132 gnarus7 viva a penha

Page 1

G N A R U S | 132

Artigo

VIVA A PENHA! Por Luís Tadeu de Farias Góes

O

presente artigo tem como intenção

No que se refere à historiografia da festa da

traçar um breve esboço do que foi uma

Penha, a grande referência é a historiadora Rachel

das principais festas do Rio de Janeiro

Soihet, principalmente através do seu livro A

do final do século XIX e início do século XX: as

subversão pelo riso, mas também, através de

festas dedicadas a Nossa Senhora da Penha durante

capítulos de livros e de artigos publicados, em que

os anos de 1890 a 1920.

também trabalhou com as festas da Penha.1 Há

Revista “O Malho”, nº 473 de 1911 (pág. 9)

1

Ver: SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: Estudos sobre o carnaval carioca, da Belle Époque ao tempo de Vargas. Uberlândia: EDUFU, 2008; SOIHET, Rachel. Um Ensaio sobre

resistência e circularidade cultural: A festa da Penha (18901920). Cadernos do ICHF, Niterói, n. 31, 1990; SOIHET, Rachel. Festa da Penha: Resistência e interpenetração cultural (1890-


G N A R U S | 133 muito este tema não é revisitado, e julgo de grande

Virgem da Penha, outros, juntavam-se às diversas

significância, lançar novos olhares e novas

barraquinhas de comidas e bebidas, cantavam,

perspectivas sobre um determinado tema, neste

dançavam, jogavam. Ouvia-se a todo momento

caso, as festas da Penha. Assim, enriquecemos o

“vivas” à Penha. A todo o momento chegava gente

debate historiográfico sobre a questão das festas

de diversos cantos do Rio de Janeiro para assistir à

populares do Rio de Janeiro do século XIX e início

festa, trazer promessas e se divertir.2

do XX, de um modo geral. Esboçaremos as relações que as tradições negras tiveram com a festa – que vai desembocar no samba e no carnaval com seus ranchos e cordões -, as questões sobre raça, cidadania e progresso, tão caras ao período e a Penha como lugar de sociabilidade e manutenção de tradições e de resistência cultural.

Interessante é que Morais Filho e os que, posteriores a ele, descrevem a festa da Penha, inclusive a imprensa, referem-se a ela como romaria. Chamo a atenção para este fato, pois, o termo romaria, segundo José Ramos Tinhorão, por si só já tem um caráter profano, o que nos leva a crer que, as romarias à Penha, ao que tudo indica,

No que se refere à historiografia da festa da

sempre foram permeadas pelo aspecto festeiro.

Penha, o memorialista Melo Morais Filho – atento à

Tinhorão nos elucida que diferentemente de uma

questão das festas e manifestações populares no

procissão - que é uma cerimônia organizada pela

Brasil de meados do século XIX -, foi um dos

Igreja com caráter de ritual religioso -, as romarias,

primeiros a escrever sobre a Penha, em seu livro

bem como os círios, são manifestações de devoção

Festas e tradições populares do Brasil. Segundo ele,

de uma comunidade, o culto votivo acontece em

nas primeiras romarias, ainda no período colonial,

clima de festa. Ele completa dizendo que “as

eram os portugueses, em sua maioria incultos e

romarias resultam da iniciativa de grupos

trabalhadores rudes, que concorriam para louvar e

particulares,

festejar a Virgem da Penha, ao modo dos festejos

acontecimentos maravilhosos ou obrigados ao

da antiga metrópole. O memorialista frisa: “Nas

cumprimento de voto pela obtenção de alguma

romarias da Penha o elemento predominante foi

graça coletiva”.3

sempre o português”. Refere-se, é claro, ao período observado por ele, ou seja, segunda metade do século XIX. Morais Filho, já apontava a romaria da Penha

movidos

pela

notícia

de

Podemos observar que a romaria à Penha resulta - da forma como Tinhorão colocou -, de um acontecimento

maravilhoso,

um

milagre,

ratificando assim sua tese de que as romarias têm

como estrepitosa e alegre. O sagrado se misturava

caráter

festeiro

e

que

elas

resultam

de

ao profano. Enquanto os romeiros subiam as

acontecimentos maravilhosos e graças alcançadas.

escadarias esculpidas na pedra, a pé, de modo a

Melo Morais Filho relata suscintamente o milagre,

pagar suas promessas e externar suas gratidões à

o “acontecimento maravilhoso”:

1920). In: CUNHA, Maria Clementina Pereira (org.). Carnavais e outras f(r)estas. Campinas, SP: Editora Unicamp, Cecult, 2002; SOIHET, Rachel. Um debate sobre manifestações culturais populares no Brasil dos primeiros anos daRepública aos anos 1930. Trajetos, v. 1, n. 1, 2001, p. 1-24.; ; SOIHET, Rachel. A sensualidade em festa: representações do corpo feminino nas festas populares no Rio de Janeiro da virada dos séculos XIX a

XX. In: MATOS,Maria Izilda S. e SOIHET, Rachel (orgs). O Corpo feminino em debate. São Paulo. Editora UNESP, 2003, p. 177197. 2 MORAIS FILHO, op. cit., p. 137. 3 TINHORÃO, José Ramos. Festa de negro em procissão de branco: Do carnaval na procissão ao teatro no círio. São Paulo: Ed. Unesp, 2012, p. 29.


G N A R U S | 134 circularidade cultural. Nela, esteve presente

“Em tempos que lá vão distantes, ousado caçador que batia aquelas matas, em busca de caça, foi surpreendido por uma cobra gigantesca, que, roncando feroz e desenrolando-se no espaço, amaçava devorá-lo; tomado de espanto, lívido de terror, arrepiam-se-lhe os cabelos, suor viscoso poreja-lhe a fronte, a arma lhe cai e ele, sobrando o joelho na terra, erguendo as mão súplices ao céu, exclama num brado saído d’alma: - Valha-me Nossa Senhora da Penha!... No mesmo instante um lagarto indolente, que aquecia ao sol a cabeça chata, salta de uma pedra, e açoutando com a cauda de ferro o réptil medonho, o afugenta, deixando livre do perigo o infeliz para quem a morte seria inevitável.

aspectos da cultura dominante, bem como da cultural popular, houve a “influência recíproca entre os diferentes seguimentos”. Nesse sentido, Soihet ressalta que “o solene e o cômico, o humor e o rito religioso, o sagrado e o profano fazem parte de uma mesma dimensão”.6 À medida que foi se aproximando o final do século XIX, enquanto algumas das principais festas do Rio de Janeiro, como as do Divino, perdiam força, a festa da Penha seguia na contramão, aumentando consideravelmente sua popularidade. Para Martha Abreu e Larissa Viana em Festas religiosas, cultura

popular e política no império do Brasil, a festa da

Desperto como de um pesadelo, reconhecendo que fora salvo por estupendo milagre, o caçador erigiu na crista do rochedo a ermida votiva a Nossa Senhora da Penha, vindo todos os anos em contrita romaria oferecer à sagrada imagem o tributo de suas dádivas e o eco de seus louvores.”4

Penha, juntamente com o “carnaval moderno”,

Vê-se, a partir de então que, desde o milagre, a

começou a atrair grande contingente da população

Penha recebe sua romaria, e, pelo que nos indicam

negra, recém liberta, juntamente com sua rica

as fontes e a bibliografia, essas romarias sempre

cultura: sambas, batuques, capoeiras e demais

foram permeadas de caráter festeiro.

identidades.7

substituíram o espaço cultural deixado pela festa do Divino Espírito Santo, “a derrota do Divino correspondeu à vitória de outras festas”, neste caso, a festa da Penha. Nesta virada de século, a Penha

Segundo Rachel Soihet - que analisou a romaria à

O Rio de Janeiro, então capital federal, era parte

Penha quando a festa atingiu seu auge - em tais

de um projeto do qual seria um passaporte do

festividades, não se pode estabelecer uma

ingresso brasileiro na civilização, através de ideais

distinção entre o sagrado e o profano. O arraial da

como o progresso, a razão e a ciência.8 Nas palavras

Penha concretizaria a festa popular, através de

de Armelle Enders, “tratava-se de uma capital

princípios como o banquete e a alegria, “onde os

destinada a uma elite, europeia por suas origens,

elementos material e corporal são positivados,

seu modo de vida e suas aspirações”.9 Na visão da

conferindo ao corpo um caráter cósmico e

elite da época, era preciso romper com o passado

universal.”

5

A festa da Penha se constituiu num

cenário

privilegiado

de

observação

da

MORAIS FILHO, op. cit., p. 132. SOIHET, Rachel. “Festa da Penha: Resistência e interpenetração cultural (1890-1920)”. In: Maria Clementina Pereira Cunha (org.). Carnavais e outras F(r)estras. Ensaios de História Social da Cultua.Campinas: Unicamp, 2002, p. 345. 6 SOIHET, Rachel. Op. cit., p. 30-31. 7 ABREU, Martha & VIANA, Larissa. “Festas religiosas, cultura popular e política no império do Brasil”. In: GRINBERG, Keila & 4 5

SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil imperial. Volume III: 18701889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 257. 8LESSA, Carlos. O Rio de todos os Brasis. Rio de Janeiro e São Paulo: Record, 2000, p. 191. 9 ENDERS, Armelle. História do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ed. Gryphus, 2004, p. 215.


G N A R U S | 135 colonial,

Tais

modernizar

ideias

e

positivistas

civilizar a cidade

também

de modo a torna-la

permeavam a vida

a “Paris tropical”.

dos

brasileiros

O Rio do século

época.

XIX era conhecido como

a

intelectuais As

literatura produzida

livro Cidade Febril,

Europa.

indica que, na visão

na Esse

modelo europeu de

da época, um dos

conhecimento

requisitos para que

e

civilidade, além da

nação

política, habitava,

atingisse grandeza

também,

prosperidade

os

institutos, os jornais

seria solucionando

e

os problemas de

romances.

O

Brasil no final do

higiene pública, e problemas

eram

grandes leitoras da

Chalhoub em seu

e

elites

brasileiras

cidade

pestilenta.10

uma

da

século XIX início do

desse

século

tipo não faltava na Revista “O Malho”, nº 369 de 1920 (pág. 35)

capital da recente

pretendia se auto representar como

república. “Civilização”, “ordem”, “progresso” e “beleza” eram as palavras que estavam em voga, de

XX

uma sociedade científica e moderna.12 Martha Abreu, em seu clássico O império do

modo a, cada vez mais, criar uma distância e uma colonial,

Divino denuncia que a partir de meados do século

associado à “desordem” e à “imundície”.11 Com isso,

XIX as elites políticas e os intelectuais assumiram

empreendeu-se

da

uma posição contra as festividades religiosas,

república, uma série de intervenções de ordem

condenando as festas, suas barracas e diversões,

urbanística e, também, moral, na cidade do Rio de

passando assim a considerar tais festividades como

Janeiro, modernizando-a e tornando-a modelo de

“bárbaras, perigosas, vulgares e ameaçadoras da

cidade civilizada.

‘família higiênica’, levando o próprio clero a olhar

separação

do

“atrasado” nas

passado

primeiras

décadas

com desconfiança para esse catolicismo barroco.”13

LESSA, op. cit., p. 194. CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril. In Cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Editora Companhia das letras, 1996, p. 35. 10 11

12

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 41. 13 ABREU, Martha. O império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830–1900. Rio de Janeiro e São Paulo: Nova Fronteira e Fapesp, 1999, p. 37.


G N A R U S | 136 Calcados nessa onda de progresso e civilidade, de

foram pontos de encontro, identidade e resistência

razão e ciência, à moda francesa, europeia, as

cultural através da música, da dança e da culinária.

práticas populares e suas festas – no presente caso

Nesse ambiente surgiram os sambas, batuques e os

as festas da Penha -, eram tidas como

famosos capoeiras. 17

manifestações de atraso e ignorância. Tais festejos deveriam ser eliminados, pois, não representavam a modernidade, pelo contrário, segundo esses intelectuais,

representavam

um

mundo

em

extinção. Denominaram a romaria à Penha de escandalosa

e

selvagem.14

Dentre

esses

intelectuais, destaca-se Olavo Bilac, jornalista, cronista e poeta. Bilac fez duras críticas à festa da Penha chamando-a, em algumas de suas crônicas de bárbara e selvagem.15

Raul Pompéia em uma crônica sobre a festa da Penha, em 1888, alguns meses após a abolição, denuncia a presença de negros na festa e seus respectivos modos de festejar. Descreve a viola que chocalha no compasso, o pandeiro que acompanha, a sanfona que geme, o negro que esfrega a faca no prato e a mulata que requebra no meio da roda. Segundo ele, era possível encontrar tais rodas por toda a parte do arraial. No meio dessas rodas de batucadas, Pompéia também descreve a presença

Soihet, porém, elucida que a univocidade não era

de grupos carnavalescos, e destaca, “enroupados à

a tônica, os ideais de progresso, ciência e razão não

fantasia”18. Tais descrições nos levam a ver a Penha

eram os únicos a serem seguidos. Para isso, ela cita

como a avant-première19 do carnaval carioca e nos

Lima Barreto e Afonso Arinos de Mello e Franco

leva a crer que o carnaval começava nas festas da

como exemplo de intelectuais que criticaram essa

Penha.

onda europeizante e que valorizavam as expressões populares. Assim, ela contrabalanceia a história e mostra os diversos olhares que foram lançados sobre a festa.16

A partir desse momento, já nas primeiras décadas do século XX, a festa da Penha torna-se a festa mais popular da cidade do Rio de Janeiro, depois do carnaval, sendo palco, inclusive, de lançamento de

Por volta do final do século XIX e das primeiras

sambas e marchas para o carnaval que se

décadas do século XX os negros passariam a

aproximava. Antes do surgimento das rádios, era na

predominar, em detrimento do português, as festas

Penha que eram lançados dos sambas que fariam

da Penha. Soihet, a principal historiadora no que se

sucesso no carnaval, segundo Donga, Sinhô, Heitor

refere à festa da Penha , defende que, dentre os

dos Prazeres e outros.20

negros que passaram a frequentar a Penha, a comunidade de negros baianos foram de grande importância para a festa. As tias com suas barracas

SOIHET, Rachel. op. cit., p. 344. Kosmos, Outubro de 1906. 16 SOIHET, Rachel. Um ensaio sobre resistência e circularidade cultural: a festa da Penha (1890-1920). Cadernos do ICHF, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Rio de Janeiro, n. 31, agosto 1990. p. 2 e 3. 17 SOIHET, Rachel. op. cit., p. 347. 18 POMPÉIA, Raul, Crônicas do Rio. Rio de Janeiro: MECFENAME/OLAC/Civilização Brasileira, 1982. 14 15

O jornal Gazeta de notícias, exaltando a importância da festa para a sociedade da época, afirmou que não havia jornal que não publicasse em

19

Termo utilizado por Racheil Soihet ao se referir à festa da Penha como palco de lançamento de músicas que seriam sucessos populares no carnaval que se aproximava. Ver: SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca da Belle Époque ao tempo de Vargas. Uberlândia: Editora de Universidade Federal de Uberlândia, 2008. 20 MOURA, Roberto. No princípio era a roda: um estudo sobre samba, partido-alto e outros pagodes. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 125.


G N A R U S | 137 outubro as crônicas dos domingos na Penha.21 O

muita sorte, pois esta era de sua crença.”24 Anúncios

jornal O século também, em diversas publicações,

em diversos jornais, confirmam este costume de

exaltou a importância da festa da Penha. Em uma

usarem roupas novas, feitas especialmente para as

publicação de outubro de 1908 publicou: “A festa

festas da Penha. Dentre os inúmeros anúncios,

da Penha está no coração de toda a cidade, é uma

exemplifico a fala de Efegê no que se refere ao

festa do povo22”. Não eram poucas as publicações

figurino da festa, com um anúncio publicado no

que noticiavam a Penha como a grande e

Correio da manhã em Outubro de 1908. A loja Barra

tradicional festa popular do Rio de Janeiro.

do Rio, situada à rua Sete de setembro, publicou

As notícias eram diversas, desde anúncios de roupas para ir à festa, às típicas crônicas sobre os domingos na Penha, que tantos jornais publicaram. Anúncios como o de barracas que iriam compor a festa eram constantes nos jornais. À medida que ia

com o título Festa da Penha: “Prevenimos aos nossos fregueses que além do enorme sortimentos de roupas próprias para os romeiros, temos também os

competentes

chapéus.”

[Grifo

meu]

Observamos, com isso, que a festa era tão

se aproximando o mês de outubro, o título A festa

importante para a sociedade da época que

da Penha tomava conta da imprensa carioca. Os

movimentava até boutiques de roupas, a ponto

comerciantes que tinham um maior poder aquisitivo investiam na divulgação de suas barracas

destas fazerem anúncios em jornais, anunciando roupas especialmente para a festividade.

nos jornais de grande circulação. A Gazeta de

A cobertura da festa, desde os seus preparativos,

notícias, por exemplo, publicava em Outubro de

era completa: A festa, a romaria, os romeiros, os

1909 um anúncio divulgando a barraca do Moita,

transportes, vestuários, músicas, barracas e crimes

onde o próprio dono da barraca, Ismael Moita,

no arraial, tudo era minuciosamente relatado pelos

oferece cerveja e vinhos a excelentes preços e

jornais no mês de Outubro.

finaliza dizendo que a barraca encontra-se no melhor ponto do arraial.23 Não raro encontramos anúncios como estes, de barracas.

Os periódicos também nos dão grande amparo com relação aos negros e suas formas de celebrar e os seus sambas, nas festas da Penha. A partir dos

Jota Efegê, em Meninos, eu vi, fala sobre a

primeiros anos do século XX as notícias de sambas

preocupação que malandros, sambistas e capoeiras

e festejos tipicamente carnavalescos, nas festas da

tinham com a aparência ao irem à festa da Penha.

Penha, se tornaram constantes. A Gazeta de

Segundo Efegê, eles “tinham a preocupação de

notícias, em Outubro de 1907, noticiava que no

aparecer no arraial ostentando uma ‘beca’, um

arraial, um grupo acompanhado de “gemido de

‘pano’

branco,

violões, da chinfrinada das violas”, cantava

caprichosamente engomado e bem lustroso.” Para

modinhas e no lugar “formigavam-se os sambas

esses malandros e sambistas, “a roupa em primeira

com os reboleios das mulatas e as figuras

exibição ‘pintava’ no arraial ‘de acordo com o

requebradas dos dançadores”. Segundo o jornal,

figurino’ e a Nossa Senhora da Penha ia lhe dar

esse grupo sambava incansavelmente até a hora de

Gazeta de notícias, 16/11/1911. O século, 03/10/1908. 23 Gazeta de notícias, 14/10/1909.

24

21 22

novo.

De

preferência

Jota Efegê, “Para ir à Festa da Penha fazia-se uma ‘beca’ nova”, Meninos, Eu Vi, Rio de Janeiro, FUNARTE-INL, 1985, p. 75.


G N A R U S | 138 pegarem o trem de volta, e finaliza a notícia

São constantes as notícias de sambas e ranchos

dizendo que “o samba continuava, bem batucado e

carnavalescos na Penha, e à medida que vamos

palmeado, bem gritado e cantado, até a estação de

caminhando pela primeira década do século XX,

São Francisco Xavier”25

rumo à segunda, esses relatos vão aumentando.

Outro jornal, o Correio da manhã, em Outubro de 1905, relata que na festa da Penha, “os pandeiros do samba, os choros de dois ou três instrumentos

Segundo o periódico A época, um grupo, ao som de pandeiros, flautas e cavaquinhos, acompanhava um cordão, e todos cantavam em coro os versos:

surgem de todos os lados”26. Parece-me uma

Yayá, yoyô

verdadeira festa pré-carnavalesca. Novamente a

Faça Favô

Gazeta de notícias descreve a presença de negros,

Entre na dança

dessa vez, afirmando serem as negras baianas as

Mostre valô28

responsáveis belas batucadas da Penha. Segue a notícia: “Em diversos pontos do arraial, bando de

A Gazeta de notícias, em Outubro de 1909,

baianas requebravam-se ao toque de pratos,

descreve que encontrou no arraial um rancho

violões e outros instrumentos. Podia-se dizer que a

carnavalesco chamado Não lhe bulas, “tendo cerca

festa do arraial foi das baianas”.27

de vinte moças fantasiadas que cantavam ao som de pandeiros”:

Onde vais, pastora Tão bela assim? Ver o “Não lhe bulas” Lá no seu jardim29

A partir das notícias da imprensa, citadas acima, podemos ter a leve impressão do quão carnavalesco se tornou a festa da Penha a partir da virada do século XIX para o XX. A presença de romeiros fantasiados,

sambas,

ranchos

e

cordões

carnavalescos nos dão pistas para chegarmos a essa conclusão. Durante as duas primeiras décadas do século XX, no auge da festa, temos a Penha como a

avant-première do carnaval carioca, de onde se podia ouvir os primeiros acordes da folia de Momo.

Revista “O Malho”, nº 995 de 1920 (pág. 30)

Gazeta de notícias, 28/10/1907. Correio da manhã, 28/10/1905. 27 Gazeta de notícias, 27/10/1902.

Luis Tadeu de Farias Goes é formado em História pela Universidade Estácio de Sá e pós graduado em História Antiga e Medieval pela Faculdade de São Bento do RJ.

25

28

26

29

A Época, 21/10/1912. Gazeta de notícias, 11/10/1909.


G N A R U S | 139

Bibliografia ABREU, Martha. O império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830–1900. Rio de Janeiro e São Paulo: Nova Fronteira e Fapesp, 1999. __________. O crioulo Dudu: Participação política e

identidade negra nas histórias de um músico cantor (1890-1920). Topoi v. 11, n. 20, jan-jun. 2010, p. 92-

113. __________. É chegada “a ocasião da negrada bumbar”:

comemorações da abolição, música e política na Primeira República. VARIA HISTORIA, Belo

Horizonte, vol. 27, nº 45: p.97-120, jan/jun 2011. __________ & DANTAS, Carolina Viana. "Música popular. Folclore e nação no Brasil, 1890-1920". In: José Murilo de Carvalho (org). Nação e cidadania no Império: Novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. __________ & VIANA, Larissa. “Festas religiosas, cultura e política no Império do Brasil”. In: GRINBERG, Keila & SALLES, Ricardo (Orgs.). O Brasil Imperial, Volume III, 1870-1889. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais . São Paulo/Brasília, HUCITEC/Ed. UnB, 1993. CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a Republica que não foi. São Paulo, Companhia das letras, 1987. CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: Cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das letras, 1996. __________. Trabalho, lar e botequim. O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. Campinas, Editora da Unicamp, 2012. COUTINHO, Eduardo Granja. Os cronistas de Momo: Imprensa e carnaval na primeira república. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006. CUNHA, Maria Clementina Pereira (org.). Carnavais e outras F(r)estas. Ensaios de história social da cultura. Campinas: UNICAMP, Cecult, 2002. __________. Ecos da Folia: uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. DANTAS, Carolina Vianna. A nação entre samba, cordões e capoeira nas primeiras décadas do século XX. ArtCultura, Uberlândia, v. 13, n. 22, p. 85-102, janjun, 2011. ENDERS, Armelle. História do Rio de Janeiro. Ed. Gryphus: Rio de Janeiro, 2004. LESSA, Carlos. O Rio de Janeiro de todos os Brasis. Rio de Janeiro: Record, 2000. GOMES, Thiago de Mello. Para além da casa da tia Ciata:

Outras experiências no universo cultural carioca, 1830-1930. Revista Afro-Ásia 29/30 (2003), 175-198. MATTA, Roberto da. Carnavais, malandros e heróis: Para uma sociologia do dilema brasileiro. 6ª Edição. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. MENEZES, Renata de Castro. “Devoção, diversão e

poder: um estudo antropológico sobre a Festa da Penha”, dissertação de mestrado em Antropologia Social. Rio de Janeiro: Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996.

MORAES FILHO, Mello. Festas e tradições populares do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da USP, 1979. MORAIS, Eneida de. História do carnaval carioca. Rio de Janeiro: Record, 1987. MOURA, Roberto. No princípio era a roda: um estudo sobre samba, partido-alto e outros pagodes. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. __________. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1983. MUNIZ JR., J. Do batuque à escola de samba. São Paulo: Edições Símbolo, 1976. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças:

Cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das letras, 1993. SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca da Belle Époque ao tempo de Vargas. Uberlândia: Editora de Universidade Federal

de Uberlândia, 2008. __________. Festa da Penha: Resistência e interpenetração cultural (1890-1920). In: CUNHA, Maria Clementina Pereira (org.). Carnavais e outras f(r)estas. Campinas, SP: Editora Unicamp, Cecult, 2002. __________. Um ensaio sobre resistência e circularidade cultural: a festa da Penha (1890-1920). Cadernos do ICHF, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Rio de Janeiro, n. 31, agosto 1990. __________. O povo na rua: manifestações culturais como expressão de cidadania. In: FERREIRA, Jorge & SALGADO, Lucilia (Orgs.). O tempo do liberalismo excludente: Da proclamação da república a revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. __________. A sensualidade em festa: representações do

corpo feminino nas festas populares no Rio de Janeiro da virada dos séculos XIX a XX. In:

MATOS,Maria Izilda S. e SOIHET, Rachel (orgs). O Corpo feminino em debate. São Paulo. Editora UNESP, 2003 TINHORÃO, José Ramos. Festa de negro em devoção de branco: Do carnaval na procissão ao teatro no círio. São Paulo: Ed. Unesp, 2012. __________. Os sons negros do Brasil: cantos, danças, folguedos: origens. São Paulo: Art Editora, 1988. VELLOSO, Mônica Pimenta. As tradições populares na “belle époque” carioca. Rio de Janeiro: Funarte/Instituto Nacional do Folclore, 1988.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.