11-Gnarus11-Artigo-Da Tropicália para as Antropofogias

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Artigo

DA TROPICÁLIA PARA AS ANTROPOFOGIAS: Jomard Muniz de Britto e a “Ideologia da Cultura Brasileira” Por Francisco Adriano Leal Macêdo

RESUMO: Buscamos aqui fazer uma cartografia de fragmentos existenciais e estético-perfomáticos do ativista cultural pernambucano Jomard Muniz de Brito. Tomando a produção literária de Jomard como fontes para esse texto, perspectivamos perceber as possíveis relações, invenções discursivas e devires que envolvem esse multifacetado sujeito. Algumas inquietações que movem esse trabalho: Como e em que medida teria se constituído um personagem que inventava bifurcações, pensando alternativas diversas aos certos regimes de verdade no âmbito cultural? Quais aspectos poderiam ser pensados enquanto um rizomomorfo – fruto de multiplicidades e máquinas desejantes? Para pensar essas questões, utilizamos autores de diferentes campos do saber, tais como Gilles Deleuze, Felix Guattari, Jorge Larrosa, Fábio Leonardo Castelo Branco Brito, Durval Muniz de Albuquerque Júnior e Homi K. Bhabha. Palavras Chaves: História, Jomard Muniz de Britto. Cultura Brasileira.

[...] o cinismo é a ironia com poder, ou a ironia no poder, e como a ironia é província do intelectual, um intelectual no poder tem o mesmo privilégio do tirano mais bem articulado de Shakespeare, que podia ser Ricardo III e ao mesmo tempo se observar sendo Ricardo III e dizendo que o que é não é e o que não existe, existe. E se maravilhando com ele mesmo. (Luís Fernando Veríssimo, Banquete com os deuses, p. 125-126).

Introdução: um dissidente na invenção do Brasil

O

Brasil enquanto nação foi – e ainda o é – inventado discursivamente.1 Um país que não foi descoberto, mas estava para ser inventado; Não estava

1 Recentemente algumas obras em torno dessa invenção discursiva de espaços foram produzidas no Brasil. Uma das mais famosas é a Invenção do Nordeste que trata sobre invenção discursiva-imagética de um nordeste a partir da literatura, música, relações políticas entre outras dimensões. A invenção de uma Brasil “pensava a nação por meio de uma conceituação que a via como homogênea e que buscava a construção de uma identidade, para o Brasil e para os brasileiros, que suprimisse as diferenças, que homogeneizasse estas realidades. [...]” Ver: ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez. 2011. p. 61.

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para ser explorado, mas para ser criado.2 A busca

militância por uma causa pretensamente nobre

intensa de uma definição de uma identidade para

– uma real identidade brasileira. A Semana de

o Brasil não é recente e remonta meados do

Arte Moderna de 1922 propõe a antropofagia,

século XIX. Evidência disso seria a fundação do

a deglutição, o híbrido, o que nos anos sessenta

IHGB,3 em 1838, que tinha por missão principal

seria retomado – de uma forma cosmopolita e

reunir documentos que possibilitasse elaborar

aberta ao estranho – por uma série de sujeitos

uma metanarrativa sobre o Brasil, de dizer o que

que atribuíam a si mesmos a terminologia de

é o Brasil. No século XX isso desencadeia numa

“vanguardistas”: a dispersão que foi enquadrada

variedade de “fórmulas” de brasilidade que certos

enquanto movimento – a tropicália. Assim,

intelectuais gestaram – hasteando a bandeira de

sucessivos novos significados foram sendo

2 LARROSA, 2015. p, 9.

lançados sobre o que um dia costumou ser

3 O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi uma instituição imperial fundada com o escopo principal de reunir fontes históricas e dar um sentido histórico ao Brasil. Ver: WEHLING, A. As origens do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. RIHB, Rio de janeiro, n.338, p.7-16, 1983.

pindorama. Dessa forma, os visionários de um Brasil

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GNARUS - 26 profundo munidos da narrativa – famosa genitora

cinco séculos de história. Esses aspectos movem

de ícones –, dão corpo ao regime de signos

essa análise, que pretende cartografar frações

que visam constituir as pretensas identidades

da subjetividade de JMB a partir dos escritos

brasileiras.

contidos em seus livros Atentados Poéticos8 e Do

4

A busca por uma identidade nacional

Modernismo à Bossa Nova.

tornava-se muito mais do que uma questão estética ou uma iniciativa fragmentária de certas instituições intelectuais. A brasilidade se transformava numa forma de unificar os

Ataque ao olimpo: atentados heréticos à cultura Ao

tomar

esse

sujeito

cujos

devires

valores e as ideias de um país continental, onde

autopoiéticos nos propomos radiografar, logo

os regionalismos conformavam fragmentos

assumimos riscos de conceituar estilhaços de um

de identidade, expressos, sistematicamente,

corpo deslizirante, um trabalho que deseja e pode

através de produções artísticas e científicas. 5

mover potências ainda inertes já que conceitos

Em meio às efervescências artístico-culturais

“se encarnam e se efetuam nos corpos”. 9

da década de sessenta, o ativista cultural

Uma vez que poderíamos entender o ato

pernambucano Jomard Muniz de Britto faz-se

de experimentar com a linguagem, envolto

notar a partir de suas produções intelectuais. Em

no princípio da singularidade plena, não

1966, o já respeitado cineasta brasileiro Glauber

pode recair na armadilha de submeter-se

Rocha, descrevia suas impressões sobre tal sujeito,

a uma estrutura lógica, com um começo,

qualificando-o enquanto um “homem despido de

uma origem e um fim, é preciso, igualmente,

princípios sagrados”, afirmando que Jomard não

perceber que em todo ato de invenção se

apresentava a necessidade de “afirmar cultura

promove uma perda de órgãos, ou seja, algo

ou fazer pregações de falso apóstolo” já que sua

se rompe, algo se degenera e, igualmente,

intenção seria a de “dar ao leitor conhecimento

algo se reconstitui sob um formato outro.

de causa, isto é, de poesia e samba”.6 Seus atos

Nesse sentido, os escritos de Jomard,

performáticos, vivências e produção intelectual

dos anos 1980 até o início dos anos 2000,

eram frequentemente críticas aos discursos que

promoveriam uma arrebentação em sua

circulavam, a exemplo do seu combativo super-8

própria natureza enquanto escritor-artista-

palhaço degolado.7 Era evidente que era uma voz

ensaísta-professor-pop-filósofo.10

dissonante em relação às maneiras de dizer o Brasil que estavam sendo construídas pela forja incansável dos que se propuseram pensar nossos

O fragmento sobre invenção permite pensar

4 BRITO, 2016. 301 p.

Jomard enquanto um rizoma11 no interior dos seus

5 Idem. p, 44.

8 Publicado na década de 2000, é um livro repleto de linguagens diversas onde, nas palavras do seu autor, busca “manter aceso o senso de humor e o desejo desejante de outras linguagens”. Ver: BRITTO, Jomard Muniz de. Atentados poéticos. Recife, Bagaço, 2002.

6 BRITTO, 2009. p, 8-9. 7 Em O Palhaço Degolado, filme em super-8 de 1977, Jomard

veste-se de palhaço para travar uma guerrilha semântica na qual tem como alvo algumas figuras do cenário cultural nordestino, aos quais reservou a nomeação de aprisionadores da cultura brasileira. Ver: O PALHAÇO DEGOLADO. Direção: Jomard Muniz de Britto e Carlos Cordeiro. Recife, 1977. 9min22s, son. color.

9 DELEUZE; GUATTARI, 2010. p, 29. 10 BRITO, 2016. 301 p. 11 Rizoma, para Deleuze e Guattari, é a produção de multiplicidades e novos começos a partir de encontros imprevisíveis,

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GNARUS - 27 encontros e bricolagens com as multiplicidades e potências de desterritorialização, “de constituir uma nova engrenagem ao lado da engrenagem precedente, indefinidamente, mesmo se essas engrenagens parecem se opor, ou funcionar de maneira discordante”,12 se fazendo máquina de desejo, se (des)montando no interior da usina de montagem de brasis.

então “mais um agitado do que um agitador”. 14 Tributário de Nietzsche e o seu malho quanto de Deleuze e sua pop filosofia, Jomard formulou uma série de “práxis” que, frequentemente, orientaram

suas

produções

intelectuais.

Nietzsche, em Vontade de potência declara uma guerra aos que pretendem “dizer sua opinião a respeito dos grandes assuntos, sua pretensão em

Analisando o conteúdo de suas obras Do

querer assumir o caráter de juízes nas questões

Modernismo à Bossa Nova e Atentados Poéticos,

que ultrapassam todos os limites”,15 o que move

podemos

entrever um Jomard fugindo de

JMB a estabelecer uma belicosa irreverência a uma

um modus operandi perene, seguindo lógicas

série de discursos que lançavam grandes valores

descontínuas. Do Palhaço Degolado aos Atentados

culturais e ao panteão que se afirmava como seu

Poéticos, nota-se rupturas contundentes, em

baluarte. Através da apropriação da pop filosofia

especial o caráter explicitamente combativo

de Deleuze, ele se mune de outras possibilidades,

daquele para o estilo ácido, porém sutil destes.

conseguindo então afiar o malho Nietzscheano

Potencialmente, seu devir permite pensá-lo,

para levá-lo à categoria molecular/micropolítica –

especialmente em determinados textos dos

dando forma aos rizomáticos atentados poéticos.

atentados poéticos, enquanto um rizomorfo,13 nunca fechado em si mesmo, escapando do decalque. Constituindo-se enquanto um esquizo, ora lutando contra os moinhos da “cultura brasileira” – imaginados, porém com efeitos de real, tais como os de Dom quixote – para depois ressurgir em um lugar diferente, longe da categoria molar que um dia buscou atingir com sua antiga espada-malho interceptada no momento da decapitação do seu palhaço. Como diria já na segunda metade da década de 2000 em sua autoapresentação de Do Modernismo à Bossa Nova, ressoando o final distópico de O Palhaço Degolado, quase 30 anos antes: “agitador cultural sem mídia a disposição não existe” se dizendo uma negação da teleologia do pensamento moderno. O rizoma é um sistema de conexões labirínticas cujos resultados não são territórios, se constituindo nômade. Ver: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v.1. São Paulo: Editora 34, 2011 12 DELEUZE; GUATTARI, 2014. p, 148.

Os atentados poéticos de Jomard são textos que não ambicionam uma estética tradicional, e assumem de forma contundente a escrita de um sujeito que se deseja rizoma, e no limite, busca por um outro que é o tempo todo estranho a si mesmo, passando a promover atentados explosivos às pretensas linhas evolutivas e culturas sacralizadas. (...) tudo pode ser desmontável, deslizante De significados e significações. Signos em rotação e ou roteiro de transgressões? Rizomas, recuperações. 16 Esse fragmento de poesia nos mostra, por mais parcialmente que seja, uma “sede de sangue” em relação aos monstros canônicos artísticos-literários. Manifestam uma vontade – não cabe aqui julgá-la real ou fictícia –, de uma

13 Produzir artes e filamentos que parecem raízes, ou, melhor ainda, que se conectem com elas penetrando no tronco, podendo fazer servi-las a novos e estranhos usos. Ver DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v.2. São Paulo: Editora 34, 2011. p, 34.

14 BRITTO, 2009. p, 16. 15 NIETZSCHE, s.d. 16 BRITTO, 2002. p, 67. Grifo nosso.

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GNARUS - 28 produção autônoma de novos começos a partir

atentados poéticos manifestam uma vontade

do rizoma. Em outro momento, ouvimos a voz

de potência, de criação e doação.19 Se encontra

de Jomard ecoar na citação de Karel Kosik,

num estilo de texto repleto de furor iconoclasta,

numa epígrafe: “cada indivíduo-pessoalmente e

enunciado sua aversão aos cânones, contra a

sem que ninguém possa substituí-lo – tem de se

vontade de poder.

formar uma cultura e viver a sua própria vida”.

17

Isso é quase um manifesto segundo o qual o pensamento autônomo, levando em conta o desejo, só é possível a partir de um atentado ao pensamento-árvore, representado pelo Panteão da cultura expressos em figuras de destaque no Pernambuco vivenciado por JMB, Gilberto Freyre e Ariano Suassuna. Isso reaparece no poema cujo título é “Platão”:

de Ariano Suassuna assumiram lugares sagrados, e um Jomard parece ter sobrevivido e estar continuamente

retornando.

Estes

seriam

justamente os que desejava sangrar em um altar profano, antes de se perder a alegria, anterior à castração. Negá-los num manifesto de bricolagens no qual seus mestres, cada um meio profeta e meio deus, não teriam lugar. O manifesto de Oswald

A diversidade que há

de Andrade voltava, devidamente adaptado: “A

entre homens e ações,

peste dos chamados povos cultos e cristianizados.

além da permanente

É contra ela que estamos agindo”. Substituamos

instabilidade

“cristianizados” por algo como “Freyrianizados”,

das coisas humanas,

como dá a perceber no seu ensaio escrito em 2001

não admite em nenhuma arte

Crueldade e confraternizações: breve ensaio de

e em assunto algum

psicanálise selvagem.

um ABSOLUTO que valha para todos os casos e para todos os tempos. 18

A sociologia de Gilberto Freyre e a literatura

As articulações entre filosofia e poesia

representam uma sonora negação às leis gerais que pretendiam orientar o mundo. Recusa, implicitamente, a possibilidade de uma brasilidade unívoca para “todos os casos”. As multiplicidades que existem entre os homens e suas ações impossibilitaria qualquer valor “ABSOLUTO”, inclusive na cultura. A noção de rizoma de Deleuze e Guattari da qual JMB se apropria é eminentemente baseada em conexões imprevisíveis e de bifurcações labirínticas, resultando em novos começos, novos agenciamentos de processos de expressões. Essa produção literária que encontramos nos seus

Deixemos Jomard falar um pouco sobre seu desejo de implosão da cultura no altar, sua ânsia por vê-la livre dos grilhões daquela casa de detenção, o que reflete sua aproximação com o que se convencionou chamar de tropicalismo. Essas palavras que escreve nos deixa entrever sua vontade de potência extração do múltiplo a partir do uno, já que mesmo não havendo “nada de novo sob o sol”, a relação ontológica e autopoiética se tornaria possível. Esta seria a lógica make yourself Jomardiana: [...] talvez as raízes da modernidade se encontrem mais longe do que pensamos, entre fantasmas carcomidos e abandonados de outros séculos. Hoje tornou escassa a diferença entre criar e citar, construir e bricolar.20

17 KOSIK. Apud BRITTO, 2002. p, 187.

19 DELEUZE, 1994. p, 24.

18 BRITTO, 2002. p, 78.

20 BRITTO, 2002. p, 51.

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GNARUS - 29 No ato de “bricolar”, Jomard enxergou

certamente escaparia a Apolo, pois Jomard não

potências que considerava fundamentais no

era Édipo. Impossível dizer se ele queria ser rei ou

contexto cultural. A lógica do rizoma, da extração

não. Improvável seria açambarcá-lo na categoria

do múltiplo a partir do uno, multiplicidades

edipiana inventada por Freud, que se ancorava

extraídas de polos pretensamente unos. Jomard

numa sociedade falocrática. As convulsões

enquanto leitor de Gilles Deleuze – o que podemos

contemporâneas em que Jomard esteve em

perceber através de suas várias alusões à sua pop

contato, manteve sua subjetividade na sua

filosofia –, foi por este influenciado no sentido

dimensão processual criativa, de devir, ressoando

de adotar uma filosofia da cultura que reflete

os seus múltiplos desejos,23 tomando itinerários

de forma intensa a máxima deleuzeana que se

imprevisíveis. A subjetividade Jomardiana esteve

encontra no prólogo da tese principal do filósofo

em choque com outras – como através das leituras

francês diferença e repetição: “Só escrevemos na

–, atingindo uma “enorme complexificação,

extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta

produção de híbridos, harmonias, polifonias,

extrema que separa nosso saber e nossa ignorância

ritmos existências inéditos e inusitados”, e como

e que transforma um no outro. É só deste modo

é possível imaginar do pop filósofo que buscava

que somos determinados a escrever”.

encarnar, sempre buscando a desterritorialização

21

Isso

o aproxima dos chamados tropicalistas, onde busca se inserir. É no tropicalismo que Jomard vê a bricolagem ser concretizada e aceita. Em depoimento ao Dzine, entrevista que se encontra na terceira parte dos seus atentados poéticos, JMB diz: “creio que os Manifestos tropicalistas possam ter irritado um pouco a nobreza do nosso eterno professor de estética [Ariano Suassuna], do qual, até então, desconhecíamos sua ética sertaneja mais radical”.22 A ironia presente nessas palavras mostram o seu apoio a atitudes que buscasse fazer a deglutição de conceitos culturais diferentes entre si e produzir um terceiro que não pertencesse a ninguém – a irritação ao professor de estética vinha como um bônus em forma de ídolo que perdeu a compostura ao se ver ameaçado.

e as multiplicidades. Ao indagar quais máquinas desejantes moviam os afetos e as produções de JMB, um murmúrio fragmentar – vindo de um sujeito que se dá aos pedaços –, vem em forma de poema: Sei de sobra. Que nunca terei uma obra. [...] amor a amor, ou livro a livro, amemos nossa caveira breve. [...] coroais-me de rosas e de folhas breves. que sempre serei outro. 24 Nota-se o desejo premente da existência de multiplicidades, e vetores de subjetivação que vão se metamorfoseando no tempo e no espaço, continuamente, como se ele inventasse máscaras para si mesmo, ressurgindo um outro dos seu

Caso consultasse o oráculo de Delfos, este

eus anteriores e, às vezes reconstituindo seus

provavelmente não saberia responder. Afinal, que

fragmentos. Para ilustrar isso, Homi K. Bhabha

crédito deu Jomard aos seus mestres e oráculos

remete às identidades no mundo pós-moderno

de um Brasil vindouro encarnados nas figuras

que dizem respeito a uma gama de novidades

de Freyre e Suassuna? O destino de Jomard

que liquidam com as noções de nacionalidade por

21 DELEUZE, 1988.

23 GUATTARI, 2012.

22 BRITTO, 2002. p, 333.

24 BRITTO, 2002. p, 29-30.

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GNARUS - 30 meio da diáspora e nos lançam num mundo de

uma pretensa impessoalidade – talvez em vão

possibilidades transnacionais de identificações,

–, das pesquisas envolvendo JMB. Quase como

buscando o encontro, novas fronteiras de coalisão

se lidasse com um estranho pelo qual qualquer

com o Outro, novos locais para a cultura.

contato mais próximo poderia fazê-lo cair nas suas

Estar no além é habitar um espaço intermediário, como qualquer dicionário lhe dirá. Mas viver ‘no além’ é ainda ser parte de um tempo revisionário, um retorno ao presente para redescrever nossa contemporaneidade nossa

cultural;

reinscrever

contemporaneidade

cultural;

reinscrever nossa comunalidade humana, histórica; tocar o futuro em seu lado de lá [...]. 25

condição

realidade com as lentes Jomardianas, como ele se enxergava e queria que o enxergassem. O fruto desses esforços são histórias que soam como se o seus cartógrafos pouco ou nada soubessem do personagem, semelhante ao narrador não onisciente dos romances Kafkianos. As narrativas e dizibilidades sobre JMB parecem fadadas a uma ambiguidade nas suas leituras, pontas soltas que sempre possibilitam novas pesquisas, já que não tem sido possível nem desejável canonizar uma

As identidades do sujeito na emergência da

teias de sedução e passasse a enxergar a pretensa

pós-moderna

se

encontra

verdade una sobre algum aspecto desse poliedro de faces infinitas.

desfragmentada e ontologicamente dividida num

processo

de

desreferencialização

e

descentramento. “Linhas, fusos e meridianos o que nos daria a condição de corpos cartográficos”26 entende-se assim, que a identidade do sujeito não podendo ser fichada, catalogada, pois é múltipla e está em processo constante de vim a ser outro, o método cartográfico, portanto, permite perceber, ainda que de maneira diáfana, essas múltiplas linhas, fusos e meridianos.

O eterno retorno do outrem: à procura de raízes? É possível que ele tenha, em um momento específico, pretendido dar um rosto ao Brasil, subir ao Olimpo com a chama da cultura e brasilidade, formar seu próprio panteão, ao seu modo? Ou teria ele se pretendido um Prometeu28 e roubar o fogo dos deuses – leia-se os pensamento em torno de uma brasilidade idêntica a si mesma e

Desse modo, escrever sobre JMB talvez

os regionalismos –, e dar aos “homens comuns”,

seja esse desafio de tentar capturar dimensões

para estes produzir seus híbridos e polifonias?

escorregadias de um sujeito que não deseja ser

Um inconclusivo “talvez” pode ser respondido

taxonomizado e não economiza esforços para isso,

para ambas as indagações, embora possa se

“tal como a esfinge da mitologia grega, jamais dá-

pensar com alguma justiça que ele talvez tenha

se a ler por completo, e, em geral, parece também

buscado uma apoteose, seja para deus ou titã.

nunca encontrar-se completo. Mas, assim como

Vestígios de sua vontade de ser baluarte, no

ela, seduz os que por ele passa e os desafia a

mínimo, duma reinvenção de culturas brasileiras

decifrá-lo, sob o risco de ser por ele devorado”.

27

podem ser encontradas no posfácio em seu livro

A citação anterior exemplifica o cuidado, talvez

do modernismo à bossa nova, escrito já na década

25 BHABHA, 2014. p, 28.

28 Referência à mitologia grega. Prometeu foi um titã que roubou o fogo dos deuses para dá-lo aos homens e recebeu como castigo a condenação de ser acorrentado a uma rocha onde abutres comeriam seu fígado eternamente.

26 DELEUZE; GUATTARI, 1996. 27 BRITO, 2016. p, 21.

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GNARUS - 31 de 2000. Nesse mesmo livro, João Carlos Teixeira

dispersão constitutiva, estabelecendo origens –,

gomes, em 2004, provavelmente refletindo os

ao mesmo tempo que, em seus escritos, busca

discursos de Jomard sobre si mesmo, diz: “Gil e

filiar-se a ele. Sugere-se então uma evidência de

Caetano até hoje não se lembraram de registrar as

sua faceta arborescente: Para Deleuze Guattari,

dívidas do tropicalismo para com o trabalho difusor

“árvore é filiação, mas o rizoma é aliança,

e pertinaz de Jomard, aliás, já documentado”.

unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”,

O nome do texto é “Jomard, o carbonário”,

mas o rizoma tem tecido a conjunção “e... e...

atribuindo a ele o papel de “revolucionário” que

e...” ao mesmo tempo que “quando um rizoma

lutava contra os absolutismos da cultura e seus

é fechado, torna se árvore, não se dobra mais”.32

ícones consagrados.

“Ser” tropicalista o tira do devir minoritário,

O posfácio que Jomard escreve, além de admitir a noção de aperfeiçoamento do eterno retorno de Nietzsche que é apropriado por Deleuze em Diferença e repetição,29 faz uma análise em retrospectiva Da Tropicália para antropofagia. A

aproximando-se de um novo panteão da cultura e associa-se à verdade tropical. O eterno retorno do outrem parece se configurar como uma busca de cristalizar-se, de alguma forma, como marginalherói.

noção de bricolagem se faz presente no texto,

Essas considerações, porém, não tem forças

produzindo sentido como sendo ele mesmo um dos

de sentenças. O itinerários desterritorializantes

protagonistas de uma antropofagia aperfeiçoada

de JMB podem ser potencialmente imprevisíveis.

que retornou, onde não se buscava mais apenas

De qualquer forma, “no coração de uma árvore,

recuperar uma “alegria [que] é a prova dos

no oco de uma raiz ou na axila de um galho, um

nove”, mas o canibalismo agora iria mais longe,

novo rizoma pode se formar”, diz Deleuze. Como

nos Beatles à banda de pífanos de caruaru. “Não

personagem vivo, a obra aberta continua em

querem que imaginem que pretendi fazer desse

Recife no continuum passado-presente-futuro,

livro uma expressão de cultura nacional brasileira.

sendo continuamente interpelado enquanto

Deus me livre. É agora, depois de feito, que me

sujeito.

parece descobrir nele um sintoma de cultura nossa”, pronunciou o notável antropófago Mário de Andrade no prefácio escrito em 1928 para seu Macunaíma.30 De maneira semelhante a Mário,

“O cinismo é a ironia com poder”: Considerações finais

JMB busca conformar a pretensa obra tropicalista

Compreendemos o sujeito Jomard enquanto

e suas neoantropofagias como uma expressão

segmentarizado, nos damos liberdade para o

mais alinhada ao desejo do povo.

relacionar, através de Deleuze, que cada segmento

“Destroçando

heroísmos,

cordialidades,

metarraças, unanimidades. Reatando polêmicas. Leituras em abismo”,31 diz Jomard de maneira apologética ao “movimento tropicalista” – negando, ou pelo menos não evidenciando a sua 29 DELEUZE, 1988.

se relaciona com um centro, ou um foco de poder. Para Jomard Muniz de Brito, esses centros de eram metonimizados na Casa da Cultura de recife, Gilberto Freyre, e ainda na pessoa de seu professor Ariano Suassuna. É importante essa caracterização dialógica entre esses sujeitos já

30 ANDRADE, 2007. p, 226.

que: “pode-se objetar que os próprios segmentos

31 BRITTO, 2009. p, 148.

32 DELEUZE, G. GUATTARI, 2011.

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GNARUS - 32 supõem um centro de poder como aquilo que os

é, por uma Cultura especialmente esculpida.

distingue e os reúne, os opõe e os faz ressoar”, 33

Vários instrumentos poderiam ser apropriados

ou seja, em toda produção Jomardiana existia uma

para cimentar uma certa visão de mundo. Essas

relação dialógica com esses centros de poder.

intepretações, se comparadas a “evangelhos”

Como definiu Carlos Guilherme Mota,34 a ideologia da cultura brasileira se faz presente em diversos tipos de produção intelectual. Quando os esforços bélicos falharam em consolidar projetos, meios menos violentos e mais sutis poderiam ser considerados para “transformar o país”, ou afinar a melodia político-cultural sob determinado diapasão. Anotamos a existência do paradoxo do Brasil ser tanto uma ideia quanto um lugar, e que grupos de intelectuais de épocas distintas entraram, por seu turno, numa corrida para redefinir e reinterpretar o significado da “ideia” e remanejar a materialidade do “lugar”. Temos

da cultura brasileira, pretendiam se tornar canônicos. Nessas tentativas de recortar o palco cultural segundo vontades individuais, fica em evidência os formigamentos dos começos de uma inteligência que criava e ao mesmo tempo “descriava”.35 Em outras palavras, esses intelectuais penetraram nas brechas da política, e conforme nos lança a epígrafe que abre esse texto, se atribuíram o privilégio dizer “que o que é não é e o que não existe, existe”, utilizando a ironia como poder. Assim, geravam-se ruídos e conflitos entre contemporâneos em um campo de batalha insólito.

então a busca de um “verdadeiro Brasil”, flertando em cada momento com os diversos brasis, uma “estratégia argumentativa e discursiva” que

Francisco Adriano Leal Macêdo é graduado em História e mestrando em História do Brasil pela

significava uma projeção para o futuro. Em outras

Universidade Federal do Piauí - UFPI.

palavras, as cargas de sedução envolvidas para fazer parecer transcendente e definitivo um determinado Brasil perpassavam por estratégias

Referências:

que tinham variados níveis: primeiro, estava

AGAMBEN, Giorgio. Bartleby, ou da contingência.

implícito a existência de “verdadeiros brasileiros”;

Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

depois, tal narrativa tinha de se fazer o mais verossimilhante possível.

Dentro

contingente,

de os

uma

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo:

lógica

assujeitados

a

histórica “estar-nos-

mundos” do século XX se engajaram a explicar o Brasil, projetar um tempo. Essa projeção, que era

Cortez. 2011. ANDRADE, Mário. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Agir, 2007. p, 226.

mestiça de interpretação e crítica, era também

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo

ideológica na medida que partiam de lugares e

Horizonte: UFMG, 2014.

interesses diferentes e desejavam ser vencedores

35 Concluímos o presente artigo com essa ideia como sugestão de reflexão para o leitor, na intenção de conexão autônoma desse artigo com outras produções. Nesse texto do pensador italiano Giorgio Agamben, os argumentos em torno da ideia de criação apresentam contrapartidas, ou seja, em cada ato de criação por meio do pensamento uma outra perspectiva sofre um atrito. Ver: AGAMBEN, Giorgio. Bartleby, ou da contingência. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. p.3543.

em suas respectivas ideias. O país como enigma a ser desvendado era, por igual, visto como uma tábula-rasa a ser preenchida de significados, isto 33 DELEUZE, 1996. p. 115. 34 MOTA, 1980.

Gnarus Revista de História - VOLUME XI - Nº 11 - OUTUBRO - 2020


GNARUS - 33 BRITO, Fábio Leonardo Castelo Branco. Visionários

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de um Brasil profundo: invenções da cultura

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Mil

Platôs:

capitalismo

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