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A PROBLEMÁTICA HISTORIOGRÁFICA NO ROMANCE CONSPIRAÇÃO BARROCA, DE RUY REIS TAPIOCA

A Problemática Historiográfica no Romance Conspiração Barroca, de Ruy Reis Tapioca

OLIVEIRA, Cristiano Mello de1

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RESUMO

O presente artigo realiza uma leitura dos trechos que comportam características da história tida como problema no romance Conspiração Barroca, de Ruy Reis Tapioca. Ao longo das considerações, pretendemos averiguar como se instrumentaliza o escritor baiano para manejar alguns componentes históricos marcantes no enredo do romance em questão. A contribuição maior desta investigação é comprovar que o Novo Romance Histórico Brasileiro também se utiliza de estratégias da história-problema, objetivando interrogar os procedimentos da historiografia praticada pelos historiadores factuais. Ao longo das 332 páginas, é possível averiguarmos uma voz que resgata os episódios da Inconfidência Mineira de forma problemática, evidenciando as relações polêmicas travadas pela História oficial. Em linhas gerais, o enredo se ambienta geograficamente nas cidades mineiras e narra a vida das figuras históricas de Aleijadinho e Tiradentes, as ideias dos enciclopedistas iluministas, a questão do ciclo do ouro em Minas Gerais, a saga da Inconfidência Mineira (1785-1789), a vida dos mentores da Inconfidência. Como lastro teórico, cada qual ao seu modo, dialogaremos com os autores: Nietzsche (1874); Doblin (2006); Weinhardt (1994); Burke (1990), entre outros para a contemplação do tema. Palavras-chave: Novo Romance Histórico Brasileiro; Problemática historiográfica; Conspiração Barroca, Ruy Reis Tapioca.

ABSTRACT

This article intends to carry out a reading of the excerpts that contain characteristics of the story considered as a problem in the historical novel Conspiração Barroca, by Ruy Reis Tapioca. Throughout the considerations, we intend to investigate how the Bahian writer is used to handle some important historical components in the plot of the aforementioned novel. The greatest contribution of this investigation is to prove that the New Brazilian Historical Novel also uses problem-history strategies, aiming to interrogate the historiography procedures practiced by factual historians. Over the 332 pages, it is possible to discover a voice that rescues the episodes of the Inconfidência Mineira in a problematic way, highlighting the controversial relations held by official History. In general terms, the plot is geographically set in the cities of Minas Gerais and narrates the life of historical figures of Aleijadinho and Tiradentes, the ideas of encyclopedists, the issue of the gold cycle in Minas Gerais, the saga of the Inconfidência Mineira (1785-1789), the life of the Inconfidência mentors. As a theoretical basis, each in its own way, we will dialogue with the authors: Nietzsche (1874); Doblin (2006); Weinhardt (1994); Burke (1990), among others for the contemplation of the theme. Keywords: New Brazilian Historical Romance; Historiographical problems; Baroque Conspiracy, Ruy Reis Tapioca.

1 Professor da área de Humanas da Faculdade Educacional da Lapa. Sob supervisão do Prof. Dr. Godofredo de Oliveira Neto, é pós-doutorando em Letras Vernáculas pela

UFRJ. Doutor em Literaturas pela Universidade Federal de Santa Catarina. Sob orientação da Profa. Dra. Zulmira Santos, realizou estágio PDSE-Capes na Faculdade de

Letras da Universidade do Porto, Portugal. E-mail do autor: crisliteratura@yahoo.com

INTRODUÇÃO

O presente artigo realiza uma análise acerca da identificação dos trechos que comportam algumas características da história tida como problema2 no romance Conspiração Barroca, de Ruy Reis Tapioca. Ao longo das considerações, pretendemos averiguar como se instrumentaliza o escritor baiano para manejar alguns componentes históricos marcantes no enredo do romance em questão. A contribuição maior desta investigação é comprovar que o Novo Romance Histórico Brasileiro também se utiliza de estratégias estilísticas para compor uma história questionadora (ligada ao fazer histórico), objetivando interrogar os procedimentos da historiografia praticada pelos historiadores factuais. Começamos este texto observando algumas partes estruturantes do romance histórico analisado para buscar compreender como são organizadas as diferentes versões problematizadas da história da Inconfidência Mineira. Antes de iniciarmos a nossa abordagem, algumas questões orquestram a nossa problemática, apontando em que medida este estudo desdobra outras possíveis indagações para os futuros pesquisadores interessados. São elas: será que Ruy Tapioca tinha conhecimento das ideias dos historiadores que propagavam o conceito de história-problema e agiu de forma deliberada? Como o professor de História pode trabalhar o romance Conspiração Barroca levando os alunos a pensarem nas diversas formas de produção do discurso historiográfico? Quais são os elementos linguísticos e estilísticos utilizados por Tapioca para forjar uma história-problema? Como as versões da Inconfidência Mineira foram estilizadas literariamente e poeticamente na prosa do autor baiano? Enfim, é através dessas questões mobilizadoras que movimentaremos a evolução do artigo, respondendo-as, na medida do possível, e deixando algumas contribuições acadêmicas.

É importante ressaltarmos que, neste estudo, acrescentaremos alguns desdobramentos acerca da História Crítica e Problemática, observando em que medida o ensaio de Friedrich Nietzsche (um dos principais precursores)3, publicado no início do século XX, entre outros, pode funcionar de forma alusiva na decodificação da leitura de alguns outros romances históricos publicados no Brasil nas duas últimas décadas. Basicamente, os termos definidores da História, formulada como problemática, são estabelecidos pela Escola de Anais, fundada pelos teóricos franceses Lucien Febvre e Marc Bloch.4 A partir desse movimento, criado em 1929, o rigor historiográfico foi rompido por novas mudanças de paradigmas, tais como: a representação pelo olhar dos marginalizados, a problematização dos fatos e dos acontecimentos, o abandono da linearidade cronológica dos episódios históricos, o aprofundamento da história privada das autoridades, a ampliação dos métodos pluridisciplinares, o uso de outras formas de narrativa factual, o questionamento dos valores universais, entre outros. Por conseguinte, adentrando no primeiro quartel do século XX, temos a publicação oficial da revista Annales d’Historie Économique et Sociale (1929-1989)5 e, consequentemente, a História passa a ser contaminada por questões interdisciplinares6. Em outros termos, o discurso da História Tradicional, linear e pragmática (carregada pelos efeitos filosóficos do positivismo), repleto de floreios e ornamentos retóricos, passa a ser visto como característica ultrapassada, exigindo, imediatamente, um rompimento que visasse revolucionar os seus meios teóricos.

Ao voltar no espaço e no tempo, temos o famoso texto “Considerações Extemporâneas”, de Friedrich Nietzsche, que tece, entusiasticamente, formulações pertinentes acerca da escrita da História no fim do século XIX. O ano de formulação do ensaio, 1873-1874, aponta para repensarmos, de forma profética, novos paradigmas historiográficos já saturados ou não devidamente superados naquele período. Em especial, a alínea “Da Utilidade da História para a Vida”, na qual o autor examina, por meio de frases imperativas, eximindo-se do pensamento positivista, sobre o conteúdo prático da História para o pensamento da atualidade e, sobretudo, às práticas do

2 A respeito do conceito de história-problema e suas repercussões no ambiente acadêmico da História, ver: BARROS, J. de A. Os Annales e a história-problema – considerações sobre a importância da noção de “história-problema” para a identidade da Escola dos Annales. História: Debates e Tendências, v. 12, n. 2, jul./dez. 2012, p. 305-325. 3 Citando os autores François Dosse e Johann Benjamin Erhard para comprovar suas hipóteses, o autor José de Assunção Barros (2012, p. 307) defende a ideia de que outros filósofos defenderam precocemente o advento da história-problema, a saber: Voltaire, Guizzot e Thierry. Os dois últimos foram historiadores franceses que se manifestaram interesse pelo advento após o período da Restauração. 4 A esse respeito, ver: BURKE, P. A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. 5 A esse respeito, ver: BURKE, P. A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. 6 A respeito dessa questão das Ciências Sociais contaminando o objeto histórico, temos as reflexões do crítico Hayden White. Nas palavras do autor: “En Francia, la crítica de ‘la historia narrativa’ lanzada por el grupo Annales fue llevada adelante por Braudel em los ’50 en gran medida en el interés de unificar los estúdios históricos con las ciências sociales, especialmente la etnografia y la demografia, pero también la geografia y lo que podria ser llamado la historia de los ‘entornos’, más que aquella sobre los agentes humanos y las instituiciones políticas.” (WHITE, 2010, p. 53).

conteúdo historiográfico nos países europeus. Embora o estudo de Nietzsche tenha sido escrito há mais de um século, essas reflexões conservam muitas contribuições proféticas importantes para compreendermos o efeito operatório da história-problema nos romancistas históricos da contemporaneidade. De acordo com nossa leitura, o filósofo alemão advoga que o excesso de informações históricas prejudica a prática histórica mais libertária e imaginária. Para o autor, o historiador, ao acompanhar detalhadamente o ano de nascimento e morte de muitos acontecimentos do passado, acaba permanecendo num posicionamento cético em relação à problematização da História. Citando frases do filósofo escocês David Hume, Nietzsche tenta provar que, ao se prender aos episódios do passado, ou seja, àqueles engavetados e empoeirados, o “pensador supra-histórico” acaba acumulando informações desfavoráveis ao crescimento intelectual histórico ligado ao lastro temporal contemporâneo. Dentre várias passagens, uma das partes do ensaio que faz sentido à discussão aqui empreendida (mesmo sendo condenada pelo autor) é o repensar da escrita da História Crítica – a qual investiga, interroga, julga e condena o passado. Em alusão ao texto de Nietzsche, ao servir como a nossa premissa, assimilando essa exposição com alguns dos fragmentos selecionados (principal proposta de leitura) do romance histórico brasileiro Conspiração Barroca (2008), apontaremos os trechos que iluminam a história-problema formulada aos moldes do pensador alemão.

DESENVOLVIMENTO

O romance Conspiração Barroca foi publicado em território português por Ruy Tapioca no ano de 2008 pela editora portuguesa Saída de Emergência.7 O hiato de apenas nove anos entre ambos os romances não desfavorece o estilo de Ruy Tapioca, mas o engrandece para efeitos comparativos. Pouco explorado no meio acadêmico, o romance histórico publicado no ultramar possui um forte conteúdo investigativo para o angariamento de teses, dissertações, monografias e artigos, perfazendo interesses diversos na área das Ciências Humanas e Sociais. O livro, ainda inédito no Brasil, fora escrito entre os meses de março de 2004 a outubro de 2005, conforme anuncia o autor na página 326. A diagramação é simples em papel reciclado e a encadernação da capa é mole, aumentando as chances de o leitor adquirir o romance, tendo em vista o aproveitamento desse material. Cabe lembrarmos que o volume não possui orelha crítica de apresentação, porém possui um longo depoimento na última capa, contendo algumas informações, que, provavelmente, foram acrescentadas pelo júri do Concurso Nacional de Literatura de Belo Horizonte. Abaixo do código de barras da edição, aparece o gênero: romance histórico, possivelmente atribuído pela editora.8 Uma curiosa epígrafe entre as relações temporais do passado com o futuro do historiador Lúcio José dos Santos subscreve o romance em forma de mote inspirador para o desenvolvimento do enredo. Referimo-nos, destarte, à frase: “Os acontecimentos que vão surgir no futuro são a consequência lógica dos que já se vão perdendo na caligem do passado” (TAPIOCA, 2008, p. 15). Tal frase condiciona o leitor a raciocinar sobre os acontecimentos e fatos da Inconfidência Mineira com o desenvolvimento atual da nossa forma de governo político. Portanto, acreditamos que o desfraldar das características tecidas a respeito da materialidade interna e externa desse romance histórico implica num posicionamento mais interessado acerca da sua escritura.

Figura 1 – Capa da edição portuguesa do romance Conspiração Barroca (2008).9

Fonte: Editora Saída de Emergência (2008).

7 A Editora Saída de Emergência também possui filial no Brasil. Juntando-se ao grupo da editora brasileira Sextante, em outubro de 2013, é presidida pelos autores e irmãos portugueses António Vilaça Pacheco e Luís Corte Real. Em uma breve consulta no dia 2 de janeiro de 2014 no site da Editora Saída de Emergência, verificamos que a quantidade de romances históricos publicados nos últimos anos chegou a 154 livros. 8 Em linhas anteriores, já tivemos a oportunidade de discutirmos a problemática de gênero e subgênero atribuída aos romances de natureza histórica. 9 Disponível em: http://www.saidadeemergencia.com/produto/conspiracao-barroca Acesso em: 20 dez. 2020.

Em linhas gerais, o enredo do romance Conspiração Barroca gira em torno da temática histórica ocorrida entre os anos de 1785 e 1789, “[...] no tentame de sublevação contra a Coroa Portuguesa que ficou conhecido como Inconfidência Mineira” (TAPIOCA, 2008, p. 327). Numa visão de conjunto, esse período histórico é o mais significativo, enquanto os demais se colocam num plano subalterno naturalmente ofuscado pela naturalidade dos eventos ocorridos. Basicamente, o lastro temporal é narrado durante quatro anos de acontecimentos históricos, permeados geograficamente por Brasil e Portugal, sendo esses espaços distintos devidamente reconfigurados diante de um painel que obedece a paisagem de época.

É importante salientar que o signo do Brasil em construção é uma grande metáfora da criação literária de Ruy Reis Tapioca. Historicamente falando, devemos lembrar que foi durante esse paradigmático século XVIII, das descobertas auríferas narradas pela pena de Tapioca, que muitos acontecimentos ficaram perenes no seu tempo, assim como na penumbra das estantes dos centros de pesquisa. Em formato de denúncia, o narrador provoca: “É a sina dos nacionais desta terra: covardia e cobiça por ouro e pedrinha branca: aqui só se pensa nisso.” (TAPIOCA, 2008, p. 159). Em suma, no romance em questão, a história é narrada em terceira pessoa diante de várias perspectivas de visão histórica dos fatos, ou seja, existe um narrador ideológico que compactua com os eventos e fatos.

Sem embargo, desde essa posição privilegiada do narrador, o discurso do romance acaba coadunando com as diferentes versões historiográficas sobre a Inconfidência Mineira. Não por acaso, a busca pelo factual se oferta de forma problemática e questionadora, rompendo a linearidade das cenas figuradas no enredo. Com efeito, há variados acontecimentos e episódios – a Corrida do Ouro nas Minas Gerais, as obras em pedra sabão esculpidas pelo artesão Aleijadinho, os pormenores dos logradouros de época, os mentores da Inconfidência Mineira, o enfoque na vida privada dessas autoridades, o crime de lesa majestade cometido por Tiradentes, entre muitos outros. Salienta o narrador: “A corrupção e o ouro sempre mandarão nesta terra infeliz, arrematava, vociferando uma imprecação”. (TAPIOCA, 2008, p. 14). Novamente, sublinha: “À distância, a dupla era observada por um grupo de negros quilombolas, escondidos num beco escuro, ali chegados, furtivamente, para cumprir arriscada missão”. (TAPIOCA, 2008, p. 14). Assim, o enredo de Conspiração nos força a pensarmos a respeito de como alguns aspectos de época foram reconstituídos à maneira documental, atingindo patamares de uma pintura histórica e retratista, formulando possibilidades de leitura, tampouco exploradas por outros romancistas. Conforme nossa leitura, é importante mencionarmos que, em muitas partes do romance, o autor Tapioca sacrifica o estilo poético em detrimento da fidelidade histórica (gozando privilégio de credibilidade perante a obra A República dos Bugres, de sua autoria), ou seja, a carga de historicidade é mais densa do que poética. Em síntese, um olhar que sondasse as características poéticas e históricas (por efeito comparativo) que preenchem ambos os romances, certamente, renderia bons frutos no meio acadêmico.

Não obstante, a frase “malograda tentativa de organização de um levante insurrecional” (TAPIOCA, 2008, p. 327), tecida no posfácio pelo autor, também marca o efeito empreendedor e, ao mesmo tempo, frustrante dos inconfidentes que não lograram êxito, mas deixaram muitas sementes para outros líderes. Nessas notas elaboradas pelo escritor baiano, no fim do romance, percebemos sua preocupação em apontar as fontes utilizadas, assim como o caráter sério, profissional e amistoso diante do público leitor. Assim, essas observações apontam também o caráter documental e realista que Tapioca desejou promover neste romance, sem deixar de perder a áurea literária e estética. Em cores históricas, é sabido que o malogro da conspiração foi causado pela denúncia de um dos integrantes da Coroa Portuguesa, a figura de Joaquim Silvestre dos Reis.

Devemos salientar que a personagem histórica tinha o conhecimento do levante organizado pelo inconfidente Visconde de Barbacena (Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça).10 Isso explica as considerações tecidas pelo crítico Flávio Kothe: “A literatura foi tornada história para que a história fosse transformada em literatura e se pudessem inventar alguns heróis.” (KOTHE, 2005, p. 41). Não apenas personagens históricas permeiam a narrativa, há ainda as que são consideradas coadjuvantes da história, sendo boa parte delas de origem fictícia. De igual modo, o estilo narrativo composto de elaborações eruditas é caracterizado pela inserção das referências filosóficas e históricas contidas nas variadas páginas do romance. Além de tudo, o romance mescla três gêneros literários diversos – romance, ensaio e História, conforme salienta o narrador no início do segundo capítulo – que se combinam de forma equilibrada durante o desenrolar do enredo. Portanto, não é fácil enqua-

drar as principais características que definem o estilo de subgênero histórico trabalhado nesta obra, tendo em vista que esse estilo não é sumariamente histórico, ou seja, é permeado por inúmeros apetrechos híbridos, tornando as duas narrativas demasiadamente complexas.

Não devemos esquecer, em particular, que outro assunto pertinente a respeito do romance Conspiração Barroca merece atenção. Trata-se da questão da origem inspiradora do título escolhido por Ruy Tapioca. Sob este aspecto, tal acepção facilita a compreensão do romance, assim como o direcionamento de leitura que o leitor mais preocupado executará nas múltiplas páginas do livro. Ademais, a carga linguística que esse romance absorve é significativa, pois, de fato, o autor fez diversas pesquisas para recorrer aos dizeres de época, conforme assinala a pesquisadora Marilene Weinhardt. Caberia um estudo mais aprofundado acerca de tal tarefa empreendida pelo autor, o que fugiria da pretensão deste breve artigo.

Desse modo, o vocábulo “conspiração” também mantém uma postura plurissignificativa. Segundo o dicionário Aurélio (1986, p. 459), o vocábulo possui acepção voltada ao “latim [Do lat. Conspiratione] 1. Ato ou efeito de conspirar; maquinação, trama. 2. Conluio secreto.” Em outras palavras, o movimento da própria Inconfidência Mineira, partindo do vocábulo de não confidenciar, foi regido historicamente por autoridades que não aprovavam a questão da exploração do ouro pelos portugueses da maneira que estava ocorrendo.11 Por outro lado, o adjetivo “barroco”, que caracteriza a palavra “conspiração”, provém, como é sabido, do estilo artístico de época. Por meio de efeito operatório comparativo, é curioso notarmos que o pesquisador brasilianista Kenneth Maxwell também utiliza o mesmo vocábulo para intitular o quinto capítulo do ensaio A devassa da devassa (1985). Em suma, a exploração desses termos, assim como a comunicação deles com o nosso presente, faz desses significados valores interpretativos ao longo da leitura.

A HISTÓRIA COMO UM PROBLEMA NO ROMANCE HISTÓRICO CONSPIRAÇÃO BARROCA

Ao representar algumas articulações entre “passado” e “presente”, o romance histórico Conspiração Barroca faz com que o leitor mergulhe no tempo pretérito sem esquecer o presente. No primeiro romance de Ruy Tapioca, intitulado A República dos Bugres (1999), o leitor poderá averiguar uma crise nas instituições públicas, a começar pelo Exército Brasileiro. Em Conspiração, verá uma crise na instituição católica romana. Por esse e alguns outros motivos, o leitor é quase sempre convidado a uma tomada de consciência crítica em relação a esses fatos e eventos históricos. Nessa manobra, várias estratégias estilísticas são utilizadas com a finalidade de interrogar os fatos históricos, funcionando como uma história-problema, tais como: a reescrita do discurso historiográfico, a inversão frasal da lógica dos fatos, a releitura e a interpretação dos acontecimentos factuais, a constante troca de vocábulos e expressões por meio das figuras de linguagem, do tom discursivo denunciante, do discurso humorístico e sarcástico, etc.

No decorrer do enredo, as palavras, em tom de desabafo, do ministro Martinho de Mello e Castro são: “Considero o Brasil, senhor visconde, um caso peculiar de vocação das gentes que lá nascem e vivem, e também dos que lá chegam, de rara afeição à corrupção e às práticas ilícitas, adoptadas como meio natural de vida.” (TAPIOCA, 2008, p. 72). Tal constatação parte de reflexos da falta de organicidade administrativa postulada pelo atraso do jogo do “empurra para frente”, sem, ao menos, refletir se essa caoticidade pode ser reformada para melhor. A rigor, conforme delineamos na chave de leitura estabelecida na tese “O Novo Romance Histórico Brasileiro em Travessias: A República dos Bugres e Conspiração Barroca, de Ruy Reis Tapioca” (OLIVEIRA, 2016), são passagens que dialogam com amplas questões: a corrupção exagerada, o jeitinho brasileiro, as enchentes na cidade do Rio de Janeiro, a falta de pagamento dos militares portugueses e brasileiros, o atraso sociológico e econômico, o conluio entre o público e o privado, o abandono da memória institucional museológica, o descrédito de algumas instituições, a falta de consciência política do brasileiro, o jogo do empurra, a exagerada burocracia na administração pública, entre outros assuntos correlatos.

11 Em entrevista, Ruy Tapioca sugere uma possível acepção ao termo. Nas suas palavras: “Deu no que deu: o único supliciado foi o mais ignorante, falastrão e

‘desapadrinhado’ dos ‘inconfidentes’(assim eles passaram para a História: ‘inconfidentes’, isto é, fofoqueiros, desleais, e não ‘conjurados’). Portugal quis humilhar o Brasil com essa pecha de ‘inconfidência’, e o ‘povo’, acarneirado aceitou” (TAPIOCA, 2005, p. 263).

Sem mencionar outras referências da sua biblioteca particular, podemos conjecturar que o escritor Ruy Tapioca, no romance Conspiração Barroca, alude a várias autoridades que ensaiaram episódios da história brasileira do século XIX. Em outras palavras, o escritor baiano ficcionaliza a história dos grandes intérpretes brasileiros (historiadores, cientistas sociais, antropólogos, filósofos, educadores, entre outros), aglutinando informações pesquisadas por aqueles que ajudaram a colocar o Brasil nos trilhos do progresso, seja pelo alicerce da memória, seja pela leitura dos principais problemas nacionais. Guardadas as seguintes proporções: o local do discurso do autor, a natureza da apropriação desses discursos, a temporalidade exercida sobre os mesmos, Tapioca examina esse fundo histórico de época e leva à tona os principais acontecimentos políticos da nação brasileira. Ao interpretar as diferentes versões da Inconfidência Mineira junto a seus protagonistas e coadjuvantes, a vida e a obra de Aleijadinho, a vida dos conspiradores, o cotidiano político da Corte Portuguesa e as circunstâncias históricas da Europa, Tapioca aguça a curiosidade do leitor pelo romance histórico e pelo imaginário de uma nação em seu desenvolvimento.

A bem da verdade, a biblioteca particular de Tapioca se torna algo bastante proveitoso quando utilizada comparativamente com outras obras e versões. Qualquer leitor desavisado pode verificar que alguns episódios e fatos da história da Inconfidência Mineira estão impressos na obra de outros intelectuais. Diante do exposto, isso se torna algo útil em relação ao nosso argumento principal que é a história-problema. Dentre eles, poderíamos brevemente citar: Kenneth Maxwell, no seu livro a Devassa da devassa (1977), José Murilo de Carvalho, nos seus livros Imaginário das Almas (1999) e Os Bestializados (1987), Lilia Moritz Schwarz, em As Barbas do Imperador (1998), entre muitos outros historiadores. Tais obras podem ter se tornado alusivas para consultas sobre alguns desses acontecimentos.12

Essas considerações se ancoram nas palavras da pesquisadora Marilene Weinhardt quando diz: “Apreender que tipos de textos históricos são chamados para o diálogo e como se dá o trânsito é papel da crítica.” (WEINHARDT, 2011, p. 31). Cada qual ao seu modo, esses autores citados propuseram vertentes diferenciadas no olhar da História oficial. De igual modo, a garimpagem arqueológica realizada por Tapioca fornece ao leitor mais curioso uma série de ensinamentos acerca de fatos históricos pouco aprofundados por pesquisadores da linhagem acadêmica. Examinando o contexto realista dos clássicos romances franceses, o crítico Amado Alonso reconhece esse aspecto: “Cuanto más arqueologista sea la actidud del autor, menos probabilidade tendrá de crear este modo de poesia de entre líneas.” (ALONSO, 1984, p. 19). Portanto, o alijamento dessas especulações arqueológicas ou o exame da biblioteca particular do escritor torna-se ainda mais concreto quando o leitor percebe o grau de intertextualidade que o romancista baiano incorpora ao seu romance, estimulando possíveis comparações alusivas.

A essa altura, se pudéssemos rotular uma única frase que atravessasse, do começo ao fim, a ficção histórica de Ruy Reis Tapioca estabelecida em Conspiração Barroca, poderíamos, sem receios, dizer que faz parte de uma: literatura que refaz uma leitura crítica da realidade política brasileira junto ao passado com fortes nuances comunicativas com o contemporâneo. Dessa maneira, ao lermos esse romance sob essa ótica, implicaria admitir que Tapioca se aproxima da atual realidade histórica, ensejada por diversos marcadores ideológicos.13 A esse respeito, os autores Enrique Cartelle e Maria Ingelmo (1994, p. 32) advogam que muitos romancistas históricos aproveitam o manancial narrativo de época para postularem posições subjetivas a respeito da história narrada, isto é, sua própria visão de mundo.

Por contraste, diferenciando História e romance histórico, o escritor Alfred Doblin, em seu artigo intitulado “O romance histórico e nós”, traduzido por Marion Brepohl de Magalhães, problematiza a seguinte questão por ele formulada: “O romance é acima de tudo um romance e não História. É um romance, por quê?”

12 É importante relatar que não se pode comparar livro de História com romances históricos. A esse respeito, a pesquisadora Maria Cristina Pons reflete que: “Es importante aclarar, sin embargo, que si bien la comparación del historiador con el escritor de novelas históricas no es pertinente para dar cuenta de las pecualiridades de la novela histórica, de ninguna manera significa que la novela histórica no haya evolucionado a la par de la historiografia (o que la historiografia evoluciona influída por la literatura), ni mucho menos significa que ciertas novelas específicas puedan requerir dicha comparación” (PONS, 1996, p. 54). 13 A respeito da atualização da leitura feita pelo leitor, é importante assinalar que: “O leitor de um romance ocupa uma posição extensa no tempo, e dentro desta coloca-se a data da sua leitura do romance. Essa data pode não corresponder de perto à data dos eventos a respeito dos quais está lendo. Onde a diferença é considerável, como ao ler um romance histórico, talvez seja exigido dele um forte esforço de imaginação se ele mesmo deve projetar-se dentro do período tratado e penetrar intimamente no espírito daqueles tempos distantes” (MENDILOW, 1977, p. 96).

E, para responder essa indagação que não retoricamente, o autor não mede esforços para dizer: “Porque ele narra do começo ao fim das coisas, que certamente não podem ser reprovadas, porquanto o autor não possui provas documentais.” (DOBLIN, 2006, p. 22). Dessa maneira, a resposta em si é questionável e fonte de polêmica perante muitos romancistas históricos, especificamente os tradicionais, que tiveram forte embasamento documental na criação e na formulação dos seus romances.

Em certa medida, Doblin atende a uma determinada demanda de escritores que distorciam a realidade ou, simplesmente, inventavam esse fundo de verdade atribuído artisticamente ao escopo do romance histórico. No entanto, a atitude de “reprovação” de algum leitor é passível de ser marcante caso ele não se convença da qualidade documental realizada por qualquer romancista. Para tentar convencê-lo, o romancista histórico Doblin argumenta persuasivamente: “Ele empresta dos fatos a semblância de uma realidade. E finalmente, ele trabalha com tensão, procura atrair nosso interesse, satisfazer-nos, abalar-nos, prender nossa atenção, desafiar-nos.” (DOBLIN, 2006, p. 22). Em outras palavras, é condizente refletirmos acerca de que todo romancista histórico busca elementos de tensão para prender aquele leitor menos paciente a ler romances históricos nem sempre atraentes.

Formuladas essas premissas, resta ainda defendermos que a literatura do baiano Tapioca mantém-se engajada num movimento articulador de enxergar o passado como algo vivo no contemporâneo. Esse realismo engajado, ou melhor dizendo, essa reflexão referencial da realidade de época não fica isolada no tempo e no espaço, mas cria especulações e considerações ligadas ao tempo de escritura do romance. Portanto, 2008 (ano de publicação oficial da obra) foi um período fértil para a inserção de alguns acontecimentos de época, assim como a ênfase na lógica estética realista já esboçada e revitalizada. Conforme assevera o autor Peter Gay: “Há um tipo de ficção realista que faz exigências particularmente rigorosas tanto a seu autor como a seus leitores: o romance histórico, em especial o tipo que inclui atores históricos em seu elenco de personagens. ” (GAY, 2010, p. 20). Com base nessa reflexão, podemos depreender que Tapioca não pretende apenas enaltecer a ficção histórica realista mantida no escopo do romance publicado, mas fazer dele uma releitura da nação brasileira acerca do tempo e do espaço de época. É necessário, contudo, insistir que se ambos os romances são obras representativas do passado sem esquecer o presente, são eles também responsáveis por reerguer a característica realística do romance histórico no Brasil da atualidade.

“Conspiração Barroca é uma obra de ficção, não obstante retrata episódios históricos realmente ocorridos, no Brasil colônia de Portugal, entre os anos de 1785 e 1789, no tentame de sublevação contra a Coroa Portuguesa que ficou conhecido como Inconfidência Mineira.” (TAPIOCA, 2008, p. 327). Com essa assertiva de caráter informativo, o autor Ruy Tapioca descortina o posfácio, que serve como bastidores da criação do próprio romance, ensejando uma espécie de demarcação cronológica acerca dos episódios e fatos históricos que foram desenvolvidos durante a formulação do livro. É interessante notarmos que, nessa passagem, Tapioca discorre reflexivamente, estimulando o leitor a respeito da importância desse acontecimento para as letras e a cultura brasileira. A preocupação que referencia esse trecho anuncia também a postura do autor em relação ao grau de intromissões fictícias dentro da trama histórica, conforme alguns pesquisadores alertaram.14 Ao que tudo indica, pelo estilo textual aplicado por Tapioca, o tom histórico narrativo contamina as próximas páginas do mesmo posfácio.

Desse modo, a linguagem perde o efeito dramático e literário, ao ensejar olhares ensaísticos acerca desses episódios tão importantes. Assim, visando estimular o raciocínio do leitor acerca da formulação do romance, Tapioca não mede esforços para ensejar alguns dizeres, conjecturando possíveis desdobramentos para aqueles romancistas que desejam navegar em outras empreitadas criativas. Além disso, é curioso o fato de que o posfácio formulado funciona como uma espécie de autorreflexão da própria linguagem historiográfica. Nas palavras do autor baiano: “A sentença – inclusa ispis litteris no final do romance – foi lida na madrugada do dia 19 de abril de 1792, no Rio de Janeiro, e dela constam vinte e quatro condenados [...]” (TAPIOCA, 2008, p. 329). Em síntese, essas informações condensadas deixam algumas contribuições afugentadas da leitura dramática que a narrativa histórica se propõe, revelando um forte desfecho documental acerca dos eventos históricos inseridos no fundo de época.

A bem da verdade, o tom didático aplicado por Ruy Tapioca no romance Conspiração Barroca transcreve à semelhança de um documento que fora observado em detalhes e minúcias realísticas. Guiando o leitor pelo viés também pedagógico, cujo conhecimento histórico é ensinado gradativamente, Tapioca transforma acontecimentos estáticos e monótonos em dramatizações lúdicas. Assim, o esforço tautológico evocado por Tapioca nesta obra chega a cansar o leitor menos preparado a não preencher as lacunas com a sua imaginação. Acreditamos na hipótese de que o docente de História da educação básica pode incrementar o trabalho de leitura do romance nas aulas, ampliando a margem didática do texto literário.

Em outras palavras, o leitor não fica preso somente ao enredo dos romances, que já são interessantes, mas atinge outros graus de leitura à medida que a contemplação desses episódios atinge algo civilizador. Por outro lado, no livro Conspiração, teremos: “A justiça em Portugal, e por cópia a do Brasil, cumpre prazos, tempo e modus operandi dos cágados, talvez do bicho-preguiça.” (TAPIOCA, 2008, p. 47). Em suma, o ponto fulcral dessas duas atitudes exemplificadas serve para reconhecermos o grau instrutivo do romance pela inserção de algumas questões políticas arraigadas ao excesso de problemas enfrentados por Brasil e Portugal.

A galeria de autoridades romanceadas no livro Conspiração Barroca é composta por: Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa, Silvério dos Reis, Padre Rolim, Padre Toledo, Freire de Andrade, Coronel Malheiro, Alvarenga Peixoto. Como sabemos, faz parte de uma imensidão histórica considerada ilustre por representar a alta casta social das Minas Gerais.15 Afronham-se alguns nomes consagrados nos livros de história compostos por: altos figurões militares, comerciantes locais, figuras do clero, que são encontradas nos compêndios literários, pinturas clássicas, velhas apostilas, documentos empoeirados, obras ficcionais, ou seja, tiveram trajetória emblemática enquanto pensadores das nações brasileira e portuguesa. Cabe ressaltar que essas personagens históricas permeiam o romance histórico unidas ao universo ficcional, sem apresentarem muitas rupturas que comprometam o jogo da verossimilhança.

A nosso ver, o único problema é que, relativamente, tais personagens mantêm um comportamento e uma psicologia satíricos e, logo, são apresentadas de forma anacrônicas, indicando um toque ideológico por parte de Tapioca. A questão surge naturalmente: como ficcionalizar a vida dessas autoridades de forma generalizada? Por alusão, o autor Peter Gay, examinando o contexto histórico biográfico dos autores europeus, responde: “Os autores dos romances históricos devem lutar entre a fidelidade a fatos biográficos indiscutíveis e os voos de sua imaginação literária.” (GAY, 2010, p. 21). São trajetórias políticas, percursos culturais e intelectuais, biografias, que já foram escritas por vários escritores e historiadores.

Assim, todas essas categorias agrupadas conjugam histórias já escritas nas páginas dos livros da história oficial. Trata-se de uma cadeia estilística da linguagem que visa realizar a leitura de seus diálogos e compararmos a veracidade dos seus discursos. O próprio narrador, logo no início do romance, desconcerta essa questão. Vejamos os detalhes: “Há de se perdoar o leitor essa confusão de personagens, introduzidas no texto sem dizer água vai, metidas a súbitas na narrativa [...]” (TAPIOCA, 2008, p. 12). Sabemos que, por trás de cada uma dessas personagens históricas emblemáticas citadas, existe um grau de hierarquia linguística ainda não solucionada. Ao embaralhar autoridades da Inconfidência Mineira com anônimos daquele período, Tapioca também promove uma verdadeira miscelânea de pessoas, assim como uma quebra na rigidez hierárquica.

Em Conspiração Barroca, é possível identificarmos esse nível de reflexão, servindo como algo profético aos dias atuais, na leitura do fragmento sobre a discussão entre o uso do patrimônio público e o privado. Ora, como sabemos, a discussão é pertinente ao discurso já aplicado por muitos historiadores, como é o caso de Sergio Buarque de Holanda, no quinto capítulo “O homem cordial”, estabelecido no livro Raízes do Brasil. A discussão ocorre entre o coronel Alvarenga Peixoto e o cônego Luís Vieira, na cidade de Vila Rica, na residência do advogado Cláudio Manuel da Costa, no mês de julho de 1788. Nas palavras do Cónego: “Deixai os santos fora dessa lista, coronel: o problema maior da capitania, quiça da colônia, cada vez mais me convenço

15 A esse respeito, conforme palavras do pesquisador brasilianista Kenneth Maxwell, esse grupo fazia parte de uma elite ilustrada. “Os membros do círculo de Vila Rica, pela qualidade de sua poesia e por sua posição, influência e riqueza situavam-se na cúpula da sociedade de Minas, tendo laços familiares, de amizade ou de interesses econômicos a vinculá-los com uma rede de homens do mesmo nível, embora menos organizados em toda a capitania. Em sua qualidade de advogados, juízes, fazendeiros, comerciantes, emprestadores de dinheiro e membros de poderosas irmandades leigas eles tipificavam os interesses diversificados, mas intensamente americanos da plutocracia mineira.” (MAXWELL, 1985, p. 119)

disso, está no promíscuo concubinato existente entre a coisa pública e a coisa privada” (TAPIOCA, 2008, p. 91). Notamos que, por meio desse excerto, ligado à história-problema, o lado “dúbio” e “promíscuo” entre o público e o privado sempre foram alvos de análises por parte de muitos sociólogos e historiadores, sendo ininterruptamente praticado, em termos estratosféricos, pela política nacional, desde os primórdios do Brasil Colônia, Império e República.

O que se confirma nesse desenvolvimento didático e problemático, em particular, no percurso do romance Conspiração Barroca, é a especificação cada vez mais objetiva de que o desencadear pedagógico não serve apenas para entreter o leitor. Isto é, a História praticada por historiadores acaba se tornando uma via de problematizar o passado. Em várias passagens, o texto narrativo histórico de Tapioca ensina saberes, por meio de muitos circunlóquios historicistas, interdisciplinares ao leitor, tais como: História, Literatura, Sociologia, Antropologia, Linguística, Filosofia, entre outros. Nesse sentido, o resultado dessa cadeia humanística é que o leitor possa adentrar naquilo em que o professor de ensino fundamental, médio e superior tenha deixado lacunas. Ou mesmo naquilo que os livros didáticos de História e Literatura não tenham conseguido cumprir o seu devido papel na instituição escolar. Como resolver esse problema ou lacuna? A esse respeito, a pesquisadora Maria Teresa de Freitas assevera: “Essas lacunas podem ser preenchidas de forma relativamente adequada pelo romancista – sem esquecer jamais o caráter subjetivo da forma narrativa – sobretudo se sua imaginação está submetida a um conhecimento direto do objeto histórico [...]” (FREITAS, 1985, p. 189). É curioso notarmos que o narrador do romance Conspiração também frisa a importância desse preenchimento quase obrigatório por parte do romancista ou mesmo pelo historiador.16 Nas suas palavras: “[...] sem que nos furtemos a acrescentar-lhe, sempre que as lacunas da História permitam, e não se arranhe a verdade dos factos históricos [..]” (TAPIOCA, 2008, p. 18).

Em uma conferência intitulada A história como ficção. A ficção como história (2000), proferida no ano de 2000, na Universidade Federal de Santa Catarina, o escritor lusitano José Saramago versa sobre as principais características que deveriam possuir os historiadores no trato com os documentos históricos. Dessa maneira, a inversão gramatical das sentenças propostas pelo título da conferência insinua novas provocações acerca do que será trabalhado pelo escritor português. Nessa intervenção, Saramago, de forma humilde e prosaica, conduz o leitor a uma profunda reflexão sobre os possíveis vasos comunicantes entre a história e a ficção. A nosso ver, os vocábulos “história, historiador, imaginação” marcam diversas frases do seu discurso, evidenciando o desejo do escritor lusitano na busca de uma possível articulação entre a disciplina, o ofício e a fuga da verdade ligada ou não aos documentos.

Em outras palavras, Saramago exerce o fazer filosófico historiográfico, regendo técnicas que já foram exploradas por outros especialistas no assunto. Segundo o autor de Memorial do Convento, “[...] a primeira tarefa do historiador seria selecionar fatos, trabalhando sobre aquilo que denominarei o tempo informe, o que quer dizer, esse imenso passado que apetecia chamar puro e simples, se isso não fosse uma outra contradição de termos.” (SARAMAGO, 2000, p. 12). Nesse fragmento, Saramago expõe uma reflexão a respeito de que outros pesquisadores já haviam delineado com a devida motivação e causa, embora nem sempre tenham conseguido aplicá-la da melhor forma. Por conseguinte, o autor lusitano salienta que a segunda tarefa do historiador seria juntar todas essas informações históricas de forma plausível, concatenada e coerente, tendo a vontade de sustentá-las e problematizá-las de forma relutante, sem interesses pessoais ou ideológicos, embora o escritor concorde que sempre haja tais peculiaridades.

História e ficção, realidade e imaginação, verdade e mentira, documento e invenção, referência e especulação se confundem na escrita de Conspiração Barroca, tornando bastante claro o que Tapioca deixou subentendido: trata-se de um romance que, mesmo mesclando arte e documento, não esquece o presente no enredo. Em outros termos, a articulação por meio dessas várias dualidades citadas serve para demonstrar que o texto do romancista histórico estará quase sempre oscilando entre a referência e a fantasia. Logicamente, essas modalidades apontadas fogem de uma audiência absoluta na qual os séculos XVIII e XIX sejam representados. Desse

16 De acordo com a pesquisadora Elisabeth Wesseling, os romancistas históricos necessitam preencher as lacunas do passado via ficção. Isso seria ponto cabal durante o desenvolvimento do enredo. De acordo com suas palavras: “As writes of historical novels, postmodernists novelists are certainly not the firts large to do largely without documents in their recreations of the past. Traditionally, it has been the prerrogative of the novelista to fill in the gaps in documentar history by relying solely on imagination” (WESSELING, 1991, p. 169).

modo, ao incidir sobre tempos históricos como o passado e o presente – por meio de instâncias narrativas distintas –, que soam estrategicamente articulados, superpostos entre si, exigindo um leitor mais atento para decodificar, Tapioca envereda nos problemas cancerígenos da realidade popular brasileira de época, outorgando uma nova fórmula capaz de levar o leitor a outros questionamentos. Desse modo, um exemplo contundente disso está nas variadas críticas em relação a instituições nacionais, assim como a falta de uma urdidura organizativa da classe popular brasileira. “O Brasil, amigo Gonzaga, como uma lúcida cabeça já disse no passado, é purgatório dos brancos, inferno dos pretos e paraíso dos mulatos!” (TAPIOCA, 2008, p. 167), assevera, em tom polêmico, Cláudio Manuel da Costa em diálogo com Tomaz Antonio Gonzaga. Ademais, juntamente de suas economias de traços distintas, o romance pertence à discussão contemporânea dos problemas ligados à nação brasileira. Em outras palavras, são questões da miscigenação racial que assola os fatos corriqueiros do nosso ressurgimento político democrático da década de 1980. Em última análise, o movimento histórico proposto por Ruy Tapioca no seu romance, como vimos na leitura desses fragmentos selecionados, demonstra que a representação histórica não é algo objetivo ao que lhe é peculiar.

No artigo Literatura e História: Convergências Possíveis (1999) do pesquisador Luís Alberto Brandão Santos, é possível notarmos um forte resgate da polaridade entre o discurso histórico e literário. Navegando horizontes por meio de excertos do escritor argentino Ricardo Piglia e dos autores Hayden White, Jacques Le Goff, Michel Foucault, entre outros, Santos percorre seu ensaio problematizando tais leituras, esquematizando seu raciocínio. Ao refletir sobre um fragmento do livro Respiração Artificial, do escritor argentino Ricardo Piglia, Brandão discorre:

Ler documentos do passado com o intuito de escrever história, assim como constituir uma palavra a partir das letras, um discurso a partir de fragmentos da linguagem, pressupõe estabelecimento de elos, articulação entre elementos separados: atribuição de uma congruência. (SANTOS, 1999, p. 47)

Compartilhamos com o autor a ideia de que, tendo em vista que todo discurso, seja histórico, seja poético, busca compor uma narrativa daquilo que deseja representar e, para isso, deve encadear cronologicamente, como é o caso do historiador, uma representação verbal que, ao menos, faça constituir um discurso coerente. Por esse viés refletido, mesmo não tendo o compromisso de ligar acontecimentos de forma cronológica, podemos fazer uma leve alusão literária ao engenho criativo praticado por Tapioca no romance Conspiração Barroca. No capítulo XXXIV, localidade de Cachoeira do Campo, ano de 1788, uma passagem identifica os diferentes vieses que interferem na forma de recontar os episódios históricos. As palavras mantidas entre o diálogo do doutor Álvares Maciel e o padre José Eugênio reforça tal questão: “Ensina a História que, ordinariamente, são circunstâncias econômicas que provocam decisões políticas, raramente o inverso.” (TAPIOCA, 2008, p. 169).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao concluirmos o nosso estudo, é possível afirmar que o romance Conspiração Barroca ainda permanece longe de ser esgotado por inúmeras razões. Sua fortuna crítica, ainda escassa, faz com que muitos pesquisadores acabem desistindo de investigá-lo. No entanto, vários ângulos interdisciplinares podem alavancar outras análise e interpretações. Por fim, o objetivo deste artigo perpassou algumas discussões de que os episódios da Inconfidência Mineira e suas variadas circunstâncias não são cristalizados e petrificados, ou seja, são passíveis de serem questionados e recontados por uma nova perspectiva. Ao longo deste trabalho, comprovamos, por meio do recorte dos fragmentos, que a história-problema percorre boa parte dos acontecimentos sobre a Inconfidência Mineira. Convenhamos que, um tipo de análise realizada, com base nos teóricos da Crítica Literária e da Teoria Historiográfica, também pode servir de forma resultante a outros tipos de estratégias oferecidas pela leitura na pesquisa histórica e literária.

É curioso notarmos que essa constatação de encarar a História oficial como se fosse algo problemático e questionável, fugindo do tão desgastado teor factual, tema da nossa abordagem, contrasta com as técnicas de narratividade do escritor baiano, que, como vimos, abastece o romance com novos instrumentos da historiografia. Alguns deles poderiam ser enumerados: o autor dá voz aos sujeitos esquecidos, utiliza a multiplicidade de

narradores, formula o entrecruzamento de personagens reais e fictícias, amplia as histórias privadas de algumas autoridades como são os casos de Tiradentes, Aleijadinho, entre outras figuras históricas. Sem receios, o que se reconhece e se lê na prosa histórica de Tapioca é uma modernização das técnicas de narrativa historiográfica outrora anunciadas pelos teóricos filiados à escola francesa mencionada na introdução, tomando como empréstimo a evolução da metodologia de se escrever a própria História. Em resumo, se pegássemos carona nesse gancho, é possível identificarmos, na prosa de Tapioca, um seguimento investigativo que pudesse sondar tal questão, descortinando análises, entre algumas, a comparação das técnicas de escrita do romance histórico com as conformidades historiográficas do historiador. Portanto, cabe ao próximo pesquisador interessado lançar outros olhares sobre tais hipóteses de investigação comparativa.

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