçalves, a maioria apresenta algum tipo de dependência química. Alguns caem no mundo das drogas por sofrerem decepções amorosas; outras vezes, por consequência da falta de estrutura familiar. Questão de saúde pública Diante desse contexto, a população em situação de rua deixou de ser um problema meramente social. Com a dependência química, o problema passa a ser, também, de saúde pública. De acordo com as estatísticas, os principais motivos que levam uma pessoa a viver na rua são, em 35,5% dos casos, alcoolismo e drogas; 29,8% são desempregados, e 29,1%, passaram por desavenças familiares. O servente Wilian Siríaco Pereira

conta que começou a viver nas ruas aos 16 anos de idade. Ele foi abandonado pela mãe aos 4, é natural do município de Formoso, interior de Goiás, e, hoje, com 35 anos, cata latinhas de alumínio. Wilian não esconde ser usuário de drogas: “Comecei a usar por revolta com a vida. É tanta perturbação que a única saída é a droga”, declara. Zilmar Elias de Rezende, comerciante, é dono de um pit dog na Avenida Goiás, próximo à Rodoviária, há 30 anos. Nas imediações do seu local de trabalho dormem muitas pessoas em situação de rua. Zilmar afirma que conhece quase todas e fez um acordo com elas: sugeriu que fossem pedir em outro lugar em troca da camaradagem. O comerciante fornece água e alimento e guarda pertences e dinheiro quando é solicitado. Armador de circo, Walter da Silva Souza, de 51 anos, natural de São Paulo, é outro a viver nas ruas da capital. Um dos lugares onde dorme fica em frente a uma igreja evangélica, cuja fachada tem revestimento em porcelanato, portas e janelas em vidro temperado fumê - coisa fina! – e, dentro, homens de terno que sempre chegam a bordo de carrões importados. Walter comenta que, naquele ambiente, os porteiros não o deixam entrar. “Religião é tudo mentira”, lamenta.


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Números da impunidade

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Moradores de rua são brutalmente assassinados em todo o Brasil; o que mais impressiona é a falta de solução para problemas que envolvem pessoas às margens da sociedade

O ano de 2013 registrou no Brasil o assassinato de 195 pessoas em situação de rua, segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. O número é assustador, sobretudo se considerarmos que, em apenas 13 mortes, o crime virou ação penal ou houve denúncia do Ministério Público contra os autores. Em Goiânia, os dados também impressionam: em 2013, 41 pessoas em situação de rua foram mortas, escandalizam, no mesmo

ano foram mortos 41 pessoas em situação de rua, de acordo a Gerência de Análise de Informações da Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP-GO). Quando indagados sobre a motivação dos crimes, governos federal e estadual divergem nas opiniões. A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República atribui os homicídios à ação de grupos de extermínio, enquanto que, em Goiás, a polícia associa a maior parte das mortes ao tráfico de drogas. O delegado Adriano Costa,

da Delegacia Estadual de Investigação de Homicídios (DIH), sustenta que “não existem indícios de ação de grupos de extermínio nesse período”. Fato é que as mortes ocorreram em série, com as vítimas assassinadas a facadas, tiros, pauladas, espancamentos e até queimados. Quase todas as vítimas, sem familiares que por elas chorassem ou clamassem por Justiça. Tudo ‘no escuro’, de forma invisível para a sociedade.

Em busca de uma casa Na luta pelo direito constitucional à moradia, famílias vivem rotina de inúmeras dificuldades em ocupação, sem perder de vista a esperança O menino apequenado, calado, de olhos pretos, Ícaro Oliveira Sena, de oito anos, admirava a mãe falar. A desempregada Irlândia Costa de Oliveira, de 39 anos, mãe de outros quatro filhos, sobrevive com cerca de 200 reais do Programa do Governo Federal Bolsa Família e mais 400 reais de pensão alimentícia – 100 reais de cada filho. Sem condições para pagar o aluguel, a mulher se juntou a outras 400 famílias e ocupou seu espaço em uma chácara no Jardim Novo Mundo, em Goiânia. Ícaro, decidido, quis contar seu sonho. “Quero pintar minha casa de roxo e vermelho”, revelou, com voz misturada ao barulho do serrote de João Silva, de 41 anos – vizinho que trouxe da mata ao lado bambu para construir um cercado. A família de Ícaro é uma das inúmeras que sonham com a casa própria e permanecem na Chácara 292, no Jardim Novo Mundo, onde funcionava, há oito anos, o Clube Chácara Assefaz, na Avenida Lincoln. Naquela época, o lugar em que hoje se encontram as barracas dos acampados, um dia serviu, em momentos de folga, aos servidores do Ministério Público e da Receita Federal; eles desfrutavam do gramado bem tratado, das duas piscinas – adulta e infantil

–, de um campo de futebol society, de uma quadra de tênis, de um playground e de várias churrasqueiras, além de sauna, salão de festas e um bar com mesas de sinuca. Desativado, o local foi tomado por matagal descontrolado. O abandono da área trouxe transtorno para os vizinhos da região. Frequentado por usuários de drogas e ladrões de moto e carro, tornou-se depósito de placas e tudo quanto fosse rejeitado pelo mercado de peças roubadas. Os primeiros ocupantes – que preferem não ter os nomes divulgados – relatam terem encontrado, quando chegaram ao lugar, a 1° de agosto de 2014, várias placas de carros e motos. Ostentação versus fome Ícaro estuda na 3° série do Ensino Fundamental e tem boa concordância verbal e numeral. Com voz baixa, acerta as expectativas da mãe. “Temos certeza de que, agora, vamos conseguir uma casa grande, bonita”, disse o garoto, sob as olhadelas de orgulho de Irlândia, com os outros dois filhos, de dois e três anos, agarrados, cada um, nos joelhos dela. A mãe de Ícaro ainda tem alguns dias para pagar o aluguel. São 350 reais todo Ícaro Oliveira Sena, 8 anos


Jornal Araguaia mês. Ela precisa da ajuda de vizinhos na tentativa de mudar definitivamente para o abrigo que fez com tábua. O local, antes, abrigava uma das churrasqueiras do Clube Assefaz e nem de longe lembra a fartura, a ostentação e as festas de outrora, ocorridas na chácara. O filho mais velho, de 18 anos, contou Irlândia, não quis ir para a ocupação. “Ele foi morar com uma tia. Tem vergonha disso aqui”, falou, rodeada pelos filhos menores, observados por Iago Costa, de 15 anos. E Ícaro ao longe, a olhar para um uma manga na árvore do quintal, que foi dividido em 20 metros de comprimento e 10 de largura para cada família.

Jesus, de 40 anos, decide mostrar e se deixar fotografar com o comprovante da inscrição número 41378, datado do dia 4 de maio de 2009, no Programa Minha Casa Minha Vida. “Estou aqui porque cansei de esperar uma posição da Prefeitura e pagar aluguel”, desabafa. “Esperamos resposta da prefeitura” De manhãzinha, o café emanava seu inconfundível aroma. “Pode entrar; não

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repare a bagunça”, convidou Francisco dos Santos Soares, o motorista de 32 anos conhecido como Tito. A mulher dele, Maria José Batista Tavares, manicure de 44 anos, já havia matado a galinha e ensacava as penas da ave. Enquanto a mulher, mãe de dois filhos - um rapaz e uma moça -, mexia o pescoço da galinha, o marido ia até a caminhonete A10 branca, placas KD86097, pegar o gás para colocar ao lado

Melancia repartida Ao lado da barraca da família de Ícaro, a doméstica Marisa Vitor de Araújo, de 37 anos, reparte entre filhos e sobrinhos uma melancia. Soube da ocupação ao receber a ligação da irmã. “Ela me ligou dizendo que tinha guardado um lote para mim”, revela. A mulher tem medo de que o barracão, reforçado com piso de cerâmica e paredes, seja ocupado por outra família. Mas ainda não deixou a antiga moradia, alugada há dois anos. Ela e o marido se revezam para dormir na ocupação. “Agora só faltam as telhas, as janelas e as portas e não podemos deixar ninguém invadir”, destaca. O lugar, supostamente, teria sido as instalações do bar do antigo clube. Medo Joselina Pereira, de 43 anos, cuida do neto, um bebê de seis meses. Ela mora de favor na casa de uma idosa que cedeu o barracão de dois cômodos para ter companhia. Mas a relação entre as duas não está indo bem. “Por isso decidi vir para cá”, contou Joselina. Contudo, ela só ergueu uma tenda, sem “paredes”. Não dormiu sequer uma noite no lote. “Não posso trazer meu netinho para cá”, justifica. Numa quinta-feira, quando voltou depois de dois dias sem ir ao lugar, viu que um homem tinha invadido “seu lote”. Foi tirar satisfação. Ameaçada, recuou. Dividiu o lote a contragosto. “Ele disse: ‘Se tentar me tirar, vai se arrepender’. Fiquei com medo”, confessa, apontando para o barracão erguido pelo homem. “Minha situação não está fácil” Desempregada, Cremilda Maria de

Desempregada, Cremilda Maria de Jesus, de 40 anos, decide mostrar e se deixar fotografar com o comprovante da inscrição número 41378, datado do dia 4 de maio de 2009, no Programa Minha Casa Minha Vida. “Estou aqui porque cansei de esperar uma posição da Prefeitura e pagar aluguel”, desabafa.” do fogão. Do lado de fora, o veículo estava arremedado com solda, sustentado por vários arames finos e uma plaquinha de ‘Frete’ amarrada na carroceria. “A gente usa o mesmo gás para colocar a caminhonete para andar e para cozinhar”, explica Maria José, sorridente. Junto do companheiro há sete anos, ela ainda não se acostumou com o pigarreio de Tito por causa do cigarro. “Você não tem medo desse negócio explodir, homem?”, pergunta, de cara fechada, ao vê-lo vindo abraçado com o botijão de gás e o cigarro aceso, entre os lábios. Durante toda a manhã em que a reportagem esteve com o casal, o assunto so-

bre o qual mais se falava era o pedreiro que não tinha terminado a construção de um cômodo. “Temos de construir”, afirmou o motorista. Ele trabalha numa distribuidora de materiais para construção e comprou tijolos, areia, telha e cimento. “Comprei tudo fiado, mas aqui não se encontra um pedreiro bom”, reclamou. E a mulher, espiando as brechas da barraca: “Para de reclamar, amor”. Sentado em um bloco de cimentos e rodeado por oito filhotes de cãezinhos de toda cor, barrigudos de verme, Francisco, de barba grande por causa da mulher que não gosta de homem sem barba, e com um brinco na orelha


Jornal Araguaia esquerda, conta que paga 680 reais de aluguel. Veio da Paraíba e conheceu Maria em uma festa. “Dali eu sabia que não ia largar mais”, afirmou, enviando à mulher um beijo. Quando se trata da ocupação, Maria José é otimista: acredita que vai conseguir uma casa, mas teme, como ocorreu em outras desapropriações, a violência por parte da polícia. “Estamos com medo de a polícia entrar aqui e expulsar a gente. Estamos esperando uma resposta da prefeitura”. O casal tem feito um trabalho social às famílias. “Vamos ao Ceasa toda quarta-feira e trazemos o nosso caminhãozinho cheio de frutas, verduras, legumes e doamos para as famílias que os pais e mães estão desempregados”, conta Francisco, ao ser interrompido por um homem, a oferecer uma janela. “A gente já tem. Você não tem uma porta lá?”, pergunta. Risco de vida Não foi difícil encontrar homens se desdobrando em emendar fios e mangueiras para levar, aos barracos, energia e água, respectivamente. Tudo, na tentativa de diminuir as angústias a que estão sujeitas as famílias que vivem emu ma ocupação. A empregada doméstica Maria Joana

Souza da Silva, de 28 anos, relatava as dificuldades que enfrentou desde que soube da invasão, enquanto o filho, Davi, de um ano e dois meses, cavoucava o solo endurecido com uma colher. “Não temos outra saída”, argumentou a mulher. “Não tenho marido, tenho um filhinho, e não consigo ficar pagando aluguel com um salário mínimo”. Maria deixou o marido na Bahia. Agredida e ameaçada várias vezes em menos de três anos de relacionamento, veio para Goiânia, onde tem uma irmã. “Encontrei a oportunidade de ser feliz”, justificou, cheia de esperanças.

5 Do lado de lá Entre as instituições públicas, a filosofia é de que o sonho da casa própria não deve ser conquistado a qualquer custo. A promotora de Justiça Suelena Carneiro Caetano Fernandes Jayme, coordenadora do Centro de Apoio Op-

Água ‘emprestada’ Karolyne Magalhães Nascimento, de 19 anos, e seu companheiro, não tiveram coragem de levar energia e água clandestinas ao barraco. Mãe de uma menina de quatro anos, desabafou: “Minha filha tem probleminhas de refluxo, pneumonia”. Sem água, a família da jovem pede ajuda aos vizinhos, em garrafas de dois litros. “Já que não tem muita água, a gente banha só uma vez por dia. Ou de manhã ou à noite”, relatou. Casada desde os 15 anos de idade, Karolyne não chegou ao Ensino Médio, mas não se importa. Tem como maior sonho, mesmo, é ter a sua própria casa.

eracional (CAO) do Meio Ambiente do Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO), afirma que um dos objetivos do órgão é combater ações de ocupação. “Essas ocupações que ocorrem de forma clandestina e irregular são proibidas; isso, inclusive, é crime. O que nós buscamos é uma cidade que mantenha um ordenamento urbanístico”, ressalta. Para Suelena, há uma inversão de sentidos no que diz respeito a esse tipo de ação. “Esses grupos se organizam com o pensamento de que a ocupação logo será regularizada. E isso não é o correto. É o inverso de um ordenamento adequado. Eles sabem que estão agindo errado”, considera a promotora. Números De acordo com dados da Agência Goiana de Habitação (Agehab), 78 áreas estão ocupadas de forma desordenada, atualmente, em Goiás. Em Goiânia, segundo o MP-GO, 15% dos lotes não têm escritura. De acordo com a Agehab,


Jornal Araguaia algumas ocupações, no Estado, chegam a 20 anos sem a regularização fundiária. A saída, imagina-se, seria a inclusão das famílias carentes sem moradia em alguns dos programas habitacionais desenvolvidos pelo poder público. Em nível nacional, o Governo Federal dispõe do Programa Minha Casa Minha Vida, e constrói moradias para famílias brasileiras com renda de até R$ 1,6 mil. A prestação mínima é de 25 reais ou 5% da renda da família beneficiada. Já para quem tem renda familiar de até R$ 5 mil, o acesso ao imóvel é facilitado. Mas, nesse caso, a família não pode ter nenhum financiamento de habitação do Governo Federal ou dispor casa própria. Em Goiás, o principal programa de habitação é o Cheque Mais Moradia, que, desde 2012, contempla famílias com renda de até três salários mínimos na construção e na reforma de casas. As prestações giram em torno de 80 reais e variam de acordo com a renda do beneficiário. A Secretaria Municipal de Habitação de Goiânia, órgão encarregado de responder sobre a Ocupação no Jardim Novo Mundo – objeto desta reportage - foi procurada, por telefone, para falar sobre o assunto, mas não atendeu às solicitações de entrevista. Longa espera Com o braço esquerdo engessado, Érica Borba de Souza, de 32 anos, convida a reportagem do Jornal Araguaia para entrar na barraca, logo no início da ocupação. Sob o calor do domingo potencializado pela lona e sobre um piso de terra espezinhado, Érica mostra o que ganhou para poder dormir na barraca. “Aqui tem uma cama; ali coloco macarrão, arroz e feijão”, aponta, estampando certo orgulho. Ao ter a casa incendida em maio de 2014, Érica se viu sem ter para onde ir. “Eu e meu marido decidimos arranjar um lote aqui. Não dava mais para pagar os 400 reais de aluguel”, ponderou. Inscrita em um programa de habitação desde a década de 1990, a mulher conta que ainda não foi nem mesmo sondada para entrevistas ou visitada por alguma assistente social. “Estamos esperando a casa sair e não podemos pagar aluguel”, reitera. “Meus filhos estão na casa da minha mãe, porque aqui eles não podem ficar”, acrescenta. Auxiliar de serviços

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Com o braço esquerdo engessado, Érica Borba de Souza, de 32 anos, convida a reportagem do Jornal Araguaia para entrar na barraca. gerais, Érica não trabalha desde que perdeu a antiga casa. Fraturou o braço quando uma das paredes do barracão em chamas caiu sobre ela. “Depois do acidente, até meu marido teve de deixar o trabalho e viver de bicos”, lamentou, enfiando na boca um bico de criança. “Saudade dos meus filhos”, explicou ela, antes de cobrir o rosto amarelado com a palma das mãos. Outra na fila de espera dos programas habitacionais é Márcia Cristina de Araújo, de 32 anos, desempregada, que, ao lado da filha, de 13 anos, cansou de pagar aluguel. Há cinco anos, as duas aguardam retorno sobre a inscrição no Programa Minha Casa Minha Vida.

“Além da espera na fila, temos de andar para todo lado atrás de documentos”, relata Márcia, incomodada com a burocracia. A mulher e a filha integram uma das centenas de famílias que optaram pela ocupação de área pública em vez de esperar passivamente por uma moradia dentro dos programas habitacionais. Márcia garante que não foram apenas duas vezes que se dirigiu à Secretaria de Habitação de Goiânia para tentar conseguir uma casa: “Eles devem achar que a gente é boba; que não tem mais nada a fazer do que ficar o dia todo na fila e, depois, não ter respostas”.


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Na luta pelo direito constitucional à moradia, famílias vivem rotina de inúmeras dificuldades em ocupação, sem perder de vista a esperança

Diversidade em pauta UNIVERSO LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros) VAI MUITO ALÉM DA QUESTÃO MERAMENTE SEXUAL ENTENDA PORQUÊ

A luta LGBT nada mais é do que a luta por aquele respeito que nossa sociedade tanto preza, mas não pratica de verdade; o grupo busca liberdade de expressão, de ser e de amar sem preconceito e discriminação.


Jornal Araguaia De acordo com o artigo 1o da Declaração Universal dos Direitos Humanos, “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Dotados de razão e de consciência, nós todos devemos agir, uns para com os outros, dentro dos princípios da igualdade e da fraternidade, respeitando também o que garantem preceitos constitucionais. Se as regras fossem seguidas à risca, talvez, quem sabe, vivêssemos em uma sociedade ideal – aquela, com a qual todos sonhamos ... Infelizmente, não é o que ocorre. No universo daqueles que lutam, dia após dia, para terem os seus direitos respeitados e fazer valer os princípios da igualdade e da liberdade, estão lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros, a conhecida comunidade LGBT, que, anualmente, promove um Dia de Orgulho, levando às ruas das cidades de várias partes do mundo uma manifestação colorida pelo respeito à diferença. A luta LGBT nada mais é do que a luta por aquele respeito que nossa sociedade tanto preza, mas não pratica de verdade; o grupo busca liberdade de expressão, de ser e de amar sem preconceito e discriminação. Entre esse público, destacam-se travestis e transexuais, homens e mulheres com identidade de gênero e orientação sexual distintas, cada qual com as suas peculiaridades, passando pelo tipo de comportamento e jeito de se vestir, pela utilização de hormônios que podem auxiliar em transformações corporais e até mesmo pela mudança cirúrgica de sexo – no caso dos transexuais, que se sentem como se o seu corpo de origem não lhes pertencesse. Em situações como essas, a busca pela livre identidade de gênero não é algo simples; entra em conflito com questões de gênero e padrões impostos socialmente. Segundo Rafaela Damasceno, transexual e uma das fundadoras do Grupo Origem, Organização dos Homens e Mulheres Transexuais do Brasil – o nome Origem vem da teoria de Harry Benjamin, sexólogo alemão radicado nos Estados Unidos, conhecido por ser o pioneiro no trabalho com a transexualidade humana -, a cirurgia de mudança de sexo, no caso, deve ser entendida como uma opção e não como um rótulo obrigatório.

“A travestilidade é uma condição de identidade feminina e não uma orientação sexual. No campo cientifico, isso ainda não está bem claro; gera vários questionamentos e especulação, ou seja, nenhuma teoria psicológico-psiquiátrica foi considerada consistente”, afirma, lembrando que há casos de travestis que desejam a cirurgia de readequação sexual, e outros travestis, por sua vez, que estão satisfeitos com a travestilidade e não desejam fazer a cirurgia. Realização plena Rafaela explica que, diferentemente dos transexuais, travestis são pessoas comuns, que nascem com um sexo biológico masculino, mas que assumem, no cotidiano, comportamentos femininos, e podem até modificar seus corpos com injeções de hormônios, aplicações de silicone industrial e outras cirurgias plásticas, sem sentirem desconforto algum com o seu sexo de nascimento, o que, em geral, não ocorre com mulheres e homens transexuais, que, quase sempre, só se realizam plenamente após a cirurgia de redesignação sexual. Em Goiás, o Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Federal de Goiás (UFG) é referência para todo o Brasil na realização desse tipo de procedimento por meio do Projeto TX, coordenado pela médica ginecologista Mariluza Terra.

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Desde 1999, quando foi implantado, 65 transexuais haviam sido operados, até janeiro de 2014; outros mais de 60 estão na fila de espera, passando pelo acompanhamento pré-cirúrgico. As cirurgias e o acompanhamento por especialistas da equipe são custeados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Conforme as estatísticas apontadas por Rafaela Damasceno, a demanda pela mudança de sexo de homens para mulheres é maior. Representa em torno de 1% em 35 mil habitantes, e, de mulheres para homens, 1% para 6 mil habitantes. Hoje, porém, de acordo com ela, esse percentual pode ter aumentado. “O movimento LGBT promove eventos como a Parada Gay para romper barreiras, baixar os preconceitos. O maior objetivo é exigir direitos iguais perante a sociedade, uma grande festa da diversidade sexual e cultural. Antes de tudo, uma luta pelos direitos iguais”, destaca a fundadora do Grupo Origem. “Isso vem se modificando gradativamente desde 1990 até os dias atuais. Basta lembrar que, nas décadas de 80 e 90, as pessoas não podiam andar de mãos dadas nem se expressar publicamente. Infelizmente, o preconceito ainda existe e está enraizado em muitas pessoas; irá afetar as futuras gerações. O Brasil ainda é um país muito preconceituoso se comparado a outros países da Europa”, acrescenta.


Jornal Araguaia Pela criminalização da homofobia e direito ao nome social. O Projeto de Lei PLC 122, da Câmara Federal, propõe a criminalização dos preconceitos motivados pela orientação sexual e pela identidade de gênero, juntamente com os demais preconceitos que já são objetos da Lei 7716/89. O projeto de Lei PLC 122 tem por objetivo criminalizar a homofobia no País e encontra-se na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal do Brasil. Por aqui, contamos com uma vitória: a presidente da Comissão de Direito Homoafetivo (CDHOM) da Ordem dos Advogados do Brasil em Goiás (OAB-GO), Chyntia Barcellos, reivindicou os direitos de travestis e transexuais ao Conselho Estadual de Educação, que acabou por publicar a Resolução 02/2014. Por determinação dessa Resolução, escolas e sistemas educativos do Estado devem apenas usar o nome social dos alunos travestis e transexuais nos documentos de uso externo, como diários de classe e carteiras de identificação estudantil. Além da atuação na OAB em nível estadual, Chyntia é também vice-presidente da Comissão Especial da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB e membro do Conselho LGBT de Goiás, representando a Comissão de Direito Homoafetivo. ENTREVISTA - HELLEN CHAMPS “ANTIGAMENTE, SERVÍAMOS MAIS PARA APRESENTAÇÕES DE PARÓDIAS ENGRAÇADAS NA TV; AGORA NÃO, A COISA SE TORNOU MAIS SÉRIA” A reportagem do Jornal Araguaia foi à Parada Gay 2014 e conversou com a travesti Hellen Xamps (no registro civil, Helenildo), que tem 38 anos de idade e uma simpatia de outra vida. Nascida em São Luiz do Maranhão, deu o ar de sua graça em Goiânia há três anos. Durante a entrevista, não deixou, por um segundo, de manter um sorrisão largo no rosto, que diz segurar em todos o momentos da vida, apesar das dificuldades ... Confira: Há quanto tempo você se traveste? Desde que me entendo por gen-

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O maior objetivo é exigir direitos iguais perante a sociedade, uma grande festa da diversidade sexual e cultural. te sempre gostei de homem e nunca fiquei com mulher, mas foi aos 25 anos que eu me travesti. Acho que a demora dessa transformação foi por causa do lugar de onde eu vim. Por ser uma zona rural, sem muitos recursos, eu não tinha conhecimento, as pessoas eram muito conservadoras; então, me sentia presa naquele mundo. Foi quando eu perdi minha mãe que decidi me “libertar”. Como você disse, as pessoas da região onde viveu eram conservadoras, provavelmente sua família fazia parte desse grupo. Qual foi a reação da sua família quando você se “libertou”? Houve alguma rejeição? Eu sempre morei com minha mãe e meu irmão, não tinha muito contato com o resto da família, então, não me valia a opinião deles. Até porque, para todo mundo, sempre fui a ovelha negra da família. Quando assumi minha homossexualidade, eu só tinha o meu irmão, e foi bem tranquilo. Ele, a esposa e as minhas sobrinhas me aceitaram, tanto é que moro com eles e até hoje nunca criaram problema quanto a isso. Você trabalha? Trabalho no ‘boteco’ do meu irmão, onde sou atendente e garçonete. Você frequenta as boates gays de

Goiânia? Não frequento. Não gosto de boates. Todo ano você vem à Parada Gay? Estou em Goiânia há três anos, e, desde que cheguei, vim a todos os eventos, inclusive tanto aqui na Praça Cívica quanto no Multirama. O objetivo do movimento LGBT é a luta pela igualdade, promovendo eventos como a Parada Gay. Você acha que, de fato, essa luta pela quebra de preconceitos ocorre ou é só uma forma de entretenimento? Apesar de o principal objetivo ser a busca por direitos iguais e a manifestação contra a homofobia, existe uma divisão de classe social entre nós. Vocês podem observar, aqui, que cada grupo se isola do outro; é uma desunião total e isso cria uma barreira na hora de defender nossa bandeira. Você sofre com preconceito? Particularmente não passo por isso. O preconceito existe, isso é fato, e nunca vai acabar, porém, comigo, não acontece tanto. Acredito que o preconceito varia de lugar para lugar e de pessoa para pessoa. Procuro ir a lugares que me aceitam, não vou onde sei que serei rejeitada. O STF (Supremo Tribunal Federal) liberou em 2011 o registro de uniões estáveis de casais homossexuais. Você pretende se relacionar sério


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Jornal Araguaia com alguém futuramente e construir uma família? Não! Deus que me livre de casar! (risos) Na verdade, não sou a pessoa mais indicada pra falar disso, mas fico feliz por essas pessoas, inclusive abraço essa lei, pois tenho amigos que sonham em constituir uma família um dia. Mas isso não é para mim. Sou da vida, gosto da minha liberdade e de ser independente. Primeiro que ter um filho é assumir uma grande responsabilidade ... Para adotar e criar um animalzinho deve-se ter todo um cuidado e preparo, imagine adotar uma criança?! Qual a sua opinião referente à forma com que a telenovela brasileira trata a homossexualidade? É positiva ou ainda reproduz preconceitos? Na minha opinião, traz algo positivo, sim. Acredito que abriu a mente da sociedade, diminuiu bastante o preconceito. Antigamente, servíamos mais para apresentações de paródias engraçadas na TV; agora não, a coisa se tornou mais séria.

“Eu sempre morei com minha mãe e meu irmão, não tinha muito contato com o resto da família, então, não me valia a opinião deles. Até porque, para todo mundo, sempre fui a ovelha negra da família. Quando assumi minha homossexualidade, eu só tinha o meu irmão, e foi bem tranquilo. Ele, a esposa e as minhas sobrinhas me aceitaram, tanto é que moro com eles e até hoje nunca criaram problema quanto a isso”. Hellen Champs


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Orgulho LGBT Parada representa luta por direitos e é, também, uma grande festa de diversidade, cores e sons

A Parada do Orgulho LGBT é uma manifestação social que busca a garantia dos direitos civis de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros, como casamento, a adoção de filhos, o respeito e a não violência, entre muitas outras reivindicações. Em meio ao manifesto, o evento tornou-se, também, uma festa anual, reunindo, além do público LGBT, simpatizantes e curiosos. Na capital goiana, a edição 2014 da Parada Gay que já ocorre, em Goiânia, há 19 anos - foi realizada no mês de setembro e teve concentração na Avenida Araguaia com a Avenida Contorno, no Centro

da cidade. O tema dessa edição foi “Por um Mundo sem Machismo, Racismo e Homofobia”, reforçando a luta do segmento pela criminalização da homofobia. Uma característica marcante são os símbolos utilizados pelos participantes desse evento para lá de colorido ... Os símbolos do orgulho LGBT incluem a bandeira arco-íris, a borboleta, a letra grega lambda e o triângulo rosa, assim como o triângulo preto. A festa dura um dia inteiro e segue, sempre, ao som de trilha sonora animada, entre e-music, divas atuais consideradas ícones para lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros, e muitos clássicos dos anos 70.

“Born This Way”, de Lady Gaga

“I Will Survive”, de Gloria Gaynor

“Y.M.C.A.”, do grupo Village People.

... Não importa se você é gay, hétero ou bi, lésbica ou se é transexual. Eu estou no caminho certo, baby. Eu nasci para sobreviver. Não importa se você é negro, branco ou amarelo. Se é latino ou oriental. Eu estou no caminho certo, baby. Eu nasci para ter coragem…

… Oh não, eu não. Eu vou sobreviver. Enquanto eu souber como amar. Eu sei que permanecerei viva. Eu tenho minha vida toda para viver. Eu tenho meu amor todo para dar e. Eu vou sobreviver, eu vou sobreviver...

… Jovem, jovem Não há nenhuma necessidade de se sentir pra baixo, desestimulado Jovem, jovem Eu disse, jovem, recolha-se e levante do chão...


Jornal Araguaia

Homossexualidade, homofobia, ciência e religião

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Reportagem do Jornal Araguaia busca informações no meio acadêmico com dois pontos de vista diferentes: o da psicóloga Maria Lúcia Gonçalves, com especialização em Psicopedagogia, e o do filósofo e sociólogo Renato Borges, que tem formação superior em Filosofia, Sociologia e Pedagogia. Vale a pena fazer parte desse debate.

Ainda que seja fortíssima a rejeição no seio da Santa Madre, o amparo aos homossexuais já começa a ser discutido pela igreja. Ao apresentar uma carta no Sínodo da Família, no dia 13 de setembro de 2014, o Vaticano expôs a necessidade de auxiliar os homossexuais pelo que eles representam para a sociedade e para o cristianismo quanto a seres humanos. Se os homossexuais forem abrigados de forma sistemática, a igreja poderá fazer uma verdadeira revolução cultural dentro do que é chamado de normalidade. O que sempre fora tratado por ela com reservas, inclusive sobre sua própria história, repleta de escândalos com relação à homossexualidade, poderá trazer a luz uma realidade densa e obscura, mas enfim, de libertação e esclarecimento. O documento lido na presença do Papa Francisco no Sínodo da Família causou grande re-

percussão no mundo e teve boa acolhida pelos órgãos internacionais dos direitos humanos. Longe de querer criticar o papel da fé, a psicóloga Maria Lúcia disserta, entre vários assuntos sobre a homossexualidade, o papel das religiões ocidentais no contexto da aceitação social dos homo afetivos - religiões como catolicismo e protestantismo que possuem uma cultura sedimentada em dogmas que criaram uma moral externa à do indivíduo. Indivíduo esse que nunca pediu para nascer homo afetivo, diz ela, e conta que as pessoas não pedem para ser dessa ou daquela forma. Na entrevista, ela diz que a homossexualidade sempre foi um fato comum nas sociedades primitivas, sendo aceito com naturalidade, e cita como exemplo Grécia e Roma antiga. Ela reitera que, depois do advento religião ocidental, a moral foi modifica-

da e a rejeição tomou o lugar do que era natural. Esse contra-senso compeliu a sociedade para a reflexão de uma lógica: a de que dois seres do mesmo sexo não se reproduzem, o que estabeleceu um dogma: o de que a homossexualidade seja pecado. Assunto intimamente ligado ao poder criador de Deus – a reprodução humana como vontade divina. Nesse sentido, a homossexualidade e por consequência, a união de dois sexos iguais, vem bater de frente com esse dogma. A partir do momento em que a religião se estabelece, ela domina a cultura, visto que se agrega a esta, e traz em seu contexto, regras de comportamento que com base na observação natural. Com isso, criam-se estereótipos para o comportamento humano e passa a execrar o que não é observável fora desse contexto - como, por exemplo, a união entre homem e mul-


Jornal Araguaia her para gerar um filho. Sendo que o contraditório desse comportamento é condenado como anormal, fazendo aparecer nessa cultura, à noção de pecado. Ela diz que todos os homossexuais que tem ouvido ao longo de anos de atuação na clínica Espaço Vida e Terapia em Goiânia, se pudessem, jamais seriam homossexuais, informa a psicóloga. Tudo isso traz a tona uma questão crucial para o homo afetivo: a lógica que o condena é a mesma que o liberta, posto que se Deus o fizesse, e ele não pediu para ser feito assim, então logo o problema não seria com ele, mas com quem o fez. Reflexão filosófica bastante simples do ponto de vista científico, mas com grande apelo nos consultórios de psicologia. Por outro lado, a religião tem sido uma âncora para muitos que vivem essa situação de duplicidade emocional. Pessoas que encontram nas igrejas, forças para permanecerem como estão. Isso seria como admitir uma renúncia aos seus instintos sexuais para permanecer como parte dessa mesma cultura. A própria pessoa julga ser errado o comportamento homo afetivo e encontra na religião, conforto para esse choque de culpa. Homofobia Uma das questões sociais mais relevantes na atualidade quando o assunto é homossexualidade é a homofobia. Considerada com reação agressiva ao diferente, ela ocupa destaque nas discussões em todas as áreas que tratam do tema. E para entender melhor o que leva as pessoas a repudiar o homossexual, ou o diferente, a especialista psicóloga Maria Lúcia, relata que em suas observações feitas a partir do divã, onde já atendeu milhares de jovens e adultos, que o medo é um dos principais motivos que levam à execração social ao diferente. As pessoas rejeitam aquilo que é diferente, O repúdio ao diferente e sua não aceitação como membro, até da própria cultura do individuo (rejeição particular), pode levar a um sentimento de repúdio e até mesmo à agressão física. Isso pode ser observado, por exemplo, no preconceito que as pessoas têm com relação aos evangélicos, pessoas tatuadas, negros etc., diz a psicóloga.

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Psicóloga coloca religião e cultura como fatores que mais influenciam a vida homoafetiva História Na Grécia antiga havia toda uma ritualização envolvendo a aproximação do homem que estivesse interessado por um adolescente. A “corte” era necessária para que a relação tivesse o caráter de bela e moralmente aceita. Os papéis nesse caso eram bem definidos, o homem (erastes) fazia a corte e o adolescente (erômeno) era o cortejado, podendo deixar-se conquistar ou não. O homem, ao cortejar, presenteava, prestava favores, ia ao ginásio ver o adolescente se exercitar (e geralmente se exercitava nu) e praticava com ele os exercícios físicos até a exaustão, uma vez que não possuía o mesmo vigor físico da juventude. O adolescente, por sua vez, deveria ser gentil e ao mesmo tempo por à prova o amor do pretendente. A conquista era incerta, pois caberia ao jovem a palavra final. Quando deveria acabar a relação de pederastia? Tão logo aparecesse no adolescente os primeiros sinais de virilidade, a primeira barba, que por volta dos 17 ou 18 anos já era evidente. Permanecer nessa relação após o advento da virilidade era reprovável, principalmente para o homem, já que estaria se envolvendo com outro homem. A relação entre pessoas do mesmo sexo teve lugar também em Esparta, porém com um sentido um pouco diferente da vista em Atenas. Além das relações de pederastia, eram estimuladas as relações entre os componen-

tes do exército espartano e tinha por objetivo torná-lo mais forte. O que levava os comandantes do exército a estimular esse tipo de relação era o fato de acreditarem que um amante, além de lutar, jamais abandonaria outro amante no campo de batalha. O Batalhão Sagrado de Tebas, famoso por suas vitórias, era formado totalmente por pares homossexuais. As fontes históricas disponíveis sobre a prática homossexual na Roma Antiga, suas atitudes e a aceitação deste fato são abundantes. Há obras literárias, poemas, gravuras e comentários sobre a condição sexual de todos os tipos de personagens, incluindo imperadores solteiros e casados. Por outro lado, as representações gráficas são mais raras do que no período. As atitudes em relação à homossexualidade mudaram com o tempo de acordo com o contexto histórico, variando de forte condenação a uma aceitação consideravelmente ampla. Na verdade ela foi considerada um costume cultural em certas províncias. Na abordagem destes comportamentos é fundamental salientar que o termo se torna problemático e impreciso aplicado ao mundo antigo, já que sequer havia uma palavra traduzida como tal ou com o mesmo significado do conceito moderno de homossexualidade. Não parece ter sido a norma, mas os autores reconhecem que, na Roma Antiga, parte dos homens mantinha relações sexuais exclusivamente com homens.


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Filósofo aponta a formação do feto como uma das possíveis causas da homossexualidade humana

ESPECIALISTA SE GUIA POR ESTUDOS DA NEUROCIÊNCIA PARA DEFENDER QUE CARGA PSÍQUICA DURANTE A GESTAÇÃO AFETA A SEXUALIDADE

Renato Borges, de 39 anos, é professor universitário na Faculdade Araguaia. Em sua formação, passou por quatro universidades. É graduado em Pedagogia, Filosofia e Sociologia, com mestrado na área de Filosofia da Religião. Em seu currículo estão a Universidade Cândido Mendes no Rio, UEG-Goiás, FAEL- Paraná, e a presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. Cristão e não evangélico, como fez questão de afirmar, durante a entrevista. Coisa que ele define bem ao esclarecer que “evangélico é aquele camarada que está dentro de uma denominação e que segue as doutrinas dessa denominação, já o protestantismo é um movimento contra uma determinada religiosidade surgida com Martin Lutero, que visa retomar as

origens do evangelho de Jesus. Creio que a bíblia é uma referência para minha vida”, argumenta. Perguntado sobre crianças que já nascem com tendências homoafetivas ele responde levando a pergunta para duas situações: o filosófico e o religioso. Nesse aspecto, quando se pergunta sobre o que é certo ou o que é errado, você comporta duas tendências: no campo religioso e no campo filosófico. Se certo ou errado, isso vai depender do ponto de vista que se adota. A sociologia observa que isso é uma manifestação da própria sociedade, um fato social. Ainda sobre a pergunta, ele comenta sobre Freud, que desenvolveu um estudo sobre a psiquê desde muito cedo e isso vem sendo aperfeiçoado até hoje.

Hoje a neurociência já chegou à seguinte conclusão: a mãe que gesta o filho durante seus nove meses passa uma carga psicológica para o bebê, mesmo ele não estando consciente. A consciência é um processo que será tomado depois do nascimento. Só que nesse ponto – na gestação, existe uma carga psíquica muito grande neste feto. Então a pergunta deveria ser: qual a carga psíquica que esta criança recebeu no ventre materno? Existem vários estudos que indicam que, quando a mãe nega se o filho é homem ou mulher, ele nega veementemente sua sexualidade. De acordo com o professor, há vários estudos que apontam esta teoria, neste sentido cita a Universidade Federal do Piauí (UFPI) – estudos que se


Jornal Araguaia encontram lincados no site do professor como objeto de pesquisa, inclusive dessa reportagem, e podem ser encontrados em: http://www.professorrenato.com/index.php/sociologia/ textos/47-adocao-de-criancas-por-casais-homoafetivos. Vale também ressaltar a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), em http://ref. scielo.org/p2cf4t. Sobre o ineditismo desta corrente teórica, Renato diz que se tem esta impressão porque ela não é comentada pela grande mídia; no meio acadêmico, destaca, já existem vários artigos científicos sobre essa tese. Segundo o professor Renato Borges, a sociologia enxerga o mundo da transversatilidade sexual como uma sociedade dentro da sociedade e essas relações são permeadas pela liberdade, e pelas leis dentro do organismo civil. Sobre a expansão do movimento gay, se ele poderia ganhar um espaço maior, o professor faz um breve relato sobre a origem da homoafetividade e remonta à cultura grega que teve grande influencia na cultura ocidental. Naquele tempo a homossexualidade era praticada de forma livre, a sociedade grega antiga era constituída por duas ênfases: a religião e a busca pelo conhecimento. Platão em O Banquete faz um registro interessante de como os gregos viam isso. No texto platônico há uma parte - Mito de Andrógeno, que vai tratar dessas relações homafetivas. Zeus fez o homem um ser andrógeno – nem homem e nem mulher e em um dado momento Zeus, com um raio separa as almas dos homens e os homens ao acordarem de um sono dado por Morfeu Deus do sono, buscam uma relação andrógena entre si, pois vão em buscar sua cara metade. Surge dessa forma a figura da alma gêmea. Émile Durkheim, 1858 o conhecido pai da sociologia e o Joseph Campbell 1904(Mito do andrógino primevo), antropólogo e mitólogo, ambos vão estudar o mito e sua influência na formação da sociedade. Segundo o professor, os primeiros momentos da sociedade grega remontam à relação entre os sexos de tal modo que ao olhar para relação homoafetivas os gregos antigos não a viam como algo moralmente degenerativo, pois fazia parte da cultura. O curioso é que os

arquétipos que alimentam essa cultura são religiosos. Ele cita o livro de Emile Durkheim - Formas Elementares da Vida Religiosa, e os textos de Campbell que trata da mitologia e seus arquétipos. O professor comenta sobre os mitos gregos, descreve que, tanto o arquétipo do homem andrógeno que é o homem bipartido, como o da mulher no mito de Pandora - todos eles trazem valores que vão permear os séculos futuros, moldado o inconsciente coletivo das pessoas que serve de base para os valores que permeiam as relações sociais vivenciadas hoje. O psicólogo e médico suíço Carl Gustav Jung virá a discutir o papel desses arquétipos na construção das relações interpessoais, dessa forma, uma das origens do relacionamento homoafetivo enquanto forma de viver a sexualidade viria da cultura grega, mais especificamente das mitologias primevas do ser bipartido. Hoje, segundo professor, a sociedade dentro do senso comum, impõe um modo de sexualidade segundo suas crenças, mas não observam que a adoção do relacionamento homoafetivo é também de origem religiosa, pelo menos do ponto de vista filosófico, visto que há uma imposição de certo modelo de comportamento sexual com base neste ou naquele modelo arquetípico, seja o do cristianismo (Adão e Eva) ou o mito de Andrógino. A religião e a homossexualidade Sobre a condição natural da homossexualidade como tendência física e orgânica do individuo que não pede para nascer dessa forma, o professor explica que na Grécia antiga uma pessoa quando ia morrer ele mandava chamar a pessoa com ele mantinha um relacionamento e não a mulher, a esposa, que era apenas um objeto destinada a procriação. Então o relacionamento era voltado mais para a homossexualidade na cultura grega porque a religião enfatizava isso. Hoje o que se observa nos movimentos como a parada gay, é que a religião vai contra eles, só que próprio movimento homossexual tem um pré-suposto religioso, ele é religioso no sentido de que Deus criou o homem para que o homem se relacione com outro homem. Só que segundo a mitologia religiosa, Zeus foi lá e separou, mas ele foi feito para

15 ser um só. Os dois se tornaram uma só carne, isso dentro do mito andrógeno relatado por Platão, assunto também discutido pela própria bíblia na cultura hebraica. Então esse discurso (a homossexualidade) tem um pré-suposto religioso na mitologia grega relatada na República de Platão, então a homossexualidade era uma religiosidade vivida pelo povo grego. A homoafeição é uma coisa natural para os primórdios da Grécia antiga. As pessoas de um modo geral, não buscam esse conhecimento apontado pelas mitologias religiosas, diz o professor. Homofobia religiosa A religião hoje vai contra porque nós temos um paradigma religioso a partir do século IV DC. Até aí o paradigma era o grego. Nesse século Constantino (imperador romano) se “converteu” ao cristianismo e adotou seus paradigmas – o paradigma hebreu. Esse paradigma dizia diferente do grego; Deus havia criado o homem e a mulher. Diferente no mito de Platão há um Deus que une os dois. “Lá (nos gregos) deus separou, mas aqui (no cristão) o que Deus faz é unir. ‘Deus une os dois e eles serão uma só carne’. Deste modo, há um segundo paradigma, o cristão”. Do ponto de vista sociológico temos duas religiões e nenhuma pode se dizer melhor que a outra. Para a sociologia o que importa é o fato social. O fato social é a religião em si e as relações sociais. Dentro do universo religioso e do ponto de vista do cristianismo, Deus criou o homem e a mulher e os abençoou, já na cultura grega, a relação homo é também resultado das crenças nas mitologias. Para o professor as religiões homofóbicas são um contrassenso, uma vez que os dois paradigmas ligados a sexualidade são em sua gênese religiosos. O “ismo” e o politicamente correto Para se definir a relação social entre o que pode ser chamado de homossexualismo – por se referir à doença ou o politicamente correto homossexualidade, o professor diz que do ponto de vista genealógico há pelo menos um contradição, pois ao analisar o termo “ismo”. “O temo definia tudo que se referia à religião ou ideologia. Por exemplo: xintoísmo, budismo, cristianismo, catolicismo ou laicismo – tudo


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Jornal Araguaia “ismo”. “A levar pelo lado pejorativo, estaríamos chamando os cristãos de doentes, os budistas de doentes e assim por diante”. Só quem não pode receber o “ismo” é o homossexual? Isto me parece uma jogada de Marketing, nos mesmos moldes de Constantino. Lembrando que o dois vem um paradigma igualmente religioso. O que se percebe hoje é que a religião que ganhou espaço foi o cristianismo, é lógica que ela vai reprimir aquilo que é contrário à ideologia dela, assim como os gregos reprimiam aquilo que era contrário à ideologia deles”. Quanto ao açodamento cultural na relação entre cristãos e não cristãos, o modo como acreditamos em nossos valores, afeta a forma como construímos a sociedade. De modo geral, posto que os paradigmas fossem mudados a partir do século IV, quando Constantino coligiu alguns livros da literatura hebraica para construir o que hoje é a bíblia, mesclando conceitos da cultura “pagã” criando uma religião para conter as grandes desavenças religiosas em seu império. Uma jogada de marketing político. Essa religião cresceu e essa cultura vem se repetindo por mais dois mil anos e hoje o homem vem se libertando desses valores arcaicos e se libertando dessa cultura opressora e homofóbica ao se identificar com sua natureza real, posto que seja resultado de uma cultura interposta a partir do século IV. Complexidade Sobre esse aspecto o professor afirma que falar da natureza humana é uma tarefa muito complexa. A fim

de exemplificar tamanha complexidade, o filósofo aponta três visões distintas empregadas por grandes pensadores da humanidade, são eles: Thomas Hobbes, John Locke e Rousseau, estes autores discutem a natureza humana e suas consequências quando o indivíduo decide estabelecer leis que possam guiar e orientar as relações sociais. Hobbes diz que a natureza humana é vil, é perversa, instintiva. Rousseau já pensava que a natureza humana era boa, ética que buscava a paz; a teoria do bom selvagem. Já Locke acreditava que o homem era uma tábua rasa, neutro, deste ponto de vista cabia à educação a formação do indivíduo social, como ser útil, ético, mais consciente de si. São posturas pré-sociológicas que vão discordar entre si sobre qual é a natureza humana, mas que ajudaram a compreender a multiplicidade das formas de perceber as relações entre os indivíduos dentro e fora da sociedade. O que se diz hoje na sociologia é que uma natureza positiva, termo usado por Auguste Comte, um dos pais da sociologia, é que a natureza do homem deve ser orientada não só pela razão, mas também pela ciência. Não basta ser apenas ser racional, tudo tem que ser verificável. Nesse sentido o professor concorda com a tese de John Locke, que diz que o homem é uma tábua rasa e que nela poderão ser escritos os valores de uma sociedade que propicie um ambiente natural onde às pessoas saibam conviver com seus valores. Segundo o pensador defendido pelo

professor Renato, as igrejas não podem ser obrigadas a casar homossexuais, mas também não se deve proibir o homossexual de ter sua união afetiva legalizada. Ele não pode entrar numa igreja e casar, mas pode casar num cartório, contudo a instituição religiosa não deve ser obrigada a fazer isto, posto que o Estado seja laico e deve garantir a liberdade institucional também da religião em negar ou realizar o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo. Do ponto de vista da sociologia, perguntado sobre as tendências de pessoas que já nascem homossexuais e sobre qual seu ponto de vista o professor indica que há duas visões e explica que a visão sociológica é a compreensão geral da sociedade e que o ponto de vista particular é filosófico. Nesse sentido o professor é categórico ao afirmar que sua opinião do ponto de vista filosófico é a de que o homem nasce como se fosse o lobo do próprio homem – teoricamente essa tese é a colocada por Thomas Hobbes, um ser instintivo que se constrói de acordo com seus próprios interesses. Ele diz que, segundo a sociologia, os fatores externos são aqueles gatilhos que disparam a relação homo ou hetero. Pois, não somos como os animais que têm apenas uma herança genética e, na medida em que essa carga genética incide sobre nós, temos uma carga muito maior de racionalidade e subjetividade; isso vai realmente produzir o que somos, ou seja, fazer com que o individuo se manifeste dessa ou daquela maneira, homo ou hetero.

EXPEDIENTE

Textos:

O Jornal Araguaia é o jornal laboratório do Curso de Jornalismo da Faculdade Araguaia. Participaram desta Edição os alunos da disciplina Produção de Jornal Impresso II, do segundo semestre de 2014, sob a orientação da professora Patrícia Drummond, e os alunos da disciplina de Diagramação, sob a orientação do professor Flávio Gomes. Eixo temático: Direitos humanos e Diversidade.

Karoline Souza, Laysla Danielle e Rackel Vieira, Danielle Luciano de Oliveira, Evandro Andrade Teixeira, Juliana Ferreira do Nascimento, Paulo Otávio Barbosa Silva, Ana Paula Vieira Cardoso, Waldemar Rego, Yago Sales e Renan Castro

Edição: Aline Ribeiro Cabral | Sérgio Areda

Diagramação:

Aline Ribeiro Cabral | Sérgio Areda


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