11-Gnarus11-Artigo-O desenvolvimento da escola de massa

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Artigo

DESENVOLVIMENTO DA ESCOLA DE MASSA: A NECESSIDADE DA SOCIEDADE INDUSTRIAL Por Renato E. de L. Oliveira

RESUMO: Nossa sociedade está inserida no mundo capitalista, o sistema que age através de relações de produção, criando laços de dependência. No século XVIII a indústria irá se desenvolver e durante o século XIX irá se consolidar, os países iniciam suas industrializações e começam a perceber a necessidade de criar um projeto educacional em consonância com a realidade econômica, mas não era possível permitir uma ampliação sem o controle das elites. Neste contexto se encontra a escola, onde as crianças passam boa parte de suas vidas, no entanto, a instituição não passa apenas conteúdos, mas sobretudo educa os corpos, disciplinando-os. Os estudantes são, indiretamente, ensinados desde cedo a se adequarem as relações do trabalho. Palavras Chaves: Educação. Capitalismo. Trabalho

Introdução

A

o longo da história sempre existiram formas de iniciar as crianças na vida adulta. Podemos observar que na Idade Antiga a educação e iniciação se dava no seio familiar, onde “o jovem varão simplesmente acompanha o pai no trabalho da terra, no foro ou na guerra, enquanto as filhas permanecem junto a mãe ajudando-a em outras tarefas.”1 Mesmo em nossa sociedade é inegável que a família continua com sua primazia na educação social, tendo em vista que é onde a criança 1 ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Editora Artes Medicas. 1989. p. 105

tem o primeiro contato com a sociedade. Avançando para a Idade Média podemos perceber que a educação continua centrada na família, mas desta vez as crianças não ficam na família que as geraram, e sim, eram enviadas para um lar diferente. A falta de coração dos ingleses manifestase particularmente em sua atitude para com seus filhos. Após havê-los tido em casa até os sete ou nove anos (entre nossos autores clássicos, sete anos é a idade em que as crianças deixam as mulheres para incorporar-se à escola ou ao mundo dos adultos), colocam-nos, tanto os meninos quanto as meninas, no duro serviço das casas de outras pessoas, as quais as crianças ficam vinculadas por um período de sete a nove

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anos (portanto, até a idade de quatorze a dezoito anos, aproximadamente). São chamados então de aprendizes. 2

Na casa de outra família as crianças, agora aprendizes, irão se moldar as normas da casa, ou em outras palavras as normas da sociedade vigente. Essa educação não deixava divisões entre educação, família e trabalho. À criança cabia servir e obedecer às normas, aprendendo as boas maneiras, e aos donos da casa cabia a obrigação de educar, “mas também a alimentá-lo e a vesti-lo, dar-lhe uma formação moral e religiosa e prepará-lo para converter-se em um cidadão.3 Com o passar dos séculos um novo modelo econômico social vai se desenvolvendo, tratase do sistema capitalista. A nova configuração da sociedade irá exigir um novo modelo de trabalho, consequentemente um novo modelo de trabalhador, que será formado em instituições de ensino para depois seguirem para o mercado de trabalho. A escola foi muito importante para o momento de transição que foi forçado pelo desenvolvimento da indústria. Ao mesmo tempo em que a escola foi peça central nessa transição foi também alvo, sendo afetada por choques de gerações. É importante ressaltar que a sociedade como um todo estava sendo afetada, mas a escola foi utilizada como fonte de propagação dos ideais do liberalismo capitalista.

2 ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Editora Artes Medicas. 1989. p. 106. 3 Ibid., p. 107.

A necessidade do século XVIII Com o fim da classe camponesa devido a política de cercamento, surgiu o sistema agrário embasado nos latifúndios e grandes arrendamentos. Os camponeses e trabalhadores agrícolas não conseguiam se manter nos campos, a solução foi então ir para a cidade e oferecerem sua única posse, a força de trabalho. Nem todos conseguiam empregos, e agora formavam o que Marx chamava de exército de reserva industrial.4 A relação patriarcal-feudal estava rompida, o indivíduo conseguia autonomia sobre si, porém via-se submetido a uma relação de dependência. A revolução industrial criou uma mudança nas relações econômicas, sociais, política e em última instancia cultural. A nova forma de trabalho exigia disciplina, ordem, os trabalhadores, adultos, estavam acostumados a não ter hora para trabalhar devido a dinâmica do trabalho do campo. O campo não exigia divisão entre trabalho e vida particular, ou seja, somente com muito esforço um adulto se acostumaria a rotina de uma fábrica, por outro lado as crianças se apresentavam como mão de obra barata e ainda em formação. Quando estas crianças tiverem quatro anos, serão enviadas a uma casa de trabalho rural e, ali, ensinadas a ler duas horas ao dia e mantidas plenamente ocupadas o resto de seu tempo em qualquer das manufaturas da casa (...). É de considerável utilidade que estejem, de um modo ou outro, constantemente ocupadas ao menos doze horas ao dia, quer ganhem a vida ou não; pois, por este meio, 4 Conceito desenvolvido por Karl Marx em sua crítica da economia política, e refere-se ao desemprego estrutural das economias capitalista que contribui para alienação do proletariado.

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GNARUS - 76 esperamos que a geração que está crescendo estará tão habituada a ocupação constante que, em geral, lhe será agradável e divertida (...). 5

A escola então passa a ser considerada como uma opção para sanar o problema das crianças ociosas e ao mesmo tempo traria a educação e disciplina necessárias para a realidade fabril. Na Inglaterra defendia-se a expansão das escolas, embora pudesse encontrar opositores em estender a educação aos pobres. (...) ensinassem a ler e a escrever pessoas que não necessitavam mais que aprender a desenhar e a manejar o buril e a serra, mas que não querem continuar fazendo-o (...). O bem da sociedade e exige que os conhecimentos do Povo não se estendam além de suas ocupações.6

Na mesma linha de pensamento encontravase o filósofo John Locke, considerado o “pai do liberalismo”. Locke acreditava ser desnecessário incentivar a educação para as classes baixas, eles eram os braços e não o cérebro da sociedade, necessitavam de disciplina e não de conhecimento. O estudo das ciências em geral é assunto daqueles que vivem confortavelmente e dispõem de tempo livre. Os que tem empregos particulares devem entender as funções; e não é insensato exigir que pensem e raciocinem apenas sobre o que forma sua ocupação cotidiana. 7

O historiador alemão, Werner Markert na obra Teorias de educação do iluminismo, conceitos de trabalho e do sujeito coloca mais um exemplo de Locke, o que reforça o 5 ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Editora Artes Medicas. 1989. p. 109. 6 Ibid., p. 111. 7 Idem.

pensamento da época. (...) A maior parte da humanidade não tem paciência para o estudo e a lógica e as sutis diferenças das opiniões acadêmicas. Quando as mãos estão habituadas ao arado e à pá, a cabeça só raramente desperta para pensamentos elevados e não pratica raciocínios misteriosos.8

Despertar pensamentos misteriosos significavam colocar em risco o status quo, a maior parte da sociedade não pode ter pensamentos misteriosos e para evitar isso basta evitar o estudo. Para Locke a única educação que importava era dos filhos da burguesia, que Locke chama de um gentleman (cavalheiro), que seriam os futuros governantes. (...) quem quiser ser universalmente instruído deverá se familiarizar com os objetos de todas as ciências. Mas isso não é necessário pra um cavalheiro [gentleman], cuja ocupação própria consiste em estar a serviço de seu país — daí que esteja mais propriamente preocupado com a moral e conhecimento político (...) da sociedade civil e das artes do governo e, desse modo, incluem também o direito e a história. 9

Mas a educação não se restringe a mediação de conhecimento, ela traz consigo o pensamento reflexivo e essa questão assombrava a burguesia, educar ou não educar a população mais pobre. Necessitavam educar a população para que pudessem operar as máquinas. O proletário trabalhando 8 MARKERT, Werner. Conceitos de formação do homem como manifestação da razão burguesa: a relação entre educação, propriedade de progresso técnico. In: ___ (org.). Teorias de Educação do Iluminismo, conceitos de trabalho e do sujeito: contribuições para uma teoria crítica da formação do homem. Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro. 1994. 9 NASCIMENTO. Christian L. Lopes. Locke e formação do gentleman. 2010. 129f. Dissertação (mestrado). Núcleo de pós-graduação em educação, Universidade Federal de Sergipe.

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GNARUS - 77 iria manter a indústria em funcionamento e a elite conseguiria manter e consolidar seu poder. Contudo, temiam permitir o acesso ao conhecimento para a classe mais baixa e mais numerosa pois não desejavam despertar a capacidade de reflexão visto que isso poderia desestabilizar o status quo. O Marquês de Condorcet, sustenta uma posição que viria a ser tomada, deixaria a população ter acesso à educação, mas a educação seria controlada. Ao direcionar o que as pessoas podiam ou não aprender afastariam o medo de a população entrar em contato com conhecimentos “inadequados”. É expandindo as luzes entre o povo que se pode impedir que seus movimentos se convertam em perigosos. (...) por que, então, não desejar que uma instrução bem dirigida lhes torne difíceis de serem seduzidos mais adiante, mais dispostos a cederem a voz da verdade?10

Era necessário educar a população, mas não muito, como coloca uma das empresas da época que fabricava algodão “(...) não queremos estadistas em nossas fábricas, mas indivíduos de ordem”.11 É importante deixar em evidência o fato, que Marx também chamou a atenção, que a primeira Revolução Industrial alterou a forma de pensar dos indivíduos, não só em relação ao trabalho, mas a relação com toda a sociedade. O artesão que faziam parte de todo o processo de trabalho até a produção do objeto, passa a fazer apenas uma parte do todo, alterando também sua relação com o 10 ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Editora Artes Medicas. 1989. p. 112. 11 Ibid., 113.

objeto. A relação do trabalhador com o trabalho havia se modificado, agora quem ditava o ritmo eram as maquinas. O trabalhador perde o controle do processo produtivo. É ele quem se adapta ao processo de produção, e não mais ao contrário, como acontecia na manufatura. Aqui temos o maior exemplo da alienação do trabalho teorizado por Karl Marx, onde o trabalhador perde o “controle” sobre o produto que faz, ele não sabe mais quanto material é necessário, qual o tempo médio para produzi-lo ou a quantidade que ele mesmo produz num dia. Através da introdução deste tipo de trabalho passa a ser necessário tornar o operário mais eficiente na função exercida. A educação, que antes era somente para a classe alta passa a ser oferecida de maneira ampla para as camadas mais baixas, criando dois tipos de instrução uma científica, técnica e profissional e a outra que era a educação social, uma para as classes baixas e a outra para a classe dominante.

A educação da ordem Ao ampliar a educação era necessário espaço para comportar as crianças para que elas recebessem a educação adequada. Mariano Enguita chama a atenção para o fato de que a escola não surgiu com a intenção de moldar o pensamento da população ao trabalho, “simplesmente [as escolas] estavam ali e se podia tirar bom partido delas.”.12 A educação material, primava para que rotina 12 ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Editora Artes Medicas. 1989. p. 114.

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GNARUS - 78 escolar “gerasse nos jovens os hábitos, as formas de comportamento, as disposições e os traços de caráter mais adequados para a indústria.” 13 Para a sociedade a ampliação da educação era justificada pelos avanços tecnológicos, e de fato o objetivo das escolas nunca deixaram de ser o ensino, mas a forma alterou-se. Havia uma preocupação muito grande com o que se ensina, o conteúdo permitido e o que se podia lecionar, entretanto o mais importante era aprender as relações do trabalho. A questão não era ensinar um certo montante de conhecimentos no menor tempo possível, mas ter os alunos entre as paredes da sala de aula submetidos ao olhar vigilante do professor o tempo suficiente para domar seu caráter e dar a forma adequada a seu comportamento. 14

A disciplina nas escolas era semelhante aos quarteis, buscava-se controlar a vida dentro e fora dos muros. Pontualidade, respeito a hierarquia, padronização do modelo de roupa adequada, a metodologia de ensino tentava controlar não somente a mente, mas sobretudo seus corpos. Essa ideia fica bem exemplifica como demonstra Foucault: (...) [na] palavra “entrem”, as crianças põem ruidosamente a mão sobre a mesa e ao mesmo tempo passam a perna por cima do banco; as palavras “em seus bancos”, passam a outra perna e sentam-se frente a suas lousas (...). Peguem as lousas. A palavra “peguem”, as crianças levam a mão direita a cordinha que serve para pendurar a lousa ao prego que está diante delas, e com a esquerda, pegam a lousa pela parte do meio; a palavra “lousas”, as crianças soltam-nas e

13 Idem. 14 Ibid, p. 116.

põem-nas sobre a mesa. 15

Através deste relato podemos evidenciar que a instrução poderia acontecer nas escolas, mas ficavam em segundo plano, sendo o principal aspecto apreciado era a ordem. Tudo na escola era necessário para ensinar a ordem, a disposição das cadeiras, a cor da parede, o tablado, a lousa, cada parte da escola formava o todo do mecanismo de controle institucional, o que Foucault chamou de dispositivo: (...) um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos. 16

E, efetivamente, são esses dispositivos que reinam nas salas de aula. E até os dias atuais podemos presenciar que as instituições de ensino presam pela ordem, além de passar o conteúdo a escola acaba por ensinar como se comportar numa sociedade capitalista. De fato, professores nunca questionaram que respeitar a autoridade é um problema, pois ensinar os alunos ao respeitar a autoridade estão ensinando a se portarem na vida adulta. Os responsáveis e a população, de maneira geral, consideram de suma importância o bom comportamento dos estudantes, desta forma as crianças e adolescentes já vão sendo conduzidos para uma lógica de vida 15 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis. RJ. 20ª Ed. Vozes. 1999. p. 192. 16 MARCELLO, Fabiana de Amorim. O conceito de dispositivo em Foucault: mídia e produção agonística de sujeitosmaternos. Revista Educação e Realidade, p. 199-213. jan./jun. 2004.

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GNARUS - 79 adulta. Nesse contexto a escola aparece para consolidar e diria até legitimar a submissão a autoridade, coisa que o seio familiar não conseguiria fazer. (...) a autoridade da escola já não é a autoridade indiscutida do pai (...). É, como a autoridade no trabalho, uma autoridade com tendência a ser total durante o período de tempo em que o indivíduo está incorporado a instituição e dentro do espaço delimitado por seus confins. 17

Trazendo novamente o conceito sobre dispositivos de Foucault perceberemos que eles são quase imperceptíveis, os dispositivos condicionam nosso comportamento, mesmo que não notemos sua presença. Basta nos recordamos de nossos tempos de colegial, não notamos que estávamos sendo altamente influenciados. Enguita utiliza-se das palavras de Friedenberg, mostrando como os dispositivos agem O fato de que as restrições e as penalidades sejam pequenas e não importantes em si mesmas é uma forma de piorar as coisas. As grandes intromissões são mais facilmente reconhecidas como tais; as pequenas restrições são resistidas apenas pelos mais “revoltosos” . 18

Outro ponto importante para colocar em evidência é a uniformização dos alunos, por uniformização entende-se que são as atitudes comportamentais que todos os alunos são submetidos e deve seguir. Esta uniformização está intimamente relacionada com o respeito a autoridade. Muitas vezes os professores lecionam suas disciplinas para 40 alunos ou mais, torna-se no mínimo complexo 17 ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Editora Artes Medicas. 1989. p.166 18 ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Editora Artes Medicas. 1989. p. 165.

conseguir manejar tantos alunos num espaço tão restrito como a sala de aula. Entretanto, ao minimizar as diferenças comportamental entre os alunos é possível aplicar uma só forma de aprendizado, onde todos os alunos são forçados a aprender a dinâmica da aula. O trabalho do professor passa assim a consistir (...) em ensinar crianças e jovens a comportar-se da forma que corresponde ao coletivo ou categoria em que foram incluídos, (...) premiando a conduta correspondente e rejeitando e mesmo penalizando tudo o que possa derivar (...). 19

Fica evidenciado que a escola busca um aprendizado universalista, onde o aluno x terá que se portar como o aluno y, criando uma sala homogênea. Ao serem inserido numa homogeneidade os estudantes aprendem a “cobrar” isso de outras pessoas, assim relaciona-se somente com indivíduos que pensem e ajam iguais aos seus critérios. A educação da ordem faz com que alunos e professores acabem por perder suas personalidades, tendo que se adequarem à escola e ao cargo que ocupam. A criatividade e o livre pensamento são substituídos pela ordem e autoridade, a escola, mesmo sem querer, passa a reproduzir a lógica do trabalho.

A colisão do capitalismo na educação A educação, como instituição, foi de grande auxilio para fornecer pessoas devidamente capacitadas para o trabalho e permitindo a ampliação do sistema capitalista. Outra contribuição foi a legitimação de valores da 19 Ibid., p. 168.

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GNARUS - 80 classe dominante, não só como difundindo o pensamento dominante, mas sobre tudo fazendo se perpetuar a dominação estrutural, que se deu através da subordinação a hierárquica. Naturalmente, nem mesmo os altamente respeitáveis pensadores da classe dominante podiam adotar uma atitude que divergisse do modo cruel de subjugar aqueles que deviam ser mantidos sob o mais estrito controle, no interesse da ordem estabelecida. Não até que a própria mudança das condições de produção modificasse a necessidade de uma força de trabalho (...). 20

É importante salientar que o sistema capitalista não é unicamente um sistema econômico, trata-se, antes, de um modelo de sociedade, ou seja, não se limita ao campo monetário, ele perpassa todos os âmbitos particulares e sociais. Podemos encontrar um forte exemplo na religião, que antes condenava a usura e práticas de enriquecimento e que passou a defender o acumulo de riquezas, até mesmo antes da Revolução Industrial, como nos mostra o sociólogo Carlos Eduardo Sell, da Universidade Federal de Santa Catarina: “A riqueza foi considerada perigosa apenas se desviasse o indivíduo do trabalho (...). Com certeza não para fins da concupiscência da carne e do pecado, mas sim para Deus.” 21 O luteranismo acredita que a salvação é alcançada através dos atos terrenos, logo, tornou possível alcançar o paraíso através de ações corporais. Juntamente veio o calvinismo, que introduziu o trabalho no mundo espiritual. O trabalho agora era visto como meio para se alcançar a salvação “(...) 20 MÉSZÁROS, István. A Educação Para Além do Capital. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 29 21 SELL, Carlos Eduardo. Sociologia clássica: Marx, Durkeim e Weber. Petrópolis. 7ª Ed. Vozes. 2015. p. 129.

o calvinismo completou aquilo que faltavam na visão [de] Lutero: um estímulo psicológico para a dedicação sistemática ao trabalho como centro da conduta de vida (...)” 22. O sociólogo Max Weber, na obra a ética protestante e o espírito do capitalismo, possui um trabalho bem consolidado sobre esta temática que inclusive serve de inspiração para os escritos de Carlos Sell. Com tantos estímulos, como a fé no progresso e no desenvolvimento cientifico, estimulo religioso e poucas oportunidades de emprego nas fábricas, não é de se estranhar que os operários sempre pediram mais escolas. A história hegemônica também tende a ver a escola com bons olhos, considerando-a como parte do desenvolvimento social. Tendo isso em vista, um questionamento é possível, em que medida o movimento operário teve culpa pelo desenvolvimento da escola de massas? Essa questão não é o objetivo do trabalho apresentado aqui, contudo essa história continua silenciada, e acredito ser um dever moral apontar mais este caminho na direção de um resgate da história da educação. Retomando notamos que a educação sofre uma profunda mudança quando ocorre a gênese do capitalismo, a vigilância e o controle agora faziam parte da relação pedagógica. Essa opressão contrastava com o ideal iluminista, se por um lado os pensadores liberais divulgavam seus valores liberais e igualitários, por outro lado a escola aparecia como desmistificador desse argumento. (...) as técnicas de domesticação, de manipulação, de regulamentação, cujo sentido e forma variam segundo a relação na qual se exercem (relação de assalariado, 22 Ibid., 128.

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GNARUS - 81 relação pedagógica, relação de autoridade em uma organização, etc.) podem ser constituídas como uma forma nova de poder.23

Essa nova forma de poder que Enguita cita é a domesticação da classe operária através da dominação do pensamento através da escola, que se mostrava como local de repressão e dominação onde as “normas, regras e controles disciplinares [são] destinados a sufocar a iniciativa e a individualidade”.24 E sem dúvida este é o maior impacto do sistema capitalista nas escolas, ter transformado elas em um mecanismo para difusão dos ideais da classe dominante e doutrinação da classe dominada. Indiretamente ou diretamente os professores e educadores foram responsáveis pela propagação das ideias da elite. Os educadores não tinham, necessariamente, consciência de que estavam domesticando a classe trabalhadora, mas ao passar as normas e zelar para que as mesmas fossem cumpridas estavam contribuindo para a formação de um conhecimento oculto. Essa questão tinha que ficar clara para todos aqueles que passassem pelas paredes das escolas, além de absorver o conteúdo os estudantes iriam aprender a obedecer, a respeitar e ser submisso a autoridade e talvez, aquilo que é mais importante, aprenderia a conviver com afazeres repetitivos, sem sentido aparente no qual teriam que ficar por longas horas. Somente quando a domesticação da classe 23 ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Editora Artes Medicas. 1989. p. 142. 24 Ibid., p. 141.

operária alcançou seu auge que possibilitou as escolas darem novas formas para a sobrevivência econômica e social ao criar, até brilhantemente, uma classe operária homogênea. A escola, ao lado da família, é a principal formadora de comportamento que a sociedade conhece, e também é a única instituição que abrange as crianças e dispõe de um grande tempo com elas. A escola recebe as crianças de todas as classes sociais desde o Maternal, e já desde o Maternal, tanto com os novos como com os antigos métodos, inculcam-lhes durante anos, precisamente durante os anos em que a criança é extremamente “vulnerável” (...). (...) Nenhum Aparato Ideológico de Estado dispõe durante tantos anos de audiência obrigatória (...). 25

A rotina da escola é espelho da relação do trabalho. As crianças são preparadas para entrarem na relação de produção através das relações sociais escolares. Enguita cita um trecho do livro Schooling in capitalist America, de Samuel Bowles e Herbert Gintis, mostrando que a relação dos “(...) professores e os estudantes e dos estudantes entre si e com seu trabalho - reproduzem a divisão hierárquica do trabalho”.26 Para Browles e Gintis, citado por Enguita, a educação deveria ter como principal motivação a própria integração do aluno “seja com o processo (a aprendizagem) seja com o resultado (o conhecimento) do ‘processo de produção’ educacional.” .27 Ao colocar o sistema de notas, a avaliação fica 25 Ibid., 147. 26 ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Editora Artes Medicas. 1989. p. 152. 27 ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Editora Artes Medicas. 1989. p. 152.

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GNARUS - 82 sendo meritocrática, onde as notas altas são bonificadas e as notas baixas punidas. No geral os estudantes que melhor se adequam a metodologia de ensino obtém as melhores notas, enquanto os alunos que sentem dificuldades em adaptar-se ao modelo institucional acabam por obter notas menores. Ao ampliar a educação para a população com menor poder aquisitivo a classe burguesa conseguia propagar suas ideias e convicções. Nesse sentido a escola de massa conseguiu cumprir seu objetivo, fez com que os estudantes saíssem acostumados com a relação do trabalho. Ao educar a mente e o corpo os estudantes conseguiriam facilmente se adequar ao sistema social nascente.

ensino se modifica, as pessoas se modificam, e a sociedade muda junto. Ao configurar as escolas como principal centro irradiador do conhecimento abriu brecha para ser também a principal espaço da dialética, ou seja, para tornar-se centro de debates e estes podem conduzir ao desenvolvimento social. A escola não é nada mais do que a união dos membros que a forma. Por isso é necessário cada um assumir sua responsabilidade social perante a formação de novas gerações. A educação é muito mais do que aprender conteúdos e se formar para o mercado de trabalho, a educação é passaporte para uma sociedade mais justa e igualitária. Como dizia Paulo Freire (1967)28 a educação serve para conscientizar os homens sobre a problemática do seu tempo e lutar contra os perigos que cada período histórico apresenta.

Considerações finais Ao longo dos séculos a forma de se ensinar foi modificada diversas vezes, de modo que não existe uma padronização de estudos, cada sociedade definiu para si como o conhecimento seria transmitido. Este trabalho apresentou um recorte temporal demonstrando um determinado modelo educacional, que surgiu para atender a demanda da sociedade industrial nascente, e que até os dias atuais encontra refúgios, entretanto não significa que seja o único modelo aceito. As instituições de ensino, por excelência, são espaços de socialização, o que significa que as ideias, isto é, as diversas visões de mundo, são confrontadas. Não é porque determinada forma de instrução se consolidou que permanecerá para sempre, o

Renato E. de L. Oliveira é Graduado em História pela Universidade Cândido Mendes (2017) e Pós-Graduado em Gestão Pedagógica: Supervisão e Orientação Educacional pela Universidade Veiga de Almeida (2020).

28 FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Ed. Paz e Terra. 1967.

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