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Artigo

A CONTRIBUIÇÃO DAS OBRAS DE JOSÉ CALASANS PARA A REVISÃO DA HISTÓRIA DA GUERRA DE CANUDOS (1896-1897) E PARA A BIOGRAFIA DE ANTÔNIO CONSELHEIRO E SEU SÉQUITO Por Igor Farias Emerich RESUMO: No presente artigo buscou-se estudar a contribuição do professor e folclorista sergipano José Calasans Brandão da Silva (1915-2001) para a historiografia da Guerra de Canudos e de Antônio Conselheiro e seus seguidores. Esta pesquisa foi realizada com base na revisão bibliográfica sobre o assunto. Concluiu-se com base na presente pesquisa que a abordagem que os primeiros escritores, dentre eles principalmente Euclides da Cunha em Os Sertões, fizeram acerca da referida guerra e de Conselheiro e dos conselheiristas já era inadequada desde as mudanças na historiografia na década de 1930. E foi com base nessas mudanças que Calasans revisou a história da luta sangrenta e fratricida bem como deu voz aos sertanejos pobres dizimados pela recém-nascida República. Palavras Chaves: José Calasans. Guerra de Canudos. Antônio Conselheiro. Euclides da Cunha. Os Sertões

Introdução

A

lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime.2”

Guerra de Canudos foi o embate sangrento, uma “luta fratricida”1, como ressalta José Calasans, entre o Exército brasileiro, da recém-inaugurada República, e os seguidores de Antônio Vicente Mendes Maciel, um beato conhecido como Antônio Conselheiro. Deu-se entre os anos de 1896 e 1897, no interior do estado da Bahia. Para Euclides da Cunha, repórter enviado pelo jornal O Estado de São Paulo para cobrir a guerra: “Aquela campanha 1 CALASANS, 2002, p. 13.

Em 1893, depois de peregrinar com seus seguidores, pelos sertões do Ceará, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, pregando seus sermões e construindo e restaurando igrejas e cemitérios, Antônio Conselheiro, finalmente chegou à Bahia, onde construiu às margens do rio Vaza Barris, numa fazenda abandonada, num lugar chamado Canudos, seu Arraial de Belo Monte.3 2 CUNHA, 2002, p. 67. 3 Embora o Conselheiro tivesse rebatizado o local como Arraial de Belo Monte, o nome que entrou para história foi Arraial de Canudos. Nome dado ao lugar, em referência a

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Pintura retratando Canudos antes da guerra.

O Arraial do Conselheiro contou com quase vinte e cinco mil pessoa vindas de todas as partes do sertão nordestino, fugindo da pobreza, das secas, das epidemias e do desemprego. 4 Dentre elas estavam sertanejos, indígenas e ex-escravos, que após Abolição decidiram seguir o Conselheiro. Segundo José Antônio Sola, em Canudos todos tinham trabalho. E tudo que se produzia era divido segundo as necessidades de cada família. O que sobrava era vendido nas proximidades. “Em Canudos não existia mendigos ou prostitutas [...], os assaltos não existiam e os crimes raramente aconteciam, geralmente originados por ciúmes ou brigas entre casais. O assassino era expulso da

planta Canudo-de-pito, que nascia em grande quantidade às margens do Vaza Barris e era utilizado como cabo para o cachimbo de barro que se usava nessa região (cf. COIN, Cristina. História em aberto: A Guerra de Canudos. Scipione: São Paulo, 1998, p. 26). 4 ZAMA, 1978, p. 11.

cidade.”5 Ainda de acordo com Sola, bebida alcoólica também não era permitida no Arraial. 6 O crescimento de Canudos preocupava os fazendeiros locais, que além de perderem sua mão-de-obra barata, temiam perder seu status social; os governos (municipal, estadual e federal), que enxergavam como uma ameaça a cidade independente e as prédicas do Conselheiro contra a República, condenando os impostos e o casamento civil; e, por fim, a Igreja, que perdia cada vez mais fiéis para o Conselheiro. Assim, nessa ordem de coisas que foram, estourou a Guerra de Canudos. O pretexto para tal guerra foi a afirmação de que Canudos seria um reduto monarquista e que isso colocava em risco a estabilidade da recém-inaugurada República. Tal pretexto foi largamente difundido pelos jornais da época, sobretudo depois da morte 5 SOLA, 1989, p. 40. 6 Ibidem, p. 39.

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GNARUS - 15 do coronel Moreira Cesar, o que de certa forma legitimou a ação enérgica do exército contra o Arraial de Canudos nas mentes dos cidadãos litorâneos. 7 Tendo em vista “que o jornal era o mais eficiente veículo de comunicação de massa”8 da época, podemos entender o quanto tais manchetes, por vezes tendenciosas, eram importantes na construção de uma imagem negativa do referido arraial e dos habitantes que lá viviam, e, sobretudo, do seu líder, Antônio Conselheiro. O historiador Pedro Calmon, escrevendo na década de 1930 sobre os acontecimentos do começo da época republicana afirmou: “Canudos foi mais invenção de publicidade nefasta do que arraial de revoltosos.”9 Quatro expedições militares foram necessárias para acabar de vez com a resistência dos canudenses. Cerca de trinta mil pessoas morreram nos combates. A maioria dos mortos era “conselheirista”.10 Como escreveu Euclides da Cunha: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo.” 11 Objetiva-se neste artigo discutir a contribuição das obras de José Calasans para a historiografia da Guerra de Canudos e para a biografia de Antônio Conselheiro e seus seguidores. Contribuição essa que, como veremos, foi decisiva para quebrar paradigmas e preconceitos e dar voz aos sertanejos vencidos no supracitado conflito fratricida. Para tanto, analisaremos em primeiro lugar a importante obra do 7 GALVÃO, 1994, pp. 33-34. 8 Ibidem, p. 15. 9 CALMON, 2002, p. 50. 10 Termo empregado para designar aqueles que faziam parte dos seguidores de Antônio Conselheiro. 11 CUNHA, 2002, p. 778.

escritor e jornalista Euclides da Cunha, Os Sertões, onde o autor pretende fazer uma abordagem histórica da referida guerra e de seus personagens, e posteriormente contrastaremos tal abordagem com a feita por José Calasans sobre o mesmo tema, a partir de sua obra O Ciclo Folclórico do Bom Jesus Conselheiro, que inaugurou uma nova fase na historiografia da Guerra de Canudos e na de Antônio Conselheiro e seu séquito. Este trabalho está divido em três partes: a primeira, tratará da historiografia da Guerra de Canudos e de Antônio Conselheiro e seus seguidores antes de José Calasans; a segunda, por seu turno, apresentará as mudanças na historiografia a partir da década de 1930; e, por fim, a terceira parte abordará as contribuições de José Calasans para a historiografia do tal conflito e na abordagem da figura do Conselheiro e seu séquito. A historiografia da Guerra de Canudos e a biografia de Antônio Conselheiro e seus seguidores antes de José Calasans O século XIX foi o século do surgimento de muitas teorias na Europa, teorias essas que depois se espraiaram pelo mundo, sobretudo para as Américas, e permearam os debates científicos, políticos, filosóficos, literários, sociais e históricos da época. Segundo a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz, marcaram presença no Brasil, tardiamente, a partir de 1870, teorias como positivismo, evolucionismo e darwinismo, que em terras brasileiras “foram utilizados de forma particular, guardando-se suas conclusões singulares, suas decorrências teóricas distintas”. 12 Teorias raciais importadas da Europa, embora já em descrédito por lá, chegaram ao Brasil e aqui foram usadas como “instrumen12 SCHWARCZ, 2015, p. 57.

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GNARUS - 16 to conservador e mesmo autoritário na definição de uma identidade nacional e no respaldo a hierarquias socias já bastante cristalizadas”. 13 Com base nessas teorias, a extrema miscigenação racial que já era evidenciada no Brasil da época, não foi vista com bons olhos pelos intelectuais do país que absorviam, a sua maneira, a ideia de progresso trazida pelo positivismo e a ideia de justificação da inferioridade de determinados grupos étnicos e raciais trazida pelo darwinismo social. Contudo, havia a ideia de que a miscigenação no Brasil era algo em transição, de que o país caminhava para um “branqueamento”, como afirmou em sua tese apresentada no Primeiro Congresso Internacional das Raças, em 1911, o então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro João Batista Lacerda.14 Conforme nos diz Schwarcz, o ideário evolutivo-positivista era veiculado especialmente em jornais da época. O jornal Província de S. Paulo (posteriormente chamado de O Estado de São Paulo), fundado pelas elites econômicas paulistanas em 1875, é um desses jornais, que se apresentou e se identificou desde o começo “como um periódico ‘moderno’, fruto de uma ‘cidade progressista, scientifica e laboriosa’”.15 A historiografia brasileira também foi profundamente marcada por essas teorias vindas da Europa no século XIX. E foi com base nessas teorias que entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX a história da Guerra de Canudos e a biografia de Antônio Conselheiro e seus seguidores foram escritas. Muitos trabalhos foram redigidos sobre a Guerra de Canudos e sobre Antônio Conse-

lheiro e seus seguidores. Dentre os primeiros está o de Nina Rodrigues, médico legista que analisou a cabeça decepada de Antônio Conselheiro na Faculdade de Medicina de Salvador, logo após a guerra, pois para a medicina legal da época, baseada na Frenologia, a análise do crâneo do Conselheiro poderia comprovar seus traços de degenerescência. Mas, para a surpresa de todos, especialmente para Nina Rodrigues, que já o havia condenado com um louco, o laudo foi negativo. Segundo o resultado da análise, o Conselheiro era “normal.”16 Mesmo assim, Nina Rodrigues, em sua obra A loucura epidêmica de Canudos: Antônio Conselheiro e os jagunços, de 1897, “influenciado pelas teorias e interpretações raciológica, evolucionistas e deterministas (Tanzi, Spencer, Gumplowicz, Taine, Buckle, Ratzel) oriundas da Europa, considerou Antônio Conselheiro um simples louco.”17 Euclides da Cunha, também influenciado pelo positivismo e pelas teorias raciais vindas da Europa, embora tenha denunciado a Campanha de Canudos como um “crime” em seu “livro vingador”, Os Sertões, classificou Antônio Conselheiro com um “louco” que poderia ter ido para um “hospício” ao invés de entrar para a história; os mestiços como “raça inferior” e os seguidores do beato como “fanáticos”. Um trecho de Os Sertões evidencia a influência do positivismo e das tais teorias raciais em Euclides da Cunha: Com efeito, é inegável que para a feição anormal dos mestiços de raças mui diversas contribui bastante o fato de acarretar o elemento étnico mais elevado, mais elevadas condições de vida, de onde decorre a acomodação penosa e difícil para aqueles. E desde que desça sobre

13 Idem, 2015, p. 55. 14 ibidem, pp. 15-16.

16 MOCELLIN, 1989, p. 28.

15 Ibid, p. 42.

17 NASCIMENTO, 2008, p. 102.

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GNARUS - 17 eles a sobrecarga intelectual e moral de uma civilização, o desequilíbrio é inevitável. A índole incoerente, desigual e revolta do mestiço, como que denota um íntimo e intenso esforço de eliminação dos atributos que lhe impedem a vida num meio mais adiantado e complexo. Reflete – em círculo diminuto – esse combate surdo e formidável, que é a própria luta comovedora e eterna caracterizada pelo belo axioma de Gumplowicz como a força motriz da História. O grande professor de Gratz não a considerou sob este aspecto. A verdade, porém, é que se todo o elemento étnico forte ‘tende subordinar ao seu destino o elemento mais fraco antes o qual se acha’, encontra na mestiçagem um caso perturbador. A expansão irresistível do seu círculo singenético, porém, por tal forma iludida, retarda-se apenas. Não se extingue. A luta transmuda-se, tornando-se mais grave. Volve do caso vulgar, do extermínio franco da raça inferior pela guerra, à sua eliminação lenta, à sua absorção vagarosa, à sua diluição no cruzamento. E durante o curso deste processo redutor, os mestiços emergentes, variáveis, com todas as nuanças da cor, da forma e do caráter, sem feições definidas, sem vigor, e as mais vezes inviáveis, nada mais são em última análise, do que os mutilados inevitáveis do conflito que perdura, imperceptível, pelo correr das idades. É que neste caso a raça forte não destrói a fraca pelas armas, esmaga-a pela civilização. 18

Caricatura de Euclides da Cunha feita por Raul Pederneiras (1903).

Ademais, Euclides da Cunha, em “nota preliminar” em sua obra Os Sertões, explica que seu livro “à princípio se resumia à história da Campanha de Canudos, perdeu toda a atualidade, remorada a sua publicação em virtude

de causas que temos por escusado apontar”.19 O autor escreveu sobre a Guerra de Canudos, mas antes de chegar ao tema, achou importante escrever sobre a terra, cenário da referida Guerra, e o homem que habitava essa terra. Para Euclides, era de extrema importância abordar, sobretudo, o que ele chamou de “sub-raças sertanejas”. Isso porque na interpretação do determinismo racial feita por Euclides, tais “sub-raças”, em “sua instabilidade de complexos de fatores múltiplos e diversamente combinados, aliada às vicissitudes históricas e deplorável situação mental

18 CUNHA, 2002, p. 202.

19 Ibidem, p. 65.

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GNARUS - 18 em que jazem”, estariam fadadas ao “desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização”. 20 O escritor de Os Sertões queria “esboçar, palidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores, os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil”. 21 Entretanto, como vimos logo no primeiro parágrafo deste artigo, Euclides não viu na guerra contra os canudenses um “processo civilizador”, mas sim um crime, o qual ele denuncia em seu “livro vingador”. Quanto a isso escreveu, em 1948, seu biógrafo, Sylvio Rabello: Assim é que Euclides não se deixou levar pelo impulso patriótico dos que queriam devastar Canudos pelo falso motivo de que era um permanente perigo de subversão da ordem republicana. Preferiu tomar partido dos fanáticos do Conselheiro contra o governo que os aniquilara. 22 Mas Euclides da Cunha nem sempre pensou assim. Antes de ser enviado pelo jornal O Estado de São Paulo para cobrir a Guerra de Canudos, ele havia publicado, no mesmo jornal, em 14 março e 17 de julho de 1897, uma série de dois artigos intitulados “Vendéia”, onde o autor fazia uma comparação entre a Guerra de Vendeia (1793 - 1796), que foi uma guerra civil e uma contrarrevolução que aconteceu durante a Revolução Francesa, no oeste da França, e na qual lutaram católicos e realistas (defensores da Casa Real de Bourbon) contra republicanos.23 Para Euclides, nesses dois artigos, tanto os católicos e realistas da França durante a Guerra de Vendeia, quanto

os conselheiristas católicos de Canudos eram fanáticos religiosos a serviço da monarquia e lutavam contra o “progresso” representado pela República. Em um trecho de seu primeiro artigo escreveu Euclides: “Como na Vendéia o fanatismo religioso que domina as suas almas ingênuas e simples é habilmente aproveitado pelos propagandistas do Império”.24 E ao se referir ao paralelo que estava fazendo entre Vendeia e Canudos, afirmou Euclides: “Este paralelo, porém, levado às últimas consequências. A República sairá triunfante desta última prova”. 25 Em outro trecho de seu diário, o autor, escrevendo sobre Antônio Conselheiro, registra: A matemática oferece-nos neste sentido uma apreciação perfeita: Antônio Conselheiro não é um nulo, é ainda menos, tem um valor negativo que aumenta segundo o valor absoluto da sua insânia formidável. Chamei-lhe por isto, em artigo anterior – grande homem pelo avesso.26 Euclides, ao menos antes de escrever Os Sertões, parecia estar certo de que Antônio Conselheiro e seus seguidores, que ele via como “inimigos da República”, deveriam ser aniquilados. Já em Os Sertões, e a partir dele, Euclides muda de ideia, ao menos sobre esse assunto. Ao escrever acerca das críticas que recebeu sobre sua obra, o autor chama a Guerra de Canudos de “doloroso drama da nossa história”, “lastimável campanha de Canudos” e “assassinato coletivo”.27 Contudo, o tom negativo que Euclides usou em sua obra sobre Antônio Conselheiro e seus seguidores

20 Ibid, p. 65.

24 Ibidem, p. 124.

21 Ibid, p. 65.

25 Ibid, p. 125.

22 RABELLO, 1983, p. 172.

26 CUNHA, 2006, p. 64.

23 CUNHA, 2006. pp. 121-129.

27 Ibidem, pp. 136, 137.

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GNARUS - 19 permaneceu forte. Os Sertões é um clássico que está na categoria de livro-reportagem, mas já foi considerado uma obra historiográfica e usado como fonte histórica por muitos que se lançaram a escrever sobre a Guerra de Canudos e Antônio Conselheiro e seus seguidores. E, por se tratar de um clássico, podemos imaginar o quanto a imagem negativa que Euclides traçou de Antônio Conselheiro e dos conselheiristas ficou enraizada nas mentes das pessoas do começo do século XX. Era necessário desfazer esses estigmas e dar voz aos pobres sertanejos mortos pela recém-nascida República, ressignificando, assim, a tal guerra fratricida e a luta desses sertanejos pobres pela vida e por dignidade. É aí que se encaixa a importante contribuição de José Calasans para a história da Guerra de Canudos e para a biografia de Antônio Conselheiro e seus seguidores.

Mudanças na historiografia na Europa e no Brasil na década de 1930 A partir da década de 1930, na Europa, aconteceriam mudanças na historiografia que logo chegariam Brasil. Em 1929, se estabelecia, na França, a revista Annales d’histoire économique et sociale, por meio da qual uma revolução historiográfica aconteceria. Conforme escreveu o historiador Peter Burke sobre a referida revista: As ideias diretrizes da revista, que criou e excitou entusiasmo em muitos leitores, na França e no exterior, podem ser sumariadas brevemente. Em primeiro lugar, a substituição da tradicional narrativa de acontecimentos por uma história-problema. Em segundo lugar, a história de todas as atividades humanas e não apenas história política. Em terceiro lugar, visando completar os dois primeiros ob-

jetivos, a colaboração com outras disciplinas, tais como a geografia, a sociologia, a psicologia, a economia, a lingüística, a antropologia social, e tantas outras.28 Surgia, assim, a Escola dos Annales, que a partir da década de 30, influenciaria a historiografia na Europa e no mundo. E seus principais historiadores foram Lucien Febvre, Marc Bloch, Fernand Braudel, Georges Duby, Jacques Le Goff e Emmanuel Le Roy Ladurie. No Brasil surge uma nova fase na historiografia inaugurada por Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala, de 1933, que contribui ao olhar para a formação social do Brasil de forma diferente. Em lugar do conceito de raça, que via os mestiços como raça inferior, ele a substitui pelo conceito de cultura. Caio Prado Junior, que em sua obra Evolução Política do Brasil, de 1933, por seu turno, “inovou os estudos e os ensaios sobre o Brasil, ao introduzir como referencial teórico de analise o materialismo histórico, estudando a formação brasileira a partir das bases materiais”,29 e Sérgio Buarque de Holanda, em sua obra Raízes do Brasil, de 1936, onde, não preso a um paradigma, mistura elementos tirados da psicologia, da antropologia, da etnologia e da sociologia, em detrimento da questão biológica de raça, a fim de explicar o Brasil colonial.

José Calasans e nova historiografia sobre a Guerra de Canudos e sobre Antônio Conselheiro e seu séquito Influenciado por essa nova fase da historiografia brasileira surge uma nova leva de historiadores que interpretaria sobre novo prisma vários acontecimentos importantes do passa28 BURKE, 1991, p. 7. 29 NASCIMENTO, 2008, p. 72.

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GNARUS - 20 até a publicação de Os Sertões; a segunda, que começa a partir da publicação de Os Sertões e vai até a década de 1950, período que Calasans chama de “hegemonia euclidiana”, devido a influência da obra de Euclides sobre a historiografia da Guerra de Canudos e Antônio Conselheiro seus seguidores; e “a terceira e última, quando se iniciou uma revisão do assunto com pesquisas esclarecedoras, à luz de modernas contribuições de feições históricas e sociológicas”.31

do. Dentre eles estava o bacharel em direito e folclorista sergipano José Calasans, que em 1950, reabriu a discussão sobre Canudos e Antônio Conselheiro ao escrever O Ciclo Folclórico do Bom Jesus Conselheiro, tese para concorrer à Docência Livre de História do Brasil, na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia. Segundo o historiador Jairo de Carvalho do Nascimento, sua tese “pautada na oralidade, em ditos e cantos populares”, trazia à tona o ponto de vista do sertanejo, muitas vezes negligenciado pela história oficial, sobre a Guerra de Canudos e a figura de Antônio Conselheiro.30 Em seu artigo intitulado Canudos não Euclidiano, José Calasans escreveu que foram três as importantes fases sobre a historiografia acerca de Antônio Conselheiro e seus seguidores: a primeira, de 1874 a 1902, que compreende o surgimento de Antônio Conselheiro, nas então Províncias da Bahia e de Sergipe 30 NASCIMENTO, 2008, p. 136.

De acordo com Calasans, “durante meio século, o episódio de Canudos e a figura de Antônio Conselheiro foram estudados, exclusivamente, através de Os Sertões de Euclides da Cunha.”32 Em outro momento, Calasans já havia escrito: “depois da publicação do grande ensaio, tudo que se tem feito [até a década de 1950], salvo artigos sobre pormenores do famoso embate, é cópia servil de Euclides da Cunha ou interpretações do desventurado escritor”.33 Ainda segundo Calasans: “[...] o Conselheiro fica um pouco vítima das contradições do Euclides: o Conselheiro fica preso no que chamo de ‘a gaiola de ouro de Os Sertões.”34 Essa ‘gaiola de ouro’ da qual se refere Calasans é a própria interpretação que Euclides fez do líder canudense e que também o fez dos sertanejos que estiveram com ele no grande conflito. Por isso, desde 1950, Calasans já havia afirmado ser necessário uma revisão sobre a história da Guerra de Canudos: O estudo do importante evento [a Guerra de Canudos], que encontrou no livro imortal de Euclides da Cunha um depoimento de extraordinária significação, precisa ser revisto, dentro das novas 31 CALASANS, 1986a, p. 1. 32 GALVÃO, 2009, p. 22. 33 CALASANS, 2002, p. 14. 34 GALVÃO, 2009, p. 63.

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GNARUS - 21 técnicas de pesquisa, considerando-se a perspectiva histórica, que o autor de Os Sertões e outros escritores contemporâneos não estavam em condições de sentir.35

ter por ele... eu comecei a ver o sertanejo real, não naquelas tiradas de Euclides. Tiradas que o povo aceitou e todo mundo no Brasil sabe: ‘O sertanejo é antes de tudo um forte’ 38

Mesmo achando necessária uma revisão historiográfica sobre a Guerra de Canudos e sobre Antônio Conselheiro e seus seguidores, parece que Calasans não se afastou muito da visão euclidiana quando escreveu seus primeiros trabalhos sobre a supracitada guerra. Conforme escreveu Nascimento, durante a década de 1950, Calasans redigiu vários trabalhos “mantendo e atribuindo o conceito de fanatismo para a população da comunidade de Canudos e a tese sebastianista”.36 Seu rompimento definitivo com a visão euclidiana deu-se na década de 1980, quando escreveu Quase biografias de jagunços: o séquito de Antônio Conselheiro (1986), onde defendeu que “os vencidos também merecem um lugar na História. Não devem ficar no anonimato”37 , e Canudos não euclidiano (1986), onde fez um apanhado dos principais documentos anteriores a Guerra de Canudos, tais como, a primeira matéria sobre Antônio Conselheiro, no jornal O Rabudo, em 1874, as correspondências entre os padres e o arcebispo da capital discorrendo sobre Antônio Conselheiro, entre outros documentos de suma importância para se entender Canudos e Conselheiro em sua complexidade. Quanto ao seu rompimento com a visão euclidiana, Calasans disse em entrevista concedida ao historiador Marco Antônio Villa que:

Ao escrever Canudos na literatura de cordel (1984), José Calasans trouxe para o centro do debate sobre Canudos e da figura de Antônio Conselheiro as impressões dos próprios conselheiristas, de militares que participaram da guerra e até de quem estava bem longe do local do referido conflito, todas registradas em versos através da literatura de cordel. Com isso, Calasans colocou lado a lado os conflitantes pontos de vista sobre o embate sertanejo e seus participantes.

[...] eu me libertei de Euclides. E eu sinto mesmo que fui me libertando sem perder a admiração que todo brasileiro deve

Calasans dedicou cinquenta anos da sua vida ao estudo de Canudos e de Conselheiro e seus seguidores. Conciliou a história e o folclore em sua empreitada. E se empenhou de fato para “ser o tradutor do universo sertanejo”, conforme disse ao historiador José Carlos Sebe Bom Meihy.39 Jaime Adrián Prieto Valladares, em seu artigo sobre a importância da contribuição de Calasans para a cultura popular e para as tradições orais da Canudos, escreve: A paixão do jovem José Calasans pela biografia de Antônio Conselheiro e a história de Canudos levou-lhe a cruzar a informação proveniente das testemunhas escritas, da história oral, da literatura de cordel, e dos manuscritos de Antônio Conselheiro encontrados posteriormente. Dessa maneira percebeu outras dimensões de Antônio Conselheiro e outros membros da comunidade de Canudos ausentes no “livro vingador” de Euclides da Cunha. 40

35 CALASANS, op. cit., p. 101.

38 VILLA, 1998 apud NASCIMENTO, 2008, pp. 15, 16.

36 NASCIMENTO, 2008, p. 142.

39 BOM MEIHY, 1993, p. 23.

37 CALASANS, 1986b, p. 7.

40 VALLADARES, 2013.

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GNARUS - 22 Embora Calasans tenha sido o precursor nessa nova fase historiográfica de Canudos, muitos outros historiadores surgiram logo após, vários deles influenciados pelas pesquisas de Calasans. Rui Facó, em Cangaceiros e fanáticos: gênese e luta, de 1963, deu sua contribuição ao interpretar Canudos através do materialismo histórico. Para Facó, Canudos não deveria ser entendido apenas como um movimento de caráter religioso, mas sobretudo uma luta de classes. Luta contra a opressão dos latifundiários, contra a fome e contra a miséria.41 Já José Carlos de Ataliba Nogueira em Antônio Conselheiro e Canudos, de 1976, faz uma revisão histórica sobre Antônio Conselheiro e Canudos ao trazer à luz um importante documento escrito pelo líder canudense onde ele versa sobre a República, os mandamentos de Deus entre outros assuntos. Na introdução de sua obra, Nogueira denuncia: Se é apenas a história que há de recordar António Vicente Mendes Maciel, importa imergir naquelas águas [do açude de Cocorobó, construído em 1968, e que inundou Canudos] todas as falsidades e distorções espalhadas, sem o menor espírito crítico, durante um século. A sua figura e a de todos os canudenses aparecerão em plena autenticidade, como realmente foram, purificadas naquelas águas lustrais, de todas as deformações propaladas pelos partidos políticos, pela meia-ciência, pelos propósitos inconfessáveis, pela forma literária imaginosa e sacrificadora da verdade. Reconhecemos que houve muita inconsciência em tudo isto. Mas as águas hão de tragar todas as desfigurações e fazer emergir a verdade para o juízo sereno dos pósteros.42

Conclusão Concluímos, portanto, que as obras do professor e folclorista José Calasans revisaram a história de Canudos e de Conselheiro e dos conselheiristas à luz dos métodos da nova historiografia de sua época. Suas pesquisas incentivaram muitos outros historiadores a se empenharem em reconstruir a história de Canudos e de seus habitantes. E ao fazer isso, deu voz a multidão de sertanejos pobres que, como Antônio Conselheiro, lutaram por uma vida melhor e mais digna em Canudos, e foram sumariamente mortos pela recém-nascida República, que desde cedo mostrava sua força e violência contra os insurgentes. Calasans resgatou a imagem positiva do beato Antônio Conselheiro e dos sertanejos que o seguiam, mostrou que cada um tinha uma história de vida, uma profissão, um rosto, um nome e um sobrenome. Após as pesquisas de Calasans, a história do conflito fratricida de Canudos e a imagem de Antônio Conselheiro e seu séquito nunca mais foi abordada com base no ponto de vista de Euclides da cunha, pois o professor Calasans estabeleceu o que ele mesmo chamou de “Canudos não euclidiano”. Contudo, para não incorrermos em anacronismo ao fazer juízo de valor sobre a interpretação de Euclides da Cunha quanto a Guerra de Canudos, o Conselheiro e os conselheiristas, é importante entendermos que Euclides da Cunha era um estudioso de seu tempo, que fez sua análise sob as lentes das teorias em voga à época. Como escreveu o historiador Lucien Febvre, um dos fundadores da Escola dos Annales, “A história é filha do seu tempo”, ou seja, é sob a perspectiva e as teorias do momento atual que a história é contada. E foi exatamente isso que fez Euclides e posteriormente Calasans.

41 Cf. FACÓ, 1972. 42 NOGUEIRA, 1978, p. 1.

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GNARUS - 23 Igor Farias Emerich é Pós-graduando em História

do Brasil pela Universidade Candido Mendes, Pós-graduado em Ciências da Religião pela Universidade Candido Mendes, Pós-graduado em História das Religiões pela Universidade Candido Mendes e Licenciado em História pelas Faculdades Integradas Simonsen.

MOCELLIN, Renato. Canudos: fanatismo ou luta pela terra? Coleção lutas do nosso povo. São Paulo: Editora do Brasil S/A, 1989. NASCIMENTO, Jairo de Carvalho do. José Calasans. Canudos: a história reconstruída. Salvador: EDUFBA, 2008. NOGUEIRA, Ataliba. Antônio Conselheiro e Canudos. 2ª ed. São Paulo: Nacional, 1978.

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A única foto conhecida de Antônio Conselheiro, místico rebelde e líder espiritual do arraial de Canudos (1893-1897), Bahia, Brasil. Foto tirada duas semanas após sua morte, pelo fotógrafo Flávio de Barros, a serviço do Exército.

Gnarus Revista de História - VOLUME XI - Nº 11 - OUTUBRO - 2020


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