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Artigo

UM BREVE ESTUDO DAS LEGENDAS EM TORNO DO RITUAL DE SAGRAÇÃO DE HENRIQUE V – INGLATERRA, SÉCULO XV. Por Caio de Barros Martins Costa.

Resumo: Estudo acerca das representações em torno da sagração de Henrique V de Lancaster, numa ampla construção de memória produzida no século XV em crônicas após a morte do rei. Para tanto busca-se analisar as lendas e mitos que cercaram o ritual de coroação régia, num contexto de afirmação da dinastia Lancaster pós-Guerra dos Cem Anos e início da Guerra das Duas Rosas, assim como afirmação de um projeto de Reino no final da Idade Média. Palavras Chave: Sagração régia; Medievo inglês; Poder régio.

E

m 1413 inicia na Inglaterra um novo

na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro1 e

governo, de um rei conhecido na memória

que

social como “exemplar”. Este rei é Henrique

representações da sagração de Henrique V e as

V, famoso por em 1415 vencer os franceses na

virtudes que este rei teria seguido nas crônicas

Batalha de Agincourt na Guerra dos Cem Anos. A

feitas após a morte do mesmo, em um contexto

partir de então uma grande produção cronística se

pós-Guerra dos Cem Anos e em meio a Guerra das

formou, afirmando por vezes o caráter sagrado,

Duas Rosas. Este é um momento de afirmação do

exemplar e virtuoso de Henrique. O auge chega em

poder régio e do Reino ou ainda um projeto de

fins do século XVI, momento em que William

Estado como afirmam alguns historiadores2. Que

Shakespeare escreve a peça “Henrique V”, cuja

por vezes consagra a imagem de grandes homens

narrativa segue a produção de memória feita nas

ou heróis na memória social. Analisaremos

crônicas durante o século XV e XVI. O presente

brevemente o ritual de sagração de Henrique V,

artigo é fruto da pesquisa monográfica defendida

suas legendas e como isto se enquadra no projeto

1

LE GOFF, Jaques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente Medieval. Bauru: Edusc, 2002. pp. 397409.

É importante salientar que a monografia foi coordenada pelo Professor Dr. Marcelo Santiago Berriel. 2 Para compreensão do que seria o desenvolvimento do Estado no final da Idade Média, C.f. GENET, Jean-Philippe. Estado. In:

buscou

observar a

relação

entre

as


G N A R U S | 106 de legitimação dos Lancaster e na construção de uma Identidade de Reino.

A Sagração de Henrique V Ao tratar da sagração de Henrique V um problema inicial nos é apresentado: a ausência de fontes. Boa parte dos trabalhos na historiografia sobre os rituais de consagração dos monarcas europeus,

tendo

destaque

os

historiadores

franceses, analisam o simbolismo do rito sob a perspectiva dos chamados ordo, espécies de regra para a maneira como o ritual deve ser seguido, ou ainda relatos considerados “oficiais” como o caso de Jacques Le Goff em São Luís. Na Inglaterra, a partir do século XV as informações em torno das cerimônias de coroação tornam-se cada vez mais escassas; tratando-se de Henrique V pequenas representações em torno de sua coroação se encontram espalhadas em crônicas e biografias,

Rei Henrique V, por artista desconhecido

de alguma forma na construção de uma imagem de Henrique V surgida a partir da sagração.

mas que se observados com atenção nos possibilitam uma análise das lendas e mitos que se configuram em torno da monarquia inglesa.

A análise da sagração nas crônicas e biografias permite averiguar o discurso feito, sobretudo após o reinado de Henrique V que o afirmava como um

O mais próximo que chegamos da sagração de Henrique V foi a biografia Vita et Gesta Henrici

Quinti produzida na década de 1430 (após a morte do rei) por um autor que a historiografia costuma chamar de Pseudo-Elmham em referência ao capelão Thomas Elmahm, a quem durante muito tempo se acreditava ser o autor da fonte. Em apenas um capítulo o compositor da obra apresenta uma construção de memória rica em torno da unção: desde a escolha da data, até mesmo os convidados presentes, assim como o curso de acontecimentos. Junto a isto, as crônicas de John Capgave (um frade agostiniano que viveu no século XV): Chronicles of

“rei modelar”, assim como na construção de uma identidade de reino – já que muitas características que aqui serão apresentadas são possíveis de serem analisadas em Shakespeare “Henrique V” – assim como na legitimação dos Lancaster no poder; tendo em consideração que este é um contexto de Guerra dos Cem Anos e a produção cronística data de épocas próximas ao início da Guerra das Duas Rosas. Dessa forma, as características simbólicas aparentes nas crônicas não significam o que realmente aconteceu, mas são nuances de uma rica produção de memória em torno de Henrique V.

England e Book of Illustrious Henries, permitem a

Para o historiador Nieto Soria, a observação dos

análise de certas representações que culminaram

ritos e cerimoniais auxilia o historiador na


G N A R U S | 107 sondagem das transformações políticas e nas

que por vezes eram acompanhados por outra unção

relações de poder existentes na realeza medieval,

ocorriam neste dia.

que possuem assim um caráter legitimador do poder régio.

A escolha da sagração dos soberanos ingleses no primeiro dia da semana não significa apenas uma

“En efecto, ritos y ceremonias políticas contribuyen a establecer, confirmar o, a veces, a transformar las relaciones de poder existentes entre aquéllos que protagonizan, aunque en niveles distintos, tales acontecimientos, en definitiva, entre los gobiernos y los gobernados, por lo que resulta posible desvelar, a través del estudio de los rituales y ceremoniales, implicaciones políticas y sociales que acaso habían sido inapreciables sin tener en cuenta este tipo de información, contribuyendo con ello a aumentar sustancialmente su relieve histórico.”3

escolha aleatória, mas sim, o fato desse ser um dia deveras especial nos costumes cristãos, um dia considerado sagrado. A sacralidade dominical tem sua legitimidade pela estreita relação com a paixão de Cristo. No livro de João, num domingo após a crucificação de Cristo, Maria Madalena se direciona até o sepulcro e lá vê ausente o corpo do Salvador, neste mesmo dia, o momento da

Investigando as representações formuladas em

ressurreição, Jesus aparece para Maria Madalena,

torno da sagração de Henrique V, nos deparamos

assim como para seus discípulos.5 Além da

com um fato por vezes deixado de lado por

representação da ressuscitação de Cristo, outras

historiadores sobre o poder régio inglês: a data de

passagens

coroação de Henrique, um domingo de Páscoa de

confirmam a importância que o domingo ganhará

1413. “Aftir the deth of king Harri the iiij**, regned

lentamente para os cristãos. Em Atos dos Apóstolos,

his sone king Harri the V, that was ybore at

Paulo se dirige a Trôade, lá prega e faz a fração do

Monemouth in Walis, and crouned at Westmynstre

pão, também em um domingo.6 O mesmo quando

on Passion Sunday”

Em torno desse dia dois

se dirige a Igreja de Corinto recomenda o

pontos merecem um destaque. O primeiro é o fato

recolhimento das ofertas no primeiro dia da

de o domingo ser uma espécie de tradição na

semana.7

4.

da

tradição

neotestamentária

realeza inglesa, boa parte das coroações régias ocorriam dominicalmente, ou talvez em datas

Atrelado ao fato da unção de Henrique V ter

especiais do calendário cristão. Guilherme I é

ocorrido num domingo, a segunda questão

coroado no Natal de 1066; Henrique IV tem sua

importante é que este não era um simples primeiro

coroação no dia 13 de outubro de 1399, dia de

dia da semana, mas talvez o segundo evento mais

Santo Eduardo, o Confessor enquanto muitos

importante no calendário litúrgico depois do Natal,

outros tiveram sua unção realizada aos domingos.

o domingo da Paixão. O Vita et Gesta é bem claro

Em certos casos, quando a sagração não fosse

ao apresentar a imagem feita desse dia para os

realizada em um domingo, os casamentos régios

cristãos da época, “sacrosanctam passionis”8, a santa Paixão de Cristo. Como apresentado antes, era comum na monarquia britânica a escolha de

SORIA, José Manuel Nieto. Ceremonias de la realeza. Propaganda y legitimación en la Castilla Trastámara. Editorial Nerea, 1993. p.16. 3

An English chronicle of the reigns of Richard II, Henry IV, Henry V and Henry VI. Written before the Year of 1471. p. 39 4

– fol. 169. “Após a morte do rei Henrique o IV, reinou seu filho Henrique o V, que nasceu em Monmouth em Gales, e coroado em Westminster no Domingo da Paixão”. (Tradução Livre).

Para melhor compreensão do leitor, optou-se aqui por traduzir apenas as fontes escritas em inglês médio. 5 Bíblia de Jerusalém, Jo. 20,1 e 20,19. 6 BJ, At. 20,7. 7 BJ, 1 Co. 16,2. 8 Vita et Gesta Henrici Quinti, p. 21 – fol. 7.a. “Santa paixão”. Vita et Gesta Henrici Quinti, (Tradução Livre).


G N A R U S | 108 datas especiais para a coroação dos soberanos,

faz parte da realidade social. Desta forma o símbolo

datas essas consideradas sagradas e que conferiam

se manifesta de formas diversas, seja na etimologia

a figura do rei uma sacralidade. A sagração era

das palavras, sinais, etc.

dotada de uma liturgia complexa que aglutinava

“O símbolo é sempre proteiforme, polivalente, ambíguo. Ele não se manifesta apenas através de palavras e textos, mas também por imagens, objetos, gestos, rituais, crenças, comportamentos. O símbolo está em todos os lugares e reveste tudo com aspectos variáveis e imperceptíveis.”11

representações importantes do cristianismo como é o caso do Domingo e a Paixão. A sagração de Henrique V possibilitou ainda a formação de uma imagem guerreira expressa pelos

Comumente desastres naturais como os narrados

sinais da época. Produzido por John Capgrave, o

Book of Illustrious Henries, escrito na época de Eduardo IV permite a indagação de um discurso que

por Capgrave eram vistos como punição divina, entretanto no caso da ascensão de Henrique, a tradição cronística afirmou que

transformava a imagem de Henrique

incêndios, nevascas e até mesmo

V num rei guerreiro que aglutinava

enchentes

elementos essenciais da tradição

significavam

transformação

cristã. Segundo o autor, no ano de

desse

rei

a num

guerreiro. Porém não podemos

1413 o inverno teria sido rigoroso

deixar de lado o momento de

com grandes enchentes e nevascas;

produção do Book of Iloustrious

na mesma época o verão teria sido

Henries que foi feito após a morte

marcado por muitos incêndios:

“from which signs some men

de Henrique V no reinado de

foretold that he would be a warlike

Eduardo IV12. Entre 1413-1414

king, and would experience many

Henrique lutou contra a heresia

dangers in war.”9

lollarda,

segundo

os

relatos

“defendendo a fé e a Santa Igreja”. Um ponto deve ser observado neste

discurso

da

crônica:

Além disso, em 1415 o soberano

a

vence a Batalha de Agincourt na

importância dos sinais ou símbolos

Guerra dos Cem Anos, permitindo

na Idade Média e nesse ponto o

em 1420 a assinatura do Tratado de Troyes em que

historiador Michel Pastoureau10 oferece uma

o rei de França Carlos VI após sua morte entregava

contribuição

das

o reino para os ingleses. Partindo desse ponto, o

representações simbólicas. Segundo o autor o

momento em que John Capgrave elabora sua

homem medieval raciocina de forma simbólica, os

crônica, o autor já vira os eventos vitoriosos de

eventos da natureza, objetos, animais, gestos, ritos

Henrique, associando acidentes da natureza com a

são símbolos de algo que por vezes se encontra num

imagem guerreira de Henrique V. O monarca se

plano sobrenatural. O imaginário tem uma

torna uma espécie de herói, cuja memória, desde

importância enorme para o homem medieval, ele

sua sagração já se vira sinais do caráter guerreiro

excelente

ao

estudo

CAPGRAVE, John. Book of Illustrious Henries, p. 125. “Cujos sinais, qualquer homem diria que ele seria um rei guerreiro e experimentaria muitos perigos em guerra.”. (Tradução Livre). 9

10

PASTOUREAU, Michel. Símbolo. In : LE GOFF, Jacques & SCHIMITT, Jean-Claude. Dicionário temático... Op. Cit. 11 PASTOUREAU, Ibidem, pp. 495-496. 12 Este já é um contexto de guerra das duas rosas.


G N A R U S | 109 desse rei, sinais estes frutos da vontade divina para

utilização pelos soberanos ingleses, se torna

que Henrique torna-se um homem vitorioso.

importante observarmos um aspecto contextual que de certa forma ditará as questões políticas do reino inglês durante o século XV.

O Mito da sagração: Thomas Becket e o óleo sagrado O rito da unção, apesar de não ser o único na sagração que garante uma sacralidade a figura régia, continua tendo um papel essencial na produção de uma autoridade divina aos soberanos ingleses, assim como na produção da imagem real. Os reis ungidos tinham relação com os soberanos do Antigo Testamento, tendo destaque Davi e Salomão, personagens considerados na tradição judaico-cristã sagrados por Deus.

Após a morte do rei Eduardo III em 1377 ascende ao trono seu neto Ricardo II cujo reinado foi marcado por diversas contestações ao poder do rei. Houve certa tentativa deste soberano em manter a ordem política do reino assim como manter paz com relação à França em meio a Guerra dos Cem Anos. Entretanto as conspirações no meio da nobreza cresciam, a Igreja se via ameaçada com a nova heresia surgida a partir do teólogo de Oxford John Wycliff e em outros casos o monarca agia com

Com relação à unção de Davi, o livro de 1 Samuel

tirania aumentando sua impopularidade. Fatos

oferece uma compreensão do simbolismo em torno

esses que juntos auxiliaram na instabilidade política

da sagração:

e social do reino levando em 1399 a usurpação de

“Iahweh disse a Samuel: “Até quando continuarás lamentando Saul, quando eu próprio o rejeitei, para que não reine mais sobre Israel? Enche de azeite o teu chifre e vai! Eu te envio à casa de Jessé, o belemita, por que vi entre os seus filhos o rei que eu quero.” 13

“Então Samuel disse a Jessé: “Manda procuralo, porque não nos sentaremos à mesa enquanto ele não estiver presente”. Jessé mandou chamálo: era ruivo, de belo semblante e admirável presença. E Iahweh disse: ‘Levanta-te e unge-o: é ele! ‘ Samuel apanhou o vaso de azeite e ungiu-o na presença dos seus irmãos. O espirito de Iahweh precipitou-se sobre Davi a partir desse dia e também depois.”14

Entre séculos XIV e XV, na monarquia inglesa, a ganha

um

sentido

maior

com

a

“redescoberta” do óleo sagrado de Thomas Becket, cuja lenda diz que foi entregue ao Santo Mártir pela Virgem. Para analisar o encontro do óleo e sua 13 14

BJ. 1Sm. 16:1 BJ. 1Sm. 16: 11-12.

historiografia tem interpretado o século XV como um contexto de crise política, no qual a legitimidade régia tornou-se o grande problema a ser resolvido pelos reis Lancaster. O historiador Edward Powell15 aponta que a ação de Henrique na

E ainda:

unção

Henrique IV, duque de Lancaster ao trono. A

usurpação foi um ato inteligente, o duque conseguiu aliados, além de neutralizar seus opositores e fiéis do rei Ricardo. Desta forma, a deposição de Ricardo II por Henrique IV tornou-se um evento político de proporções e impactos maiores que a deposição de Eduardo II em inícios do século XIV. É neste contexto de transformações políticas na Inglaterra dos séculos XIV e XV que surgirá o óleo sagrado de São Thomas Becket, auxiliando acima de tudo na legitimação dos Lancaster ao trono. Thomas Becket foi no século XII arcebispo da

15

C.f. POWELL, Edward. Lancastrian England. In : ALLMAND, Christopher (Org.) The New Cambridge Medieval History: Vol. VII c. 1415- c.1500. Cambridge University Press, 2008. p. 457.


G N A R U S | 110 Cantuária, região de extrema importância pois

ganhou proporções não apenas regionais, mas em

ainda hoje é considerada a “mãe da Igreja da

torno da Cristandade, pois muitos eram os casos em

Inglaterra”. Além de um destaque social e político,

que peregrinos de outras regiões, sobretudo da

os arcebispos desta região possuíam para com a

França, que iam até a Cantuária ao santuário do

realeza uma importância simbólica, pois eles eram

Mártir em busca de auxílios e milagres. A narrativa

os responsáveis por comandar, na maioria dos

hagiográfica do santo é bem clara ao afirmar as

casos, a cerimônia de Sagração dos soberanos

curas por ele feitas desde sua morte: sua túnica

ingleses. Thomas Becket inicialmente não foi

ensanguentada teria curado o mal de uma mulher e

preparado para ser Arcebispo, mas sim para seguir

o próprio óleo cuja narrativa surgirá no século XIV

funções administrativas junto ao rei Henrique II.

teria a capacidade de curar escrofulosos.

Porém Becket ganhou um alto prestígio não só no meio temporal, mas, sobretudo espiritual, após a morte do então arcebispo da Cantuária Teobaldo, Becket é nomeado pelo Papa o novo prior da região.

Apesar da importância de Becket no culto popular que se desenvolveu entre a Idade Média Central e a Baixa Idade Média; segundo Marc Bloch, um dos primeiros relatos sobre o frasco com o santo óleo não é contemporâneo à morte de Becket, mas sim

Após Thomas Becket tornar-se arcebispo, diversos

do início do século XIV pelo frei Nicholas of

conflitos foram estabelecidos entre ele e o rei,

Stratton.17 Em épocas do rei Eduardo II, antes de sua

sobretudo no que tange as prerrogativas de poder

sagração, ele envia para a França o frei supracitado,

real em interferir no religioso, além desse ser um

de forma que o mesmo pudesse encontrar um óleo

contexto de Reforma da Igreja na qual ela se

que teria sido deixado em terras francesas por

afirmava cada vez mais independente dos poderes

Becket quando do seu exílio, e que acima de tudo

laicos. Becket então entra em exílio durante seis

tinha poderes curativos. Thomas Becket exilado

anos na França, depois retorna a Inglaterra, onde

tem uma visão em que a Virgem anuncia sua morte

foi assassinado por ordens de Henrique II. A partir

e lhe entrega o santo óleo, o quinto rei após

de então se instalou um culto de extremas

Henrique II deveria ser ungido com o mesmo, o que

proporções ao “Santo Mártir” e após três anos de

auxiliaria o monarca a vencer as cruzadas e

sua morte Thomas Becket é canonizado.

recuperar a Terra Santa para a Cristandade. O

“O desenvolvimento do culto a Thomas Becket foi tamanho que levou à criação de outros santuários em sua homenagem, onde também podia ser venerado e milagres alcançados. Para isso, qualquer associação ao santo era válida: a posse de uma relíquia ou até mesmo o lugar por onde tivesse passado. As novas igrejas dedicadas a Becket também puderam obter indulgências, estimulando a visita dos devotos.”16

Uma rede enorme de peregrinações foi

quinto rei foi justamente no século XIV Eduardo II que após ter encontrado o óleo, seguindo as antigas tradições da unção por simples óleos consagrados não foi ungido pela relíquia de Becket. Marc Bloch ainda aponta que após isto, seu reinado foi atingido por diversas calamidades, tendo ele então renunciado em favor de seu filho Eduardo III em

estabelecida sob o culto de Thomas Becket, que JESUZ, Viviane Azevedo de. A cidade sobre o texto: um estudo acerca da sociedade urbano inglesa a partir da narrativa de Geoffrey Chaucer (segunda metade do século XIV). Dissertação de Mestrado. UFF, Niterói, 2012, p. 95. 16

BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos – o caráter sobrenatural do poder régio na França e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 176 17


G N A R U S | 111 1327. O fato é que o óleo teria sido guardado no tesouro real e não houve mais notícias após isto. As hagiografias sobre Becket entre os séculos XII e XIII não apresentam qualquer referência a um óleo santo, em contrapartida a aparição da Virgem ao mártir torna-se estruturante em todas as narrativas. O fato é que após a “descoberta” do óleo na época de Eduardo II a narrativa sobre o frasco torna-se cada vez mais comum, tendo ressonâncias maiores no século XV quando o mesmo passa de fato a ser utilizado pelos soberanos ingleses.

É importante considerar que o surgimento da narrativa do óleo sagrado no século XIV tem ligações diretas com o culto mariano que terá a partir do século XII um destaque essencial na religiosidade cristã. A Virgem se torna um elemento essencial na tradição cristã, ela não só possui relações diretas com a figura de Cristo, mas também no próprio significado que a Igreja obterá a partir da Idade Média Central. Maria é “mãe de Deus” por consequência da encanação ao mesmo tempo em que ela é filha dele. Baschet20 aponta que o culto a Virgem tomará grandes proporções no

“This oyle was closed in a egel of gold, and that egil put in a crowet of ston; and the revelacion Herry, the first duke of Lancastir, fond it, and brout it hom Ynglond, and gave it to the Prince Edward, to this effect, that, aftir his faderes deces, he schuld be anoynted with the same.”18

século XII quando ela é coroada ao lado Cristo

Após Eduardo II não ter utilizado o óleo sagrado

Virgem-Igreja, fato possível de se observar em

em sua coroação e o mesmo ter sido guardado no tesouro régio, este teria sido achado no fim do século XIV no reinado de Ricardo II, todavia após sua unção já ter sido realizada, por tradição, a cerimônia de sagração não poderia ser repetida, o óleo é então guardado novamente no tesouro real e, após a usurpação de Henrique IV o mesmo foi utilizado para a unção pela primeira vez. A evidência desse discurso pode ainda ser percebida no século XV por John Capgrave ao fazer uma vasta produção de memória em torno da história inglesa.

“Thus was he crowned on Seynt Edward day, and anoynted with that holy oyle that was take to Seynt Thomas of Cauntirbury by oure Lady; and he left it in Frauns”.19

afirmando uma quase divinização de sua imagem. Maria então é mãe, filha e esposa de Deus, casamento esse afirmado pela relação Cristotorno das representações iconográficas da época. A Virgem torna-se então uma espécie de relicário do próprio Cristo devido a gestação ocasionada pela encarnação, aliás, ver-se no medievo a propagação das relíquias que entraram em contato com Cristo, pedaços da cruz, dente de leite, gotas do leite de Maria, assim como relíquias da Virgem, tendo destaques os véus por ela usados como o presente até hoje na Catedral de Chartres na França21. Mais uma vez não importa se esses objetos são realmente de Cristo e Maria, mas sim que existia uma crença propagada no medievo que afirmava suas funções sobrenaturais e a ligação com esses dois personagens importantes do cristianismo. O óleo de Thomas Becket é aqui entendido como uma relíquia do santo atestada pela virtus do objeto

CAPGRAVE, John. Chronicle of England. p. 273. “O óleo foi deixado em uma águia revestida de ouro e esta foi colocada sobre uma pedra; e a revelação de Henrique, primeiro duque de Lancaster, o achou, e trouxe para a Inglaterra e deu ao Príncipe Eduardo, por esse efeito ele deveria ser ungido com o mesmo. ” (Tradução Livre). 19 CAPGRAVE, John. Chronicle of England. p. 273. Então ele (Henrique IV) foi coroado no dia de São Eduardo, e ungido com 18

o santo óleo que foi entregue a Thomas da Cantuária pela Nossa Senhora, e deixado na França.”(Tradução Livre). 20 Cf. BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano 1000 a colonização da América. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2006. pp. 473-474. 21 C.f. SCHIMITT, Jean- Claude. O corpo das imagens: Ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. São Paulo: EDUSC, 2007, p. 282.


G N A R U S | 112 sagrado já que o mesmo tinha a capacidade

que possui uma relação direta com o fenômeno da

curativa, além do auxílio aos reis nas suas

Santidade.

prerrogativas de poder com relação às Cruzadas e suas posses na França. Para além de relíquia de Becket o óleo sagrado é aqui entendido como um objeto da própria Virgem, já que ela o entregou ao próprio Mártir. Um rei ungido com tal relíquia não só entra em contato com uma dimensão sacramental, assim como tem contatos diretos com Thomas Becket que assume uma importância para a realeza, da mesma forma que a Virgem se manifesta em auxílio aos reis, junto a isso o monarca terá relações diretas com a representação de Cristo, tornando-se assim um soberano “cristianíssimo”.

A utilização do óleo na sagração tornou-se uma tradição, no qual os soberanos até o século XVI foram sagrados pela relíquia de Becket até essa herança ser abolida com a chegada dos Stuart ao trono no século XVII, sendo estes seguidores do Calvinismo.

A Transformação de Henrique V “In the yere of the world 6611, and of oure lord Jesu 1413, was Herry the V corowned at Westminster of Passion Sunday. And aftir his coronacion he was evene turned onto anothir man and alle his mociones inclined to vertu.”22

Corroborando com esta questão, a posse de um

Assim se inicia a narrativa do reinado de Henrique

objeto de importância simbólica como o óleo santo

V no Chronicle of England, o rei coroado na Abadia

de Becket por parte dos soberanos ingleses tem

de Westminster num domingo da Paixão se

ligações diretas com uma construção de identidade

transforma num outro homem, virtuoso, casto,

de reino num contexto que a historiografia costuma

devoto, guerreiro, justiceiro, piedoso. Suas ações

chamar de “gênese do Estado Moderno”. Thomas

de devoção apresentam esse rei como uma dupla

Becket era um santo de extrema importância para

imagem, metade clérigo e metade homem. As

os ingleses medievais, um santo do reino, a devoção

prerrogativas desse soberano como rei são

exposta pela realeza a este “mártir” é um exemplo

desenvolvidas a partir das narrativas sobre as

das rivalidades sociais e políticas surgidas com a

virtudes que esse monarca teria seguido após a

França em meio a Guerra dos Cem Anos, junto com

unção. Diversas imagens foram formadas sobre a

a necessidade da realeza de se apossar de objetos

figura do rei e afirmadas numa longa produção de

considerados sagrados de forma que pudessem

memória que serão confirmadas por escritores

afirmar a sacralidade da monarquia. A partir da

renomados como Shakespeare. Nas fontes aqui

utilização do óleo santo de Thomas Becket a

utilizadas não encontramos qualquer referência às

sagração obterá elementos de uma tradição cristã

atitudes de Henrique V quando ainda era príncipe,

da unção, mas também regionais evidenciados pela

apenas representações breves de suas ações em

importância do mártir antes citado. Junto a isto as

Batalha na defesa do reino de seu pai Henrique IV

concepções de martírio se tornam um elemento

na região do País de Gales.

estruturante para afirmação política da realeza,

A afirmação dessa ideia irá aparecer justamente no século XVI em um auge da produção de memória sobre a figura de Henrique V, na peça a

22 CAPGRAVE, John. Chronicle of England – p. 303. “No ano do

mundo 6611, e de nosso senhor Jesus 1413, foi Henrique o V coroado em Westminster no Domingo da Paixão. E após sua

coroação ele foi transformado em outro homem e todas as suas ações inclinadas às virtudes.” (Tradução Livre).


G N A R U S | 113 ele dedicada feita por William Shakespeare, em

A imagem do rei transformado após a unção

uma conversa do Arcebispo da Cantuária com o

parece associa-lo a figura de outro monarca do

Bispo de Ely.

Antigo Testamento que ganhou destaque nas

CANTUÁRIA: O rei é bem intencionado e cheio de boas qualidades. ELY: E sincero admirador da nossa santa Igreja. CANTURÁRIA: Não prometiam isso as estroinices de sua mocidade. Só parece que ao exalar seu pai o último alento, sua selvageria também nele viesse a morrer. Sim, nesse mesmo instante veiolhe a reflexão, tal como um anjo que Adão, o pecador, dele expulsasse, transformando-lhe o corpo em paraíso reservado aos espíritos celestes. Nunca um sábio se fez tão improviso, nunca a reforma veio numa enchente assim tão forte, para, em seu decurso, varrer tantos defeitos; nunca fora vencida a teima de cabeças de Hidra com tanta felicidade, como vimos com esse rei.23

A narrativa da transformação da alma do rei após a unção se manteve viva numa perspectiva de longa duração, desde a crônica de Capgrave nos anos 1460, assim como na vasta produção de memória que culminou na obra teatral de Shakespeare no século XVI. Esta narrativa tem íntimas ligações com uma identidade de reino que se produziu ao longo da Baixa Idade Média, assim como nos chamados “tempos modernos”, apresentando Henrique como um monarca exemplar, cuja representação de sua imagem, ou melhor, a memória em torno de sua figura se manteve viva na longa duração. É importante ter em mente que Shakespeare era um grande formador de memória. Muito do que se

narrativas de Samuel: Saul. Embora não haja na fonte de Capgrave uma referência direta a transformação de Saul após a unção, o texto cronístico parece manter íntimas relações com a tradição bíblica. “Então o espírito de Iahweh virá sobre ti, e entrarás em transe com eles e te transformarás em outro homem.” “Assim que voltou as costas para deixar Samuel, Deus lhe mudou o coração, e todos esses sinais se verificaram naquele mesmo dia.”24

Sinais, elementos importantes após a unção de Saul, independente dos erros que esse rei tenha feito e que geraram o rompimento dele com Deus como é apresentado na tradição bíblica, enquanto esse foi fiel ao Senhor, ele junto ao rei sempre esteve e tais sinais foram percebidos, sobretudo em batalhas contra os

sinais, isto é, o simbólico teve sua manifestação em todos os momentos no que tange sua sagração e vistos após a transformação do rei. A mudança da alma de Henrique fomentou na produção cronista e biográfica um conjunto de imagens, tendo destaque a extrema devoção de Henrique e suas atitudes guerreiras que se complementam com a primeira. ***

herói dos ingleses que lutou contra o povo inimigo teatral do autor. A base de Shakespeare teria sido provavelmente a herança cronística que se manteve dos séculos XV-XVI ou até mesmo a tradição oral de um “rei herói e modelar”.

SHAKESPEARE, Willian. Henrique V. p. 218. Disponível em: shakespearebrasileiro.org. 23

a

representação de Henrique V no século XV os

pensa de Henrique V até hoje – sua figura como e os infiéis heréticos – estão presentes na narrativa

filisteus. Retornando

A transformação da alma de Henrique V possibilitou apagar as selvagerias carnais por ele cometidas antes da sagração. Neste sentido a unção ganha um caráter de extremo simbolismo, o óleo de Thomas Becket ou ainda o óleo da Virgem com cunho sacramental transformou a alma de um 24

BJ.1 Sm10: 6 e 9.


G N A R U S | 114 homem inescrupuloso, seu espirito mudado foi maior que seu corpo e por ele se observou a

Pseudo-Elmham. Vita et Gesta Henrici Quinti. Editado por Thomas Hearne. 1727.

transformação do rei em outro homem. A narrativa da transformação permite observar como a

Referências

coroação vai de formas diversas garantir uma

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano 1000 a colonização da América. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2006. BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos – o caráter sobrenatural do poder régio na França e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. JESUZ, Viviane Azevedo de. A cidade sobre o texto: um estudo acerca da sociedade urbano inglesa a partir da narrativa de Geoffrey Chaucer (segunda metade do século XIV). Dissertação de Mestrado. UFF, Niterói, 2012. LE GOFF, Jaques & SCHMITT, Jean-Claude.

sacralidade a figura de Henrique V, seu corpo agora não é espaço da selvageria, mas sim um local de manifestação do sagrado através dos gestos, a devoção, virtudes de justiça, castidade, etc. A sagração de Henrique V tornou-se um espaço de múltiplas representações que culminaram na formação da imagem deste como rei cristianíssimo, assim como sua associação a virtudes com origens divinas. A escolha da data de sua coroação num domingo de páscoa não somente representa uma tradição da monarquia como também a inserção do rei numa complexa liturgia que associa sua imagem a uma sacralidade. Além disso, os indivíduos convidados para o ritual tendo destaque o grande número de clérigos produz no cerimonial um caráter magico, sobrenatural.

Caio de Barros Martins Costa é mestrando em História Social pelo Programa de Pós-graduação em História da UFF, orientado pela Professora Dra. Vânia Leite Fróes e Bolsista CNPq de Mestrado. Email: caiodebarros27@gmail.com

Documentação: An English chronicle of the reigns of Richard II, Henry IV, Henry V and Henry VI. Written before the Year of 1471. Bíblia de Jerusalém. Tradução das introduções e notas de La Bible de Jérusalem, edição de 1998, publicada sob a direção da “École biblique de Jérusalem”. São Paulo: Paulus, 8º impressão de 2012. CAPGRAVE, John. Chronicle of England. Editado por Rev. Francis Charles Hingeston, 1858 CAPGRAVE, John. The Book of Illustrious Henries. Editado e traduzido do latim por Rev. Francis Charles Hingeston, 1858.

Dicionário temático do Ocidente Medieval.

Bauru: Edusc, 2002. POWELL, Edward. Lancastrian England. In : ALLMAND, Christopher (Org.) The New Cambridge Medieval History: Vol. VII c. 1415c.1500. Cambridge University Press, 2008. SHAKESPEARE, Willian. Henrique V. p. 218. Disponível em: shakespearebrasileiro.org. SORIA, José Manuel Nieto. Ceremonias de la realeza. Propaganda y legitimación en la Castilla Trastámara. Editorial Nerea, 1993.


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