3 | nº 3
de 2019
Realização: Apoio: VOL.
Abril
Suplemento Gratuito
ISSN 2596-1373
ARTIGO
O Sertão de Marica Lessa e Dona Guidinha do Poço Bruno Paulino
FLORES DE AÇUCENA
O marujo que mexeu na abóbora da Ribinha Audifax Rios
CHAPULETADAS
Jarid Arraes e as fraturas do cordel contemporâneo
Gisa Carvalho
Um livro a ser descoberto*
Alfredo Monte (in memoriam)
FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA
João Dummar Neto presidência
André Avelino de Azevedo direção administrativo-financeira
Raymundo Netto gestão de projetos
Emanuela Fernandes análise de projetos
MARACAJÁ
Raymundo Netto curadoria, pesquisa e edição geral
Emanuela Fernandes assistência editorial
Bruno Paulino, Gisa Carvalho, Alfredo Monte, Daniel Dias, Sarah Diva Ipiranga, Alexandre Henrique e Raymundo Netto colaboraram nesta edição com textos, cartuns e quadrinhos (exceto os da seção “Radiadora”)
Audifax Rios (in memoriam) ilustrações
GENTE ILUSTRADA
Daniel Dias
CRISTALEIRA
Jáder de Carvalho entre a presença e a ausência
Sarah Diva Ipiranga
RADIADORA
Sânzio de Azevedo
Lucirene Façanha
Rejane Nascimento Cupertino Freitas
Almir Mota
Talles Azigon
Rita Brígido
Raisa Christina
Magna Maricelle
TIRAGOSTOS
Alexandre Henrique
Raymundo Netto
Artista da capa
Audifax Rios (in memoriam)
Fabricio Saldanha
Luana Braga
Valdemar Neto Terceiro
José Jackson Coelho Sampaio
Alan Mendonça
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Amaurício Cortez editor de design
Giselle Fernandes projeto gráfico e editoração eletrônica
Karlson Gracie tipografia Maracajá
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Este suplemento literário mensal é parte integrante do Programa Fortaleza Criativa, em decorrência do Termo de Fomento celebrado entre a Fundação Demócrito Rocha e a Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza, sob o nº 05/2018.
ISSN 2596-1373
Todos os direitos desta edição reservados à:
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Maracajá não precisa de vocês Maracajá, em 7 de abril de 1929
Olhe, menino, você não deve comprar esta revista. Compre o seu chocolate e vá ao cinema berrar seu entusiasmo pelo cowboy
Olhe, menina (sei lá quantos anos você tem...), você não deve comprar esta revista. Compre o seu ruge, o seu carmim – faça do rosto duas papoulas e dos lábios anêmicos –com que você desperta o coração sangrento que ri para toda gente fútil da cidade.
Olhe, coronel, você não deve comprar esta revista. Você não entenderá nada do que ela contém e ficará arrependido dos níqueis que arrancou da bolsa. Guarde o seu dinheiro para o champanhe da francesinha.
Olhe, almofadinha, você não deve comprar esta revista para fingir que sabe ler e que é rapaz de espírito. Guarde seu dinheiro para as prestações do alfaiate.
Olhe, garoto, você não apregoe Maracajá. Água, conselho e Maracajá só devemos dar a quem chama a gente a um canto e pede baixinho.
Olhem, vocês todos, fiquem certos que Maracajá é um gato selvagem de boas garras e basta-lhe o mato para viver.
Antônio Garrido (Demócrito Rocha)
Abril é um mês de comemoração, mas também de saudade.
Foi em abril, num dia 17 (1946), que fez pouso nesse plano o santanense (de Marco) Audifax Rios. Também em abril, em 25 (2015), a onça caetana o arrastou para outra morada.
Quem o conheceu e/ou conheceu a sua vasta e múltipla obra (crônicas, romances, pesquisas, pinturas, gravuras, cenários, almanaques e revistas, ilustrações e DE UM TUDO mais), sabe o tamanho da lacuna que esse sempre jovem, inquieto e criativo artista, no vigor dos seus 69 anos, nos deixou.
Pessoa simples, tímido demais, a contrastar de suas camisas berrante-coloridas, desfilava entre rostos de apáticos a admirados, carregando sua bolsa de couro com sua marca pirografada imitando ferro de marcar boi, não dispensando uma boa conversa, falando baixinho das gaiatices da vida, da literatura de todo mundo – lia que era um danado – e contando causos e histórias dos bares de Fortaleza, cheio de ideias e disponibilidades.
É em homenagem a essa saudade inapagável e raramente coletiva desse nosso “tipo inesquecível”, que a Maracajá de Demócrito nos traz uma edição AUDIFAX RIOS especial, reverenciando a imortalidade daqueles que não morrem mesmo, pois que o talento não deixa. Daí, o convidamos para ilustrar essa edição, e ele, como de costume e sem cangapés, nos disse “Eu faço é na hora!”
Raymundo Netto Curador e editor de Maracajá
Último cabrito a ser entronizado por Audifax na Galeria Caprina do Clube do Bode (nº 225), Ata nº 690, Livro de Atas nº 38, em 11 de abril de 2015.
3 Do Alpendre
Jarid Arraes e as fraturas do cordel contemporâneo
cordel cearense está mudando. Aliás, todo o universo do cordel está em transformação constante, a despeito da vontade de muitos daqueles que insistem em situar a poesia tradicional em um passado supervalorizado e conservador. Mas as mulheres estão enfrentando essas situações e fraturando as definições de cordel situadas no passado. E Jarid Arraes está na vanguarda desse movimento. Falar sobre a poesia de Jarid aciona em mim muitos afetos. Demorei a conhecê-la pessoalmente, ainda que os trabalhos de seu pai e de seu avô eu já conhecesse há cerca de 10 anos, quando comecei a estudar sobre a poesia de cordel. Na segunda metade do mestrado, não sei exatamente de que modo, mas tive acesso às suas produções. Desconfio que tenha sido a partir das redes sociais de seu pai, Hamurabi Batista, que mediava meus contatos com Abraão – pai de Hamurabi, avô de Jarid –poeta cujas produções eu estudava na época.
Jarid publicou em 2017 um livro de cordéis, Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis, que somou-se aos seus mais de 60 títulos de folhetos. O livro
Heroínas... conta as histórias de mulheres, que foram escolhidas a partir de uma série de cordéis sobre heroínas negras que a autora já produzia. São
narrativas sobre as vidas de Antonieta de Barros, Aqualtune, Carolina Maria de Jesus, Dandara dos Palmares, Esperança Garcia, Eva Maria do Bonsucesso, Laudelina de Campos, Luísa Mahin, Maria Felipa, Maria Firmina dos Reis, Mariana Crioula, Na Agontimé, Tereza de Benguela, Tia Ciata e Zacimba Gaba.
A proposta de Jarid é quase que uma meta-historiografia. Está inserida em um contexto combativo, militante. Parte de uma reconstrução das memórias, lançando luz ao que estava deixado no plano do esquecimento. Salete Maria, Fanka Santos, Dalinha Catunda, Arlene Holanda, a recém-conhecida por mim Auritha Tabajara, Bastinha... todas também trazem, aos seus modos, a política, a resistência, a militância em sua poesia.
A marca poética de Jarid está situada no feminismo negro. Ela conta que sempre teve muita dificuldade em conhecer histórias de mulheres e, principalmente, sobre mulheres negras. Por isso, se dedica a pesquisar e conhecer essas mulheres de forma a contribuir com a visibilidade dos trabalhos delas e de tantas outras que ainda devem estar escondidas, mas que iremos encontrá-las.
A poesia de Jarid é potente. É resistência, é questionamento. É rompimento. É a saída dos lugares-comuns do que se pretende – institucionalmente – que a poesia de cordel seja. Ela é o próprio conceito de tradição, que depende de renovações para que permaneça. Assim, ela usa redes sociais, recursos digitais e uma série de elementos contemporâneos
em suas composições. Discussões sobre gênero, sobre sexualidade, sobre corpo, peso, cabelos, autoaceitação são trazidas em seus folhetos de uma forma didática e lúdica, e isso significa transformação.
O que Jarid traz para o cordel são quebras de tabus, tanto nas temáticas quanto na própria definição do “que é cordel”? Um questionamento cujas respostas passam pela forma, pela estrutura, pelos suportes, pelas temáticas. Cuja história aponta para uma ampla diversidade de “origens”. Mas essas definições todas terminam por serem muito mais excludentes do que agregadoras.
Ser mulher, poeta, cordelista e falar sobre feminismo e questões raciais, desafiar a institucionalidade que tenta definir o cordel a partir do conhecimento de um pequeno grupo de homens compõem a desestabilização que Jarid traz a um universo que muitos pretendem congelar. Mais do que fechar um conceito para o cordel, a poesia de Jarid ajuda a pensá-lo em dimensões simbólicas, culturais, históricas e, sobretudo, política.
A existência do cordel é um ato político.
Gisa Carvalho
Jornalista e doutora em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisa poesia de cordel desde 2009 e tem interesse nas manifestações e performances contemporâneas dessa prática. mgisacarvalho@gmail.com
Chapuletadas 8
Está inserida em um contexto combativo, militante. Parte de uma reconstrução das memórias, lançando luz ao que estava deixado no plano do esquecimento
Jáder de Carvalho entre a presença e a ausência
“Às vezes fico tanto no passado/ que, vendo o luar na noite, vejo o leite/ correr do peito de uma escrava negra...” (Jáder de Carvalho)
a revista Maracajá, de abril de 1929, encontramos uma bela e persuasiva carta de Jáder de Carvalho (1901-1985) a Paschoal Carlos Magno, ator, poeta e teatrólogo que estava visitando o Ceará a fim de divulgar os ideais do projeto modernista para o país. Mal sabia Magno que já éramos modernos antes de o Brasil o ser e que Jáder, como poucos, tinha a noção da brasilidade assentada em si e na sua luta social: “Você não avalia o trabalho que nos vem dando o Brasil. É lá brincadeira! Mal a gente acaba o Acre, já está ouvindo o grito de São Paulo chamando a gente! Olhe: até o Peru precisou de nós. Dá-se o suor, o braço, o sangue! E depois? Depois... o cearense se volta de mãos vazias. E, se vem do Amazonas – aquela terra menina, onde mal reportam os seios – é deste jeito: escapando do impaludismo para morrer de beribéri”.
O Jáder que transparece nessa fala representa sua feição mais engajada, a mesma que, dois anos antes, em 1927, havia participado de uma publicação, O canto novo da raça, juntamente com outros três autores, apontada, por Sânzio de Azevedo, como o marco do Modernismo no Ceará. A filiação ao Grupo dos Modernos, entretanto,
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Arquivo Nirez
Foto:
finda rapidamente, pois Jáder, de caráter irreverente e iconoclasta, esquivou-se de ‘escolas’ para criar seu rumo nas letras. Independente, tanto política quanto literariamente, construiu uma carreira que oscila entre o lirismo, a melancolia e o compromisso social. Suas obras mais conhecidas são aquelas cuja ênfase social é dominante (Classe média, Doutor Geraldo e Sua majestade, o Juiz,), assim como o regionalismo (Terra bárbara e Terra de ninguém). No entanto, Jáder tem na poesia autobiográfica um acento literário especial, em livros que tratam da sua infância (Menino só), do envelhecimento e da morte (Cantos da morte, Delírio da solidão e Rua da minha vida). Há que se fazer menção também que foi ganhador do prêmio Olavo Bilac de Poesia, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto poético de Água da fonte.
De braços com o poeta
Para compreender um pouco desse homem de várias faces, olhemos novamente para “Terra bárbara”, poema mais emblemático da vertente telúrica, lírica e regionalista do poeta e sua feição mais conhecida e assentada no imaginário local. Nele encontramos as marcações clássicas do pertencimento e da filiação identitária:
Eu nasci nos tabuleiros mansos do Quixadá
E fui crescer nos canaviais do Cariri, Entre glebas e caboclos belicosos e ágeis.
Filho da gleba, fruto em sazão ao sol dos trópicos, Eu sou o índice do meu povo:
Se o homem é bom – eu o respeito.
Se gosta de mim – morro por ele.
Se, porque é forte, entendesse de humilhar-me, Ai, sertão!
A dramaticidade e a valentia que imprime ao poema serão marcas que distinguirão o poeta, sobretudo em Terra de ninguém e Terra bárbara, nos quais guarda no mesmo embornal súplica e revolta, injustiça e regeneração.
A luz solar, que se expande nos versos, em alguns momentos passa a atormentar o poeta, que busca nos versos mais íntimos uma sombra para uma outra dor: a da solidão. Daí os títulos dos livros que seguem: Delírios da solidão e Menino só Mais próximo da sua morte, publica Rua da minha vida, produção amadurecida, em que o poeta retoma o local de origem, tão presente e cantado em Terra bárbara, mas agora com um tom de nostalgia e despedida e assume-se como um sujeito poético melancólico e entristecido. Sai o vaqueiro errante ou o sertanejo valente e imiscui-se um agricultor de lembranças, cuja lavra é de poemas adormecidos na saudade e na despedida próxima. Por isso, a ausência, na sua conformação geográfica, emocional ou espiritual, é a dor mais sublinhada, constituindo-se o centro de irradiação da sua lírica. Se no poema “Terra bárbara” afirma sua pertença valorosa ao Quixadá, em “Joaquim”, retorna nostalgicamente ao nascedouro, marcado agora pelo silêncio e pela falta:
Não me chamaste, Quixadá. Mas eu vou. [...]
Há quantos anos não nos vemos? [...]
Lembras-te, Quixadá, do primeiro arado Que te rasgou a terra?
O comprometimento de Jáder de Carvalho com os movimentos sociais e políticos do estado acabou retendo-o em Fortaleza, o que ocasionou o abandono de uma carreira no sul do país, como fizeram muitos cearenses em busca de reconhecimento. O fixar-se na terra, entretanto, se conferiu prestígio local, acabou por causar um leve desgosto no poeta. Por isso, ao final do poema, após o reencontro bucólico com a terra natal, muda de tom e rumo e lamenta a escolha que poeticamente também o afastou de si e da possibilidade de se dedicar a outro manejo poético, mais confessional e autobiográfico e, ao mesmo tempo, mais próximo de uma projeção nacional. Assim, a queixa invade o antes bárbaro sertão e deseja outras geografias:
Cristaleira 13
Quixadá, sinto-me desiludido do meu nome. Nome que não anda. Não deixa o Ceará. Parado. Dize ao teu vigário
Que desejo rebatizar-me, agora nas águas do Cedro. O novo nome? Joaquim, Vamos ver se esse não é como Jáder: gosta de andar...
A solução encontrada, ao final da vida, é singela e, ao mesmo tempo, dolorida: mudar de nome. O nome sugerido, Joaquim, é o do bisavô que veio de Portugal e representa o ethos do viajante que Jáder nunca conseguiu incorporar. Percebe-se, portanto, que, com o envelhecimento, é comum o desejo do não feito, do deixado para trás, do sofrimento da ausência e da incompletude. Por isso, busca-se refazer um caminho já sabido impossível. Dessa forma, a dor duplica-se: além dela mesma, a impossibilidade da cura. Bem exemplar dessa feitura é o poema “Outra infância”, que resgata o sentimento do irreversível mediado pela proximidade da morte:
Imagino um Deus, Dono de todos os poderes, capaz de ver através de olhos cegos, de falar muito alto de dentro de toda mudez, para que me devolva a infância: a infância que perdi antes do tempo de perdê-la.
O Deus que invoca tem algo de mórbido e vidente, cego como Tirésias e poderoso como um oráculo:
Repito:
Devolve-me a infância
Ó Deus que enxerga pelos olhos dos cegos, Escutas o mundo
Pelos ouvidos mortos
E falas, com clareza, Nas línguas paralíticas.
Assim, no princípio e no fim, as angústias se instalam e se tocam. Como dar sustentação à velhice e aliviar o futuro, com a morte à porta? Resta ao poeta, em seu isolamento, físico e psicológico, reclamar essa falta. Entre presença e ausência, o ato poético se faz.
Sarah Diva Ipiranga
Professora Adjunta de Literatura Comparada do curso de Letras da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Pós-doutora em Literatura Brasileira pelo Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Estudos AMI (Autobiografia, memória e identidade) e autora do livro O sol na palavra: a literatura cearense sob o signo solar sarahdiva31@gmail.com
Para conhecer Jáder de Carvalho
Nascido em Quixadá, Ceará (29 de dezembro de 1901) e falecido em Fortaleza (7 de agosto de 1985), é um dos nomes mais representativos da literatura produzida no Ceará. Com 16 anos, em Iguatu, por meio de uma tipografia, iniciou a publicação de seus escritos, além de sonetos de Olavo Bilac. Em 1928, fundou o jornal A Esquerda. Mais tarde, em 1947, o Diário do Povo e, nos anos de 1960, a convite de Paulo Sarasate, passou a publicar em O POVO. Entre 1943 e 1945 esteve preso, acusado de comunista e por criticar o governo de Getúlio Vargas. Foi membro da Academia Cearense de Letras e, em 1974, foi eleito Príncipe dos Poetas Cearenses. Para saber mais sobre o poeta, acesse o documentário “PERFIL: Jáder de Carvalho”, da TV Assembleia do Ceará.
Cristaleira 14
Radiadora
A Capa de Chuva
Era tempo de chuva. Um rapaz que gostava de festas e tinha fama de namorador encontrou, num baile de clube suburbano, uma jovem que lhe chamou a atenção pela beleza: alva, loura e de olhar tristonho. Tirou-a para dançar, e tão bem se entenderam que, naquela noite, nenhum outro rapaz dançou com ela, nem ele dançou com outra moça.
Tarde da noite, quando ela se despediu, revelando que prometera à mãe não se demorar muito no baile, pediu-lhe que não procurasse segui-la.
No momento em que a jovem ia saindo, começou a chover. O rapaz, por gentileza ou por vontade de revê-la, emprestou-lhe sua capa de chuva, ao mesmo tempo em que, rindo, perguntava como a receberia de volta e qual o seu nome.
— Meu nome é Alzira. Anote meu endereço.
Dois dias depois, numa tarde de céu nublado ameaçando chuva, foi ele à rua indicada e, chegando à casa cujo número havia anotado, bateu palmas. Ao ser atendido por uma senhora de cabelos grisalhos, indagou se ali morava a senhorita Alzira.
A mulher esboçou um gesto de espanto e perguntou de onde ele a conhecia. Ao saber que jovem havia dançado
naquela mesma semana em um clube do bairro, olhou-o fixamente e disse, a voz trêmula:
— Tive apenas uma filha, e se chamava Alzira... Mas ela morreu. Morreu há mais de cinco anos. Entre, por favor.
Como ele insistisse na história, com o forte argumento de que a moça lhe havia dado nome e endereço, a senhora foi buscar um álbum de retratos e, passando as páginas, pediu que ele apontasse a moça com a qual havia dançado.
— É esta aqui!
— Impossível. Esta é a Alzira, mas ela morreu, como eu lhe disse. Vamos ao cemitério, que não fica longe, para que o senhor se convença de uma vez por todas.
Tomaram um ônibus e já caíam os primeiros pingos de chuva quando entraram no campo-santo. Com a força do vento, os ciprestes farfalhavam. Mas antes que a mulher de cabelos grisalhos mostrasse ao rapaz o jazigo da filha, ele recuou, lívido. Sobre um dos túmulos estava estendida a sua capa de chuva...
Sânzio de Azevedo sanziodeazevedo@gmail.com
Asas para Rute
Rute, 15 anos, entrou em casa com o olhar diferente e cor indecifrável nas faces salientes. O pai, um rude homem do campo, não conseguia decifrar o que ali se passava. Nem queria. Na sua ignorância ruminava como a vaca magra que lá longe cortava o mato: “conheço essa inquietação. Mas se essa menina está pensando que vai ser como a danada da mãe e a sem-vergonha da irmã... não vai mermo”.
Caminhou decidido até o único cômodo com porta no casebre quente, mas limpinho, como a mulher tinha ensinado.
Rute sentia saudade da mãe, morena com o rosto sempre em brasa, como gritava o pai nas horríveis discussões motivadas pelo demônio verde – era assim que a vizinha Damiana tinha explicado o ciúme do seu pai – quando a mãe criou asas e partiu.
A mãe voara após a surra que lhe deixou marcas pelo corpo bonito. Rute ainda guardava o calor dos lábios da mãe ao se despedir dela e da irmã naquela maldita noite. O pai bêbado e inerte na cozinha. A mãe juntou seus molambos e seguiu a vida. Rute tinha então 10 anos.
Sua irmã, Sula, estava à época com 16. Assumiu a casa, mas não os carinhos da mãe, nem o colo, nem os cafunés. Sula partira com um motorista dois anos depois da mãe. Rute ficara com a casa e o pai – carcereiro e catapulta!
Um pouco de paz Rute só encontrava na casa de Damiana. E era lá que, dia após dia, entre o feijão no fogo e as panelas espelhadas ou uma troca de mantimento, que Rute tecia suas asas para a acalentada liberdade.
– Abra, Rute! – vociferou o homem!
– Está aberta, pai – tratou de responder a menina para não piorar sua situação.
O pai trazia na mão o açoite e seu olhar escaneou o quarto e parou na cesta de vime em que repousavam tubos de linhas coloridas recém-comprados, agulha e tesoura sobre a humilde mesa. Ao lado uma camisa do patriarca. Envergonhado, o homem olhou para a menina, fez que enfiava o tal cinto no cós da calça e por nada beijou-lhe a testa e saiu.
Recuperada do susto, a menina esticou a mão e retirou de sob a toalha da dita mesa um papel bem dobrado. Seus olhos correram ligeiros e alegres as linhas em que se lia: “Ficha de Inscrição para o EJA Ensino Fundamental” – sorriu. Mais uma etapa de suas asas estava concluída e as suas não eram de cera.
Rejane Nascimento rejanasc@gmail.com
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Ela não portava o objeto que poderia transportá-la para o universo onde estavam seus possíveis interlocutores. Por isso não teria como interagir, embora desejasse tanto. Não que ela não pudesse conseguir um artefato daqueles. Podia. Mas não queria possuir algo tão viciante. Restava aguardar. Quem sabe um par de olhos qualquer iria, em dado momento, cansar de olhar para baixo e virar em sua direção. Ela esperou pacientemente. Até que perdeu a esperança; todos permaneceram surdos, completamente alheios à sua presença. Nem mesmo notaram quando ela, resignada, se levantou e tomou o rumo de casa. O dia chegou em que ela já não se sentia reconhecida por ninguém. Estava presente, perto de todos, mas vivia desterrada, isolada do mundo, com seu celular de abrir e fechar, modelo antigo, que apenas ligava e atendia chamadas. Foi quando se deu por vencida e pediu para o cunhado trazer de Miami o mais moderno que pudesse encontrar, lindo, completo, ostensivo. Criou perfil numa rede social, numa segunda, numa terceira — marcou presença em todas as redes relevantes. Os amigos se regozijaram e disseram “que bom te ver por aqui”, mas em pouco tempo ficaram entediados e fizeram de novo ouvidos moucos, pois ela passou a lhes dar bom dia diariamente às sete da manhã com fotos de gatinhos fofos.
Cupertino Freitas
josecdefreitasjr@yahoo.com
Mortança em Saboeiro
Aquele galo esperava o amigo gato todas as manhãs. Ele vinha com seu andar macio pelo muro, até a cerca no fundo do quintal. Trazia as notícias mais recentes da casa. Foi ele que alertou ao amigo que a galinha Joaninha seria o prato do aniversário do membro mais novo dos Braga.
Não deu outra, foi muita correria, mas o galo não conseguiu fazer nada. Agora tem de passar horas agradando as galinhas restantes, dizendo coisas, como “Você está magra, fique tranquila!”
Em Saboeiro uma casa com visitas tem sempre um almoço de galinha à cabidela, ou cabrito guisado. E falando na peste, o cabrito – só berra bobagens – não deu as caras.
O galo procurava saber alguma coisa sobre o próximo a ir à panela para fazer um trabalho de conscientização no galinheiro. Ele não se importava com o peru, aquele que serviu ao Natal da família. Achou foi bem feito, que o bicho era metido.
Mas o gato não tinha novidade, só sabia que os bichos podiam ficar sossegados: “Estão fartos de tantas ceias nesses dias de fim de ano.”
quando estava com fome mandava logo vir buscar umas duas das suas galinhas”.
– Não me fale naquele homem. Perdi muitas para matar a fome dele. – lamentou o galo.
– Pois é melhor que venha muita chuva e que tenhamos muitos peixes, que, aliás, eu gosto muito, senão você vai ficar, amigo galo, só administrando ovos.
Era janeiro e o galo imaginava que o gato estava certo: não haveria mortança no galinheiro e logo iriam se lembrar daquele bode velho que já estava passando da hora. O gato assim também pensava, pois o bode não era da família, tinha chegado há poucos meses, devia ter alguma serventia. “Ainda bem que este povo não come gato”, imaginava, e ria-se por dentro como sempre fazia sobre o destino dos outros bichos do quintal, enquanto, por fora, ele se condoía todo, achava uma injustiça.
O papo se esticava, já quase sete da amanhã, e o gato tinha seus afazeres, como acordar as crianças em férias e ganhar torresmo do café da manhã do senhor da casa.
Radiadora
Radiadora
bairro
antes das seis quando o céu indeciso não mostra luz nem trevas paradas de ônibus enchem-se de pessoas sonolentas
bocejos e bom dias tímidos dinheiro trocado para não atrapalhar o tráfego de pessoas nas catracas portões de rolar janelas grandes de ferro deslizam para abrir cheiro de café cheiro de pão
a vida está assando nos fornos industriais das padarias
a rua não fica limpa num passe de mágica são senhoras gordas pretas magras brancas que sacam piaçabas limpam calçadas enquanto os homens do caminhão do lixo rebolam no meio da rua os tambores para raiva e resmungo das senhoras
logo tudo parado se move
carros bicicletas adolescentes raivosos indo pra escola as principais notícias vencidas de ontem cruzam nas esquinas de sacolas nas mãos
todo dia é único
Talles Azigon
tallesazigon@gmail.com
Mendigos
ACORDASTE!
Debaixo da ponte... sem destino!
ACORDEI!
Sob o teto que dormi, a solidão de menino!
Teu frio de cobertor, meu frio de amor... raios solares, em todas as pontes... em todos os lares...
ACORDEI!
Contas a pagar, frutas e solidão, leite e pão...
ACORDASTE!
Lixos fedidos, sobras de pães dormidos...
Amanhã, quem sabe, tua alegria nas contas a pagar e na solidão a amar... Serás bem mais feliz do que o destino me quis?
Amanhã, meu olhar de ponte sobre os olhos das amantes ... sobre os olhos das mães e a partilha dos dormidos pães!
Serei bem mais feliz do que o destino te quis!
ACORDASTE! ACORDEI!
Silêncio... Dorme o companheiro, o mendigo herdeiro das lágrimas de meu verso rotineiro:
Tu ficaste sem comer
E chamas isto de fome.
Eu fiquei sem amar e, para isso, não tem nome!!!
Rita Brígido ritabrigido@yahoo.com.br
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luanamenezesbraga@gmail.com