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Artigo

REGIME NARRATIVO, EPISTOLOGRAFIA E ATITUDE SATÍRICA NAS CARTAS CHILENAS DE TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA: UMA PROPOSTA DE INTERPRETAÇÃO Por Rodrigo Elias

RESUMO: As Cartas Chilenas, um conjunto de sátiras produzidas em Minas Gerais no final do século XVIII e atualmente atribuídas, na maior parte, a Tomás Antônio Gonzaga, constituem um corpus documental bastante conhecido dos estudos sobre o passado colonial brasileiro. Por ter circulado originalmente entre personagens capitais da Conjuração Mineira (1788-89), tal conjunto tem sido pouco considerado na historiografia que trata de outros aspectos daquele contexto cultural. O que o presente artigo pretende, portanto, é chamar atenção para algumas dimensões, em geral, subvalorizadas naqueles escritos, a saber: o seu caráter satírico; o papel da atitude epistolográfica na sua composição; e o recurso a uma retórica dos nervos na conformação de um regime narrativo próprio de certas audiências letradas da Época Moderna tardia. Palavras Chaves: sátira; epistolografia; retórica; regime narrativo; Tomás Antônio Gonzaga

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omás Antônio Gonzaga, português nascido no Porto em 1744 e morto em Moçambique em 1810, é um personagem já muito conhecido na historiografia política e na crítica poética e literária luso-brasileira – sua obra já está, de forma muito consolidada, associada a interpretações sobre a poesia árcade ou “pré-romântica”, ou, em termos históricos, ao contexto politicamente conflagrado das rebeliões do período pré-Independência. No caso específico das Cartas Chilenas, um conjunto satírico anônimo cuja autoria – na maior parte – acabou atribuída definitivamente a Gonzaga (que se escondia sob o pseudônimo de Critilo) por Manoel Rodri-

gues Lapa em 19581, o escrutínio foi ainda mais intenso, sobretudo por conta da própria questão da autoria. O conjunto conhecido atualmente é um poema satírico constituído de 4.268 versos decassílabos brancos, divididos em 14 unidades epistolares (treze cartas, sendo a última incompleta, e uma “Epístola a Critilo”, atribuída a Claudio Manuel da Costa), além de uma dedicatória e um prólogo.2 Como as cópias mais antigas que chegaram até nós, são manuscritos do século XIX, houve um grande esforço de inúmeros críticos, LAPA, Manuel Rodrigues. As “Cartas Chilenas”: um problema histórico e filológico. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1958. 2 GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. Introdução de Joaci Pereira Furtado. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 1

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GNARUS - 21 lizo em alguns destes pontos meu interesse: seu caráter satírico, seu caráter epistolográfico, seu recurso a uma retórica dos sentidos.

Tomás António Gonzaga

desde aquele período, para ligar o conteúdo do texto ao contexto histórico específico – o governo de Luís da Cunha Menezes em Minas Gerais, finalizado em 1788; portanto, um período no qual foram nutridas as relações sociais e políticas que desaguaram na Conjuração Mineira. Como, entre os séculos XIX e XX, aquele evento foi alçado ao lugar de momento fundador da própria nacionalidade brasileira3 , Gonzaga, assim como Claudio Manuel da Costa e o próprio mártir Tiradentes, recebeu muita atenção por conta das suas respectivas ações políticas – considerado um dos líderes intelectuais dos conspiradores, o magistrado e poeta acabou condenado à morte e, posteriormente, tendo sua pena comutada em degredo para a África oriental portuguesa. Há, entretanto, aspectos naquele conjunto textual que não foram suficientemente aprofundados nas análises historiográficas e mesmo pela crítica literária e poética. FocaCARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

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Em primeiro lugar, a sátira. É comum, a partir da retórica e da poética de Aristóteles, definirmos a sátira como uma espécie de negativo canônico: como o autor grego definiu as formas discursivas adequadas para cada tipo de tema e ocasião, a sátira consistiria basicamente na inversão dessas regras. Por exemplo, usar linguagem grandiloquente para falar sobre temas baixos, ou usar formas cotidianas para falar de pessoas ou assuntos nobres. 4 Assim, é comum restringir o caráter satírico das Cartas Chilenas à ideia de que se trata de um longo poema épico que discorre sobre uma figura moralmente rebaixada, um anti-herói, o Fanfarrão Minésio / Luís da Cunha Menezes. Entretanto, esse conjunto não é caracterizado apenas pelo formato épico, abrigando também, no seu programa satírico, versos de amor. As falas de Critilo, portanto, não podem ser reduzidas a um negativo canônico. Há outras características importantes a serem consideradas na escrita satírica que podem ser vinculadas às Cartas Chilenas. Jesús Gascón Pérez acredita que a sátira é uma categoria literária difícil de definir em seus aspectos formais, sobretudo porque ela tende a ser fluida 5 – é o que se percebe no texto de Gonzaga, quando passa de um estilo a outro, às vezes dentro de uma mesma carta. Ela pode começar como uma carta a um amigo – HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas: Editora Unicamp, 2004, p. 292. 5 GASCÓN PÉREZ, Jesús. “La espuma que resaca el mar de la cólera: los pasquines, vía de expresión de la oposición política aragonesa” in La rebelión de las palabras: sátiras y oposición política en Aragón (15901626). Zaragoza: Prensas Universitarias de Zaragoza / Departamento de Educación, Cultura y Deporte del Gobierno de Aragón; Huesca: Instituto de Estudios Altoaragoneses, 2003, p. XXVII-XXXI. 4

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GNARUS - 22 usando de hostilidade amistosa –, passar para o estilo épico, interpolar versos líricos e terminar com imprecações contra um inimigo. Podemos, assim, seguindo o conselho de Gascón Pérez, caracterizar a sátira mais por sua atitude do que por seu formato: a atitude satírica é uma tentativa de corrigir costumes, censurar vícios de indivíduos ou de sociedades inteiras. O hibridismo formal das Cartas Chilenas, um texto altamente moralizante, serve para insultar um grupo político específico, encabeçado por Fanfarrão Minésio, inimigo de Critilo em várias esferas da vida – econômica, social, política e mesmo afetiva (Critilo e Fanfarrão compartilham, no poema, um mesmo amor: Laura / Nise / Marília loura, ou seja, Maria Joaquina Anselma de Figueiredo – não a Marília morena, Maria Doroteia Joaquina de Seixas, mais canonicamente associada à poesia lírica e à trajetória biográfica de Gonzaga 6). O latinista Gilbert Highet, em 1962, já considerava a sátira nesta chave mais alargada, mais atenta aos objetivos e aos efeitos do que a modelos prescritivos. Highet se empenhou em assinalar características mais gerais da escrita satírica, como o recorrente recurso a uma linguagem mais forte e mais vívida – mais típica do tempo do escrito e, assim, mais reconhecível por seus contemporâneos. A sátira, como um chamado à ação, precisa conter o sentido de urgência da vida real.7 As Cartas maldizem, no calor da hora, um inimigo político e pessoal e lamentam o fim de uma relação amorosa. É uma espécie de tratado do ressentimento apaixonado. Outro elemento que ajuda a definir um trabalho enquanto sátira é o tema tratado. Não existe um acervo de tópicos definidos para

OLIVEIRA, Tarquínio J. B. de. As Cartas Chilenas: Fontes textuais. São Paulo: Editora Referência, 1972, p. 132. 7 HIGHET, Gilbert. The anatomy of satire. Princeton: Princeton University Press, 1962, p. 3. 6

esta modalidade de escrita, mas Highet chama atenção para uma preferência: o objeto da escrita satírica é geralmente concreto, circunscrito e pessoal. Será quase sempre possível ver no texto pessoas reais em situações concretas e reconhecíveis ao público leitor imediato. Gonzaga, magistrado português que estava cometendo um crime ao escrever textos anônimos, traz sob criptônimos (que nem sempre fazem questão de esconder identidade alguma) os personagens que compunham seu contexto imediato, deixando claro na forma que descreve cada um deles o nível de simpatia ou de antipatia que possuía em relação aos mesmos. O autor também se refere a uma série de eventos ou de relações que podiam ser facilmente reconhecidos por seus contemporâneos e, em especial, seus amigos letrados – além, é claro, de aparecer ele mesmo como antagonista de Minésio. A linguagem mais forte e “vívida” também é encontrada na escrita de Gonzaga, que descreve da forma mais crua possível algumas situações absurdas e grupos ou indivíduos tolos ou maus. O autor de sátiras, aliás, tende a considerar o público mais geral como sendo anestesiado em relação à verdade que só ele consegue enxergar, de modo que a sua obra deve enfatizar o impacto de uma realidade perversa. O satirista, além da descrição vívida, inclusive utilizando linguagem popular e eventualmente chocante, procura inspirar um sentimento de protesto – ele quer não apenas chocar, mas provocar, através do choque, uma ação política no mundo.8 Ora, vejamos o que o “tradutor anônimo” das cartas de Critilo – isto é, o próprio Gonzaga – pretende (na dimensão fictícia do poema, este teria sido redigido originalmente em castelhano), em sua “Dedicatória”: HIGHET, Gilbert. The anatomy of satire. Princeton: Princeton University Press, 1962, p. 19-20. 8

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GNARUS - 23 “Dois são os meios, por que nos instruímos; um, quando vemos ações gloriosas, que nos despertam o desejo da imitação: outro, quando vemos ações indignas, que nos excitam o seu aborrecimento. Ambos estes meios são eficazes: esta a razão, por que os teatros instituídos para a instrução dos Cidadãos umas vezes nos representam a um Herói cheio de virtudes, e outras vezes nos representam a um monstro coberto de horrorosos vícios. Entendo, que V. Ex.as se desejarão instruir por um, e outro modo. Para se instruírem pelo primeiro, têm V. Ex.as os louváveis exemplos de seus Ilustres Progenitores. Para se instruírem pelo segundo, era necessário, que eu fosse descobrir a Fanfarrão Minésio em um Reino estranho. Feliz Reino, e felices grandes, que não têm em si um modelo destes!”9

Deste modo, o autor da “Dedicatória” deixa claro o uso que pretende que seja dada à sua obra, uma descrição de personagem monstruoso como forma de despertar seus leitores preferenciais em prol de uma dada atitude (o bom governo). Em segundo lugar, é preciso voltar os olhos para um fato até certo ponto óbvio: as Cartas Chilenas são, afinal, cartas. Levar em conta o fenômeno da epistolaridade e todas as suas implicações nas sensibilidades literárias, poéticas e políticas da Época Moderna parece ser algo crucial. O fato de que aquele texto é marcado por uma dimensão satírica e, em alguma medida, ficcional não deve retirar do observador a consciência de que o mesmo é identificado por seu autor – ou por seus autores – como este extraordinário artefato intelectual que serve à comunicação interindividual e que teve extraordinária difusão na Época Moderna. GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. Introdução de Joaci Pereira Furtado. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.33-34. 9

É preciso levar em consideração que este tipo de escrita, a epistolografia ficcional, havia se tornado bastante corriqueiro na Época Moderna, assumindo um lugar especial na formação de uma certa sensibilidade literária no século XVIII – época que viu surgir um novo leitor a partir das reações “emocionais” ao livro de Rousseau, Julia ou A Nova Heloísa (1761), romance composto por cartas e, segundo Robert Darnton10 , a obra com maior circulação no século XVIII (foram cem edições em menos de quarenta anos, e pagava-se aluguel diário para sua leitura). A sátira gonzagueana é produzida durante o auge de uma tradição de pelo menos um século na literatura ocidental à qual Gonzaga dificilmente estaria imune. O contexto desse tipo de escrita, que atinge seu ponto máximo na Julia de Rousseau, se abre com as Cartas Portuguesas (1669) (que, apesar do nome, foram publicadas em francês e na França) do conde de Guilleragues (sob o pseudônimo Mariana Alcofarado), uma fictícia troca de epístolas enamoradas entre uma freira portuguesa e um oficial francês.11 E há uma infinidade de exemplos desta modalidade de produção ao longo do restante da Época Moderna, seja na Europa continental, seja na Inglaterra. Talvez Os sofrimentos do jovem Werther (1774), romance epistolar (e semiautobiográfico) de Goethe que deu forma, em alguma medida, ao amor burguês contemporâneo, seja um dos exemplos mais famosos. Werther não apenas alçou o seu autor ao panteão dos inventores do romance ocidental moderno, mas despertou no público reações como uma onda de suicídios entre seus leitores, identificados com o destino trágico do personagem principal – o chaDARNTON, Robert. O grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986. 11 ALCOFARADO, Mariana. Cartas portuguesas. Porto Alegre: L&PM, 2000. 10

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GNARUS - 24 mado “efeito Werther”, ou “febre Werther”, mais tarde incorporado pela psicologia como sinônimo de morte voluntária por imitação.12 As cartas eram um acontecimento social que dava voz e forma à auto-representação dos indivíduos, por um lado, e à difusão de novas sensibilidades coletivas, por outro. Nas palavras do historiador Gary Schneider, que produziu um estudo a partir de uma amostragem de 40 mil cartas escritas entre os séculos XVI e XVIII, as epístolas da Época Moderna são projetadas para reforçar padrões socioculturais.13 A escolha deste modelo em uma obra narrativa (e as sátiras de Gonzaga também são narrativas) deve decorrer de uma busca por adequação a um contexto linguístico próprio do período, no qual vai se afirmando uma cultura letrada no interior da qual os mecanismos próprios da escrita epistolar conformam um regime retórico, de acordo com o qual a função daquela obra é reconhecível e, por isso, ela é eficiente. A escrita epistolar moderna requer, primeiramente, alguma individualidade: sua função básica é a comunicação entre alteridades, a supressão, através de um discurso materializado em um suporte, da distância entre dois pontos que são fisicamente isolados ao ponto de não ser permitida a comunicação face a face. A função primordial da carta é tornar presente determinada ausência. Seguindo o estudo de Schneider, cujas cartas pesquisadas eram provenientes dos mais variados lugares sociais, é possível observar que este tipo de produção estava associado à CALABRESE, Stefano. “Wertherfieber, bovarismo e outras patologias da leitura romanesca”, in MORETTI, Franco (org.). O Romance, 1: A cultura do romance. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 697-732. 13 SCHNEIDER, Gary. The culture of epistolarity: vernacular letters and letter writing in early modern England, 1500-1700. Newark: University of Delaware Press, 2005, p. 22. 12

formação de vínculos entre grupos – considerando, inclusive, que se trata de uma sociedade de baixíssimo índice de letramento, como era a própria Inglaterra durante a Época Moderna 14 , na qual a incapacidade de ler poderia girar ao redor de 90% da população, situação que seria parecida com a de Portugal até o final do século XIX.15 Abandonando uma concepção extremamente formalista que poderia considerar o objeto carta exclusivamente como um substituto da comunicação entre dois agentes (ou “modelo diádico”), Schneider percebeu que as diversas etapas do processo epistolar – a escrita, a transmissão e a recepção – estavam abertas a um grupo maior de indivíduos, para além do emissor e do receptor prescritos. Cartas eram rascunhadas e depois passadas a limpo por outrem, descaminhos e violações eram comuns nos mais diversos sistemas de transmissão, sigilos eram rompidos por práticas de leitura e arquivamento do receptor, além dos seus diversos níveis de privacidade. Entretanto, para além desta ampliação não intencional do círculo de leitores de determinada produção escrita, é preciso considerar aquilo que Harold Love denominou “comunidade escritural”.16 Para este autor, que trata ainda da produção manuscrita em um sentido mais amplo do que a epistolografia, este tipo de escrita, além de funcionar como transmissor de informações, serve como reforço de laços entre indivíduos culturalmente e socialmente alinhados, formando comunidades políticas, compartilhando e reforçando valores e alianças que definem determinado grupo. Cartas manuscritas são projetadas para CRESSY, David. “Levels of illiteracy in England, 15301730”, in The Historical Journal. Vol. 20, no. 1, Mar., 1977, p. 1-23. 15 RAMOS, Rui. “Culturas da alfabetização e culturas do analfabetismo em Portugal: uma introdução à História da Alfabetização no Portugal contemporâneo”, in Análise Social. Vol. XXIV (103-104), 1988 (4o, 5o), p. 1067-1145. 16 LOVE, Harold. Scribal publication in Seventeenth-Century England. Oxford: Clarendon, 1993, p. 177. 14

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GNARUS - 25 a circulação em um meio social específico.17 Ora, as Cartas Chilenas, engenho poético satírico, circularam de forma manuscrita dentro de um circulo específico, os letrados mineiros próximos de Gonzaga – embora os textos estivessem endereçados explicitamente (dentro do poema) a um destinatário específico (Doroteu / Claudio Manuel da Costa, na maior parte das vezes). Se eram fundamentalmente projetados como vituperação de alguma figura pública (com o seu séquito), os escritos também deviam funcionar como elemento aglutinador de um grupo de leitores. Este grupo de leitores está delimitado pelos personagens que gravitavam, em Minas Gerais, ao redor de Tomás Antônio Gonzaga e Claudio Manuel da Costa – comunidade de cuja porosidade dependeu a própria eficiência da sátira, que, se julgarmos por um relato em um dos trechos do poema (a “Epístola a Critilo”, de Claudio/Doroteu), chegou aos ouvidos do principal atacado, o antagonista do autor.18 Outro elemento importante para a consideração das Cartas Chilenas é o paradoxo próprio da condição epistolar. A escrita de cartas, em qualquer época e em qualquer lugar, é marcada por uma certa ansiedade, decorrente da contraposição ausência x presença. Assim, a escrita de cartas na Época Moderna (e aqui talvez possamos incluir as “ficcionais”) é um elemento central para a SCHNEIDER, Gary. The culture of epistolarity: vernacular letters and letter writing in early modern England, 1500-1700. Newark: University of Delaware Press, 2005, p. 22. 18 É o que parece estar explicitamente formulado na “Epístola a Critilo”, atribuída a Claudio e escrita posteriormente à produção (e revisão pelo mesmo) da primeira parte das Cartas Chilenas: “Mas ah! Critilo meu, que eu estou vendo, / Que já chegam a ler as cartas tuas: / Estes bárbaros monstros são cobertos / De vivo pejo ao ver seus delitos, / Que em tão disforme vulto hoje aparecem.” Claudio Manuel da Costa, “Epístola a Critilo”, in GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. Introdução de Joaci Pereira Furtado. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 46. 17

consolidação, a circulação e a difusão de uma sensibilidade marcada por uma modulação de sentimentos fundamental para a tentativa de representar uma corporificação na ausência de alguém em cuja presença se deseja fisicamente estar. Em uma das pontas de uma carta, sempre falta um corpo. Embora os clássicos tivessem consciência do problema (Ovídio, por exemplo, um poeta exilado cujo sentimento tocou Critilo), tal fato não despertou interesse dos tratadistas retóricos da Antiguidade, que estiveram mais preocupados em considerar a epístola como um meio através do qual os tipos de discurso (estes sim, minuciosamente descritos) se propagavam. Na Época Moderna, a ausência do corpo (e das ações possíveis ao corpo relativas à paralinguagem, à prosódia e uma série de procedimentos comunicacionais não verbais) passou a preocupar não apenas os grandes humanistas – como Erasmo de Roterdã –, mas esteve na raiz de uma nova postura do público leitor e, sobretudo, dos autores de cartas, primeiramente “não-ficcionais”, depois assumidamente “ficcionais”. A produção epistolar será, conforme avança aquele período histórico, cada vez mais marcada por uma obsessão por aspectos da oralidade, buscando incessantemente a produção de presença.19 Ao lado deste problema fundamental da epistolografia – a falta do corpo físico e, por conseguinte, dos elementos corporais da comunicação face a face –, a escrita (sobretudo a de foro íntimo, cada vez mais importante) será acompanhada de uma progressiva consciência de si por parte do autor, tornando-se cada vez mais uma forma premeditada de comunicação à distância com vistas à simuSCHNEIDER, Gary. The culture of epistolarity: vernacular letters and letter writing in early modern England, 1500-1700. Newark: University of Delaware Press, 2005, p. 30-31. 19

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GNARUS - 26 lação e, portanto, ao convencimento daquela mesma presença ausente.20 Escrever uma carta é tentar seduzir alguém – Ovídio, mais uma vez, sabia disso, como demonstrou em suas Heroides, e o recurso à epistolografia para simular a tensão amorosa ne Época Moderna deve muito à eficiência alcançada pelo autor latino no uso do artifício.21 A escolha da epistolografia como forma preferida (e mais bem-sucedida) para a escrita de romances de temática amorosa entre os séculos XVII e XVIII não deve ser, sob esta perspectiva, um grande enigma – cartas, por conta das necessidades discursivas que as engendram, são potencialmente eróticas. Os protestos de amizade (e mesmo de hostilidade amistosa) de Critilo/Gonzaga em relação a Doroteu/Claudio ao longo do conjunto atribuído a Gonzaga podem ter, assim, uma nova legibilidade, reforçando por meio da poesia em forma de carta (ou carta em forma de poesia?) a proximidade afetiva existente entre os dois indivíduos – e mesmo entre o autor e outros que poderiam ter acesso mais oblíquo aos escritos, ali também supostamente tratados, como Alvarenga Peixoto, outro poeta inconfidente, e algum desamor. O recurso que Gonzaga faz à linguagem mais crua para descrever situações que se tornam quase que fisicamente sensíveis devia ser potencializada para uma audiência marcada por uma sensibilidade epistolar que hoje provavelmente perdemos (ou cujos ecos podem ser ouvidos, de forma análoga, nas mensagens de teor sexual trocadas por celular22). As sensibilidades que forjam a epistoloIdem, p. 32. ALTMAN, Janet Gurkin. Epistolarity: approaches to a form. Columbus: Ohio State University Press, 1982, p.14. 22 WEISSKIRCH, Robert S. e DELEVI, Raquel. “‘Sexting’ and adult romantic attachment”, in Computers in Human Behavior, n. 27, 2001, p. 1697-1701. 20 21

grafia moderna encontram um grande difusor na imprensa, sobretudo a partir dos romances epistolares. Para tratar do tema, Janet G. Altman propôs, em obra de 1982, o conceito de epistolaridade, isto é, “o uso de propriedades formais da carta para a criação de sentido”.23 De acordo com a autora, longe de constituírem meros recursos ornamentais, as estruturas presentes neste tipo de escrita – incluindo o recurso a relações temáticas, personificação de tipos, organização interna, narração de eventos – influenciam significativamente a forma como os autores escrevem as cartas e em grande medida informam a sua leitura. O público leitor de epistolografia ficcional no século XVIII, conforme era de se esperar, estava treinado para ler cartas. Como já foi ressaltado por estudiosos de história da literatura, mais do que uma simples coincidência cronológica, a chegada do romance ao status de gênero literário maior (o que aparentemente foi assumido por Rousseau) fez amplo recurso da escrita epistolar.24 Segundo Altman, que estudou o uso do modelo epistolar em romances em um largo espectro temporal, enquanto o recurso a este tipo de escrito fornece aos autores de romances um acervo de instrumentos retóricos para simulação de situações (mesmo que os romances não sejam calcados na narração de fatos), os leitores encontram ali modelos e perspectivas para interpretação.25 Segundo a mesma autora, aliás, a temática do afeto encontrará no modelo epistolar sua forma ideal. Enfim, a escrita epistolar em seus formatos ficcionais, que conheceu uma explosão na ALTMAN, Janet Gurkin. Epistolarity: approaches to a form. Columbus: Ohio State University Press, 1982, p. 4. 24 A este respeito, observar, por exemplo, o clássico WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, especialmente o capítulo “Richardson romancista: Clarissa”, p. 220-253. 25 ALTMAN, Janet Gurkin. Epistolarity: approaches to a form. Columbus: Ohio State University Press, 1982, p. 9. 23

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GNARUS - 27 Europa do século XVIII (e que, aliás, parece, segundo Márcia Abreu, ter despertado mais interesse no Brasil do que em Portugal26), se adequava às sensibilidades próprias de um contexto no qual uma ideia humanizada – e não sagrada – de amor se impunha como elemento central das relações entre os indivíduos. A sátira de Gonzaga, entretanto, se dá em meio a uma nova percepção do homem ocidental, e guarda com este algumas aproximações. O século XVIII ocidental foi nervoso. Comumente simplificado sob o epíteto de “Era da Razão”, foi, mais do que isso, uma descoberta da responsabilidade do homem sobre o seu destino e sobre o seu passado. Esta descoberta veio acompanhada de dois movimentos: em primeiro lugar, um mergulho no homem físico, em suas estruturas biológicas; em segundo, a constatação, ao longo de todo aquele século, de que o mundo é apreendido e reelaborado através dos sentidos. Os filósofos do século XVIII estavam muito empolgados com o avanço técnico trazido por áreas específicas do conhecimento – principalmente a matemática e a física. Desde o século XVII, com o triunfo das leis mecânicas que pareciam reger a natureza, organizando todas as partículas do universo, os pensadores trataram de adequar toda a teoria do conhecimento às mesmas regras que dominavam a produção do conhecimento sobre A autora fez uma análise a partir dos números da censura portuguesa entre os anos de 1763 e 1807. “Em comparação com os leitores do Porto, os cariocas parecem muito mais modernos, dando primazia aos romances em sua seleção de livros: há oito romances entre os livros mais enviados (55%). Os moradores do Porto, ao contrário, incluíram apenas seis narrativas de ficção entre os 31 livros mais procurados (19%).” Entre os portuenses – conterrâneos de Gonzaga – há uma acentuada preferência por clássicos latinos, sendo alguns dos principais autores Cícero, Virgílio e Horácio. ABREU, Márcia. Os caminhos dos livros. Campinas: Mercado das Letras / Associação de Leitura do Brasil; São Paulo: Fapesp, 2003, p. 93. 26

o mundo físico. A visão sobre a natureza do conhecimento havia se transformado a partir do sucesso de Newton, como já escreveu Isaiah Berlin.27 Se a partir do século XVII era incontestável do ponto de vista dos pensadores que os temas relativos à “filosofia natural” (que hoje chamamos de “ciência”) estavam (ou deveriam estar) inteiramente submetidos ao tipo de argumentação e comprovação que hoje conhecemos como modelo científico de observação e experimentação, a reflexão nas áreas ligadas à vida social ainda obedecia lógicas que chamaríamos (retrospectivamente) de “não-científicas”. Entre os séculos XVII e XVIII, o cenário se transformou: homens como John Locke e David Hume passaram a associar a lógica perene da mecânica dos corpos, revelada em termos tão cristalinos (e úteis, e “verdadeiros”) por Newton, a uma naturalização da própria sociedade e, mais profundamente, ao próprio “entendimento” humano – ou seja, criaram as bases para uma nova gnosiologia. Se o mundo físico era conhecido a partir da experimentação direta, o conhecimento em si só poderia ser um fenômeno que se dá a partir do contato direto entre o mundo e o processo físico de formação das ideias.28 Paralelamente, mergulhava-se de fato no homem físico. George Rousseau, que estudou a interface entre literatura e conhecimento médico no século XVIII, propôs a existência do que chamou de uma “retórica dos nervos” no período. Ele reconstruiu o percurso e as apropriações feitas na linguagem científica e nas criações literárias da questão dos nervos. Estereótipos de classe BERLIN, Isaiah. “Os filósofos do Iluminismo”, in HARDY, Henry Hardy (org.). A força das idéias / Isaiah Berlin. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 62-83. 28 O irlandês George Berkeley (1685-1753), que era um fanático religioso, um sacerdote anglicano que acusava seus compatriotas de irreligiosidade e, desiludido, foi pregar nas Bermudas, formulou em 1710 o princípio segundo o qual “ser é ser percebido”. 27

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GNARUS - 28 e gênero, atitudes perante o corpo e o mundo, expectativas políticas e sociais vão precisar lidar com uma grande invenção científica do período: a percepção e a análise humanas (o tudo cognitivo) são processos neurofisiológicos. Segundo o autor, existe um percurso entre os séculos XVIII e XIX ligando os nervos ao culto da sensibilidade, o que teria sido fundamental para o próprio Romantismo – a sensibilidade romântica bebeu na retórica nervosa que transbordou do discurso médico.29 A primeira grande clivagem, neste sentido, será a sua sexualização. Os nervos atuariam, na retórica do século XVIII, de maneira diferente em homens e mulheres. Além disso, em um período de afirmação burguesa na Europa continental, os nervos também serão constituídos de acordo com o grupo social – os balneários, as estâncias e todo um conjunto de tratamento neurológico estarão disponíveis apenas para aqueles grupos cuja constituição nervosa será considerada mais delicada: os ricos e bem educados. Não é difícil notar esta segmentação social e de gênero no momento da emergência do romance: o público buscado é o das classes burguesas, e haverá também um certo direcionamento ao público feminino, o que pode ser visto inclusive na escolha das protagonistas de obras como Clarissa, Pamela, Julia...

corporativas sacadas da Idade Média e atualizadas na Época Moderna. O “corpo político”, outrora uma antropomorfização de uma visão cristã da vida social, também será observado a partir da sua correspondência com o corpo humano, uma vez que este é tomado como microcosmo daquele. Este é o centro de verdade ética disponível aos círculos letrados ocidentais na segunda metade do século XVIII. As “patologias” do “corpo social” serão, em épocas posteriores, cada vez mais recorrentes e assim serão tratadas as questões sociais: o racismo “científico”, a eugenia, as limpezas étnicas etc, ressoam esperanças de tratar a vida social como os iluminados médicos tratavam dos corpos físicos mais sensíveis – a equivalência entre certos posicionamentos políticos e patologias, muito comum em discursos públicos que vigoram atualmente no ocidente, tem tributos a pagar àquela distante transformação histórica. A obra mais significativa neste contexto de generalização de uma nova sensibilidade – que é, inclusive, paralela ao processo contínuo e cada vez mais agudo e generalizado de emergência da subjetividade ocidental relacionada com a escrita e com as práticas individuais de leitura – é a já mencionada Julia, de Rousseau, de 1761.30

Assim, vemos a expansão e a apropriação de um princípio biológico-anatômico pelo que pode ser chamado, com certas reservas, de “teoria social”, e uma difusão ainda mais significativa através de sua reelaboração literária – o que resultará, inclusive, na incorporação desta retórica dos nervos à teoria política, herdeira, como se sabe, das teorias

A história de amor narrada por Rousseau em formato epistolar teve um impacto inédito sobre leitores e leitoras. Um conjunto de cartas recebidas pelos editores e pelo próprio autor revela a relação que os leitores mantiveram com os personagens, especialmente sua protagonista. As desventuras da jovem, cujo destino trágico não turva sua existência virtuosa, despertou entre homens e mulheres os

ROUSSEAU, George S. “Para uma semiótica do nervo: a história social da linguagem em novo tom”, em BURKE, Peter e PORTER, Roy (orgs.). Linguagem, indivíduo e sociedade. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993, p. 287-364.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Júlia ou A Nova Heloísa. Cartas de dois amantes habitantes de uma cidadezinha ao pé dos Alpes. Introdução de Fulvia M. L. Moretto. São Paulo / Campinas, Hucitec, 1994.

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GNARUS - 29 mais exaltados sentimentos. Esta literatura, que tinha na verossimilhança um elemento de conexão com a “vida real” dos leitores, assume um papel ainda mais relevante quando o seu autor é Rousseau. Seus textos, ficcionais ou não, eram lidos como ensinamento, como exemplos para a vida, o que dará a Julia um papel ainda mais destacado como modelo, como exaltação do valor do sacrifício para que se mantenha uma existência “correta” – no caso, a realização plena do amor dentro do casamento. Como explicou Robert Darnton, as cartas endereçadas pelos leitores do livro revelam a centralidade destes elementos: “amor, casamento, paternidade – os grandes eventos de uma pequena vida e o material de que a vida era feita em toda parte, na França.”31 Se Rousseau não foi o primeiro a causar “epidemias de emoção” na Europa, Julia fez com que os leitores e as leitoras quisessem – e tentassem, de fato – viver aquelas vidas. A partir daí – desta identificação entre público e obra ficcional – desenharam-se as chamadas “patologias literárias”, uma série de efeitos na vida real a partir de reações aos romances. Os mais conhecidos destes efeitos são a já mencionada “febre Werther” e o “bovarismo”, índices de uma psicogênese propriamente contemporânea relacionada aos modelos propagados pela literatura. Os suicídios “por imitação” que se sucedem à leitura do livro de Goethe ou o descolamento da existência “real” suscitado pela obra de Flaubert apenas confirmam, como mostrou Calabrese, o que já foi classificado como “recepção produtiva” de um texto literário, desencadeado pela leitura do livro de Rousseau.32 Esta “norma”, uma espécie de elaDARNTON, Robert Darnton. O grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p. 309. 32 CALABRESE, Stefano. “Wertherfieber, bovarismo e outras patologias da leitura romanesca”, in MORETTI, Franco (org.). O Romance, 1: A cultura do romance. São 31

boração e implantação de padrões sociais a partir de modelos literários, será observada durante todo o século XIX, a partir de velhos e novos romances, e a psiquiatria vai descrever fartamente esta decalcomania, que no limite chegaria ao crime passional e ao suicídio. O texto literário, a partir da personagem rousseauniana, havia se tornado cosmografia, e as obras de grande impacto publicadas posteriormente, quando tratam da questão da virtude relacionada à questão do gênero e dos afetos, vinculariam leitura e performance. Enfim, não é difícil supor que comportamentos “nervosos” eram mais esperados de grupos sociais que estavam no topo da pirâmide social – pessoas que estavam mais afeitas a este tipo de afetação por conta da sua suposta constituição mais frágil, ao contrário da grande massa ao longo do século XVIII, exposta a doenças de outra ordem (a plebe não enlouquecia, morria de tifo). Assim como às mulheres eram atribuídos comportamentos resultantes desta constituição, os homens de alta extração deviam se adequar a esta forma de auto-representação social – corar, chorar, sorrir, desmaiar, emocionar: atitudes “nervosas” que resultam de sentimentos como o amor e a raiva, ou de sensações como dor e prazer, irrigam não apenas a vida das pessoas nestes círculos sociais, mas povoam os registros escritos da época, inclusive nas correspondências – este é o resultado esperado do “leitor criativo” normal, isto é, oriundo de categorias sociais superiores. Estes limites criativos estavam previstos na economia retórica do novo regime narrativo. E o mundo letrado português setecentista não estava imune à nova ordem: o autor da “Epístola a Critilo”, comumente aceito como Claudio Manuel da Costa, definitivamente um homem do seu tempo, fala sobre a sua Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 697-732.

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GNARUS - 30 reação ao ler o poema atribuído a Gonzaga:

“Dentro

em

minha

alma

Que diversas paixões, que afetos vários A um tempo se suscitam! Gelo, e tremo Umas vezes de horror, de mágoa e susto Outras vezes do riso apenas posso Resistir

aos

impulsos:

igualmente

Me sinto vacilar entre os combates Da raiva, e do prazer. Mas ah! que disse! Eu retrato a expressão, nem me subscrevo Ao sufrágio daquele, que assim pensa Alheio da razão, que me surpreende. Trata-se aqui da humanidade aflita (...)”33

Esta reação emocional – ou nervosa – é exatamente o que se espera de um personagem do porte de Claudio, bem educado, letrado, com sensibilidade poética e aliado de pessoas de alta posição social. As linhas de Claudio Manuel da Costa, e mesmo o restante das Cartas, devem também ser compreendidas dentro do contexto do que George Rousseau chamou de “nobilitação do comportamento nervoso”. É preciso alertar ainda que o recurso à epistolografia também está associado, desde os seus exemplos mais clássicos, a duas funções do discurso: advertir e emocionar (para lembrar de Paulo, o apóstolo, e de Ovídio). Quanto ao primeiro aspecto, sua dimensão moral, esta pode ser percebida na apresentação das Cartas Chilenas. Quando o seu autor adverte sobre a sua atitude satírica, ele não está dando à sua obra um caráter singular: ao contrário, está enfatizando, ao sobrepor o papel moderno da sátira ao missivismo literário, o seu caráter admoestador. A função de emocionar, por seu turno, já é um elemento forGONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. Introdução de Joaci Pereira Furtado. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 37-38.

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mador da escrita poética naquele momento, e é evidente, dentro do padrão retórico herdado do cânone clássico, que os fatos da vida cotidiana (“baixos”, portanto) só podem ser objeto de recriação poética ou literária por meio da sátira (uma epopeia jamais poderia contê-los, a não ser na forma de idílio – que, aliás, o próprio Gonzaga dominava, como ficou claro em seu Marília de Dirceu).34 Além disso, a escolha do formato de cartas apela para a proximidade com os possíveis leitores, como já se disse, dando a entender que os fatos narrados (poeticamente, satiricamente) encontram respaldo no mundo real, próximo a eles, sendo verdadeiros ou verossímeis. O formato é, em si, um apelo aos sentidos. Pode-se aduzir, portanto, que o uso deste tipo específico de escrita neste contexto tem relação com o regime narrativo do século XVIII. Este, por sua vez, tem como um elemento distintivo a descoberta e a valorização dos sentidos. Esta literatura (em sentido largo) epistolográfica, seja deliberadamente ficcional ou não (e, se não for muito arriscado dizer, seja em prosa ou em verso), cria um plano de realidade que está diretamente relacionado à consciência dos sentidos – este se constitui em marcador do seu regime narrativo. Não é à toa que esta modalidade de escritos (a epistolografia “ficcional” do século XVIII), dentro deste regime narrativo, confunde deliberadamente verdadeiro e falso. Geralmente divulgadas anonimamente ou sob pseudônimos (como fizeram Rousseau e Gonzaga, por razões diversas – um por reputação, outro por risco), as distintas compilações de cartas trazem em uma imitação de relatos verdadeiros os seus enredos em alguma medida inventados – por vezes colhiEmbora O Hissope, de Cruz e Silva, que circulou manuscrito desde 1768, seja uma sátira escrita em estilo épico – um poema heroico-cômico.

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GNARUS - 31 dos em situações efetivas, mas alterados ao gosto das mitologias poéticas ou literárias dentro das quais seus autores são formados; por outras, completamente inventados, mas sempre verossímeis, adequados às mitologias que supostamente formam o seu público-alvo. Talvez as Cartas de Olinda a Alzira, saídas sob o nome de Bocage, que entre outras coisas falam em enrubescimento, palpitação, hiperventilação, voz trêmula, calores, lábios inflamados, êxtase, “voluptuoso tato”, “lúgubres ideias”, “sentidos todos confundidos”, tudo atribuído a “prodígios” da incontornável e sábia natureza, que não mente, deem uma boa mostra desta nova forma de ver, sentir e comunicar o mundo (“Eu não coro de dar-me toda a Alcino, / Nem eu coro também de confessá-lo: / Instintos naturais se não são crimes, / Como crime será narrar seus gozos?...”).

preconizava o cânone erudito clássico. As Cartas Chilenas, embora poesia, embora sátira, também podem ser percebidas como uma atualização do mundo dentro do regime narrativo proto-romântico e aristocratizante de Tomás Antônio Gonzaga. Trata-se de alguém formado em um regime narrativo que vai se generalizar na intelligentsia ocidental naquele século, regime este que inclui determinados padrões afetivos e políticos – todos eles já dados pela sensibilidade narrativa (ou formados por uma mitologia) que não devia ser muito estranha àquilo que Rousseau dera vazão, e confrontados com a nova situação: o conflito com o governador (que, aliás, disputará sua amante), a dissolução da primazia do seu grupo político na Capitania de Minas Gerais, o desrespeito patrocinado por seu antagonista ao decoro do Antigo Regime.

Gonzaga, ao longo das Cartas Chilenas, usa as convenções retórico-narrativas próprias da escrita poética e da epistolografia dos sentidos para sensibilizar – e, assim, ganhar a simpatia de – um público bastante específico, que assim como ele estivesse desconfortável com a possível dissolução do mundo relativamente estável que conhecia ou defendia.35 Em outros termos, Tomás Antônio Gonzaga era todo sentimento.

As descrições em linguagem forte de reações físicas às emoções – enrubescimento, suor, boca seca, insônia, pernas que tremem, sejam por amor ou por ódio, por afeição ou por oposição política – que se espraiam pela sátira gonzagueana,36 potencializadas pelo formato epistolar, estão em conformidade com a destruição de um contexto pessoal e, principalmente, se adequam a um regime narrativo dentro do qual circulam os letrados da segunda metade do século XVIII e que ajudaria a conformar o que seria, naquela virada para o século XIX, uma sensibilidade moderna – ou, enfim, contemporânea.

O autor desta sátira, através do uso de um modelo de escrita (as epístolas) quer advertir (o que também assume, obviamente, como função básica do satirista) e apelar aos sentidos, tal como acontecia com esta modalidade literária no século XVIII e como Já na primeira carta, Critilo/Gonzaga dá uma pequena prova da sua proximidade com aquele contexto, ao narrar aflição causada por um cometa que, na ficção poética, anunciava a chegada do seu rival: “Aflito o coração no peito bate; / Eriça-se o cabelo, as pernas tremem, / O sangue se congela, e todo o corpo / Se cobre de suor. Tal foi o medo.” GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. Introdução de Joaci Pereira Furtado. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 58 35

Rodrigo Elias é professor da UniCarioca, das Faculdades Integradas Simonsen e mestre e doutor em História pela Universidade Federal Fluminense “Que é isso, Doroteu? Tu já retiras / Os olhos do papel? Tu já desmaias? / Já sentes as moções, que alheios males / Costumam infundir nas almas ternas?” GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. Introdução de Joaci Pereira Furtado. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 94. 36

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