texto - Marisa Flórido

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A alegria dos desvios Marisa Flórido

O que leva o artista a sequestrar, do mundo, seus objetos cotidianos e prosaicos? Estalinhos, bolas, caixas d’águas, mesas de jogos, moeda de países diversos... Objetos quase sempre industriais que circulam por aí, na indiferença da série e na aceleração dos dias. No entanto, para o artista, eles cintilam preciosos, basta estar ao alcance dos olhos, ao desejo de transformação da arte. Ele os retira de sua esfera costumeira e utilitária, em meio às horas desatentas e breves, em meio aos dejetos que habitam o universo das sobras, como tíquetes de metrô e tampas de garrafas de bebidas. Detritos das cidades por onde andou, recolhendo-as do purgatório das ruas e do esquecimento. Com sua paixão precisa, obsessiva, ele os insere em outras ordens, em outras relações, em outros conjuntos. Em exposição no Centro de Artes Hélio Oiticica, os trabalhos de Felipe Barbosa não resultam de um gesto expressivo, mas de um método operacional: toma objetos ou elementos seriados, repetidos, e a partir dessa matriz modular, recombina-os, reestrutura-os. O artista não apenas instaura um sistema, mas atravessa e confronta vários e distintos sistemas - o sistema da arte, o sistema industrial, os sistemas estruturais, os de informação e circulação (como os mapas) são, eles próprios, submetidos aos cruzamentos, às recombinações e às contaminações que o artista engendra. Em um sentido geral (e insuficiente), um sistema é um conjunto de elementos, conceitos ou idéias, entre os quais podemos encontrar ou definir relações, de modo a constituir um todo ou uma unidade. Entretanto, constituir um sistema implica enfrentar as ameaças nele veladamente encerradas: sua inadequação àquilo que ele se aplica, a entropia que lhe é implícita - a falha latente que ameaça desestruturar e colapsar sua ordem interior. Todo sistema é assombrado pelo fantasma de sua ruína e pelo eterno desajuste entre a abstração dos códigos e das ordenações e o concreto da existência. Algo sempre escapa de seu rigor e clausura, como nos acena o título da mostra: “Matemática imperfeita”. Felipe Barbosa dialoga com a tradição construtiva da arte. Nela, reivindicava-se a fundamentação da arte por princípios claros e universais, em geral incorporando


elementos geométricos e processos matemáticos à composição artística. No entanto, o artista insere

na placidez de seus ordenamentos e vontade construtiva, pequenas

perturbações, pequenos deslocamentos e desvios de função que desafiam suas engrenagens. O recurso ao humor turva ainda os anseios de clareza: a ironia afirma e nega no mesmo ato, o chiste introduz sentidos dúbios e conflitantes. Esse construtivismo frouxo, que questiona sua inflexibilidade e desejo de ordem, que introduz a imperfeição e a graça como sobrevivência, Fernando Cocchiarale denominou certa vez de “construtivismo malandro”. E se o humor transforma utilidade em liberdade, razão em imaginação, ciência em jogo, também poderíamos dizer que, em muitas obras de Felipe, o lúdico e o violento se confundem, ordem e dissolução se entrelaçam, indissociáveis. Por isso um urso de pelúcia coberto de estalinhos coloridos faz a esperada doçura roçar a explosão dos afetos; uma mesa de ping-pong, com bolinhas encravadas de acordo com a força da jogada, transforma-se no mapeamento da intensidade de seu duelo; bolas de futebol têm a geometria transtornada, formando outros sólidos ou planos, em clara inversão e indefinição entre escultura e pintura; uma mesa de bilhar é sustentada por bolas encaçapadas; dormentes da linha férrea são perfurados criando túneis por onde passam os trilhos de um ferrorama; mapas feitos com tampas de bebidas disputam os territórios dos chassis, sistematizando, em planos, informações estatísticas do consumo de várias cidades do mundo. Objetos banais que o artista saqueia da superfície distraída do mundo para abrir, na narcose dos dias, no deserto dos costumes, outros lampejos e outras miragens. Para descobrir, entre o cálculo e o inesperado do lance, entre o desígnio e o colapso, a alegria dos desvios e o encantamento das imperfeições.


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