G N A R U S | 150
Coluna:
Fotografias da História
IMAGEM, INSTANTE E MORTE NA FOTOGRAFIA DE ROBERT CAPA Por Fernando Gralha
Morte de um miliciano legalista (Federico Borrell Garcia), 5 de setembro de 1936 (prata/gelatina, 28 x 38cm) - Robert Capa – International Center Photography Museum. Nova York, EUA.
G N A R U S | 151
R
obert Capa (1913-1954) era o pseudônimo
E Capa já era um aventureiro antes da fundação
do húngaro que se tornou cidadão
da Magnum, em 1931 fotografou Leon Trótski, em
estadunidense Endre Ernõ Friedmann. Sua
1936 junto com a namorada também fotógrafa
carreira tem início em 1931, mas suas aventuras que
Gerda Taro3 cobriu a Guerra Civil Espanhola, em
o transformam em um homem do mundo iniciam
1938 o conflito sino-japonês, em 1940 volta à
um ano antes, algumas complicações envolvendo
Espanha e após a tomada da França pelos nazistas
sua atração pelos meios culturais marxistas o
segue para os E.U.A. para trabalhar na Life,
obrigam a se exilar em Berlim, onde um ano depois
perambula por Inglaterra e depois Argélia e em
o nazismo e seu judaísmo o obrigam a abandonar
1944 cobre o desembarque da Normandia,
seu trabalho no “Dephot”, maior agência de
fotografa o dia “D” e produziu um dos mais ricos
imprensa da Alemanha no período e migrar para
discursos visuais da história. Dentre estas façanhas,
Viena e depois Paris, daí cria o personagem “Robert
talvez a mais marcante e com certeza a mais famosa
Capa”, fotógrafo estadunidense que cobre os
foi a fotografia que fez na cobertura da Guerra Civil
maiores eventos da época.
Espanhola, “Morte de um miliciano” ou “Soldado
Em 1947 juntamente com George Rodger, Chim Seymor e Henry Cartier-Bresson fundou a agência Magnum, que tinha por prática servir de intermediária entre fotógrafos e imprensa e por
caído”. A fotografia foi feita em 5 de setembro de 1936 em Cerro Muriano, sendo veiculada em 23 de setembro na revista francesa VU, e um ano após na revista estadunidense Time.
objetivo produções mais independentes e criativas.
A foto parece captar o instante preciso da morte
O grupo apresentou novos ideais no campo da
de um combatente em um cenário deserto,
fotografia de imprensa como a luta pela notícia de
desolado, aberto. A princípio a efígie realizada pelo
forma crítica e pela pauta fotográfica como
fotógrafo se estabelece indubitavelmente como
possibilidade de complementar à informação
um documento histórico através de sua própria
escrita. Passaram a exigir a posse dos negativos, o
natureza e intento como suporte visual do registro
crédito autoral do fotógrafo, a não alteração e/ou
de uma informação que apresenta à primeira vista
corte das imagens e que as legendas deveriam ser
uma historicidade sem grandes empecilhos à sua
produzidas pelos próprios fotógrafos. Cartier-
análise e identificação. O título e as informações
Bresson definiu bem a política do grupo:
com que a foto circulou tanto na já citada revista
“Formamos uma cooperativa em que podíamos
VU (“La Guerre Civile em Espagne. Comment ils
escolher os temas, recusando aqueles que nos
sont tombés, comment ils ont fui”), como em
propunham e não nos interessavam. Nesse sentido,
reprodução posterior na revista Life de 12 de junho
não éramos mercenários”.1 “Eu espero que o
de 1937 (“Robert Capa’s camera catches a Spanish
aspecto aventureiro da agência Magnum exista
soldier the instant he is dropped by a bullet through
sempre; é preciso ser aventureiro em uma
his head in front of Cordoba”) além de outras como
atividade”. 2
a Paris-soir (28-06-1937) e Regards (14-07-1937)
1
fotos que hoje marcam a memória daqueles eventos. Morreu acidentalmente atropelada por um tanque no fronte de batalha durante um ataque das tropas franquistas.
CARTIER-BRESSON, 1986, p. 122 Idem, 2004 3 Gerda Taro ou Gerta Pohorylle (1910 - 1937) foi fotógrafa, jornalista e anarquista. Registrou a Guerra Civil Espanhola em 2
G N A R U S | 152
Robert Capa, durante a cobertura da Guerra Civil Espanhola, em 1937; foto de Gerda Taro
que reproduzem a informação imprimem à foto a
dessa que foi sua primeira incursão como fotógrafo
condição de um legítimo documento histórico.
na guerra, e que essa interpretação teria sido
Porém algumas dúvidas foram postas em relação à
realizada pelos editores em Paris, acarretando tal
imagem, o primeiro a questionar foi Philip
dúvida.
Knightley no livro “A Primeira Baixa” (1970), o
Universidade
historiador Mario Brotons colocou o anarquista
Susperregui no livro "As Sombras da Fotografia",
Federico Borrel Garcia4 como o soldado atingido,
argumenta que a foto teria sido montada a cerca de
porém pairam dúvidas sobre a identidade do
60 km de Cerro Muriano, em Espejo. O autor
combatente. Miguel Pascual, historiador espanhol,
assegura que, de acordo com suas investigações, e
acredita que a foto é uma montagem, pois os
assistência de historiadores da região, o local não
negativos nunca foram encontrados. Cyntia Young
poderia ser Cerro Muriano, pois esta era uma área
(Centro Internacional de Fotografia) cita que
de floresta centenária, enquanto que Espejo se
Robert "legendou muito poucas de suas imagens"
identifica de forma semelhante com a paisagem
4
(FIJL). Com o início da Guerra Civil Espanhola juntou-se a Coluna Alcoiana para defender a República Espanhola contra as forças nacionalistas fascistas de Francisco Franco.
Federico Borrel Garcia foi um anarquista espanhol combatente republicano da Guerra Civil Espanhola. Trabalhou num moinho em Alcoi e fundou junto com um grupo de anarquistas locais a Federação Ibérica da Juventude Libertária
O
professor do
País
de
Comunicação
Basco,
José
da
Manuel
G N A R U S | 153 reportada, além do que, Historiadores afirmam que
– Robert Capa e o miliciano abatido na Espanha:
não ocorreram combates no princípio daquele mês
sugestões para um estudo histórico”,6 que aliás nos
em Espejo. Ainda segundo Susperregui, a hipótese
serviu muito aqui.
de que o tiro foi disparado por um franco-atirador, igualmente é falsa, porque a distância entre os lados da guerra era muito grande para que possível o tiro, assim como não há constatação de francoatiradores na região; além do mais, Robert Capa em algumas entrevistas afirmou ter sido uma rajada de metralhadora que atingiu o soldado.5 Um outro grupo ainda defende que a foto tenha sido feita por sua companheira, a alemã Gerda Taro.
A célebre fotografia de Robert Capa mostra o instante em que um soldado espanhol é abatido por um tiro. Se ao mesmo tempo é uma efígie chocante porque prolonga ante ao nosso olhar o doloroso momento da morte, também nos informa sua ação, a de um soldado que cruza um espaço tenso, e que logo em seguida tombará sobre o terreno. É um instantâneo que nos livra da carga simbólica da pose e das disposições cenográficas, abandonando
Desta forma, para além do seu caráter
a envergadura discursiva da imagem pela
documental a foto de Capa se insere na discussão
espontaneidade do congelamento do tempo. O
da crítica ao documento, do problema da
instante se desenvolve em uma linguagem própria,
autenticidade, problema extenso neste caso da
no qual sobrevém a inserção de um novo
fotografia de Capa portanto, como não é aqui nosso
componente
objetivo além das limitações de espaço para tal
observar em minúcias a disposição, a anatomia e a
discussão, nos limitaremos a uma breve análise da
relação do sujeito com o espaço sem apagar o
foto como instantâneo, mas para uma análise mais
sentido do movimento, sendo um instante modelar,
aprofundada recomendamos o artigo de Ulpiano
significativo, uma representação do tempo num
codificador
que
nos
consente
Bezerra de Meneses “A fotografia como documento
5
Schwartz, Christian. (tradução) (1 de setembro de 2009). «A sombra de uma dúvida». The New York Times. Nova Iorque: Gazeta do Povo. Consultado em 28 de agosto de 2013.
6
Para referência completa ver “Referências” no fim deste artigo
G N A R U S | 154 instante-síntese do movimento que não poderá ocultar totalmente, ainda que não o
contenha.7
A foto em análise apresenta muitas características que evidenciam sua condição de instantâneo, não
enquanto seu corpo desaba, a imagem mostra o momento da morte, e sua proximidade ameaçadora nos espanta e choca por ilustrar o quão violenta e súbita a morte e a guerra podem ser.
está centralizada, suas margens inferior e esquerda
Robert Capa morreu em 25 de maio de 1954. Sua
cortam respectivamente os pés e parte da arma do
morte foi um funesto resultado de seu lema, a mais
soldado, não se pode dizer também que a nitidez
célebre de suas frases: “Se suas fotos não estão boas
seja uma característica, a cabeça está meio que
o suficiente, você não está perto o suficiente”.
mais escurecida, com exceção da orelha que está
Morreu ao pisar uma mina terrestre cobrindo a
extremamente iluminada, além do que o gorro que
Guerra da Indochina para revista Life. Seu corpo foi
o soldado portava aparece mais como um coque de
encontrado com as pernas destroçadas. A câmera
cabelo, portanto os atributos da mesma não deixam
continuava entre suas mãos.
dúvida de que o fotógrafo surpreendeu o fotografado em seu momento derradeiro, no instante fatal. As câmeras na época não eram
Fernando Gralha é Mestre em História pela UFJF, Doutorando em História pela UNIRIO, professor das Faculdades Integradas Simonsen e editor coordenador da Gnarus Revista de História.
automáticas, o foco meio embaçado aumenta a tensão e o impacto da imagem. A foto marca o momento em que Capa se transforma em fotógrafo de guerra, ele opta por fazer a foto a despeito das circunstâncias trágicas. Mas a foto fala mais, podemos nos interrogar sobre o quadro da ação, e este nos diz muito, o espaço é aberto, vasto, foi este um dos elementos que levaram às dúvidas sobre sua autenticidade. Peritos examinaram as montanhas ao fundo para esclarecer o local exato; o declive triangular da base na foto apresenta uma relva rasteira e seca, com algumas hastes que evidenciam uma colheita recente. A longa sombra atrás do soldado indica que a fotografia foi feita no fim da tarde, o soldado, desequilibrado pelo projétil, braços e peitos abertos cai em direção à própria sombra, que macabramente em sua forma alongada e escura alude a um túmulo aberto que receberá o soldado morto. Na margem esquerda, o rifle cai da sua mão
7
ENTLER, 2007.
Referências: AVANCINI, Atílio. A imagem fotográfica do cotidiano: significado e informação no jornalismo. In Brazilian Journalism Research, vol. 7, nº1, p. 50-66, 2011. Disponível em http://bjr.sbpjor.org.br/bjr/article/view/285/267 (acessado em agosto de 2016). BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Lisboa: Edições 70, 1981. CARTIER-BRESSON, Henri . L´Instant Décisif. Revue Les Cahiers de La Photographie, Paris, numéro spécial à Henri Cartier-Bresson, p. 9-20, 1986. CARTIER-BRESSON. Henri, GUERRIN, Michel: La
Photographie, une suite de coïncidences merveilleuses. Le Monde, Paris, 6 ago. 2004. DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico e Outros Ensaios . Campinas:Papirus, 1994. ENTLER, Ronaldo. A fotografia e as representações do tempo. revista Galáxia, São Paulo, n. 14, p. 29-46, dez. 2007. HACKING, Juliet. Tudo sobre fotografia. Rio de Janeiro: Editora Sextante, 2012. MENESES, Ulpiano Bezerra de. A fotografia como
documento – Robert Capa e o miliciano abatido na Espanha: sugestões para um estudo histórico . Tempo, Rio de Janeiro, n. 14, p.138-149, jan. 2003. PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1976. SONTAG, Susan. Sobre Fotografia. Companhia das Letras, 2004.
São
Paulo: