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Coluna:
PERRAMUS - DENTE POR DENTE Por: Renato Lopes Carlos Gardel canta cada dia melhor” Lenda popular (principalmente na Argentina e no Uruguai).
C
arlos Gardel (1890 – 1935), consolidou-se
Escayola e de Maria Lelia Oliva (reza a lenda, tinha
como um dos maiores nomes da música
apenas 13 anos quando deu à luz a Gardel); outra
mundial, um ícone latino americano e um
versão sobre sua origem no leva para o outro lado
mito argentino. Não são poucos os predicados que
do atlântico, no Velho Mundo, em Toulouse, na
alçaram Gardel a esse olimpo.
França, e o colocam como Charles Romuald Gardès,
Não é errado dizer que a mística em torno da figura de Gardel era alimentada ainda em vida, começando pela sua própria origem. Como todo bom mito, Gardel tem sua origem perpassada por diversas histórias e casos:
desde seu provável
nascimento na província de Tucuarembó, no Uruguai, seria filho do líder político local Carlos
filho de pai ignorado e de Berthe Gardès. Sempre muito esquivo a esse assunto, Gardel, numa dessas muitas ironias do destino que a História tenta explicar, parecia prever seu futuro e, ao invés de tentar dar um sentido lógico a toda essa questão (se é que ele sabia realmente sua verdadeira origem), preferiu trilhar a senda mítica, deixando de procurar um sentido para sua vida (a partir de sua
G N A R U S | 156 origem) e fez aquilo que reza a
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cartilha dos candidatos a mito,
tentativa
bem
sucedida,
optou pela experiência de
criam
uma
história
estar vivo, sem mais detalhes,
entrecortada
sem mais sentidos originários.
personagens históricos reais
E com sua voz e sua música
e situações verossímeis, mas
embalou e inspirou muitos a
que, segundo o autor nos
fazerem
coisa,
alerta “é ou pretende ser
américa latina e mundo afora.
real”. Juntam tudo isso em
a
mesma
Numa
por
reconstituir o sorriso do povo
artística que Gardel teve um
argentino.”
fim prematuro, durante sua
E
assim
chegamos a história em
turnê por Medellín, o avião
quadrinhos
caiu durante a decolagem, companheiro musical de longa
anos.
uma “empresa simbólica para
Foi no auge de sua carreira
além de Gardel, morreu seu
terríveis
“Perramus
–
Dente por Dente”. Autores: Juan Sasturaín e Alberto Breccia.
Antes um esclarecimento –
data Alfredo Le Pera. O desastre só acentuou a aura
Perramus é a marca da capa de chuva usada pelo
do mito. Os velórios de Gardel por si só são uma
personagem principal, cujo nome também não
epopeia, seu corpo passou por Nova York,
sabemos em momento algum da trama. Perramus já
Montevidéu e Buenos Aires. Este último realizado
havia protagonizado outras três histórias El piloto
no Luna Park, com a presença de milhares de
del olvido, El alma de la ciudad, La isla del guano.
pessoas. Somente quase vinte anos depois a
Em “Perramus – Dente por Dente” a última história
Argentina veria um funeral tão disputado: o de Evita
protagonizada pelo personagem, e a única lançada
Perón.
no Brasil, vemos Perramus e seus companheiros,
Gardel encantou por sua voz, eternizou diversos Tangos e Milongas, imprimiu um estilo de vida e tem como marca registrada um famoso sorriso: sereno, feliz, sedutor, convidativo, pleno. Gardel tinha talento tanto para sorrir quanto para cantar. E quem diria que um sorriso seria o motor de uma empresa simbólica ao redor do mundo. O escritor argentino Juan Sasturaín e o desenhista uruguaio Albero Breccia (famosos nomes dos quadrinhos latino americanos), pareciam querer elevar a aura gardeliana a um outro patamar, ao mesmo tempo em que refletiam sobre uma Argentina que saia de uma sanguinária ditadura de
convocados por um Jorge Luís Borges que venceu o Nobel de Literatura, para uma missão: restituir a plenitude do sorrido do povo argentino. E que sorriso melhor que o de Gardel para trazer de volta a plenitude desse povo. A história, embora conte com uma miríade de personagens reais, como já dito anteriormente, não se pretende ser 100% real e por isso mesmo faz uso de algumas liberdades. A trama se passa em algum ponto entre 1985 e 1988, período no qual já ocorrera a redemocratização no país. Borges, não só venceu o Nobel de Literatura como ainda está vivo na história (Borges faleceu em 1986). Ao lado de Borges na organização da empresa simbólica
G N A R U S | 157 temos um ascendente Gabriel Garcia Marquez que
e de referências, que vão das letras dos tangos de
colhe os louros do lançamento de seu maior clássico
Gardel, passando por páginas de “Cem Anos de
“Cem Anos de Solidão”. Ainda temos a presença de
Solidão”,
Frank Sinatra, Fidel Castro, Maria Kodama
emprestando seus gestos e suas palavras, “Perramus
(companheira de Borges), o maestro argentino
– Dente por Dente” imprimi um ritmo aventureiro,
Osvaldo Pugliese.
mas sem nunca perder o foco do que realmente
O Sorriso Perdido Vamos a empresa simbólica. Gardel teve seu túmulo violado, seus dentes foram roubados e negociados no mercado negro. Esses dentes estão espalhados entre a América do Sul, Central, Europa e Ásia. O escritor Gabriel Garcia Marquez conseguiu reunir provas e pistas de como conseguir chegar a esses dentes. Só precisava de alguém para colocar a mão na massa. O papel de Borges é recrutar Perramus e seus amigos, Negro Canelones e Inimigo. Através de um inteligente jogo de pistas
com
personagens
históricos
reais
importa: a jornada. Seguindo a trajetória de históricas clássicas do cânone ocidental, mais precisamente a “Odisséia” de Homero e a “Itaca” de Kavafis (constantes referências a longo da trama), “Perramus...” não está preocupado com a conclusão da jornada, ou em seu desfecho evidentemente positivo, mas sim com o próprio desenrolar da história. O que se pode dar aos náufragos, seja da História, do pensamento, da memória, se não a jornada. Vamos a algum lugar? Gostamos de pensar que sim. Mas quando
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aceitamos que o lugar é o caminho, entendemos
A história de Perramus forja uma adesão de
que enquanto estivermos na senda, teremos
Borges que na realidade nunca escondeu seu
sempre a algo a aprender. O fim da senda é o fim do
desprezo por Gardel. Adesão essa em nome do
aprendizado. No final nunca estamos certos para
reconhecimento da plenitude contrastante de seu
onde ir, mas se há o caminho, porque não percorrer.
sorriso, que contrastava com a melancolia, paixão e
Falando enquanto historiador, vivemos o eterno
frustração de seus tangos e milongas.
dilema dos rumos da História. Se ela não está num
E assim voltamos ao nosso paralelo inicial: aquele
plano cartesiano, se ela não é, seja por uma questão
que resolve viver a experiência de estar vivo, como
metodológica ou de conteúdo, escatológica, onde
o fez Gardel, é o Odisseu que sabe buscar no
está o seu sentido? Creio que nos damos essa
caminho, e não no final, o sentido de sua jornada.
resposta sempre que nos permitimos ao exercício
Gardel foi o mito e o Odisseu por excelência.
da perspectiva histórica, vamos e voltamos com ela, lemos suas representações e o afim sempre aceitamos “por hora é isso”. Às vezes é um exercício de sobrevivência, não nos deixarmos naufragar. Mas tal como o Odisseu, também não temos domínio sobre os caminhos (e descaminhos) que o estudo da História pode nos conduzir. Só queremos ter certeza que, quando a nossa história cessar, tenhamos sido menos que um naufrago e mais que um “Nemo”.
Renato Lopes graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestrando em História pela Unirio, pesquisa Cinema na América Latina e colunista especialista em quadrinhos da Gnarus Revista de História.