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Artigo

TÚNDALO E ROLANDO: VISÃO E CANÇÃO DO PARAÍSO (SÉC. XII) Por Fernando Augusto Alves Batista

Resumo: O “Além” cristão, enraizaram-se de tal forma nas mentalidades da Idade Média, que homens e mulheres moldavam suas vidas e seu cotidiano, almejando alcançar a salvação e desfrutar dos deleites proporcionados no Paraíso. Vários escritos foram feitos com o objetivo de exemplificar esses lugares. Um estudo sobre tais escritos nos permite analisar a influência do Paraíso na vida cotidiana do homem medieval Europeu do século XII. Para fazer essa análise, usaremos a Visão de Túndalo e a Canção de Rolando, fazendo uma comparação entre os dois manuscritos, compreendendo a influência do Paraíso para o homem medieval. Palavras-chave: Paraíso Cristão. Mentalidade. Cotidiano. Abstract: The " In " Christian , have embedded themselves so mentalities of the Middle Ages , men and women who shaped their lives and their daily lives, aiming to achieve salvation and enjoy the delights offered in Paradise . Several writings were made in order to exemplify those places. A study of such writings allows us to analyze the influence of Paradise in the everyday life of European medieval man of the twelfth century . To do this analysis , we will use the Vision Túndalo and the Song of Roland , making a comparison between the two manuscripts , including the influence of Heaven for the medieval man . Keywords: Paradise Christian . Mentality . Everyday .

Introdução

N

Para dogmatizar os fiéis e moldar suas atitudes os primeiros séculos da Idade Média, o cristianismo já havia se tornado a religião predominante em toda a

Europa Ocidental, mas os princípios da religião eram pouco seguidos pela população europeia. Os costumes pregados para as atitudes e os deveres de um cristão eram em muito ignorados. Graças a este fato, o imaginário cristão passou a ser usado como forma de controle social, para que estes dogmas passassem a ser melhor seguidos. O Paraíso Cristão é parte fundamental deste imaginário, pois era objeto de fascínio dos homens da Idade Média.

segundo os princípios estipulados pela Igreja, vários escritos foram feitos com o objetivo de exemplificar a imagem de um cristão perfeito, utilizando-se do medo ou do fascínio como forma de levar as pessoas a uma doutrina religiosa. Um estudo sobre tais escritos nos permite analisar a influência do Paraíso na vida quotidiana do homem medieval Europeu do século XII. Utilizaremos para fazer essa análise a Visão de Túndalo e a Canção de Rolando, fazendo uma comparação entre os dois manuscritos, para poder analisar a influência do Paraíso para o homem medieval, e também discutir


G N A R U S | 116 como esses manuscritos foram usados pela Igreja

dos não fiéis é afirmado pelo autor B. B. Prince em

para dogmatizar os fiéis e os levar a cumprir com

sua obra Introdução ao Pensamento Medieval: “O

seus deveres, ou a realizar favores para a Igreja.

Cristianismo foi, desde o início, um movimento

Assim o paraíso cristão será analisado como

evangélico, preocupado em expandir a doutrina

modificador e influenciador das atitudes e do

cristã”.

cotidiano na vida do homem medieval europeu,

existência, o Cristianismo já havia se espalhado por

graças a suas representações no imaginário social

boa parte do mundo conhecido.

da época.

2

Em pouco menos de meio século de

O imaginário cristão aprofundou-se de tal modo,

O presente trabalho busca analisar como as

que se tornou presente nas mentalidades da

representações do Paraíso cristão contidos na Visão

sociedade europeia, se inserido completamente

de Túndalo e na Canção de Rolando, influenciavam

nela, de tal forma que o imaginário e o real

nas atitudes e no cotidiano do homem medieval

praticamente não se diferenciavam mais. Como

europeu. E como a Igreja utilizava do Paraíso para

dito na citação inicial desta capitulo, feita por

dogmatizar e influenciar os fiéis.

Jérône Boschet, não podemos compreender o

A importância de estudar esse tema está em mostrar o efeito que o paraíso causava nas mentalidades do homem europeu e a influência

homem medieval e sua vida, sem buscar entender o outro lado da vida, a morte e a suas construções imagéticas na sociedade.

que o mesmo tinha nas atitudes e no cotidiano dessas pessoas.

Um desses conceitos enraizados na vida do homem europeu foi o do Além. Acreditado por quase todos na Idade Média, exceto pelos

1. A utopia do paraíso cristão “Não se pode compreender o homem medieval, sua vida em sociedade, suas crenças e seus atos sem se considerar o inverso do mundo dos vivos: o domínio dos mortos, onde cada um deve, finalmente, receber uma retribuição à sua altura, danação eterna ou beatitude paradisíaca.”1

mulçumanos, o Além era o que vinha após a morte, o além tumulo, além mundo. Segundo Georges Duby: “O homem da Idade média tem a convicção de não desaparecer completamente, esperando a ressurreição. Pois nada se detém e tudo continua na eternidade.” 3 Para os cristãos do século XII o Além era composto pela dualidade entre o Paraíso, lugar

1.1 a expansão da mentalidade cristã O Cristianismo desde o seu surgimento, como todos os movimentos religiosos até então, preocupou-se em expandir seus ideais de salvação por meio da catequização dos não fiéis, buscando espalhar sua doutrina a todos os que não a tinham

de descanso e graças dos “bons” cristãos, e o Inferno, lugar de suplicio e lamentação dos “maus” cristãos. Lugares esses também compostos por seus respectivos habitantes místicos: Deus, a Virgem Maria, os anjos, santos e mártires no Paraíso, e o Diabo, juntamente com seus demônios no Inferno.

como verdade. Esse movimento de catequização

1

BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo. 2006. P. 374. 2 PRICE, B. B. Introdução ao Pensamento Medieval. Lisboa: Edições Asa, 1996. p. 30.

3

DUBY, Georges. Ano 1000, ano 2000: Na pista de nossos medos. São Paulo: Editora UNESP/Imprensa Oficial do Estado, 1999. p. 25.


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1.2 Fundamentos bíblicos do paraíso Para o Cristianismo, o Paraíso representa a última

natural, e sim, o que há acima dele, a morada eterna de Deus.

estância da vida de um bom cristão. Um lugar onde

Várias citações referentes ao Paraíso Celeste são

todos os sonhos, anseios e atitudes de uma vida

feitas em toda a Bíblia. Porém a palavra Paraíso,

inteira serão recompensados. Essa forma de pensar

com o significado de Reino dos Céus, como já foi

esteve presente no consciente dos homens cristãos

descrita, foi usada apenas três vezes, as quais

durante toda a Idade Média. Para Hilário Franco

mencionarei abaixo. Uma delas afirmando sua

Junior, em seu livro As Utopias Medievais, “O

existência, na Paixão segundo Lucas, na conversa

primeiro mito da humanidade possivelmente tenha

que Jesus teve na cruz com o bom ladrão antes de

sido sobre a condição perfeita perdida, o Paraíso”. 4

sua morte, ele lhe respondeu: “Em verdade te digo:

A principal forma de disseminação e de legitimação do Paraíso foi a Bíblia, utilizada como fonte de embasamento para as teorias empregadas a esse assunto. “No Ocidente medieval cristão esse sonho coletivo e comum a inúmeras civilizações estava naturalmente alicerçado na Bíblia, que se abre e se fecha com o Paraíso.”5 Como dito por Hilário Franco Jr., mas deve-se lembrar que a Bíblia faz referência a dois Paraísos, o Paraíso terrestre, o Jardim do Éden e o Paraíso Celeste, o Reino dos Céus. A diferença dos dois está no fato de um ter sido berço da criação do homem, enquanto o outro está relacionado a sua morada final, aguardada no

Hoje estarás comigo no Paraíso.” (Lc 23: 43) e também no Apocalipse de João “Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas. Ao vencedor darei como prêmio comer da árvore da vida, que está no paraíso de Deus.” (Ap 2: 7) Outra atesta de forma direta, a veracidade da existência do paraíso como lugar do Além localizado no reino dos Céus, no exemplo da visão de Paulo: “Conheço um homem, em Cristo, que, há quatorze anos, foi arrebatado até ao terceiro céu – se com o corpo ou sem o corpo, não sei, Deus sabe. Sei que esse homem – se com o corpo ou sem o corpo, não sei, Deus sabe – foi arrebatado ao paraíso e lá ouviu palavras inefáveis, que homem nenhum é capaz de falar. “(II Cor 12: 2-4)

Além. Essa diferença é explicada por Jacques Le Goff: “o Paraíso do fim dos tempos, evocado pelo

As citações do Paraíso na bíblia, não foram

judaísmo e Cristianismo, não é o Jardim da Criação,

somente as três acima, pois as referências ao

mas a Sião dos últimos tempos, a futura

paraíso também eram feitas em diversas formas

Jerusalém.”6 Mas teremos como fonte de estudo o

como dito por Heinrich Krauss:

Paraíso Celeste, ou o Reino dos Céus, analisando como ele influenciava na vida do homem cristão da Europa medieval, mostrando como os indivíduos moldavam suas vidas na esperança de alcançar tal lugar. O lugar do Paraíso Celeste está sempre ligado ao Céu, objeto de fascínio do homem medieval. Mas o Reino Celestial, não é o céu

4

FRANCO JÚNIOR, Hilário. As Utopias Medievais. São Paulo. Editora Brasiliense, 1992. p. 113. 5 FRANCO JÚNIOR, Hilário, loc. cit. 6 LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP Editora

“Essa quantidade diminuta não deve iludir, pois há pelos textos afora uma série de formulações e modos de expressar que, com outras palavras, aponta para a existência paradisíaca no céu, sem a utilização da palavra de maneira expressa. Isso ocorre, igualmente, quando se fala do “seio de Abraão”, das “moradas” no céu ou para os dizeres de Jesus sobre o “reino dos céus” e, sobretudo pelas profecias da revelação de João acerca do “novo céu e nova terra”. 7

da UNICAMP, 1990. p. 264.. 7 KRAUSS, Heinrich. O Paraíso: De adão e Eva às utopias contemporâneas. São Paulo: Globo, 2006. p. 155.


G N A R U S | 118 Seguindo essa linha de raciocínio o Paraíso

detentor das terras, regia a forma de trabalho, que

também é apresentado de formas indiretas, como

levava a grande maioria dos homens a prestar

nas parábolas. Tiramos como exemplo a Parábola

serviços de labor nos campos ou nos castelos para

das Dez Virgens: “O Reino dos Céus pode ser

manter o feudo, torna a afirmação de Isaías

comparado a dez moças que, levando suas

marcantes nas mentes de tais homens, cujo desejo

lamparinas, saíram para formarem o séquito do

tornava-se realidade em sua fé de um futuro melhor

noivo.” (Mt 25: 1). Essa parábola anuncia que todos

na vida Paradisíaca, no Além cristão.

devem estar preparados, para quando o Reino dos Céus chegar (representado pelo dia de núpcias). E o noivo seria Jesus que retornou para que haja o

As principais graças apresentadas pela Bíblia em relação ao Paraíso foram a das soluções dos problemas terrenos da humanidade.

juízo final.

“Por isso estão diante do trono de deus e lhe prestam culto, dia e noite, no seu santuário. E aquele que está sentado no trono os abrigará na sua tenda. Nunca mais terão fome, nem sede. Nem os molestará o sol, nem algum calor ardente. Porque o Cordeiro, que está no meio do trono, será o seu pastor e os conduzirá às fontes da água vivificante. E Deus enxugará toda lágrima de seus olhos.” (Ap 7: 15-17)

Para a sociedade da Idade Média europeia, as características do Paraíso apresentadas nos livros da Bíblia foram de fundamental importância para o seu enraizamento no Imaginário social da época. Essas características apresentavam os benefícios e deleites, que os bons cristãos ganhariam, ao alcançar tal lugar. Como apresentado pelo profeta Isaías:

A Europa no século XII sofria com epidemias, escassez de alimentos, sede, e com a seca

“Quem fizer casa, nelas vai morar, quem plantar vinhedos, dos seus frutos vai colher. Ninguém construirá para outro morar, ninguém plantará para outro comer. A vida do meu povo será longa como a das árvores, meus escolhidos vão gozar do fruto do seu trabalho. Ninguém trabalhará sem proveito, ninguém vai gerar filhos para morrerem antes do tempo, porque está é a geração dos abençoados do Senhor, ela e seus descendentes.” (Is 65: 21-23)

ocasionada pelo sol, que prejudicava as plantações. Esses fatores combinados a outros elementos nocivos da natureza, contribuíam para o aumento da taxa de mortalidade. Mais tarde, outro fator somava-se

a

esses

agravantes,

como

o

amontoamento das cidades, ocasionado pelo êxodo rural, dito por Georges Duby: “A verdadeira

Em sua descrição, Isaías refere ao Paraíso como a última morada do cristão, um lugar onde os eleitos morariam por toda a eternidade. Mas em especial ele descreve a inexistência do trabalho, como forma de prestação de serviço e de lavor físico. Em uma sociedade de regime feudal, como era a Europa Medieval neste contexto, onde o poder vindo da hierarquia era predominante, e a ligação de vassalagem ou de servidão para um senhor 8

DUBY, Georges. Ano 1000, ano 2000: Na pista de nossos medos. São Paulo: Editora UNESP/Imprensa Oficial do Estado, 1999. p. 25.

miséria aparece mais tarde, no século XII, bruscamente, nos arredores das cidades onde se amontoam os marginalizados”. 8 Essa migração para os meios urbanos contribuía para a marginalização dos homens na Idade Média, difundindo as doenças e outros males que cooperavam para o aumento das mortes neste contexto. Assim, a descrição do Paraíso no livro do Apocalipse é feita como um lugar

onde

esses

males

seriam

sanados,


G N A R U S | 119 fortalecendo a aceitação dos seus conceitos pelos

feudos, ou cruzadas. Todos esses fatos eram

leigos, que sonhavam com a solução de tais

invertidos e transfigurados na utopia paradisíaca.

problemas, soluções essas que eram apresentadas

Os textos bíblicos e outros manuscritos criados para

pelos disseminadores do Paraíso.

descrever o Paraíso, exemplificavam esses ganhos,

O fortalecimento do mito foi alcançado graças ao ato consciente do homem medieval de buscar a solução de seus problemas. Esse ato é descrito por Alípio de Sousa Filho como a inversão da realidade: “Inverter a realidade. Com efeito, o que caracteriza essencialmente o ser da ideologia é promover a inversão da realidade social, através de representações que afastam inteiramente sua gênese histórica e seu caráter de produto humano, pondo em seu lugar uma representação da realidade social que a torna uma verdadeira segunda natureza. Assim, o que é próprio da ideologia é converter os objetos de natureza social em objetos de natureza natural. O mundo humano-social como objeto social, cultural e historicamente construído é transfigurado em objeto dado, natural, eterno, sagrado.” 9

Alípio de Sousa usa do conceito de Marx e Engels, em A Ideologia Alemã. Esse conceito consiste em descrever que a inversão da realidade, visa à construção de uma segunda realidade, usada como fuga dos males sociais de uma determinada época, em que o povo de determinada cultura está inserido. Ele tinha a “função de compensação”

que podem ser sintetizados segundo a fala de Hilário Franco Jr. em cinco características principais: “Natureza pródiga, saúde, harmonia, imortalidade e unidade.”11 Sendo a unidade, a característica por excelência ao homem medieval. A unidade com Deus.

1.3 O paraíso e o cotidiano na idade média Mas chegar ao Paraíso não era uma tarefa fácil, somente os que foram bons durante a vida chegariam a tal lugar de deleite. A doutrina cristã do século XII estipulava como bom cristão aquele que em sua vida não cometia os “Sete pecados capitais”: Gula, avareza, preguiça, luxuria, inveja, ira e a soberba. Manter-se fiel aos ideais cristãos não era uma tarefa simples de ser realizada, mas não os seguir colocaria em risco a salvação, como descrito no trecho do Dicionário do Ocidente Medieval: “O destino da humanidade ressuscitada não depende apenas da vontade de Deus todopoderoso, pois este respeita as regras que fixou, fazendo a situação dos homens e mulheres no Além depender de como se comportaram durante sua vida terrena.” 12

termo empregado no livro de Jacques Le Goff, que afirmava que “O maravilhoso é um contrapeso à banalidade e à regularidade do quotidiano”.10 Para o cristão medieval, a inversão da realidade é tomada na figura do Paraíso. O labor dos trabalhos no campo, nos castelos; a fome e sede gerada pela estiagem e pela forte ação do sol, que influenciavam nas más colheitas; as epidemias causadas pelo expansionismo nas florestas e pela má higiene e as inúmeras guerras travadas entre os

9

SOUSA FILHO, Alípio de. A Cultura, ideologia e representações. 1 ed. Mossoró: Fundação Guimarães Duque/Fundação Vingt-un Rosado, 2003, v. 1376, p. 77. 10 LE GOFF, Jacques. O Maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Rio de Janeiro: Edições 70, 1983. p. 24.

Graças a essa série de fatores o Paraíso cristão torna-se a principal utopia da Idade Média. Sendo perceptível, nas diversas representações artísticas e culturais, que tem como enfoque a representação da figura do Reino dos Céus. Esculturas, pinturas, 11

FRANCO JÚNIOR, Hilário. As Utopias Medievais. São Paulo. Editora Brasiliense, 1992. p. 121. 12 LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático Do Ocidente Medieval I. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. 2 v. p. 26.


G N A R U S | 120 afrescos, vitrais, além de canções e histórias, que

divulgação do imaginário cristão, inúmeras obras

representaram o Paraíso, em locais onde existia

como manuscritos, imagens e canções foram feitas

uma grande circulação de indivíduos. Mas em que

para ajudar a expandir tais conceitos, dentre esses

foram inspiradas essas representações artísticas do

a Visão de Túndalo e a Canção de Rolando. As duas

Paraíso? Sendo que ele só poderia ser visto após a

representações de formas diferentes ajudaram a

morte, no Além tumulo! “Contudo, nem as utopias

difundir os conceitos e as características do Paraíso

são tão profundas, nem o Paraíso tão inacessível

cristão no século XII. Mas para entender como

cotidianamente – ao menos para o imaginário

aconteceu esse processo, é preciso analisar tais

medieval.” 13 Como afirma Luc Racine.

obras, buscando compreender como elas, em seu

“Como seria possível, para os mortais, conhecer durante a vida o Inferno e o Paraíso, ao menos nas suas principais características? Salvo as magras notícias dadas pela Bíblia, sobretudo pelos Evangelhos, os vivos poderiam ser informados pelos relatos de viagens ao Além.” 14

meio de atuação e em seu contexto social, e também, graças as suas especificidades, foram influentes na mentalidade social do homem medieval europeu.

A explicação dessa indagação está nos relatos de

A Visão de Túndalo e a Canção de Rolando,

viagens ao Além, que traziam consigo as

mesmo sendo obras contemporâneas, eram

representações e as características físicas do

ambíguas entre si. Ambas possuíam características

paraíso, como dito por Le Goff e Jean Claude

diferentes e narravam ou descreviam fatos

Schmitt.

históricos ou imaginários. Para analisar tais obras, homens

antes se torna necessário um estudo sobre as

escreveram relatos de viagens ao Além. Mas não

especificidades das mesmas, em suas semelhanças

foram somente as viagens, também existiam as

e diferenças, para que assim possamos comparar

visões, os milagres e as maravilhas que ajudavam a

especificidades e analisarmos como elas poderiam

atestar a real existência de tal lugar no imaginário.

influenciar na divulgação e no enraizamento das

Esses relatos se tronaram populares em toda a

características do Paraíso e da busca pelo mesmo.

Durante

a

Idade

Média,

vários

sociedade, e eram usadas em discursos, pregações ou nos atos de catequização.

A visão de Túndalo foi escrita no século XII (no ano de 1149), pelo monge irlandês Marcos, para a Abadessa Gertrudes de quem ele era confessor,

2. A visão de Túndalo e a canção de Rolando: difusores do paraíso

escrito em latim ou gaélico, em forma de narrativa cisterciense. A Visão de Túndalo foi traduzida para o português por volta do século XV, por monges do

2.1 Características históricas da visão de Túndalo e da canção de Rolando

mosteiro de Alcobaça. A tradução que será

Durante toda a Idade Média, vários relatos de

Frei Zacarias de Payopelle. Essa tradução foi

viagens, visões e milagres exemplificaram a

publicada pela Revista Lusitana em 1895, por F. M.

presença do maravilhoso cristão no cotidiano do

Esteves Pereira. A narrativa de Marcos visa

homem medieval. Dentre essas formas de

descrever as características do Além, através de

13

14

RACINE, Luc. In: FRANCO JÚNIOR, Hilário. As Utopias Medievais. São Paulo. Editora Brasiliense, 1992. p. 116.

utilizada aqui será a do códice 244, traduzido pelo

LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático Do Ocidente Medieval I. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. 2 v. p. 26.


G N A R U S | 121 uma viagem feita após a morte, pelo cavaleiro Túndalo, como descrito no trecho inicial da visão: “Começase a Estoria dhuun Cavaleiyro a que chamavan Tungulo. ao qual foron mostradas uisibilmente e non per ontra reuelaçon. todas as penas do inferno e do purgatorio. E outrosi todos os beens e glorias. que ha no sancto parayso.” (Visão de Túndalo (VT), 1895: 101).

A Canção é uma descrição dos fatos ocorridos que engendraram a batalha de Roncesvales, na Espanha. Onde Carlos Magno e o conde Rolando, junto aos demais doze pares de frança, lutam contra um exército espanhol, graças a traição de um dos pares, o nobre Ganelão. Os doze pares tiveram um confronto contra o exército do rei pagão Marsilio e

Túndalo é um cavaleiro de boa linhagem, que viveu na cidade de Ybernia. Depois de sua morte vários demônios e um anjo apareceram para ele, mas ele jogou-se aos pés do anjo pedindo por misericórdia, e o anjo logo depois o levou para conhecer os reinos do Além: o Paraíso e o Inferno. Túndalo vê as penas que os maus padecem no inferno, sofrendo também com algumas delas, as quais ele era pecador, e em seguida é levado a presenciar as graças que os bons receberiam no Paraíso. O Paraíso de Túndalo é dividido em muros de pedras preciosas, muros esses que separam o nível de prazer e de folganças que os bons que lá residem recebem. Depois de sua viagem aos reinos do Além, Túndalo retorna a vida, ressuscitado após três dias para pregar o que viu nos reinos do Além a todos aqueles que não viram. O manuscrito mais antigo da Canção de Rolando foi encontrado na biblioteca de Oxford. Escrito entre o final do século XI e meados do século XII, mas o afastamento da obra em relação aos fatos por ela descritos são de

seus também doze nobres. A canção de Rolando de autor anônimo, mesmo remetendo a fatos que ocorreram a quatro séculos anteriores em relação ao período em que ela foi escrita, pode ser usada como referência, graças à forte presença de anacronismo em seu discurso, mantendo vários elementos do período em que foi escrita, durante a descrição dos acontecimentos de Roncesvales. Torna-se assim possível fazer uma comparação entre as duas fontes, pois em vários momentos da Canção de Rolando é mostrada a figura do Paraíso cristão em suas falas, nos apelos e nas preces de seus personagens, ou mesmo no imaginário religioso presente em seu cotidiano. Esses conceitos descritos do Paraíso são representações do século XII, período em que a obra foi escrita. Com isso, mostra-se o quão a figura do Paraíso está enraizada nas mentalidades do homem medieval, através das interferências do trovador, ao cantar a história, utilizando dos seus princípios diários, na descrição durante a canção.

mais de quatro séculos, já que a canção remete ao

Tanto a Visão de Túndalo quanto a Canção de

círculo do Rei ou ciclo de Carlos Magno (768-814).

Rolando foram feitas para serem apresentadas de

A Canção de Rolando é um épico escrito em forma

forma oral. Segundo Baschet: “Mesmo se as obras

de canção de gesta15 em dialeto Anglo –

literárias são conservadas por escrito, continuam

Normando.

essencialmente feitas para serem contadas ou cantadas”.16 A escrita ganha espaço na vida social

15 A canção de Gesta. Entende-se por canção de gesta um longo

poema épico, em versos de oito, 10 ou 12 sílabas, reunidos em estrofes ou laisses de extensão desigual, cada uma delas terminando por assonância numa vogal, em vez de rima. Destinava-se a ser cantada diante de um auditório, segundo melodia simples acompanhada de um instrumento de cordas,

semelhante à viola ou ao realejo. A Canção de Rolando. Tradução Ligia Vassalo. Coleção obras primas através dos séculos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. 16 BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo. 2006. p. 182.


G N A R U S | 122

2.2 Visão e canção: descrições do paraíso

da Idade Média a partir do século XI. Mas a oralidade ainda é o meio de transmissão em massa, de informação, mais utilizado até então, fato esse também descrito por Baschet: “Apesar da crescente utilização da escrita, a oralidade e os gestos rituais continuam a dominar a vida social”.17 A Visão de Túndalo foi feita para ser utilizada em discursos sacros, como as homilias nas Santas Missas ou em outros tipos de pregações as massas, e a Canção de rolando para ser cantada pelos arautos e bardos nas tabernas e demais locais de reunião das massas, com o objetivo de perpetuar os acontecidos

A visão de Túndalo e a Canção de Rolando foram um exemplo do que foi descrito por Hilário Franco Jr., na citação inicial deste capitulo. A Canção de Rolando descreve imaginariamente a utopia paradisíaca, já a Visão de Túndalo foi um relato de uma viagem concreta de Túndalo aos reinos do Além cristão. Esses relatos ajudaram a propagar os conceitos de salvação da alma. E principalmente demonstraram o que os bons cristãos receberiam como pagamento por suas boas ações e por toda a sua devoção durante a vida.

históricos de Roncesvales através da divulgação proveniente das canções.

Será analisado como o Paraíso tornou-se objeto de desejo pelo que ele oferecia, através da

É importante fazer uma reflexão de como era a

descrição de tal lugar nas duas fontes, utilizando a

recepção dessas imagens pelos cristãos de tal

Canção de Rolando para demonstrar a presença do

contexto, como descrito abaixo:

Paraíso no cotidiano do individuo e da sociedade,

“É interessante pensar no impacto que tais imagens teriam no público medieval que ouvia tais histórias. Certamente as pessoas de então refletiam muito sobe as suas ações e sentiam medo das possíveis aflições futuras.” 18

mostrando o quanto esse conceito estava presente nas mentalidades da sociedade medieval. Já a Visão de Túndalo, será utilizada para demonstrar quais eram as características apresentadas do Paraíso, que foram enraizadas nas mentalidades.

Será utilizado o conceito da Dr. Adriana Zierer, para perceber o quanto a presença do Paraíso em tais visões influenciava na vida e no cotidiano do homem na Idade Média. Farse-á uma descrição de como o Paraíso era apresentado em tais relatos, e como essas representações eram interpretadas pelos

seus

ouvintes,

também

fazendo

um

levantamento de como tais fontes foram usadas pela Igreja e posteriormente como eles moldavam suas vidas e atitudes graças a tais relatos, para que pudessem alcançar o Paraíso.

“Vem alma bem auentuyrada. que ata agora uiste as penas que os maaos padecem. E daqui em dcante ueeras os beens que os boons recebem” (VT 1895: 111). Em suma, quando sé é questionado sobre o porquê de querer ir para o Paraíso, a resposta será em maioria, o medo de ir para o Inferno, deixando assim de lado a busca do Paraíso pelo Paraíso. Mas na Idade Média, ele era objeto de desejo pelo que tinha a oferecer, por suas qualidades e vantagens, como as que já foram apresentadas no capítulo anterior, como a inexistência do trabalho de labor físico, a solução da fome, da dor e das doenças.

17

Ibidem. p. 182.

18

ZIERER, Adriana Maria de Souza. Aspectos Educacionais da Salvação Cristã na Visão de Túndalo. São Luís: Ed. UEMA, 2007, p. 293-308.


G N A R U S | 123 Mas a utopia paradisíaca ainda tinha muito a

uma das principais características do Paraíso.

oferecer, como descrito por Le Goff e Jean –

Prazeres que foram tirados ou abdicados na vida

Claude:

terrena são restituídos no Reino dos Céus. Prazeres

“O Paraíso é um lugar de paz e alegria, desfrutada pelos eleitos através de seus principais sentidos: flores e luz para os olhos, cânticos para os ouvidos, adores suaves para o nariz, gosto de frutos deliciosos para a boca, panos aveludados para os dedos [...] Algumas vezes, o Paraíso é circundado de altos muros de pedras preciosas compreende espaços concêntricos protegidos, eles também, por muros, cada espaço mais luminoso, mais perfumado, mais saboroso, mais harmônico, aproximando-se do centro em que reside Deus e que mantém reservada a visão bearifica.”19

esses remetendo aos sentidos: o tato, paladar, visão, olfato e audição. Logo na entrada do Paraíso, dois desses sentidos já são atiçados: a visão e o olfato. Graças às flores que estão presentes na entrada do Reino dos Céus. A entrada é descrita com um lugar florido, sendo um deleite para a visão e o olfato. “e assy como entraron. uiron huum campo muy verde e muy formoso e plantado de muitas e muy fomosas rosas. e de outras hervas de muy boon odor.” (VT 1895: 112). Na canção de

Mas, para descrever quais eram as principais

rolando as flores do paraíso também estão sempre

características do Paraíso, será utilizada a fala de

presentes, sendo perceptível na fala de Rolando,

Hilário Franco Jr., que já foi apresentada no

quando vê seus companheiros mortos, ao percorrer

capítulo anterior, onde ele apresentou quais eram

os montes e as colinas de Roncesvales: “Senhores

os cinco principais benefícios que o homem gozava

barões, que Deus tenha misericórdia de vós! Que

no Paraíso, sendo eles: “Imortalidade, Saúde,

conceda o Paraíso à alma de todos vós! Que Ele as

Natureza pródiga, harmonia e

unidade.”20

Uma das

deite entre as santas flores” (A Canção de Rolando

principais graças alcançadas no Paraíso é a

(CR), 1988: Estrofe 140). Dentro do primeiro muro,

imortalidade. Túndalo descreve que a imortalidade

do Paraíso de Túndalo, o muro de prata, o olfato,

é obtida bebendo da água que brota da fonte da

paladar e a audição também são alvo de deleite.

vida: “e ali He a fonte de agua uiua. (...) Esta fonte

“E as uozes deles soauan de mytas e desuayradas maneyras. que non parecian outra cousa. se non cantares de orgoons E a todos era ygual claridade e alegria. e deleytamento. e ledice. fermosoura e honestidade. saúde e germaydade durauil. de boon sabor. e de boon odor. que sobrepoiaua mais e valia mais. que todos os boons odores que son neu que fossem speciaaes de aromata que son onguentos muy preçados.” (VT 1895: 114)

que aqui uees. he chamada uida. E todo aquel que dela beuer. Uiuera pera senpre. e nunca iamais auera sede.” (VT 1895: 112.) Logo, também com a imortalidade vem a saúde. A Idade Média sofreu em vários períodos com grandes epidemias e outras doenças que causaram a morte de inúmeras pessoas sendo assim, a imortalidade também é tratada como saúde eterna, sendo observada no trecho acima referente a “jamais terá sede”.

Essas graças são dadas aos que se manterão fiéis aos votos do casamento, não cometendo adultério,

A natureza pródiga faz referência ao Paraíso

e aos que partilharam seus bens com os pobres e

como um local que tenha beleza e fartura,

com a igreja. O sentido do tato é agraciado com as

remetendo à apreciação dos sentidos. O sensitivo é

vestimentas adquirida pelos que lá chegaram, como

19

20

LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático Do Ocidente Medieval I. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. 2 v. p. 28.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. As Utopias Medievais. São Paulo. Editora Brasiliense, 1992. p. 121.


G N A R U S | 124 descreve a Visão: “e as uestiduras que ia dixe. eram tan claras e tan fermosas. e assi aluas como a neue.” (VT. 1895: 114). E para o paladar: “uiu huma aruor muy esperssa. carregada de todas aquelas fructas

louuor seja a ti deus padre. louuor a ti deus filho. louuor a ti spiritu sancto (...) Eran senpre legres e ledos e aguçosos. e uiçosos e saborosos. Persenuerando sempre no louuor da sancta tristade. dia e noyte. (VT. 1895: 114).

que no mundo podem seer.” (VT 1895: 117). A harmonia paradisíaca trata da relação do homem com a natureza, como na fertilidade da terra, que gerava boas plantações para alimentar a toda a sociedade, quanto nos fenômenos naturais, o clima. A natureza atuava independente da vontade do homem, levando ele a sofrer com a falta de chuva, frio e seca, o que criava um sentimento de insegurança, pois a qualquer momento uma mudança no clima poderia causar grande fome ou algum terrível desastre. Mas uma das características naturais que mais assombrava o imaginário do homem medieval era o medo da noite, que trazia consigo as trevas. Segundo Jean Claude Schimitt: “A noite terrestre, propícia às aparições mais inquietantes, é negra como o pecado; é negra também como as trevas do além que elas prolongam na terra, as trevas povoadas pelas almas privadas da iluminação da visão de Deus.”

21

em

contra posição o Paraíso por estar em presença constante de Deus, é iluminado com dia eterno proveniente Dele. “em aquel logar non era noite. e o sol nunca hy falece” (VT 1895: 112). Por fim, porém, a mais apreciada qualidade oferecida pelo Paraíso cristão é a unidade com Deus. Com a expulsão de Adão e Eva do Paraíso Terrestre, o homem distanciou-se da presença de Deus, que antes andava ao lado deles nos Jardins do Éden, e o Paraíso Celeste, vem para reinstituir essa perda.

cristão se fixar no imaginário, nas mentalidades e no cotidiano do homem da Idade média. Analisando as falas presentes na Canção de Rolando, onde o Paraíso é citado, podemos nos assegurar de tal afirmação. Como na narrativa da morte de Olivier, companheiro de Rolando: “Para os céus levantou as duas mão juntas e pede a Deus que lhe dê o Paraíso.” (CR 1988: Estrofe 150, p: 69) ou no pedido do arcebispo Turpino para que leve a alma dos seus companheiros ao Paraíso: “Piedade por vós, senhores! Que Deus por sua glória receba todas as vossas almas: que as coloque no Paraíso no meio das santas flores!” (CR 1988: Estrofe 162, p: 73). Mais em toda a Canção, a narrativa mais marcante sobre o imaginário da Idade Média em relação ao Paraíso é na morte do herói Rolando, quando ele é levado aos Céus por Deus, com intermédio dos arcanjos: “Pai verdadeiro, que nunca mentiste, que ressuscitaste São Lázaro dentre os mortos, que preservaste Daniel dos leões, preserva minha alma de todos os perigos, pelos pecados que cometi em vida!” Ofereceu a luva direita a Deus; São Gabriel pegou-as nas mãos. Sobre o braço mantinha a cabeça inclinada; Com as mãos juntas chegou a seu fim. Deus Enviou seu anjo Querubim é São Miguel do Perigo; ao mesmo tempo em que os outros veio São Gabriel; levam a alma do conde ao Paraíso.” (CR 1988: Estrofe 179, p: 78).

Através do que foi descrito por ambas as fontes, podemos analisar a presença do Paraíso cristão nas mentalidades da Idade Média, por meio de suas descrições presentes em relatos escritos, que foram

E assi como se ela uio dentro. parou mentes ao redor de sy. e uiu huma gran canpanha de sancto. que se alegrauam muyto com deus. e dizian. 21

Tais características e deleites fizeram o Paraíso

SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. São Paulo. Ed: Companhia das Letras. 1999. p. 203.

usados em apresentações ao público como forma de catequização, como o exemplo da Visão de


G N A R U S | 125 Túndalo do frei Marcos, bem como graças a sua

a plebe que constituía o povo. Os cavaleiros eram

presença em falas como nas canções, como o

inicialmente camponeses, exceto aqueles que

exemplo da Canção de Rolando, e nas demais

herdavam este título, mas ambos, graças aos laços

representações artísticas da Idade Média.

de vassalagem ou servidão, empreendiam seus serviços aos senhores das terras, que deram um

2.3 As representações aceitas por verdade

pedaço dela a eles, em troca de que protegessem o feudo em caso de batalhas ou que lutariam pelos

É certo afirmar que os relatos da Visão de Túndalo

ideais do senhor quando necessário, unindo-se

e da Canção de Rolando, foram de fundamental

assim a classe da nobreza, graças a essa relação de

importância para a difusão do Paraíso Cristão. Mas

senhor e vassalo. Mais a união deles ia mais além, e

por que esses relatos foram tão facilmente aceitos

chegava até mesmo ao âmbito das mentalidades,

como verdadeiros, e suas falas difusoras do Paraíso

como apresentado por Le Goff:

tão facilmente impregnadas a vida das pessoas na

“Rodeando a aristocracia a que servem de armas na mão, os cavaleiros tendem a dissolver-se nela pela combinação de costumes e mentalidades comuns, assim como pela elevação de suas condições socioeconômicas, acelerada por alianças matrimoniais vantajosas.” 24

Idade Média? O principal motivo foi a identificação dos homens pelos relatos. Mesmo nas mais diversas camadas da sociedade, tais relatos eram de certa forma próximos ao seu cotidiano, graças, em parte, à figura do cavaleiro, que era personagem principal destas histórias. “O maravilho está profundamente ligado a esta procura da identidade individual e colectiva do cavaleiro idealizado”.22 A identificação dos ouvintes com a figura do cavaleiro ajudava a criar um laço de identificação entre as histórias apresentadas e aqueles que as recebem. Por intermédio da literatura, esses cavaleiros eram transformados em mitos, como afirmado por Jacques Le Goff: “Ao longo da Idade Média, e desde o seu surgimento, as literaturas em língua vulgar celebravam a cavalaria e transformavam-na em mitologia.” 23

Na luta para proteger os feudos, eles também batalhavam por seus interesses, lutando por seus familiares que eram, na maioria das vezes, moradores do mesmo feudo. Com isto, eles também mantinham seus interesses ligados as classes mais baixas, graças a suas origens. Os cavaleiros também eram ligados à Igreja, pois para as

ordens

militares

eles

prestavam

voluntariamente, ou graças à penitencias, seus serviços em nome dos ideais da Igreja. Os cavaleiros são usados pela Igreja, para proteger a cristandade e seus ideais, ou para recuperar bens saqueados por infiéis, como no caso das primeiras Cruzadas.

Túndalo e Rolando, eram cavaleiros, e a figura do

“Devido à sua posição de importância dentro da sociedade e pela ligação com a nobreza, acredito que Túndalo, um cavaleiro, tenha sido o escolhido pela Igreja para exemplificar aos demais fiéis como seriam as penas do Inferno e a

cavaleiro ajuda a identificar o porquê destas fontes terem sido tão presentes no cotidiano medieval. Os cavaleiros estavam inseridos nos principais setores da sociedade medieval: a nobreza, o clero e

22

LE GOFF, Jacques. O Maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Rio de Janeiro. Edições 70: 1983. p. 24.

23

LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático Do Ocidente Medieval I. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. 2 v. p. 196. 24 Idem. p. 190.


G N A R U S | 126 possibilidade do arrependimento para atingir a salvação a ascender o Paraíso.” 25

Na Visão de Túndalo, frei Marcos, atesta a Não só Túndalo, mas também Rolando, podem ser encaixados no estudo da Dr. Adriana Zierer, mostrando assim a importância do papel do cavaleiro

como

característica

principal

dos

personagens para a aceitação do Paraíso cristão por parte do povo, já que a figura do cavaleiro e sua

veracidade do que ele escreveu logo no final da Visão, quando ele diz: “Eu Frey marcos. que esto screuy. son testemunha desto todo. Ca eu ui com meus olhos o homen a que esto aconteceo e que me contou todo assi como ia ouuiste. e assim como o el contou a my. assi trabalhey eu de o screuer e de o cntar o melhor que eu pudy.” (VT, 1895: 120)

mentalidade estavam ligadas de forma direta aos três principais setores da sociedade medieval.

A palavra empenhada foi de fundamental

Outro fator de fundamental importância para a

importância para a aceitação e apropriação dos

aceitação dos relatos vem da tradição oral da Idade

conceitos pregados por tais narrativas, mas

Média. Ambas a fontes foram feitas, para serem

principalmente a figura do transmissor era

apresentadas ao povo por meio da oralidade, em

essencial. Escutar a narrativa da Visão de Túndalo

discursos religiosos, como nas homilias, no caso da

de um padre ou de um frei criava nas mentalidades

Visão de Túndalo, ou em locais propícios, com

dos homens o conceito de veracidade e de

grandes públicos, como nas praças e feiras, por

importância em relação ao que estava sendo dito,

meio dos serviços dos arautos e bardos, como no

criando assim o poder da palavra, onde a fala torna-

caso da Canção de Rolando. Nos manuscritos, um

se real graças à figura daquele que a pronunciou,

fator era de grande importância para que eles

gerando assim um Ato de Fala Representativo,27

fossem aceitos como verdade pelo público, era À

segundo John Rogers Searle, professor americano

Palavra Empenhada. A palavra empenhada, o

da Universidade de Berkeley na Califórnia.

juramento, era um atestado de veracidade daquilo

Afinal quem duvidaria do que foi dito por um

que foi narrado ou escrito pelo autor. E esse

padre? Alguém que não mentiria, pois jurou não

juramento, possuía maior recepção se estivesse

pecar?

ligada a fé. Esse fato é descrito por Jérôme Boschet: “Validação indispensável a todo compromisso importante, a começar pela fidelidade vassálica, o juramento, geralmente prestado sobre a Bíblia ou o Evangelho (a menos que se recorram às relíquias), tira sua força do elo formado entre a sacralidade do Livro e o peso das palavras pronunciadas.”26

25

ZIERER , Adriana Maria de Souza. Literatura e história medieval através da visão de Túndalo. Disponível em: <http://historianovest.blogspot.com/2010/10/literatura-ehistoria-medieval-atraves.html>. Acesso em: 23 set. 2011. 26 BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo. 2006. p. 183. 27 A Teoria dos Atos de Fala tem por base doze conferências proferidas por Austin na Universidade de Harvard, EUA, em 1955, e publicadas postumamente, em 1962, no livro How to do Things with words. O título da obra resume claramente a

3. O paraíso e a igreja “A elaboração de um imaginário é parte integrante da legitimação de qualquer regime político. E por meio do imaginário que se pode atingir não só a cabeça mas, de modo especial, o

ideia principal defendida por Austin: dizer é transmitir informações, mas é também (e sobretudo) uma forma de agir sobre o interlocutor e sobre o mundo circundante. Os Atos de Fala Representativos, segundo o professor americano da Universidade de Berkeley na Califórnia John Rogers Searle (mostram a crença do locutor quanto à verdade de uma proposição: afirmar, asseverar, dizer). SILVA. Gustavo Adolfo de. Teoria dos Atos de fala. Disponível em: < http://www.filologia.org.br/viiifelin/41.htm>. Acesso em: 05 Nov. 2011.


G N A R U S | 127 coração, isto é, as aspirações, os medos as esperanças de um povo.”28

Como já foi dito anteriormente, a expansão dos ideais do Cristianismo foi de fundamental importância para a aceitação do Imaginário Cristão. Mas esse imaginário não era somente proveniente da fantasia e da necessidade de se maravilhar dos

de alcançar o Reino dos Céus, os pecados da carne, como descrito pela bíblia: “São bem conhecidas as obras da carne: imoralidade sexual, impureza, devassidão, idolatria, feitiçaria, inimizade contenda, ciúmes, iras, intrigas, discórdias, facções, invejas, bebedeiras, orgias e outras coisas semelhantes. Eu vos previno, como aliás já o fiz: os que praticam essas coisas não herdarão o reino de Deus .” (Gl 5: 19-21)

homens da Idade Média; ele estava ligado a um contexto de legitimação de um regime religioso, e

Mas não cometer tais pecados e seguir fiel as

sua expansão nada mais era que a expansão deste

virtudes de um bom cristão não era uma tarefa fácil

regime. Como dito por José Murilo de Carvalho, na

no contexto social em que se inseria a Idade Média.

citação inicial deste capitulo, elaborar um

Além disso, segundo Santo Agostinho, o homem ao

imaginário é parte fundamental para que um

nascer já carregaria consigo a descendência do

regime político, que nesse caso não se separa do

pecado original de Adão e Eva. Mas como

religioso, consiga se legitimar perante a sociedade.

apresentado por Jérôme Boschet:

O Paraíso foi um elemento fundamental usado pela igreja, para que ela pudesse legitimar-se perante a sociedade. Apresentar o Paraíso como um lugar de solução dos problemas terrenos, e também descrever as graças que gozariam aqueles que lá

A sombria teoria de Agostinho demonstra, assim, que o homem não pode ser salvar sozinho e quem tem necessidade, por tanto, do socorro insubstituível das instituições e, em primeiro lugar, da Igreja; apenas a mediação desta pode atrair sobre ele a graça dívida e lhe permitir evitar as emboscadas que semeiam o caminho da salvação. 30

chegassem, era um modo da Igreja adquirir a atenção dos homens da Idade Média para si. Afinal, depois de maravilhar-se com o quão belo era tal lugar, era natural que os homens criassem um sentimento de busca pela utopia paradisíaca, segundo Adriana Zierer: “A Igreja conseguiu com sucesso mobilizar a sociedade em torno da salvação.”29 Mas como chegar lá? Como era possível alcançar tal lugar depois da morte?

A Igreja

Católica neste momento aparecia com a solução desta indagação. Aquele cristão fiel, que policiasse suas atitudes, conseguiria certamente alcançar o Paraíso; mas para isso ele não poderia cometer pecados que maculassem a sua alma e o impedisse

28

CARVALHO, José Murilo de. A formação das Almas: O imaginário da República do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 29 ZIERER, Adriana. Paraíso versus Inferno: A Visão de Túndalo e a Viagem Medieval em Busca da Salvação da Alma (Século XII).

Então a Igreja, além de ser a única que poderia realizar o batismo, que nos purifica do pecado original, criava um conjunto de princípios que regia moral de um bom cristão, os dogmas. E somente sendo fiel a esses princípios, poder-se-ia alcançar os céus. Vários homens da Idade Média, seguindo os dogmas criados pela igreja, aderiram a esse princípio de devoção, mas ainda assim, o confronto com a sociedade medieval era algo que os tiravam do caminho em busca da salvação de suas almas. Neste contexto já existiam na sociedade os monges, homens que se isolaram da sociedade, em

Disponível em: <http://www.revistamirabilia.com/> Acesso em: 08 Out.2011:. 30 BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo. 2006. p. 376.


G N A R U S | 128 a porta do Paraíso lhe seja aberta!” (CR. 1988: Estrofe 167, p: 75)

seus mosteiros, feitos de forma a suprir todas as suas necessidades, tanto físicas em relação ao espaço, quanto espirituais, para que pudessem buscar a salvação devotando-se a Igreja e a Deus sem a

Segundo Rolando, Turpino foi um nobre

interferência do contexto social em que estavam

cavaleiro, que serviu com devoção a Igreja, e que a

inseridos. Logo também não sofriam com os

sua fidelidade aos dogmas só seria superada pela

tormentos presentes no dia a dia e no cotidiano em

dos próprios apóstolos de quem ela se embasou

que estavam inseridos.

para criação destes princípios. E Turpino, por seguir

“Portanto, ninguém melhor que os eleitos na sociedade terrestre, os monges, aqueles que eram os mais próximos do Paraíso, de acordo com a crença da época, para confecciona relatos sobre como os cristãos deveriam se comportar.”

de forma tão devota, ganharia sem passar por sofrimento nenhum a glória do Paraíso.

31

3.1 A utilização do paraíso pela Igreja Em diversos momentos da Idade Média, a Igreja

A Visão de Túndalo foi um exemplo do que foi

utilizou-se

da

presença

do

Paraíso

nas

descrito pela Dr. Adriana Zierer. Criado pelo

mentalidades do homem medieval e de como eles

monge irlandês Marcos, a Visão tem como papel

buscavam tal lugar para instaurar um status de

principal, ser um manual de conduta do bom

dominação e de controle social. Jérôme Boschet a

cristão, tendo o aspécto pedagógico de mostrar

respeito desse fato, diz:

quais eram os caminhos que o cristão deveria seguir para que assim pudesse converter-se e alcançar o “O medo do inferno e a esperança do paraíso devem guiar o comportamento de cada um; e a própria organização da sociedade é fundada sobre a importância do outro mundo, pois a posição dominante dos clérigos se justifica, em última instância, pela missão que lhes incumbe de conduzir os fiéis até a salvação.” 32

Paraíso. Perceptível também é a representação da Igreja através da figura do Anjo, pois o anjo que sempre está ao lado de Túndalo, o ensina como agir para que pudesse alcançar o Paraíso, esse é o mesmo papel que a Igreja busca desempenhar com os seus fiéis, ensinando-os a direção da salvação. Seguir as leis da Igreja com devoção, para que o Paraíso fosse alcançado era algo que esteva bastante presente nas mentalidades do homem medieval, como podemos observar na oração fúnebre de Rolando Para Turpino: “Oh! Gentil senhor, cavaleiro de nobre estirpe, hoje eu te recomendo ao Deus da glória. Jamais haverá servidor mais devotado. Desde os apóstolos, não apareceu semelhante profeta para observar a lei e atrair os homens. Que vossa alma não tenha que suportar nenhum sofrimento! Que 31

ZIERER, Adriana. Paraíso versus Inferno: A Visão de Túndalo e a Viagem Medieval em Busca da Salvação da Alma (Século XII). Disponível em: <http://www.revistamirabilia.com/> Acessado em: Acessado em: 08 de Outubro de 2011: 23:14:00.

Então, a Igreja era a única que poderia conduzir o cristão a salvação e ao caminho do Paraíso. Mas também, era a única detentora dos sacramentos, como o batismo, que reinstituía as almas do pecado original e o sacramento da confissão, que através da penitência restituía a alma do pecado que havia cometido. Ela era também a única que poderia legalmente realizar o casamento, que possuía importante papel perante as normas da sociedade,

32

BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo. 2006. p, 374.


G N A R U S | 129 principalmente entre a nobreza e outros setores

Vemos que a Igreja utilizava-se do medo para

sociais mais elevados. Ter uma relação conjugal e

ajudar a instaurar o seu império. O medo de perder

realizar o ato do sexo sem ser casado, era pecar

a graça, a graça da recompensa paradisíaca, que

contra a castidade; claro que esse fator neste

podia ser perdida por uma possível punição ou algo

período não era algo que se seguisse tão a risca,

mais grave, como a excomunhão.

mais oficialmente tal relação era tida como luxuria.

Utilizando-se deste conceito, a Igreja utilizou-se

Ir contra a palavra da Igreja, ou pecar de forma

do Paraíso para influenciar pessoas, ou em uma

grave, contra ela, quebrando seriamente um

escala mais ampla, influenciar a sociedade a agir e

dogma, poderia custar a salvação. Para um homem

pensar segundo sua vontade. Afinal, para fixar-se

neste contexto, a possibilidade de perder o Paraíso

em na sociedade, a Igreja precisará do apoio de

era algo que gerava um sentimento de grande

nobres, reis e claro, dos que constituíam as camadas

aflição. Afinal, depois de tanto esforço para

sociais mais baixas, pois era a maior quantidade dos

manter-se fiel aos dogmas, para que no futuro a sua

homens, e números fazem sim a diferença, como

entrada no céu lhe seja dada, perdê-la seria jogar

podemos

fora uma vida de trabalho árduo, e as esperanças de

revoluções. O exemplo mais nítido deste fato são as

uma vida futura. Mas em que a Igreja estava

cruzadas.

embasada, para que pudesse negar a salvação a um fiel? Este poder da igreja está também embasado na bíblia, quando Jesus prega para os discípulos, dizendo: “tudo que ligares na terra será ligado no céu, e tudo o que desligares na terra será desligado no céu" (Mt 18: 18). Então, buscar a Deus, através da salvação, também necessariamente era seguir os princípios e Igreja, que interpretava as escrituras e ajudava o homem em seu caminho, como foi descrito por Adriana Zierer: “A instituição controlava o moral dos fiéis e seus atos para que estes conseguissem, após a morte, atingir o Céu.” 33 Assim, a palavra da Igreja é seguida fielmente por seus devotos, que em muito por respeito e pelo costume de obediência já transmitido de geração em geração, tinham em suas mentes a obediência a ela, pois ela era a única que lhes poderia ajudar no caminho que levaria a salvação e ao Paraíso. Neste contexto, podemos analisar quais eram os ganhos políticos do medo para a Igreja Católica.

33

ZIERER, Adriana. Paraíso versus Inferno: A Visão de Túndalo e a Viagem Medieval em Busca da Salvação da Alma (Século XII).

analisar

na história

das grandes

Em meados do primeiro milênio, os árabes começaram uma peregrinação por toda a Europa, conquistando e tomando posse de vastas regiões, sendo várias delas parte dos locais sagrados para o Cristianismo, as Terras Santas. Entre essas terras se encontrava também Jerusalém, que no início do século XI havia sido tomada dos árabes pelos turcos. Ver a cidade sagrada de Jerusalém sobre posse de infiéis, fez com que a Igreja Católica se sentisse incomodada. Com os avanços seljúcidas sobre o Império Bizantino e o pedido de ajuda do imperador Aleixo Comeno à Igreja, o papa Urbano II, em um concílio em Cleimont, em 1095, convoca os católicos e todos aqueles sem causa própria para lutarem pela Igreja e retomarem a posse de Jerusalém e dos demais locais sagrados. Vários homens aderiram à causa, não só católicos, mas homens sem fé, em busca de aventura, outros em busca de riquezas e ganhos materiais, mas certamente vários deles foram recrutados pela Disponível em:< http://www.revistamirabilia.com/>. Acesso em: 08 Out. 2011.


G N A R U S | 130 salvação oferecida por Urbano II e os demais papas

pecado fosse perdoado e sua dívida com Deus e

que ocuparam a cadeira de São Pedro, depois dele.

com a Igreja, quitadas?

Para encorajar as Cruzadas, Urbano e os outros papas, os que vieram depois dele, enfatizaram os "benefícios" espirituais da guerra contra os muçulmanos. Arrancando uma pagina do Alcorão, Urbano assegurou que os guerreiros que experimentassem essa penitência entrariam no céu diretamente — ou, pelo menos, teriam uma redução no tempo que passariam no purgatório. 34

Considerações finais O Paraíso celeste, Reinos dos Céus, representando tudo aquilo que o Inferno não é, certamente foi de fundamental importância para o cotidiano da Idade Média. Vários escritos e outras manifestações

Urbano II em seu discurso as massas, chamou não só aqueles que eram católicos, mas todos os que pudessem ajudar a retomar a posse das terras santas para a Igreja. Para conseguir um maior número de

artísticas foram feitas, com o objetivo de construir para o fiel a imagem de como era a utopia perfeita cristã, o lugar onde todos os seus suplícios e martírios seriam finalmente recompensados.

adeptos a causa, ele convoca os pecadores, o que

Embasados principalmente na bíblia e nas várias

claro, constituía um grande número dos homens da

tradições orais passadas por gerações, personagens

sociedade. Ele afirma que ladrões, assassinos, e os

religiosos como padres, freis, teólogos da Igreja

demais que pecaram contra Deus e a Igreja, se

construíram as características, e exemplificaram os

aderissem à cruzada, teriam seu local no Paraíso

deleites gozados por quem em sua vida terrena,

garantido, ou pelo menos, sua estadia no

tornaram-se merecedores das graças do Além.

purgatório diminuída. Observa-se esse fato no

“O Além foi um dos grandes domínios do imaginário medieval. Inspirou uma importante literatura de ficção e uma rica iconográfica, testemunhando a fecundiade da atividade criativa dos artistas medievais.”36

trecho da fala de Urbano II: “A Todos aqueles que Partirem para as Cruzadas e perecerem pelo caminho, seja por terra, seja por mar, ou que perderem a vida combatendo os pagãos, será concedida a remissão de seus pecados.” 35 Como já

Como dito no trecho do Dicionário Temático do

descrito, o Paraíso era alvo de grande busca pelos

ocidente Medieval, o Além foi parte presente do

homens da Idade Média, mas muitos deles já o

imaginário medieval. Alguns destes escritos,

tinham perdido tal lugar, graças à vida que levaram

criados neste contexto, foram verdadeiros manuais

em terra. Então uma chance de recuperar a graça e

de conduta, que serviam para ajudar o cristão a

de ir para o Paraíso, certamente seria algo que a se

chegar ao Além Paradisíaco. Vários destes relatos

levar em consideração. O Paraíso, neste contexto,

enraizaram-se nas mentalidades dos homens na

tornou-se objeto de negociação. Quantos anos

Idade Média, como a Canção de Rolando e a Visão

seriam necessários lutando pela Igreja, para que seu

de Túndalo, e seus personagens eternizaram-se, sendo descritos por gerações. Mas, qual reflexo que

34

CURTIS, A. Kenneth. LANG, J. Stephen e PETERSEN, Randy. Os 100 acontecimentos mais importantes da historia do cristianismo: do incêndio de Roma ao crescimento da igreja na China. São Paulo: Editora Vida, 2003. p. 70.

35

GOBRY, Ivan. Um Oriente Dividido Frente à União dos Invasores. As Cruzadas – Fanatismo sem Limites. História Viva. Editorial Duetto: São Paulo, Ano II. Nº 15. p. 33. Jan. 2005. 36 LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean – Claude. Dicionário Temático Do Ocidente Medieval I. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. 2 v. Pagina 24


G N A R U S | 131

homens e mulheres da Idade Média continuassem a

“Com a descrição da Jerusalém celestial encerra-se um grande círculo de narrativas. Começando no Geneses, o primeiro livro do Velho Testamento, e chega até o Apocalipisce de João, o ultimo livro do Novo Testamento. No lugar do jardim, onde, outrora, somente o pirimeiro casal homano vivia, entra em cena uma magnifica cidade que oferece espaço sufiente para um grande quantidade inumerável de eleitos.” 38

lutar contra tudo aquilo que os afligia. Tal utopia

O Além na Idade média, constituiu uma parte de

era uma fuga dos males terrenos, uma construção

fundamental importância para a história do

imagética coletiva, que se tornava real, graças à fé,

homem,

e era transfigurada para o dia a dia das pessoas,

mentalidades, criando um imaginário de tal

tornando-se paralela com o real, criando assim uma

magnitude, que permitia que seus principios

nova realidade. Mas essa nova realidade era

perpetuarem por gerações.

esta imagem construída do Paraíso causou na sociedade medieval européia do século XII? Em uma sociedade embasada no medo, como era a Europa medieval, o Paraíso veio para dar esperança, dar um motivo concreto para que os

enraizando-se

de

tal

modo

nas

alcançada somente após a morte, no Além tumulo. E

somente

uma

vida

de

fidelidade

aos

mandamentos, e aos dogmas da Igreja poderiam levar o cristão a tal merecimento. Por isso, muitos

Fernando Augusto Alves Batista É especialista em História da África e do Negro no Brasil, pelo Instituto Educacional Centro Oeste – IECO e Licenciado em História pela Faculdade Projeção, Taguatinga – DF.

homens e mulheres da Idade Média, moldaram totalmente suas vidas, alicerçando suas atitudes, seu modo de agir, falar e interagir com o mundo, e em

vários

casos,

chegando

a

assumir

o

enclausuramento dos mosteiros, ou os martírios das penitencias, maculando seu corpo, e para muitos, a busca do Paraíso determinou o jeito de viver e de morrer. Tudo isso feito para que no futuro, as graças de um lugar melhor no Além lhe seja garantido. A busca do Paraíso tornava suas vidas uma verdadeira provação diária, o que nos remete a fala de Jacques Le Goff e Jean Claude – Schmitt na epígrafe deste trabalho: “A presença do Além deve ser sempre consciente e viva para o cristão, pois ele arrisca a salvação a cada instante de sua existência. ” 37 Para o Cristianismo e a Igreja, as descrições do Paraíso era o marco que dava fim ao grande círculo de narrativas da Bíblia, como dito por Heinrich Krauss, em seu livro O Paraíso:

37

LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean – Claude. Dicionário Temático Do Ocidente Medieval I. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. 2 v. p. 22.

38

KRAUSS, Heinrich. O Paraíso: De adão e Eva às utopias contemporâneas. São Paulo: Globo, 2006.


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