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Resenha
UM CONVITE A LEITURA DE “O Nome da Rosa”. Por Cyndie Esquivel
ECO, Umberto. O Nome da Rosa. Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1983.
U nascido
mberto Eco é
medievo,
um
sazonal e muito mais)
escritor italiano,
em
1932
período
para compor sua obra e e
enriquecê-la de sutilezas
falecido em 2016. Sua
ímpares. Eco, depois do
vasta
formação
inaugural “O nome da
(semiólogo,
linguista,
Rosa”, escreveu outros
acadêmico e filósofo) é
conhecidos
refletida na maestria das
como “O pêndulo de
suas obras, ricas em tantos
Foucault” e “Cemitério
detalhes que nos permite
em Praga”, além de
se transportados para elas.
vários
“O nome da Rosa” começa
diversas
a ser escrito em 1978 e só
conferindo ao autor a sua
é publicado em 1980,
notoriedade assim como
nesse intervalo, o autor
sua multiplicidade.
busca múltiplas
referências (nomes
de
clérigos, arquitetura do
romances
ensaios
sobre
temáticas,
A obra se passa na primeira século
metade
do XIV,
G N A R U S | 160 especificamente em Novembro de 1327, na Itália.
pós-escrito, o autor diz que sua motivação partiu de
Começa com Guilherme e seu pupilo, Adso,
sua “vontade de envenenar um monge” (p. 15).
chegando à Abadia para aguardar uma conferência
Podemos pensar o quão icônico isso se torna
entre monges franciscanos e beneditinos. Ao
quando sabemos da sua intenção frustrada de
chegar, Guilherme, conhecido pela sua sagacidade
acesso à documentação em posse da Igreja. O
crítica, é recebido pelo Abade, que lhe conta sobre
tempo corrido (natural) também foi pensado de
uma morte atribuída a fatores místicos, mas que
forma coesa, dando veracidade aos detalhes que
eram mais terrenos que o suposto. Seguidas mortes
culminaram em uma real possibilidade de a
acontecem, e o pavor interno cresce (juntamente
narrativa ser passada em novembro, já que era um
com a crença na ação diabólica) enquanto
mês mais frio e, por conta disso, o mês escolhido
Guilherme tenta desvendar o que realmente
para abate de porcos (um dos monges é encontrado
acontecera. Em suas investigações, percebe que os
mergulhado em sangue de um suíno abatido). Dado
mortos culminam para um fator em comum: os
o exemplo (dentre tantos outros), evidencia a
livros. Com essa descoberta, Guilherme tenta
cautela com detalhes que montam uma história
adentrar na biblioteca. Ao ser confrontado com a
possível de ter acontecido na realidade da época
resistência à sua entrada, percebe que a motivação
que foi escolhida.
dos crimes está lá. Nesse interim, a Inquisição chega para condenar o (falso) culpado por chamar o Diabo para a Abadia. O inquisidor, Bernardo Gui, e Guilherme possuem um passado desfavorável ao franciscano, mesmo assim, Guilherme não se limita (desta vez) a concordar com a Inquisição. Ao manter as investigações, descobre que um livro perigoso estava despertando a curiosidade dos monges e, por isso, foi envenenado, visando que os monges que haviam lido suas páginas, não pudessem compartilhar o seu conteúdo. Ao final, Guilherme confronta Jorge sobre o teor do livro, e este foge. Jorge põe fogo no livro e, acidentalmente, em toda biblioteca. Guilherme prova então que não foi o Diabo e sim receios religiosos que instigaram as mortes.
Outra questão externada na obra é o embate entre conhecimento e fé. O livro nos mostra os limites de ambos e a maneira que devem ser geridas, visando ao bem maior (a permanência da crença). O conhecimento, na obra, aparece como algo a ser conquistado, contudo não estimulado. Nos capítulos finais, é dito que o conhecimento deve ser repassado, repetido e não perscrutado, isso porque a fé deveria fazer o papel de estimular a busca por Deus, não o saber. Até mesmo a escolha dos personagens (e suas características) remete ao que era pensado sobre tais conceitos, aqueles que escolheram o viés do “cognoscere” eram o monge franciscano (pobre e com passado manchado por heresia, segundo a Inquisição) e os monges que morrem, logo pessoas que foram “marcadas” por
O autor foi muito perspicaz em inúmeros aspectos
conhecer. Enquanto os personagens de maior fé se
desenvolvidos com maestria. Primeiramente, a
mostram como tementes, senis (até certo ponto) e
própria escolha do tempo em que se passava o
incrédulos frente ao motivo secular das mortes.
romance: a era medieval. Tratar sobre obscuridade
Acreditamos que o autor foi muito sensível ao
de conhecimento e sobre receio às práticas
manter o diálogo fé vs. razão nos detalhes, assim
mundanas não poderia ser em outra época. Em seu
como nas evidências. É muito significativo que o
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questiona. Os monges que morrem, são aqueles que
cego, enquanto o personagem mais racional e
leem o livro proibido de Aristóteles.
terreno seja franciscano.
De forma sutil, o autor traz o destino daqueles
A escolha psicológica dos personagens causa
que queriam conhecer outra fonte além daquelas
muita reflexão também. A narração é feita por Adso
que estavam à mostra, ou seja, não satisfazia mais a
beirando os oitenta anos, em reminiscência dos
restrição imposta do que conhecer. Encaramos a
seus dezoito anos. Acredito que dois personagens
própria
se revelam: o Adso jovem, que vivenciou com pouca
“animado”, ela é a motivação de conquista de
experiência de vida e que reagiu de forma
Guilherme tanto quanto uma mocinha virginal seria
emocional devido a esse amadorismo, e existe
para um galã. A biblioteca representa muito mais
também o Adso idoso, mais sábio e capaz de
que o local onde os livros estão, ela é a “mocinha”
entender o que se desenvolveu como Adso jovem.
proibida que não pode ser violada. A escolha de
Encaramos como dois personagens distintos que
suas características evidencia o caráter múltiplo
compartilham o nome e a memória, mas que
que o autor escolheu em lhe atribuir, é erguida em
vivenciaram a história de formas diferentes, por isso
forma de labirinto, ora, só nesse sentido já há muito
se tornam duas pessoas com duas histórias, a vivida
a se dizer. O labirinto, por essência, é um local onde
e a refletida (que foi contada). Há também a figura
mais de um caminho leva ao escopo, exatamente o
de Guilherme, o retrato do temor clérigo na
oposto do proposto pela fé, onde Deus é o único
persona de um integrante clerical. A sua
caminho. A biblioteca ser fechada também nos
perspicácia peculiar e aristotélica traziam, em
mostra o caráter oculto que esses livros deveriam
essência, a racionalidade temida pelos devotos
ter, eles estão lá tão somente para não estarem em
cegos da fé. Guilherme trazia consigo mais livros
circulação.
que emoções e fica muito claro que essa combinação vestida de batina era algo a ser temida, afinal a parceria da fé é a leitura emocionada (e temida) de um livro (a Bíblia) era o almejado e não sua leitura crítica. Já Jorge, o mais icônico em nossa opinião, é o monge cego que protege a biblioteca e que se revela o assassino dos outros monges. Mais que elucidar a sua fé na cristandade, a sua personagem emerge a característica motriz da fé: o temor. Jorge condena os curiosos pela leitura de um livro de Aristóteles que exalta o riso. Ao dizer que a fé só se sustenta com o medo, ele mesmo mostra seu temor ao mundano, ao corruptível. O cego personagem (também o personagem cego, não por acaso) nos remete a pensar sobre onde é o lugar de quem critica, de quem é curioso, de quem
biblioteca
como
um
personagem
Uma outra questão levantada é a figura da mulher, comparada ao demônio várias vezes, seja com passagens bíblicas ou na fala dos personagens (Ubertino e Bernardo Gui, por exemplo), o que nos permite ressaltar, mais uma vez, a preocupação do autor em mostrar o posicionamento eclesiástico com relação ao mundano e também a possiblidade de traçar um paralelo com a frase de Guilherme a Adso, ao dizer que não acreditava que Deus fosse capaz de criar uma criatura tão vil. Mais uma vez, racionalizava palavras bíblicas e emitia um discurso próprio. O riso é o vilão, segundo Jorge, já que entrega a quem ri um desligamento dos temores e, para ele, a fé não se mantém se o fiel não tiver o que temer.
G N A R U S | 162 São exemplos de como Umberto Eco nos mostra um
A obra de Eco, para nós, é completa e possibilita
pavoroso medo da Igreja como corriqueiro. A fé
inúmeros questionamentos históricos, sociais,
não podia caminhar ao lado daqueles que não
filosóficos e tantos mais. “O nome da Rosa” é um
temem, daqueles que se entregam ao prazer, pois
livro cheio de referências e é capaz de conduzir o
assim não teriam medo do Diabo e, por isso, não de
interesse do leigo e do letrado, já que abarca tanto
devotariam a Deus.
a escrita voltada para o mistério das mortes, quanto
Por fim, Umberto Eco foi capaz de descrever com primazia as discussões entre franciscanos e
ricas minúcias cheias de significados que deleitam aqueles com um olhar mais detalhado.
beneditinos, que caracterizava o período tanto quanto a Inquisição. Franciscanos acreditavam que a pobreza de Cristo não era representada pelo
Cyndie Esquivel é graduada em História e graduanda em literatura pelas Faculdades Simonsen e pesquisadora da Gnarus Revista de História.
esbanjamento da Igreja. Dentro desta questão, o autor nos traz a consciência do enorme degrau entre o pobre cristão e o rico que espalhava a fé.
Mapa do mosteiro imaginado por Eco.