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Artigo
MEDÉIA: UMA ALTERIDADE À SOCIEDADE GREGA ANTIGA Por Alanna Freitas e Allan Freitas
RESUMO: Nesse artigo, tratamos a forma como a personagem Medéia, da tragédia de Eurípides, através de suas ações, constituiu-se em uma alteridade ao feminino na sociedade grega antiga. Para isso, analisamos, segundo interpretações de alguns autores, a condição prevista para a mulher grega no tempo da tragédia Medéia, assim como as inovações de Eurípides ao escrever a obra. Palavras Chaves: Medéia; Eurípides; Antiguidade; Grécia; Mulher; Alteridade.
Introdução
O
diálogo sobre o valor e a função social da mulher nos tempos atuais é constante, mas não possui suas origens no tempo presente. Na antiguidade grega existia um discurso político, o qual procurava afirmar condições de submissão das mulheres em relação à figura masculina . Por esse motivo, não é de se estranhar que uma atitude de oposição às ideias, por exemplo, de seu marido, não fosse bem vista para uma mulher naquela sociedade.
deia, através de suas atitudes, depois de traída, se diferencia do padrão das mulheres helênicas do seu tempo, como é apresentado na tragédia de Eurípides, Medéia. Desse modo, contextualizaremos as condições da mulher grega no tempo da tragédia Medéia, mostrando os ideais da sociedade grega antiga desse mesmo período (séc. V a.c), e a inovação de Eurípides em escrever a obra. Assim, o presente artigo disserta sobre o modo como as atitudes da personagem Medéia romperam com a tradição de seu tempo.
É nesse âmbito que a personagem MeGnarus Revista de História - VOLUME X - Nº 10 - SETEMBRO - 2019
GNARUS - 15 Medéia e a mulher na sociedade grega antiga wEntre os seres com psique e pensamento, quem supera a mulher na triste vida? Impõe-se-lhe a custosa aquisição do esposo, proprietário desde então de seu corpo – eis o opróbrio que mais dói! E a crise do conflito: a escolha recaindo probo ou no torpe? À divorciada, a fama de rampeira; dizer não! Ao apetite másculo não nos cabe. Na casa nova, somos mânticas para intuir como servi-lo? Instruem-nos? Se duro estágio superamos, sem tensão conosco o esposo leva jugo – quem não inveja? – ou melhor, morrer. Quando a vida em família o entedia, o homem encontra refrigério fora, com amigo ou alguém de mesma idade. A nós, a fixação numa só alma. “Levais a vida sem percalço em casa” (dizem), “a lança os põe em risco.’’ Equívoco de raciocínio! Empunhar a égide dói muito menos que gerar um filho. Sei bem que nossas sendas não confluem: dispões de pólis, elos de amizade, lar paternal, desfrutes na vivência; quanto a mim, só, butim em solo bárbaro, sem urbe, rebaixada por Jasão, sem mãe, sem um parente, sem... que a âncora soerga longe deste pesadelo! Jaeger nos relata a respeito da personagem da tragédia de Eurípedes: “Medéia faz reflexões filosóficas sobre a posição social da mulher, sobre a desonrosa violência da entrega sexual a um homem estranho a quem é preciso seguir no casamento e comprar por um rico dote”. Assim, nesse excerto da obra de Eurípedes, em que há um diálogo entre
Medéia e o Coro das mulheres de Corinto, é possível notar uma reflexão sobre a posição social da mulher na Grécia Antiga, quando a própria personagem retrata o modo como os maridos concebiam a presença feminina na sociedade. Em seguida, na fala de Medéia, são evidenciadas diferenças entre a personagem e as mulheres do Coro, como o fato da mesma ser uma bárbara , isto é, pertencia a uma sociedade de diferentes costumes e tradições da civilização grega e, além disso, estava em uma terra estrangeira, longe da família e abandonada pelo marido. Nesse âmbito, o autor da referida tragédia faz uma representação do social feminino na antiguidade. Assim como Eurípedes retrata em Medéia uma visão vigente na época sobre o papel da mulher na sociedade grega antiga, muitos autores, como Xenofonte, também fizeram tal reflexão em suas obras . Tais descrições surgem de visões masculinas, como podemos perceber na fala do Coro das helênicas ao aconselhar Medéia sobre como ela, pelo menos, não deve agir: “[...] Tânatos terminal já desponta? Deixa de invocá-lo! Se teu marido virou idólatra de cama infrequentada, isso é com ele! Não te inflames! Zeus abraça tua causa! Evita que te consuma o pranto esponsalício!’’ Ao mesmo tempo em que é revelada uma mulher, na antiguidade, a qual não aceita apaticamente a traição do seu marido, observamos um grupo de outras mulheres, as quais sugerem uma indiferença em relação à traição de um homem. Lessa, ao citar Xenofonte , ratifica o fato de haver na escrita dos antigos uma delimitação do espaço feminino na sociedade: “Os textos antigos insistem na existência de uma demarcação rígida de es-
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GNARUS - 16 paços sociais masculinos e femininos. Xenofonte por exemplo nos oferece uma divisão sexual nos espaços de atuação em interno-feminino e externo masculino.” Na atualidade, em algumas obras nas quais falam sobre a mulher na antiguidade grega, é encontrado um discurso em que é postulada a ideia de submissão de tais mulheres em relação aos homens, sobretudo, seus maridos. Um exemplo dessa interpretação pode ser observada na música de Chico Buarque de Hollanda, Mulheres de Atenas , a qual exibe uma representação literária, ou ainda na seguinte afirmação: “[...] não eram precisamente medéias as mulheres de Atenas. Eram oprimidas demais, submetidas a uma educação rígida, que as levava a acreditar na própria inferioridade e em seu dever de submissão” . Em que pese o fato de que mesmo os dois autores crendo no modelo de submissão, Chico Buarque de Hollanda é irônico, utilizando-o num contexto também poético, enquanto Lopes apenas o reitera. Em seu artigo, Lopes nos diz que a própria mulher na antiguidade, neste caso as gregas atenienses, se viam de forma “inferior” em relação aos homens. É como se as mentes dessas estivessem impregnadas por ideologias sobre a posição adequada dos gêneros na pólis. Porém, essa visão sustentada por Lopes, do feminino sobre o feminino, deve ser questionada, pois até então, exceto Safo, não foi encontrada nenhuma documentação de mulheres na Grécia antiga falando sobre elas mesmas, isto é, a documentação a qual se tem acesso é de homens falando sobre o assunto. Apesar da imagem de submissão e reclusão doméstica apresentada sobre a mulher grega na antiguidade – e ainda hoje ao se estudar a figura feminina em Atenas – Andrade afirma
que o feminino estava, na verdade, ativamente ligado às relações da pólis: “Não se trata de incluir as mulheres no ‘clube de homens’’, mas de evidenciar que este tal ‘clube de homens’ que, pretende-se, teria sido a cidade-estado grega, não era mais do que a ponta visível de um iceberg, e que a pólis era também uma pólis das mulheres.” Andrade prossegue nos dando a informação de que a mulher vivia em uma pólis diferente da dos “cidadãos’’ e estava presente na vida cotidiana e comercial, além de possuir destaque; essas mulheres transitavam entre os incluídos (cidadãos) e os que apenas habitavam aquela região da Ática. A autora afirma a existência de uma atuação da mulher na antiguidade grega, ainda que de uma forma diferente dos “cidadãos” e apesar de serem excluídas da vida institucional. Elas possuíam a sua pólis, “uma pólis das mulheres”. Andrade nos revela um olhar sobre as mulheres gregas quase nunca presente, sobretudo, nos estudos que se referem à Grécia Antiga: [...] Mesmo que se diga que as mulheres cidadãs, em Atenas, eram enquadradas segundo certos modelos de conduta. Os quais podiam ser aceitos ou transgredidos na prática social, é verdade que havia um outro “modelo”, não de boa esposa, mas de mulher “feminina”, amada, desejada, mas sobretudo temida: porque a sedução feminina tira do homem a sua previdência, sua atenção, seu esforço. Mediante às suas atitudes, Medéia não pode se encaixar ao grupo de “boa esposa” ou das mulheres atenienses em “submissão”. Provavelmente, ela está mais enquadrada ao “modelo” de mulher “temida”, mas coloquemos aqui, o conceito de “temida’’ em um uni-
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GNARUS - 17 verso diferente da sedução, especificamente, o temor . Como diz a própria Medéia, ela era temida por ser uma ávida conhecedora de fármacos: “Se introduzes o novo entre os cabeças-ocas, parecerás um diletante, não um sábio. Se acima te colocam de quem julgam ter cabedal na ciência, te encrencas” . Em tal cena, na qual a personagem dialoga com o rei Creonte, observamos a justificativa da mesma para a sua negação por parte dos habitantes de Corinto, na qual ela afirma que é apenas especialista em uma nova área de estudos, e por saber mais que os ditos “sábios’’, era fruto de um desprezo, que se caracteriza como um temor.
no padrão de características tradicionais da figura heróica, nem os assemelha tanto aos deuses. Segundo Romilly, há nas tragédias de Eurípedes uma semelhança entre o modo de vida dos personagens heróicos ou míticos a dos outros homens . Analisamos na referida tragédia, que Jasão vivia uma vida comum, sofria das mesmas aflições sofridas pelos humanos, assim como a personagem Medéia, embora essa fosse uma feiticeira. Não mais sorri aos jogos dos meninos, nem cria outra linhagem com sua ninfa: meus fármacos fatais hão de matar terrivelmente a terribilíssima. Não queiram ver em mim um fleumático ou flébil. Tenho outro perfil, Amor
Eurípides e a inovação na tragédia Medéia Eurípides era oriundo de uma família humilde e, assim como Ésquilo e Sófocles, foi um escritor trágico da Grécia antiga . E foi, sobretudo, um inovador: “Eurípides imprimiu ao gênero trágico uma profunda renovação de que todas as suas obras são testemunhas. Desenvolveu a ação, forçou os efeitos, libertou a música, multiplicou as personagens, retirou o herói do seu pedestal, representou mil reviravoltas, algumas das quais roçam o melodrama.” Na tragédia Medéia, a inovação em retirar o herói “do seu pedestal” é perceptível na ausência de clássicos atributos heróicos à figura de Jasão. Um exemplo disso é o momento em que a personagem Medéia, em diálogo com o mesmo, o descreve: “Longe de ser um rasgo de bravura, olhar de frente amigos que arruinou é a pior moléstia que acomete alguém: a canalhice!” . Nesse trecho, Jasão não é glorificado, e segundo a descrição de Medéia, nem é digno. O autor não insere suas personagens
ao amigo, rigor contra o inimigo; eis o que sobreglorifica a vida!
Matar friamente e por vingança a princesa, e consequentemente o rei de Corinto, e os próprios filhos para afetar diretamente a Jasão, foram atitudes que, carregadas de melodrama, constituíram-se naquele tempo, como inusitadas na tragédia e na vida social grega então vigorante. A descrição da paixão e a inserção do amor na tragédia por parte de Eurípides foram também aspectos no mínimo impactantes para uma sociedade que se deparava com o novo na tragédia Medéia. A paixão da personagem, com a qual ela é capaz de romper com qualquer padrão imposto a um ser humano, é forte, voraz e a rouba irresistivelmente. É com ela que a personagem consegue concretizar seus planos, Medéia é a paixão . ‘’Não é que ignore a horripilância do que perfarei, mas a emoção derrota raciocínios e é a causa dos mais graves malefícios’’. Segundo Andrade, características em Me-
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GNARUS - 18 déia como o seu conhecimento em magia e o fato de ser uma bárbara acentuaram o conflito entre a esposa ilegítima e o marido, entre a mulher de terra estrangeira e as leis predominantes na cidade , ou seja, uma mulher que não tinha apegos às tradições helênicas justamente por não pertencer àquela cultura . Depreendemos, então, que esse seja um dos motivos do autor não usar uma personagem grega para as inovações realizadas em sua obra.
Considerações finais Neste trabalho, objetivou-se explorar o modelo do “outro feminino” na tragédia Medéia, o qual é apresentado através de uma personagem que subverte os paradigmas previstos para a mulher daquele período. Nesse âmbito, o uso de documentação e bibliografia de outros autores nos forneceu diversas ideias acerca do assunto, mas por outro lado também significou a necessidade de amadurecimento sobre o tema.
nossa contemporaneidade acerca do assunto. Procuramos evidenciar um universo feminino quase nunca mostrado em tais discussões, ‘’uma pólis das mulheres’’, o universo ao qual pertence Medéia enquanto “mulher temida”. Ao descrever a personagem de Eurípedes, tivemos a preocupação em ressaltar aspectos inovadores do autor no gênero da tragédia e a ruptura com os paradigmas do feminino. É importante entender o que representava a barbárie, o conhecimento em fármacos, e a ousadia de Medéia, não só para o enredo da obra, como também para o contexto de uma sociedade que se deparava com o novo.
Allan Freitas e Alanna Freitas são graduados em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
Documentação EURIPIDES. Medéia. São Paulo, São Paulo: Editora 34, 2010.
Trabalhar com outras obras implicou em diversas representações sobre o conteúdo central do nosso artigo, e a maior dificuldade estava em saber lidar criticamente com o que se estava lendo. Por meio de Medéia, é possível obter uma variedade de informações sobre o papel do feminino no período em que a obra foi escrita. Mas não poderíamos esquecer-nos da subjetividade do autor (uma figura masculina falando sobre o feminino), existente na referida tragédia.
XENOFONTE. Econômico. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1999.
Apresentamos uma reflexão a respeito de ideias presentes na escrita dos antigos, as quais se referem ao previsto para a presença feminina na antiguidade grega, e as contextualizamos com algumas representações da
Bibliografia
Documento Sonoro HOLLANDA, Chico Buarque de; BOAL, Augusto Pinto. Mulheres de Atenas. São Paulo: Cara Nova Editora Musical Ltda, 1976. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MabbVn0Rlv4.
ANDRADE, Marta Mega de. A Cidade Das Mulheres: Cidadania e Alteridade Feminina Na Atenas Clássica. Rio de Janeiro: LHIA, 2001.
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GNARUS - 19 JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1995. LOPES, Giovana dos Santos. Medéia, de Eurípedes: um olhar sobre tradição e ruptura, na tragédia grega. Revista Urutágua - revista acadêmica multidisciplinar Nº 14 – dez. 07/jan./ fev./mar.2008 – Quadrimestral – Maringá - Paraná - Brasil. LESSA, Fábio de Souza. Redes sociais informais e esposas na Atenas de Aristófanes. Phoînix, Rio de Janeiro, 7: 142-148, 2001. ROMILLY, Jacqueline de. A Tragédia Grega. Lisboa: Edições 70, LDA, 2008.
Medéia, de Paul Cézanne
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