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Artigo
NOTAS SOBRE OS HUMORES E A VERDADE EFETIVA NO PENSAMENTO POLÍTICO DE NICOLAU MAQUIAVEL Por Lucas Barbosa Gomes RESUMO: Esse texto pretende investigar a questão da divisão social a partir do ideário de Nicolau Maquiavel, partindo de suas afirmações sobre as relações estabelecidas entre os humores do capítulo IX de “O Príncipe”. Visto que a relação entre estes humores é conflituosa, interessa inicialmente identificar a natureza deste conflito. Para fazer essa análise, outra obra terá presença durante o texto: o proêmio de a “História de Florença”. Ao investigarmos a natureza do conflito vislumbraremos seus efeitos e nos deteremos naquele considerado pelo o autor como o mais apropriado ao vivere civile, ou seja, a melhor forma de governo para a liberdade: a República. Palavras Chaves: Republicanismo, Conflito Político, Nicolau Maquiavel, Florença.
Introdução
posteriormente, para seu filho e herdeiro: Cosimo de Médici (1389-1464) .1
G
Cosimo assim como seu pai, amplia a área de iovanni di Bicci de Médici (13601429) foi o primeiro de uma ordem que
ditaria
gradativamente
as
articulações políticas da República de
Florença pelos próximos séculos. Giovanni funda o Banco Médici em 1397, em Florença, e diversos empreendedorismos manufatureiros na cidade ao longo das décadas ampliando seu sistema de crédito e empréstimo bancário. Acumula uma
influência que a Casa Médici tinha na República de Florença, por meio de um profundo clientelismo, desde o suporte assistencialista para o povo da cidade a acordos comerciais por parcerias em redes comerciais e de crédito comercial. Além disso, também o mecenato; sendo o patrocínio de artistas plásticos, pintores e literatos dentro da cidade o que Cosimo via como forma de consolidação política e social por meio de troca
fortuna comercial e uma rede de clientelismo que seria repassada, junto aos seus méritos,
1 MAQUIAVEL, 1998, p. 7
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de favores entre as facções políticos florentinos, permitindo que o desenvolvimento da cidade seja, em conjunto, o desenvolvimento de sua família. O mecenato era nesse período o financiamento das artes e apreço por novidades técnicas, foi ao longo do século XV influenciado pelo capital dos Médici em Florença, onde diversos artistas como Michelangelo (1465-1567) e Sandro Bottichelli (1445-1510) tiveram a oportunidade de produzir e divulgar seus trabalhos, sendo, o mecenato, uma forma de clientelismo de patrocínio mutuo, onde o artista tem a possibilidade e material de produzir suas obras e o financiador tem parte do crédito e prestígio de deter esse capital cultural.2 Usando da influência herdada de seu pai, Cosimo de Médici, estabeleceria as bases políticas para o fortalecimento dos Médici pelas próximas décadas na política de Florença, ao ponto que, seu neto Lorenzo (1449-1492), teria um vasto poder de
Nicolau Maquiavel
decretar, governar e deliberar dentro da República nas últimas décadas do século XV. Esse status dos Médici foi conquistado, além da influência política já existente, também através da compra e venda de cargos influentes, perseguições de outras famílias oligárquicas florentinas como os Albizzi ou os Paci e acordos de benefício unilateral na política beneficiando esta família. Todas essas manobras sendo realizadas dentro sede da República de Florença, o Palazzo Vecchio, maior símbolo da soberania republicada da cidade e, consequentemente, o maior símbolo do poder dos Médici. Com a ascensão dessa família de origem burguesa em Florença, ao longo do século XV, os Médici gradativamente articulam sua influência na política para permanecer no poder
os pilares dos ideais liberais republicanos.3 Em 1512, esse clã consegue se estabelecer no poder permanentemente e reformulando os altos cargos do governo da cidade, entre esses cargos a chancelaria, onde Nicolau Maquiavel (1469-1527) possuía o cargo, sendo deposto e exilado.4 No ano seguinte de seu exilio, Maquiavel escreve O príncipe (publicado pela primeira vez em 1531, pouco mais de duas décadas após a publicação, em 1557, o livro foi julgado pelo Papa Clemente VIII como uma obra condenável, contra a moralidade cristã, culminando com sua colocação no Index, pelo Concílio de Trento), sendo postulado somente como mais um espelho
justificado pelo desenvolvimento do bem público durante seu governo e, com isso, retardando 2 HIBBERT, 1993.
3 ADVERSE, 2007, p. 37. 4 HIBBERT1993, p. 26-32.
Gnarus Revista de História - VOLUME XI - Nº 11 - OUTUBRO - 2020
GNARUS - 54 de príncipe,5 peça literária comum desde o
A
teoria
de
Maquiavel
paira
entre
a
século VIII, escrita para soberanos e as virtudes
conceitualização do conflito social atrelado a
necessárias para sua boa governança.6
política, uma correlação de forças e interesses
Maquiavel viu a indispensabilidade de escrever sobre como esse desenrolar político dentro da República de Florença causaria sua ruína gradual. Maquiavel identifica que o modelo mais viável para a manutenção das relações dentro da cidade é o modelo da República onde “um príncipe sábio deve encontrar um modelo pela qual seus cidadãos, sempre e em qualquer tempo, tenham necessidade do estado e dele; assim, eles sempre serão fiéis”7 e ao mesmo tempo que um príncipe
privados em oposição aos interesses públicos – a res publica -, e assim, percebendo uma causa primordial, sendo ela o conflito movido pelos humores (ou paixões) dentro da política, “assume a perspectiva segundo a qual, para assegurar a vitalidade das cidades, não se trata de tentar suprimir ou mitigar o conflito, uma vez que ele é constitutivo da vida política, mas de lidar com ele da melhor maneira possível”.11 Todavia,
Maquiavel
ultrapassa
seus
deve formar laços com o povo também deve com
predecessores, como Coluccio Salutati (1331-1406)
os grandes, “quando inimigos, deve temer não só
ou Leonardo Bruni (1370-1444) que pensavam a
ser abandonado, como também que o ataquem”,8
República como o Estado ideal para a concórdia
alcançando assim, por meio das instituições e
e harmonia política. Identifica uma dialética
das leis, formular o modelo republicano mais
pragmática dentro dos interesses políticos: a
viável e a manutenção do poder com os recursos
sua necessidade e sua manutenção dentro da
necessários para essa manutenção,9
permanência do governo, a discórdia é o caminho necessário para a concórdia.12 Uma possibilidade de equilíbrio das forças entre quem governa e
Nela o conflito é diluído pelos acordos das facções, acordos estes que visam interesses particulares. Na Licença as mediações são feitas pelas facções, integradas via de regra pelos grandes, que corrompem o povo para impor seus interesses. Uma vez que interesses privados substituem os bens públicos não há mais espaço para a liberdade.10 5 Ver em COSTA, Ricardo da. Um Espelho de Príncipes artístico e profano: a representação das virtudes do Bom Governo e os vícios do Mau Governo nos afrescos de Ambrogio Lorenzetti (c. 1290-1348). In: Utopia y Praxis Latinoamericana, Revista Internacional de Filosofia Iberoamericana y Teoria Social. Maracaibo (Venezuela): Universidad del Zulia, vol. 8, n.23, p. 55-71, 2003. 6 JÚNIOR, 2007, p. 207. 7 MAQUIAVEL, 2001, p. 47. 8 MAQUIAVEL, 2001, p. 46. 9 JÚNIOR, p. 205-211, abr./jun. 2007, p. 206. 10 BENEVENUTO, 2013, p. 210.
quem é governado, fato somente alcançado dentro de um governo onde as leis, as instituições e os interesses da natureza corruptível humana são balanceados. Sendo essa República não mais um governo ideal, porém, um governo possível, onde existe e deve existir o conflito de interesses, “o conflito era provável, quase inevitável haja vista os interesses contraditórios do povo e dos grandes, e podia em 11 BENEVENUTO, 2013, p. 209. 12 “Não se trata somente de uma convergência de interesses na qual atende-se o interesse público porque é a única maneira de garantir a satisfação do interesse privado, embora essa espécie de cálculo não seja estranha a Maquiavel. Acredito que Maquiavel esteja falando da constituição de um objeto de interesse comum: o que em diversas ocasiões ele chama de pátria. A pátria é a cidade a que se pertence e, nesse sentido, o termo é politicamente neutro, isto é, vale para a república ou para o principado”. ADVERSE, Helton. Maquiavel, a república e o desejo de liberdade. Trans/Form/ Ação, (São Paulo), v.30, p. 33-52, 2007, p. 38.
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GNARUS - 55 certas ocasiões, funcionar como instrumento a favor da liberdade”.
Os Humores e a Verdade efetiva
13
Maquiavel faz pensar que uma tentativa dos
de negar a desunião social ou de solucionar
espelhos de príncipes escritos desde o Carlos
definitivamente suas dissensões implica em um
Magno (747-814) como guias morais pautados
equívoco. Compreender o livro IX17 de O príncipe
em pressupostos cristãs das virtudes, onde esses
de Maquiavel é fundamental para que a noção
traços da moralidade cristã são profundamente
de conflito existente no livro seja elaborada; a
enraizados
desde
correlação entre as forças equivalentes entre
o Medievo Ocidental onde as instituições
o povo e os grandes é a matriz primordial de
eclesiásticas detinham influencia, dependendo
sua teoria.18 O conflito tornasse um fenômeno
da regionalidade, parcial ou total das diretrizes
paradoxal ou um oximoro, um balanço entre a
do governante. Maquiavel preocupasse com a
tentativa de impedir uma oclocracia, a licença do
verdade efetiva do governo, como são despostas
povo e, ao mesmo tempo, impedir uma tirania
dentro dos recursos do real da política, e como
dos grandes, uma oligarquia. Esse balanceamento
a manutenção dessa política deve ser feita sem
em constante dialética de fusões de teses e
pressupostos morais, assim sendo o Estado no
antíteses forma como síntese: a República. E
plano real empírico, não mais o ideal.
com a República sendo a forma de Estado que
Rompendo
na
com
a
forma
tradicionalidade
de
governar
Maquiavel não somente admite a correlação de força dentro da cidade, mas sugere que ele é capaz de engendrar a liberdade e pode contribuir para que o corpo político se torne mais dinamizado.14 Assim, enquanto um dos humores deseja não ser
consegue se aproximar da concórdia por meio da liberdade do debate político entre os cidadãos, o principado, juntamente com o príncipe, deixa de ser necessário para a política. As forças opostas de complementam.19
governado e oprimido pelo outro, este último
Maquiavel traduz essa correlação conflitante
deseja justamente o que recusa o primeiro,
entre esses polos de repulsão de uma cidade como
uma “acepção concerne à ordem interna da
humores,20 ou desejos. No caso dos outros efeitos
cidade e à sua vida institucional: viver livremente
apontados por Maquiavel, as relações entre os
significa viver sob leis que, com maior ou menor
humores costumam se dar de forma muito diversa
participação popular, são elaboradas pelos próprios cidadãos”.15 E, nestas circunstâncias, não há solução de fato, pois os desejos dos humores existentes são irreconciliáveis, estão, por assim dizer, em constante descompasso, um conflito que deve ser assumido e não eliminado.16
17 “O capítulo IX de O príncipe trata de uma figura anfíbia, espécie de oximoro que Maquiavel denomina “principado civil”, uma mistura de principado com república que mantém sua ambiguidade até mesmo no modo de ascensão ao poder: não é nem por Fortuna nem por virtù, mas por uma “astúcia afortunada” que um cidadão se torna o governante de sua pátria. ”. ADVERSE, Helton. Maquiavel, a república e o desejo de liberdade. Trans/Form/Ação, (São Paulo), v.30, p. 33-52, 2007, p. 35. 18 Ver em ADVERSE, 2018, v. 1, p. 135-162. 19 JÚNIOR, 2007, p. 207.
13 BENEVENUTO, 2013, p. 209. 14 ADVERSE, 2007, p. 36-37. 15 ADVERSE, 2007, p. 38. 16 BENEVENUTO, 2012, 2013, p. 209.
20 “Umori. Maquiavel toma de empréstimo esse termo da tradição médica hipocrática e galênica que em sua época ainda exercia forte influência. Dentre os vários comentários dessa apropriação, um dos mais recentes e completos é o de M. Gaille-Nikodimov, 2004. Vale lembrar que Maquiavel utiliza como sinônimo para umori, desiderio, isto é, “desejo”. ADVERSE, 2007, p. 34.
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GNARUS - 56 de acordo com o Estado presente em que esses
apontados pelo autor destacando-se pela
humores estão sendo analisados, pois, tanto nas
sua capacidade de melhor abrigar o conflito
Repúblicas como nos Principados há espaço para
em suas instituições. A República é capaz de
a liberdade política, mas, a profundidade dessa
produzir leis e espaços institucionalizados
verdadeira liberdade está de acordo com o modelo
capazes de possibilitar a vazão dos desejos
de governo presente nessa cidade. No Principado
contraditórios dos humores. Esta vazão pode
o conflito é mediado pela figura do monarca, uma
se dar no sentido de produzir novas leis em
figura única que detém o poder político, enquanto
favor da liberdade.23
na República é a lei quem exerce este papel e as instituições capazes de garantir que essas leis sejam observadas e caso necessário modificadas de acordo com os humores.21
Com isso, dentro desse Estado real,24 com questões materiais reais um dos pontos chave de sua obra é a compreensão da dialética entre o povo e os grandes, e como um se opõe
Comparando ambas situações é possível
ao outro de acordo com seus interesses e
garantir a manutenção do poder do corpo político
paixões, formando, por excelência, o conflito e
vigente. Mas, é aquele que consegue maior
a necessidade desse conflito. Sem essa dialética,
durabilidade. Vale lembrar que o Principado
o governo é desgastado e entra em decadência
depende do monarca que detém a estabilidade
(seja pela falta ou o excesso dessas correlações
das leis e instituições e, portanto, de um homem
de forças e interesses),25 um equilíbrio de extrema
efêmero, uma política que tem uma durabilidade
precisão que somente um governo republicano
instável, sendo esse fato que permite que a
conseguiria manter, rompendo, dessa forma, com
República22 como um modelo de governo que
as alegorias medievais onde havia a necessidade
possibilita uma maior estabilidade durável ao
de um soberano teocentrado,
decorrer do tempo em oposição ao Principado, dependente da ação privada e não pública,
Dessa maneira, a capacidade que um príncipe tem de se manter no poder ou, em termos
A República pode ser pensada como um
utilizados por Maquiavel em suas obras – a Virtú,
lugar privilegiado entre os outros efeitos
é diretamente equivalente com a manutenção
21 BENEVENUTO, 2013, p. 210. 22 “Podemos detectar duas “matrizes” na leitura republicana da obra de Maquiavel: a primeira, embora reconheça sua importância para o pensamento político moderno, parece preocupada em chamar a atenção para sua pertinência (o que não quer dizer identificação) ao modelo antigo de republicanismo, ou o chamado “republicanismo clássico”. O que caracteriza basicamente esse republicanismo é a convicção de que a liberdade individual não pode ser dissociada da liberdade do Estado, de modo que a participação ativa dos cidadãos nos afazeres cívicos se torna uma exigência, assim como a organização institucional de um espaço em que o poder é exercido pelos membros da comunidade política. [...] ao passo que o segundo acredita mais apropriado situá-lo em relação à tradição romana [...] A segunda matriz enfatizaria a ruptura de Maquiavel frente à tradição do pensamento político na medida mesmo em que seu pensamento revela o caráter agônico da vida civil, a “indissociável sociabilidade” que une e separa os homens vivendo em um regime político marcado pelas incessantes confrontações das forças sociais” ADVERSE, 2007, p. 34.
do seu Estado. Evitar sua ruína a qualquer custo 23 BENEVENUTO, 2013, p. 210. 24 “Esta expressão, além disso, pode ser usada também em sentido técnico, para indicar a doutrina de Maquiavel ou, mais genericamente, a tradição de pensamento baseada no conceito de Razão de Estado”. (Norberto Bobbio 1995, p. 738 apud JÚNIOR, Antônio de Freitas. O pensamento político de Maquiavel, Revista de informação legislativa, v. 44, n. 174, p. 205-211, abr./jun. 2007, p. 206. 25 “A universalidade, nesse caso, somente será atingida como expansão da particularidade ou como homogeneização: o que significa a eliminação do outro. Para Maquiavel, é esse o mal que acomete Florença: aí a divisão origina seitas, impedindo o fortalecimento do tecido social e a formação de uma comunidade política verdadeiramente republicana. Acompanhando esses efeitos das divisões em um e outro caso estão o aumento ou a diminuição da virtù e – o que me interessa mais – a definição da igualdade e desigualdade entre os cidadãos” ADVERSE, 2007, p. 43.
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Florença em 1493, ilustração na Schedel’schen Weltchronik
também é uma função do governante. Maquiavel
O
povo,
dentro
dessas
circunstancias,
esclarece em seu proêmio de História de Florença
detêm o dever e a tarefa é a de zelar pele sua
que os excessos ocorridos dentro da política
liberdade e da cidade contra figuras tirânicas,
de Florença foi a causa de seu franco declínio,
ter uma ação ativa dentro das assembleias
as divisões das facções, do povo e do governo
constitucionais e, principalmente, divergir o
por busca de interesses privados em oposição a
bem público do privado.28 O poder de decretar,
permanência do modelo republicado na cidade,26
potestas decretandi, é um direito inalienável do
Houve república cujas divisões foram notáveis, as de Florença as excedem em tudo, porque a maioria das outras repúblicas das quais se tem alguma notícia contentou-se com uma divisão, em razão da qual, segundo os acontecimentos, ora cresceram, ora declinaram, mas Florença não contente com uma, criou muitos.27
alicerce republicano, onde, jamais, esse direito oriundo da res publica29 pode ser desorientado com o meio privado - a res princeps.30 Este poder 28 [...] “o que me proponho a fazer na presente comunicação são apenas algumas notas acerca da afirmação que encontramos no capítulo 58 do Livro I dos Discorsi, que diz: a multidão é mais sábia e constante que um príncipe. Ao que me parece, tenciona essa asserção apontar para o alargamento da base do governo, sem, no entanto, apelar para a ideia do povo como fundador ou origem do poder político da república”. ALEXANDRE, 2013, p. 67.
26 “É no estudo da história, aliado ao contato com os poderosos de seu tempo, que Maquiavel forma sua compreensão da psicologia humana, sintetizada na afirmação de que os homens são egoístas e ambiciosos e de que somente a lei poderia bloquear suas paixões. Destarte, o governante que desejasse êxito deveria aliar o conhecimento da história à compreensão da natureza humana, pois, dessa maneira, conseguiria adiantar-se aos acontecimentos futuros e estaria melhor preparado para enfrentá-los” JÚNIOR, 2007, p. 208.
29 “Quem deve ser o guardião da liberdade, o povo ou os grandes? O bom senso aconselha a dar guarda de uma coisa àquele que tem menos desejo de dela se apoderar. Sendo assim, é ao povo que cabe a guarda da liberdade, uma vez que seu desejo é essencialmente o de não ser dominado, o que quer dizer – em termos positivos utilizados pelo próprio Maquiavel – que os plebeus (ignobili) têm “maior vontade de viver livres”. No nível institucional, significa dispor de autoridade para, por meio de seus representantes, exercer importantes magistraturas e, no exercício dessas magistraturas, o povo não deverá visar a dominação”. ADVERSE, 2007, p. 40-41.
27 MAQUIAVEL, 1998, p. 8.
30 ROCHA, 2013, p. 32.
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GNARUS - 58 de decretar como um bem público, formula a lei
particularidades dos humores (seja dos grandes
dentro da dialética conflitante dos grandes e do
ou do povo), sendo ambos nocivos quando
povo, um acordo momentâneo ou parcial que
existem excessos.33
funciona como uma forma de aliviar essa tensão entre esses dois polos de repulsão da política. O decretar, ato de formular as instituições e leis e, por consequência, respeita-las segue como sua propriedade necessária e não pode ser abolida sem que seja abolido o próprio funcionamento integral do Estado de modelo republicano.
Maquiavel busca uma veracidade para justificar a liberdade, seja essa liberdade para sua cidade, Florença, ou a liberdade para a Itália. Essa Itália, a Regnum Italicium, que nunca conseguiu aparato político para formar um Estado nacional como as outras nações ocidentais estavam a se formar, tivera que usar seus recursos para rebater as
O poder, nesse sentido, não pertence a
sufocantes influencias no interior da península
ninguém.31 Não está detido a uma facção
que o papado romano e o Sacro Império Romano
específica, tem como objetivo de se afluar para
Germânico34 a séculos tentaram submeter essas
que em momentos de tensão política esse
áreas a seus poderios.35
poder, ou potestas decretandi, não seja alienado e utilizado para interesses de determinados humores. Maquiavel, determina, assim sendo, que “as graves e naturais inimizades que há entre os homens do povo e os nobres, causadas pela vontade que estes têm de comandar e aqueles de não obedecer, são razão de todos os males das cidades”.32 A ordenação do poder é proporcional a liberdade pública que, na prática, depende do sistema rotativo de ampla participação de cargos existentes nos magistérios dentro da República e, esse sistema, tem como mecanismo de utilidade e manutenção as leis que são legisladas. Isto é, o poder não simplesmente representa a cidade, o poder é a cidade. A liberdade do debate enquanto uma República que promover a paz, uma idealização insuficiente que entra em desacordo com as ações humanas, como esse poder decretativo será benéfico ou maléfico para a cidade. A universalidade da participação (a liberdade) em um combate constante às
31 ALEXANDRE, 2013, p. 69. 32 Machiavelli. Istorie Fiorentine, III, 1, p. 423 apud 2013, p. 209.
Essa teoria em que Maquiavel emprega não se preocupa em determinar como são essas influências externas, mas como os mecanismos internos podem engenhar a política na cidade, a qual Maquiavel denuncia que os escritores da História de Florença, anteriores a ele, não denunciaram essa fragmentação interna; Bem como aos seus efeitos, eles calaram de todo uma parte e descreveram a outra com tanta brevidade que nela os leitores não
podem
encontrar
utilidade
nem
prazer algum. Creio que assim fizeram por acharem que aquelas ações eram tão pouco importantes que as consideram indignas de entrar para a memória das letras, ou então porque temiam ofender os descendentes 33 ALEXANDRE, 2013, p. 69. 34 Referente a influência que o Sacro Império Romano Germânico tentava exercer sobre aos territórios setentrionais italianos aos Estados Papais. O poder interno do Império estava em constante disputa entre os séculos XIII e XV entre as Casas nobres germânicas de Luxemburgo, Wittelsbach, Hohenstaufen e Guelfos, pode esse motivo essas Casas tentaram uma artificial expansão para territórios eslavos e italianos por busca de recursos para a manutenção do poder. A ascensão dos Habsburgos em 1452 por Frederico III estabilizando a realeza imperial. 35 CARDOSO, 2017, p. 21.
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GNARUS - 59 daqueles que, naquelas narrativas, se houvesse de caluniar.
Considerações Finais
36
O Renascimento cultural promovido na Itália
O fato de os Médici terem absorvido os
permitiu o aflorar e o diálogo entre as mentalidades
poderes que deveriam ser representados pelas
da Antiguidade e da nascente Modernidade,
instituições republicanas de Florença foi o ponto
uma reforma profunda na forma de pensar a
de convergência para que Maquiavel estruturasse
sociedade e suas transformações entre os séculos
seu pensamento, um gatilho propício a desordem
XIV e XVI. O resgate do debate do republicanismo
da política. Entrelaça uma essencialidade nas
presente na Itália desde o século XII como forma
liberdades, no Ser civil de uma dada política e
de governo em oposição ao poder monárquico
a necessidade constante de sua manutenção
nascente na Europa é de essencial importância
de debate referente as instituições vigentes
para entrelaçar esses complexos mecanismos
desse governo, caso contrário, seu declínio por
que a sociedade europeia estava se articulando e
conta dos interesses particulares de poucos em
como esses pensamentos surgiam.
detrimento de muitos.37
Maquiavel foi e continua sendo utilizado em
Essa estrutura de pensar propõe é uma fusão
discursos políticos, “suas ideias de unificação
dos acontecimentos dentro de sua República,
da península itálica foram lembradas quando
a florentina, e em outras ao longo da península
do Risorgimento, no século XIX, e Maquiavel foi
itálica. Essa Itália que se distanciava do pensamento
considerado um verdadeiro herói nacional, em
do Medievo e conseguirá estruturar modelos
reconhecimento pelas suas ideias precursoras”
republicanos e se afasta desse poder monocrático
. A Modernidade é uma herdeira contínua da
tão comum no pensamento político europeu,
Antiguidade, a Renascença é mais do que uma
gradativamente recuperar da Antiguidade uma
retomada das premissas do passado, é uma
forma de exercer e pensar a política.
tormenta que impactou as tradições de mais de um milênio na civilização Ocidental. Sua obra, por assim dizer, é uma transcrição da face cético empírica da política, como uma realidade mais profunda que uma idealização rasa de Estado pela premissa das virtudes cristãs. Uma nova forma de não somente encarar os
36 MAQUIAVEL, 1998, p. 7-8. 37 “O desejo dos grandes, em princípio já determinado, é sempre idêntico a si. Por isso Maquiavel pode atribuir a responsabilidade pela grandeza ou decadência ao desejo do povo, como vemos também no livro III das Istorie. Se o povo passa a desejar como os grandes, isto é, quando se torna ambicioso, preocupado apenas em satisfazer seu próprio interesse, em detrimento do bem comum, então a república está com os dias contados. Desfecho catastrófico da oposição fundamental: o humor do povo se igualou ao dos grandes [...] os nobres semelhantes ao povo: dois se fez um. Fez-se um na má positivação do desejo do povo, identificado com o dos nobres. Estes tornaram-se parecidos com o povo porque o povo tornou-se parecido com os nobres: quando a cidade chega a esse ponto, não há mais vida política. Mas é necessário examinar mais de perto essa possível identificação entre os humores. ”. ADVERSE, 2007, p. 45.
assuntos públicos, mas também a mentalidade do Homem como um ser que busca recursos para sua própria sobrevivência, uma virtù intrínseca ao Ser. Converge assim, uma filosofia pragmática com um ceticismo político, uma forma de encarar as correlações de forças sob um horizonte de eventos mais sofisticado que qualquer outro; A essa busca da realidade e não da ficção Maquiavel denominou busca pela verità
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GNARUS - 60 effettuale, ou seja, a verdade efetiva do mundo. Por utilizar-se dessa metodologia, alguns críticos já o compararam com Galileu Galilei, que também se utilizou de semelhante metodologia nas ciências físicas. Maquiavel, partindo da busca da verità effettuale, descobre os fatores transitórios e circunstanciais que existem nas diversas ordens estatais.
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Gnarus Revista de História - VOLUME XI - Nº 11 - OUTUBRO - 2020