15 as escaramuças entre bandeirantes e jesuítas pelo gentio da terra

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Artigo

AS ESCARAMUÇAS ENTRE BANDEIRANTES E JESUÍTAS PELO GENTIO DA TERRA NA REGIÃO DO GUAIRÁ, TAPE E URUGUAI NO PERÍODO DE 1602 A 1641

Por Miguel Luciano Bispo dos Santos

P

ara compreendermos a relevância e a

designar

justificativa

dissertações críticas1”.

da

nossa

proposta

é

necessário que reflitamos sobre algumas

produções

historiográficas

em

relação

à

historiografia da vila São Paulo colonial. A história da dessa vila é bastante antiga e

de

instrumentos

de

pesquisa

ou

A partir da fundação do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo em 1894, iniciou-se uma produção acadêmica mais sistemática da história de São Paulo. Uma historiografia que forjou a

debatida na historiografia brasileira, normalmente

imagem

é inserida no contexto da expansão territorial do

empreendedor independente e leal, cuja síntese

Brasil e nas expedições bandeirantes ao interior da

seria o bandeirante. A ideia dos homens de São

colônia. Os primeiros estudos sobre São Paulo

Paulo como “raça de gigantes” – que Ilana Blaj

remontam à época colonial. Os trabalhos mais

nomeia como perfil da historiografia de fins do

representativos são de Frei Gaspar da Madre de

século XIX até a década de 1930 – edificou a

Deus (1715-1800) “Memórias para Historia da

imagem

Capitania de São Vicente”; e de Pedro Taques de

bandeirante, desbravador e expansionista.2

Almeida Paes Leme (1714-1777), dentre suas obras, destacam-se a “Nobiliarquia Paulistana Histórica e Genealógica”

e a “História da

Capitania de São Vicente”. Ambos os autores pertenciam às Academias Históricas, instituições iluministas de intelectuais destacados. A Academia dos Renascidos, da qual Frei Gaspar fez parte, tinha um programa historiográfico “orientado para a composição de memórias históricas, ou seja, para

do

da

homem

capitania

paulista

sobre

destemido,

o

heroísmo

Já entre as décadas de 1940 e 1970, a ideia perpetuada de subdesenvolvimento do Brasil consagrou São Paulo como área marginal, secundária, atípica, apenas articulada de forma insuficiente à engrenagem colonial. Nessa visão, São Paulo colonial era abordado como região periférica, isto é, somente como fornecedora de mão de obra indígena ou como centro das expedições

sertanistas

realizadas

pelos

elaboração do que, nos termos atuais, poderíamos 1 RIBEIRO,

Fernando V. Aguiar. Poder Local e Patrimonialismo: a Câmara Municipal e a concessão de terras urbanas na vila de São Paulo (1560-1765). São Paulo-SP: Departamento de História Econômica da USP, 2010. p.13. 2 BLAJ, Ilana. Mentalidade e Sociedade: revisitando a historiografia sobre São Paulo colonial. op. cit. p.241-242


G N A R U S | 127 bandeirantes. Construía, assim, uma nova imagem

escravos no litoral, e não fornecer mão de obra

com relação ao planalto de Piratininga: “o de uma

compulsória para suas fazendas que produziam

sociedade

alimentos de subsistência para abastecer as

extremamente

pobre,

isolada,

praticamente sem dinamismo e voltada apenas à

capitanias envolvidas no mercado externo.

subsistência”.3

As produções historiográficas mais recentes, no

Contudo, naquela época já existiam trabalhos

entanto,

contrapõe-se

diretamente

a

essa

que contestavam essa abordagem historiográfica

interpretação da historiografia tradicional sobre a

que caracterizava a sociedade paulista voltada

sociedade paulistana. Essas novas abordagens

apenas para a agricultura de subsistência. Estamos

estabelecem conexões entre a escravidão indígena

falando de Caio Prado Junior e Sérgio Buarque de

e

Holanda, dois grandes nomes da historiografia

necessidade mercantil interna da sociedade do

brasileira. O primeiro, no livro “Formação do Brasil

planalto de Piratininga. A Historiadora Ilana Blaj

Contemporâneo”4, refutou a ideia de uma

(2002), por exemplo, aponta que se estabeleceu

economia autárquica ao ressaltar a importância da

uma

produção de gêneros agrícolas que se destinava ao

sociedade

abastecimento do mercado interno e, por

crescentemente

conseguinte, conferiu um papel fundamental às

doação de terras e no braço indígena, consolida-se

redes hidrográficas e terrestres que ligavam o

em São Paulo a ordem escravista-senhorial”6.

planalto paulista às demais regiões da Colônia. Já

Proporcionando assim uma sociedade hierárquica

Sérgio

“Monções”5

e fortemente estratificada, tendo em seu topo uma

compreendeu a dinâmica interna específica de

elite que acumula a maior parte da riqueza em

São Paulo colonial valorizando a importância

suas mãos, ligada também atividades sertanistas

social e cultural do indígena na sociedade paulista.

de apresamento de índios no interior da colônia.

Buarque,

na

obra

as

bandeiras

paulistas

mentalidade paulista,

dentro

de

uma

senhorial-escravista “com

uma

mercantilizada,

na

produção

baseada

na

Apesar das inovações trazidas pelas obras acima

A obra mais significativa, no entanto, dessa

citadas, os historiadores das décadas de 1960-70

mudança de historiográfica foi do historiador

continuaram com aquela visão de pobreza e

norte-americano John Monteiro, com o livro

economia de subsistência da vila de São Paulo,

“Negros da Terra e bandeirantes nas origens de

tendo o aprisionamento de índios como a única

São Paulo” (1994). O autor considera que o surto

mercadoria capaz de integrar comercialmente o

das

planalto paulista às regiões açucareiras, pois os

motivado pela necessidade de mão de obra nas

indígenas

fazendas paulistas.

apresados

no

sertão

eram

comercializados para as lavouras canavieiras do nordeste da América portuguesa. Nessa visão, a finalidade das bandeiras era suprir a carência de 3 BLAJ,

Ilana. Mentalidade e Sociedade: revisitando a historiografia sobre São Paulo colonial. Revista de História. 142-143, 2000. p.242 4 PRADO Jr, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1987. p.151-160. 5 HOLANDA, Sérgio Buarque. Monções, 2a ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976. p.19.

expedições

bandeirantes

foi

somente

Ainda segundo John Monteiro, o trabalho indígena em São Paulo não se limitava à mera lógica comercial. Na verdade, praticamente todos os aspectos da formação da sociedade e economia paulista durante seus primeiros dois séculos 6

BLAJ, Ilana. A Trama das tensões: o processo de mercantilização de São Paulo colonial (1681-1721). op. cit. p.132.


G N A R U S | 128 confundem-se de modo essencial com

os

A história do surgimento da Capitania de São

processos de integração, exploração e destruição

Vicente

de populações indígenas trazidas de outras

personagens: João Ramalho e Martim Afonso de

regiões. Nesse sentido, o historiador norte-

Sousa. Em 1513, o português João Ramalho (genro

americano procura demonstrar as principais

do cacique Tibiriçá), fundou no planalto paulista a

estruturas da sociedade colonial na região

vila de Santo André da Borda do Campo;

surgiram de um processo histórico especifico,

começando a conquista e desbravamento dessa

subordinada a uma estrutura elaborada visando

área. Em 22 de janeiro de 1532, com o claro

controlar e explorar a mão de obra indígena7.

objetivo de estabelecer núcleos de povoamento,

Nessa

breve

discussão

bibliográfica,

pretendemos que o leitor entenda que o nosso artigo está inserido nas renovações historiográficas realizadas nos últimos anos sobre a história

está

amplamente

ligada

a

dois

Martin de Afonso fundou a primeira vila do Brasil, a vila de São Vicente. Ele também fundou outros povoados, como o Santo André da Borda do Campo e Santo Amaro8.

colonial de São Paulo. Nesse sentido, o nosso texto

Martim Afonso de Sousa em 1532, embora, ao

tem como finalidade compreender a importância

fundar a vila de São Vicente (a primeira vila do

econômica e social da mão de obra indígena na

Brasil), tenha lançado as bases da lavoura

sociedade paulista nos primeiros séculos do

canavieira em São Paulo, a produção de açúcar na

período colonial da América portuguesa e,

região não se desenvolveu como as Capitanias de

sobretudo,

estruturas

Salvador e Pernambuco, principalmente pelos os

socioeconômicas do planalto de Piratininga com

ricos solos de massapés nordestinos, contra o solo

as

os

arenoso do litoral paulista. Mas temos que

bandeirantes paulistas em torno do gentio da terra

ressaltar que se manteve um pequeno cultivo de

na região do Guairá,Tape e Uruguai, no período

cana-de-açúcar no litoral da Capitania.

relacionar

escaramuças

essas

envolvendo

jesuítas

e

compreendido entre 1602 a 1641.

Neste cenário econômico, a vila de São Paulo isolou-se no comércio ultramarino durante a

Colonização da Capitania de São Vicente Mas antes de abordarmos diretamente as expedições sertanistas paulistas nas reduções jesuíticas no Guairá, Tape e Uruguai, devemos contextualizar o início da colonização da Capitania de São Vicente, para inferirmos melhor o processo histórico que possibilitou aos colonos paulistas a organizarem as bandeiras em direção ao sertão da Colônia.

segunda metade do século XVI, voltando-se para o abastecimento do mercado interno da Colônia, com produtos agrícolas de subsistência, tendo o trabalho escravo indígena como principal mão de obra em suas terras. Temos que frisar que havia também agricultura de subsistência nas terras das grandes lavouras canavieiras, como maneira de garantir o alimento dos trabalhadores e moradores das propriedades rurais, mas não era suficiente para alimentar a todos. “Embora a capitania de São Paulo não estivesse no eixo central da economia colonial, por não

7

MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: op. cit. p. 89.

8

HOLANDA, Sérgio Buarque. História Geral da Civilização Brasileira, Vol I. São Paulo: Difel, 1961. p. 274.


G N A R U S | 129 produzir gêneros rentáveis, não se pode afirmar que não houvesse uma produção econômica na capitania. Havia uma produção que visava o abastecimento local (planalto) e do litoral (Santos e São Vicente) [...].Mas muito desses índios eram utilizados como transportadores, no difícil caminho que ligava o porto de Santos até a vila de São Paulo (Caminho do Mar) e na agricultura paulista nas roças de milho, mandioca e, principalmente, nas roças de trigo.”9

como aponta o historiador Arno Whelling, a atitude do governo português relação às questões indígenas foi caracterizada, por uma parte da historiografia, de hesitante e contraditória, com uma “legislação casuística e vacilante12”. A primeira legislação indigenista foi trazida juntamente com o Regimento de Tomé de Sousa, em 1549. Neste documento, o rei delegava o

Para a maioria dos colonos que buscava

poder de decretar a guerra justa para o

estabelecer-se na sociedade do planalto paulista a

Governador Geral. Os índios considerados aliados

opção do apresamento de índios representava a

(os aldeados e convertidos) tinham a sua liberdade

maneira mais significativa de constituir uma base

legalmente assegurada, e aqueles, considerados

produtiva de alguma envergadura econômica. Até

inimigos (hostis à ação colonizadora) eram

mesmo a própria Coroa portuguesa e seus

passíveis de escravização legal.

funcionários utilizavam-se dos serviços dos gentios da terra, como em expedições direcionadas aos descobrimentos de metais preciosos e, sobretudo, na defesa militar da própria Colônia perante inimigos externos e tribos indígenas inimigas10. Na procura por trabalhadores indígenas, os

Em vários momentos os colonos conseguiram burlar estrategicamente as ordens reais sobre o estabelecimento de guerra justa contra os nativos, por exemplo, os paulistas atacavam os índios, alegando que foram atacados, e enquanto esperavam que as autoridades deliberassem se o

colonos buscavam suprir-se, inicialmente, de duas

cativeiro

maneiras: através do escambo ou da compra de

impunemente escravizavam os negros da terra,

cativos.

utilizando-os como mão de obra em suas terras13.

Entretanto,

estratégias

nenhuma

mostrou-se

dessas

eficiente,

duas devido,

principalmente, à recusa dos índios em colaborar à altura das expectativas portuguesas. Segundo historiador John Monteiro foi desse momento que surgi

o

trabalho

compulsório

na

América

portuguesa11.

justou

contraponto

à

ou

não,

dizimação

os

colonos

deliberada

praticada pela maioria dos colonos na busca de força de trabalho compulsório dos nativos, os jesuítas

sugeriram

o

estabelecimento

dos

aldeamentos, os padres inacianos buscaram com isso controlar e preservar o índio através de um

Em relação às legislações indígenas, a Coroa portuguesa

Em

era

sempre

assegurou

a

processo

de

transformação

do

nativo

em

liberdade

trabalhadores produtivos. Os jesuítas admitiam o

indígena durante todo o período colonial. Mas

trabalho do gentio como forma de civilizá-lo e integrá-lo à sociedade. Aceitavam que os índios

9

PINHEIRO, Joely Aparecida Ungaretti. Conflito entre Jesuítas e Colonos na América Portuguesa (1640-1700). Campinas-SP: Tese de doutorado apresentada ao Instituto de Economia da UNICAMP, 2007. p. 72. 10 BLAJ, Ilana. A Trama das tensões: o processo de mercantilização de São Paulo colonial (1681-1721). op. cit. p. 130. 11 MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. op. cit. p.18.

12

WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José C.M. Formação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Era, 3ª Edição, 2005. p. 320. 13 LIMA, Sheila Conceição Silva. Rebeldia no Planalto: A Expulsão dos Padres Jesuítas Vila de São Paulo de Piratininga no Contexto da Restauração. Niterói-RJ: Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, 2006. p.67.


G N A R U S | 130 trabalhassem para os brancos, desde que esses

de Américo Vespúcio de 1504. A partir do século

pagassem “salários” aos índios (pago geralmente

final do século XVI, além das entradas oficiais,

em forma de pano para vestimenta) e que fosse

foram organizadas as expedições patrocinadas por

por um período determinado.

particulares, chamadas “Bandeiras”.

Os colonos paulistas, a princípio, apoiaram o

À medida que se tornava cada vez mais aparente

projeto jesuítico dos aldeamentos, que lhes

a insuficiência do projeto dos aldeamentos,

garantiam mão de obra abundante e barata por

enquanto forma de suprir as força de mão de obra,

meio da contratação do serviço dos índios.

os colonos passaram a intensificar as expedições

Todavia, a experiência dos aldeamentos logo se

em direção ao sertão em busca de índios, que

mostrou problemática. Para os colonos, o controle

iniciara a partir da década de 1580, no

excessivo dos padres sobre os índios acarretava a

estabelecimento de guerra justa contra os índios

dificuldade de dispor satisfatoriamente da força

Carijós, localizados no sul da Capitania de São

de trabalho. Em 1611, os principais da terra através

Vicente.

da Câmara da Municipal se opuseram abertamente contra a administração dos padres jesuítas sobre os índios aldeados. Como aponta a acta da Câmara de São Paulo de 15 de agosto daquele ano: “Aos 15 dias do mez de Agosto do Anno de 1611 nesta Villa de S. Paulo na Caza do Conselho della a requerimento de Dom Jorge de Barros Fajardo Procurador do Conselho [...] estando junto a maior parte do povo, e moradores, e homens da Governança da Terra [...] dizendo: [...] Que se não largasse o Dominio dos Padres mais do que somente doutrinarem-nos como Sua Magestade manda, e quando os ditos Padres os não quizerem doutrinar desta maneira que elles officiaes fizessem requerimento ao vigario desta Villa para pôr cobro nisso, o que se podia fazer facilmente(...)”14

O bandeirismo foi um fenômeno tipicamente paulista, a pé, a cavalo ou em canoas, os bandeirantes entravam pelo sertão em busca de riquezas e ultrapassavam a linha de Tordesilhas. Vale lembrar que durante o período da União Ibérica, a divisão estabelecida pelo tratado de Tordesilhas perdeu a validade, uma vez que todo o território estava sob o domínio espanhol. Do ponto de vista de sua organização, a expedição bandeirante era composta por brancos, mestiços e índios. O Armador era o líder responsável pela organização das expedições ao sertão, o qual fornecia dinheiro, equipamentos,

O surgimento das expedições sertanistas no Planalto de Piratininga Os gêneses das bandeiras paulistas estão diretamente ligados às entradas oficiais, que eram expedições organizadas pela Coroa portuguesa como o intuito de explorar o território da Colônia em busca de metais preciosos, como a expedição

índios e assumia todos os riscos da viagem, em troca da perspectiva de ganhar a metade dos cativos eventualmente presos. Sob seu comando, estavam os indígenas tupis que eram usados como batedores de caminhos, coletores de alimentos, guias e carregadores. O número de componentes de uma bandeira era variável, podia ser uma expedição de 15 a 20 e também podia chegar centenas de participantes.

14

PIZA, Antonio de Toledo. “Expulsão dos jesuítas e causas que tiveram para ella os paulista desde o anno de 1611 até o de 1640, em que os lançaram para fora de toda a capitania de S. Paulo e S. Vicente”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de S. Paulo. São Paulo: Typographia de “El Diario Español”. Vol. III, 1898. p.59.

Como vimos, os paulistas iniciaram as bandeiras com estabelecimento de guerra justa contras os índios Carijós, na década de 1580, no entanto, os


G N A R U S | 131 principais ataques dos sertanistas do planalto de

era de cercar a aldeia e convencer os nativos,

Piratininga aconteceram contra as missões jesuítas

usando de violência ou de ameaças.

espanholas, na região do Guiará (localizada no atual estado do Paraná). O sertanista Nicolau Barreto, em 1602, realizou o primeiro ataque. Nesse momento inicial, os moradores de São Paulo aprisionaram os silvícolas que não se encontram sob administração dos padres inacianos espanhóis.

Sete anos após dessa entrada sertanista liderada por Raposo Tavares na região do Guiára, a Acta da Câmara de São Paulo de 12/05/1635 aponta, para o citado ano, que as expedições bandeirantes intensificaram-se na região dos Patos. A Câmara deliberou que:

A presença dos religiosos da Companhia de Jesus

“Aos 12 dias do mês de maio da era de mil seiscentos e trinta e cinco, requerido pelo procurador das casas do conselho, um inventário da pólvora e chumbo que na terra houvesse, recebera um aviso que veio do capitão-mor Pero da Mota Leite, que põe seus interesses particulares, dava licença aos homens armadores, para irem aos patos e estas pessoas não levavam mais que pólvora, chumbo e correntes, (...) estando em auto de guerra indo mais de 200 homens aos ditos patos(...)”16.

não gerava nenhum tipo de empecilho para os interesses dos sertanistas paulistas, pois havia um grande contingente de nativos em aldeias livres. Esse quadro de não conflito entre os jesuítas e os bandeirantes no Guiará logo irá se modificar com o passar dos anos. A principal razão foi pelo pouco volume de índios não aldeados na região, graças aos efeitos acumulados pelas expedições de apresamento dos paulistas, as doenças contagiosas e o processo de aldeamentos. A partir desse momento, as maiores concentrações de indígenas encontram-se nas reduções jesuíticas. “Neste sentido, os paulistas passaram a assaltar as

Os escritos do padre jesuíta Montoya sobre o ataque dos bandeirantes na região do Guairá em 1636, dar-nos a dimensão de como eram compostas as tropas lideradas pelos bandeirantes paulistas. Em suas palavras, “(...) a voz anunciava que as gentes de São Paulo iam naquela direção, levando os índios a se defenderem, mas logo foram surpreendidos. A entrada na redução de Jesus Maria, encabeçada pelo ímpeto desbravador e apresador Antônio Raposo Tavares, deu-se no dia de São Francisco Xavier, ano de 1636, com 140 homens de armas, acompanhados de 150 tupi, todos bem armados com escopetas e vestidos com gibões, protegidos dos pés à cabeça contra as setas”.17

reduções não por motivos geopolíticos ou morais, mas, porque era justamente nelas que se encontravam

números

consideráveis

de

Guarani15”. O primeiro dos empreendimentos em larga escala, conduzido por Antonio Raposo Tavares, partiu de São Paulo em 1628. Essa bandeira iniciou suas atividades com uma certa cautela, o armador

O mapa a seguir ilustra as Entradas dos

da expedição estabeleceu um arraial às margens do Tibagi, na entrada do território do Guairá. A

sertanistas na região do Guairá, Tape e Uruguay:18

partir dessa base, os paulistas começaram a assaltar as aldeias guarani, logo apelando para as reduções. A estratégia mais comum dos paulistas

15

MONTEIRO, John Manuel Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. op. cit. 70-71.

16

Archivo Municipal de São Paulo. Actas da Câmara da Villa de São Paulo. São Paulo: Duprat & Cº, 1915. v. 4. p. 252-253. 17 MONTOYA, Antônio Ruiz de. Conquista Espiritual. Feitas pelos Religiosos da Companhia de Jesus nas Províncias do Paraguai, Paraná, Uruguai e Tape. 1º ed. Brasileira. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1985. p. 243 18 Fonte: Desenho J.J. Lopes. Apud LIMA, Sheila Conceição Silva. Rebeldia no Planalto: A Expulsão dos Padres Jesuítas Vila


G N A R U S | 132 defender as Missões, munindo os indígenas com armas de fogo, ao que era proibido. Com os índios aldeados armados, as missões puderam conter os bandeirantes por algum tempo. Além disso, os padres começaram a concentrar as reduções em locais mais inacessíveis, sobretudo ao longo dos rios Uruguai e Paraguai. Em 1638, no entanto, esse quadro desfavorável dos padres jesuítas espanhóis nesse conflito contra os sertanistas paulistas muda. Guerreiros guaranis trucidaram dezessete sertanistas de São Paulo e Até 1641, as sucessivas invasões haviam destruído boa parte das aldeias guarani e

tomaram outros dezessete cativos, a conhecida batalha de Caaçapaguaçu20.

virtualmente todas as reduções do Guairá. Desta forma,

milhares

de

cativos

guarani

foram

introduzidos em São Paulo, sendo ainda um número menor negociado em outras capitanias.

A derrota mais contundente, todavia, ocorreu em 1641, quando a vultosa bandeira de Jerônimo Pedroso de Barros esbarrou na resistência indígena em Mbororé. Após uma batalha aquática e

É o que mostra o crescimento da concentração

terrestre, os paulistas tiveram que bater em

dos índios arrolados nos inventários de bens de São

retirada. Derrotada no campo militar, a expedição

Paulo e de Santana de Parnaíba no período de

foi aniquilada de vez pela fome e pelas doenças21.

1620-1650.19

No ano seguinte, para ressaltar o simbolismo de tão importante evento, os índios de Mboreré

Década

Proprietários

Índios

Posse Média

regalaram um visitador jesuíta com uma peça de

1600-09

12

154

12,8

teatro na qual era reconstituída a heroica vitória

1610-19

49

863

17,6

contra os lusitanos. Ainda que algumas poucas e

1620-29

38

852

22,4

isoladas expedições tenha voltado ao território

1630-39

99

2804

28,3

guarani, o “desastre” de Mbororé marcou o fim de

1640-49

111

4060

36,6

uma época. É provável que este último fator tenha

1650-59

142

5375

37,9

sido determinante do fim das grandes expedições contra os povos guarani.

Diante dos constantes ataques, os jesuítas espanhóis resolveram solicitar assistência a Madrid e

Roma.

Inicialmente,

os

padres

jesuítas

conseguiram autorização do Rei da Espanha para

Contudo, a resposta dos jesuítas espanhóis não parou aí, eles, paralelamente, conduziram uma campanha contra os paulistas, propagando a imagem destes como um perigoso bando de 20

de São Paulo de Piratininga no Contexto da Restauração. op. cit. p.148. 19 Fonte: Inventários de São Paulo e Parnaíba

TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. História da Cidade de São Paulo. Textos literários em meio eletrônico. Disponível em: <http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action= download&id=6082#iii >. Acesso em: 7/04/2013. 21 TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. História da Cidade de São Paulo. op. cit.


G N A R U S | 133 ajuntou o povo, e, junto, o procurador do povo João Fernandes Saavedra, da janela da Câmara leu a última e final sentença da junta, do destino dos Padres da companhia. Desterraram a Companhia por amor do Papa e da virtude e liberdade dos índios [...] e assim ficando os oficiais da Câmara senhores de nossas chaves, casas, igreja e mais bens [...]. Este é o sucesso da expulsão dos Padres da companhia [...] e certifico e juro; in verbo sacerdotis e aos Santos Evangelhos, que tudo quanto aqui dito é verdade, e o jurarei as vezes que for necessário em juízo24.

desordeiros e foras-da-lei tanto no vaticano quanto na corte espanhola. Os jesuítas nessa intensa campanha não voltaram para América portuguesa de mãos vazias, eles conseguiram do papa Urbano VIII, a publicação no Brasil da bula papal de 1639, que afirmava a liberdade dos índios e excomungava aqueles que os cativassem e vendessem22. Esse documento, no entanto, não teve o resultado esperado pelos padres jesuítas, ao declarar livre o “gentio” da América e condenar à excomunhão todo aquele que o cativasse, a bula papal gerou revoltas e motins contra os padres da Companhia de Jesus na América portuguesa. Na capitania de São Vicente, os conflitos entre colonos e jesuítas acabaram ocasionando a expulsão destes da vila de São Paulo e Santos em13 julho de 1640, os padres inacianos foram obrigados a refugiar-se na capitania do Rio de Janeiro, sob a proteção do governador Salvador Correia de Sá. “Aos treze dias de julho, requereu-se que se desse a execução o que da vila de São Vicente, cabeça desta capitania viera determinado deitando fora desta vila os padres de companhia de Jesus para paz e quietação desta vila e capitanias pelas razões já alegadas e por outras mais que dariam a sua majestade e sua santidade”23

“A Arte da língua Guarani” de Montoya. Edição de 1724.

Expulsos da capitania de São Vicente pelos colonos locais e pelos oficiais camarários, por meio do Padre Jacinto de Carvalhais, os jesuítas não

Conclusão

deixaram de registrar sua interpretação sobre o

Identificamos, ao longo da nossa leitura, que o

episódio. “E assim, aos treze de julho, a uma sexta-feira, às duas horas da meia noite, mandavam os da Câmara de São Paulo tanger o sino, ao que se 22

Breve do Papa Urbano VIII, Comimissum Nobis, de 22 de abril de 1639, sobre a Liberdade dos Índios da América, Apud LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil – tomo VI , Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1943. p.624. 23 Archivo Municipal de São Paulo. Actas da Câmara da Villa de São Paulo. São Paulo: Duprat & Cº, 1915. v. 5. p. 35.

conflito entre os padres jesuítas e bandeirantes paulistas

estava

relacionado

às

estruturas

socioeconômicas do planalto de Piratininga, a qual estava intimamente ligada ao trabalho escravo indígena.

24

Fora

isso, percebemos

que

esta

Serafim Leite. História da Companhia de Jesus no Brasil. op. cit. p. 258 - 263.


G N A R U S | 134 territorial, com uma preocupação de defender as terras da coroa portuguesa, mas sim com o claro objetivo de conseguir uma maior quantidade de escravos guaranis para suas fazendas. Além disso, explanamos que os conflitos entre Bandeirantes e Jesuítas pelo gentio da terra naquela região só terminou quando os padres inacianos passaram equipar os índios com arma de fogo para defesa das reduções missionárias espanholas. A batalha de Caaçapaguaçu de 1638 e, sobretudo, a batalha de Mbororé em 1641, foram determinantes para o fim das grandes expedições sertanistas paulistas contra os povos guarani no sul da América portuguesa. Nessa perspectiva, observamos que a mão de obra

indígena

tinha

grande

significância

econômica e social na sociedade paulista no "Os Bandeirantes" (óleo sobre tela de Henrique Bernardelli - 1889)

período colonial e, principalmente, que os

escaramuça acabou envolvendo participação de

Tape e Uruguai não era para abastecer um suposto

outros atores e instituições, como a Câmara

mercado das fazendas açucareiras do nordeste

Municipal de São Paulo (atendendo os interesses

brasileiro, e sim, para suprir uma demanda interna

dos colonos paulistas), funcionários régios, e até

da capitania de São Vicente. Enfim, diante desse

mesmo o Papa Urbano VIII (na defesa dos padres

fato

inacianos).

encontramos elementos que permitem torná-lo

Também

realizamos

uma

breve

discussão

bibliográfica sobre a história colonial de São Paulo, com objetivo de refletirmos sobre a

milhares de escravos feitos na região do Guiará,

extraordinário

do

nosso

passado,

inteligível para o nosso leitor. Trazendo consigo assim uma compreensão da dinâmica e processo da nossa História colonial.

historiografia da temática e evidenciar que a nossa pesquisa

está

inserir

nas

renovações

historiográficas realizadas nos últimos anos sobre a temática. Apontamos que esses ataques sertanistas as reduções

jesuíticas

espanholas

não

foram

constituídos de objetivos geopolíticos ou expansão

Miguel Luciano Bispo dos Santos é Graduando do Curso de História na Universidade Gama Filho e Bolsista de Iniciação Científica do CNPq.


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