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Artigo
O CULTO À ANCESTRALIDADE NO EGITO ANTIGO: UMA ESTRUTURA AFRICANA. Por Claudio Lourenço
M
uita confusão surge ao se estudar o
as necessidades de seu tempo, cada estrutura
sistema
O
cultural é particular e deve ser entendida dentro
conceito de rei divino, o culto a
de seu próprio contexto. Tendo como base esses
religioso
egípcio.
diversas divindades, o relacionamento entre os
princípios,
a
cultura
egípcia
deve
ser
vivos e os que passaram para o além-vida são
compreendida dentro de seu lugar e momento
motivos de incompreensões e visões erradas
histórico e não através de estruturas de outros
sobre as crenças dos antigos egípcios. Parte
povos e, principalmente, das dos dias atuais.
desses erros é se querer compreender fatos do passado tendo como base conceitos das sociedades atuais, caindo no tão funesto anacronismo. Outro fator é se querer ver o Antigo Egito como uma civilização à parte do local onde ela se encontra: a África. O antropólogo Lévi Strauss desenvolveu o conceito de estruturalismo em meados da década de 1950, onde dizia que a cultura de um povo é desenvolvida de acordo com suas
A dispersão do homem a partir da África.
necessidades em dado local e momento
A África é o continente original da espécie
histórico. Não há cultura superior ou inferior – o
humana, tendo de lá migrado os grupos humanos
que retirava as bases do racismo científico, ou
que iriam ocupar todos os territórios do globo. As
darwinismo social -, mas culturas diversas. Mais
estruturas religiosas primordiais que aí surgiram
importante, a cultura de uma sociedade não
irão acompanhar esses grupos migrantes e se
pode ser medida através de outra, pois sendo
desenvolver em todas as partes por eles
estruturada por um grupo social de acordo com
G N A R U S | 140 ocupadas. A primeira forma de compreensão
velhos, os ancestrais que governam mesmo as
espiritual desenvolvida pelos homens foi o
forças e elementos da natureza.
contato consigo mesmo. Os homens antigos perceberam-se como parte integrante da natureza e refletem sobre a possibilidade de a vida e a consciência não estarem limitadas ao corpo material. Assim como o vento, que é invisível, haveria uma parte do ser que também não poderia ser vista ou tocada, mas somente sentida, percebida. Essa parte do ser habitava o corpo e expressava-se através dos pensamentos e sentimentos. Quando o corpo morria, essa parte
imaterial
desprendia-se
dele,
mas
continuava existindo e podia – e acreditava-se que certamente fazia – contatar aqueles que ainda estavam vivendo ligados a um corpo. Esses seres espirituais possuíam duas características fundamentais que irão fundamentar seu culto: eles haviam adentrado o mundo das energias que governam a natureza, sendo capazes de controlá-las e, ainda mantendo contato com os vivos, sendo seres poderosos e sábios, poderiam auxiliar o desenrolar dos eventos sociais de forma mais harmoniosa e eficaz.
universo, sobre tudo que o cerca, observando que os animais, plantas, rios e mesmo ele próprio tem um nascimento, uma origem, ele imagina que todas as coisas que existem assim o tiveram. Ele imagina que houve uma força criadora que a tudo trouxe existência. Ele imagina, também, que aquela sua parte imaterial, seu eu espiritual, foi algum
momento
estruturas religiosas mais arcaicas através dos modelos que nos foram legados pelos gregos. A diferença fundamental é que os gregos acreditavam haver um grupo de seres à parte da humanidade, composto por indivíduos, que embora possuíssem qualidades humanas, eram dotados de poderes sobre-humanos, os deuses. Já outros povos, que mantiveram as estruturas religiosas originais, não creem em deuses como uma classe separadas, mas sim em ancestrais poderosos e divinizados. A compreensão dessas duas vertentes de pensamento faz toda a diferença quando se procura compreender as estruturas religiosas das sociedades e, neste caso, do Egito Antigo. Logo de início, precisa-se compreender que o que é conhecido como Egito faraônico surgiu através da união sucessiva de diversos grupos que habitavam a região do Nilo. Esses grupos - que se unem ou são militarmente unidos em dois grupos, o Alto e o Baixo Egito, para logo em
Quando o homem começa a refletir sobre o
em
A confusão surge quando se tenta entender as
do
tempo
criado.
Construindo um esquema sobre esse processo criativo universal, imaginou que alguns seres foram criados juntamente com todas as coisas da natureza. Tais seres foram os primeiros a governar o mundo, sendo os espíritos mais
seguida se unirem em um só Estado centralizado – possuíam cada qual sua mitologia. Tais mitologias tiveram que ser unidas em um corpo único, mas que em muitos casos mantiveram divergências entre um nomo e outro. Segundo o mito egípcio, o espírito original, Atum, gera sozinho dois filhos, Shum e Tetnuf, os princípios do movimento e da umidade. Shum e Tetnuf se unem e têm um casal de gêmeos, Geb, a terra, e Nut, o céu. Enamorados, Geb e Nut se unem e Nut engravida de quatro filhos: Osiris, Isis, Seth e Nefts. Ainda no ventre da mãe, Osiris e Isis se apaixonam, se unem e Isis dá à luz Hórus,
G N A R U S | 141 que nasce sob a forma de um falcão e, irrompendo o ventre de Nut, voa para os confins do universo, conhecendo todas as coisas. Os filhos de Nut e Geb nascem e Osiris, casa-se com Isis e recebe o governo da terra negra às margens do Nilo (o kemet), enquanto Seth casa-se com Nefts e recebe o governo das terras secas e vermelhas do deserto (o desret). Invejando o reino fértil do irmão, Seth arquiteta um plano para destronar Osiris e tomar seu reino. Ele mata Osiris, trancando-o em uma caixa que é atirada no Nilo. Isis sai em busca da caixa e a encontrando usa magia para ressuscitar o marido. Ela se une sexualmente a ele e engravida de Hórus, que ressurge como um homem. Seth descobre que Osiris está vivo, o encontra e esquarteja. Isis reúne as partes e novamente o ressuscita, mas ele decide viver no outro mundo (o mundo da vida, o mundo espiritual que se encontrava
abaixo
do
mundo
material),
tornando-se o senhor dos mortos, o senhor dos espíritos. Hórus cresce e se torna um grande guerreiro. Sua mãe lhe conta a história no assassinato de seu pai e Hórus decide vingar o pai e destronar o usurpador Seth. Ele une os povos do Egito e liderando um grande exército, vence Seth e se torna o primeiro rei do Egito.
A batalha entre Hórus e Seth. A partir deste mito, justificava-se o poder do rei do Egito. Em primeiro lugar, o espírito primordial Atum foi sincretizado com o deus supremo da cidade que estava no governo. Em Heliópolis, ele foi identificado com Rá, o deus-sol. Em Mênfis, com Pitah, o criador; em Tebas, com Amon, que também foi unido sincreticamente a Rá; em Amarna, sob o governo de Akenaton, com Aton, o sol. Dizia-se que o rei recebia a energia do deus supremo, sendo seu escolhido para ser o ocupante do trono de Hórus. A ligação com o deus supremo e com o patrono do trono do Egito, tornava o rei divino e o legítimo herdeiro do trono. Isso é ancestralidade. Esse mesmo sistema de crenças pode ser encontrado entre outros povos africanos até hoje. Dentre os iorubas, o rei tem ligação ancestral direta com o patrono da cidade ou do trono. O faraó era tanto divino quanto humano. Como
O faraó Seth homenageia Hórus e é amparado por Isis.
divino, era o representante direto das divindades no mundo, seu sumo sacerdote e controlador das forças da natureza. Como humano, era o pai de
G N A R U S | 142 todos os homens, responsável por suprir todas as
faraó deveria ter um tratamento especial após
necessidades da sociedade. Ele era o responsável
sua viagem para o outro mundo, devendo seu
pela manutenção de maat, a ordem cósmica.
culto ser mantido através das eras para que a
Os egípcios acreditavam que o poder do faraó era tão grande e ele era tão digno de reverência que não se podia nem mesmo chegar perto dele e muito menos tocá-lo ou em um de seus instrumentos e roupas. Caso isso acidentalmente ocorresse, somente o imediato perdão real evitaria a morte da pessoa. Dizia-se que a serpente que havia à frente da coroa real, o Uajt, cuspia o fogo solar sobre quem se aproximasse muito do rei sem autorização. Não se olhava diretamente para o rei e nem se lhe falava diretamente; ninguém falava ao rei, mas, sim, na presença do rei. Nem se referia diretamente ao rei; não se dizia “O rei ordenou.”, mas “Alguém ordenou.” Ou “A Grande Casa ordenou.” (Grande Casa é, em egípcio, per-aa, que originou a palavra faraó). Nem mesmo o rei falava diretamente de si como pessoa humana, não dizia “Eu desejo.”, mas “Minha Majestade deseja.”. Esse imaginário de divindade régia pode, novamente, ser observado em outros locais a África. Novamente, entre os iorubas, as pessoas para falar ao rei, precisam se prostar no chão,
harmonia
fosse
preservada.
estruturas
funerárias
colossais,
Construiu-se como
as
pirâmides, ou tumbas muito bem protegidas para abrigarem seus corpos. Templos de adoração foram construídos em associação com essas tumbas, onde o culto poderia ser mantido por um grupo seleto de sacerdotes. Tão importante era esse culto que ainda durante a XVIII dinastia o culto aos reis da IV era mantido. No complexo de Karnak está desenhado uma imagem do faraó Set I prestando o culto a todos os faraós anteriores, desde Narmer, enquanto seu filho e herdeiro, Ramsés (que se tornaria o grande Ramsés II), lê em um longo papiro os nomes de todos eles. Está escrito no mural que Set garantiria seu devido culto. O vizir e arquiteto real de Djoser, o famoso Imhotep, foi cultuado como divindade por ter construído o complexo mortuário de Djoser em Sakkara. Ele esculpiu tudo em pedra, mesmo portas e cortinas, culminando tudo com uma imensa pirâmide em degraus. O culto de Imhotep perpetuou-se por milênios no Egito e, mesmo, entre os romanos.
com a cabeça baixa sem olhar para ele. Muitos
A mumificação é outro fator a ser analisado.
reis iorubas usam uma cobertura de franjas sobre
Mumificar os mortos é um procedimento comum
o rosto, o ade, que serve para proteger as pessoas
a diversos povos até os dias de hoje. Pode ser que
do poder que emana de seu rosto.
os egípcios não acreditassem realmente que a
Para a mentalidade egípcia, os ancestrais deveriam ser cultuados, perpetuando a união e a harmonia entre os mundo material e espiritual. Assim o era entre vários povos africanos, como também entre os indígenas das Américas, entre os aborígenes da Oceania e entre os japoneses. Uma estrutura psíquica arquetípica natural do homem. Como senhor de todos os homens, o
preservação da alma dependesse da preservação do corpo, mas que a preservação do corpo garantisse um maior contato entre os homens e o antigo habitante daquele corpo. Embora a alma partisse para o reino da luz, a sua união com seu antigo corpo era preservada através do ritual da abertura da boca que a reconectava com o corpo preservado. A mumificação não era privilégio da
G N A R U S | 143 realeza, mas estava acessível a todos que
O Egito Antigo foi um precursor de cultura e um
pudessem arcar com os custos. Além de
irradiador do saber para outras áreas. As
reconectar a alma com seu corpo agora
estruturas culturais egípcias – principalmente as
mumificado, os sacerdotes a conectavam a uma
estruturas de mentalidades – representam
estátua sua que ficava na capela fora da tumba, o
estruturas básicas humanas e, devido a sua longa
local onde as pessoas poderiam homenagear o
história, podemos estudá-las como em nenhum
morto e prestar-lhe o devido culto.
outro povo, pois temos registros arqueológicos e históricos desde a pré-história até a queda de Psamético III para os persas de Cambises, já no século IV da Era Cristã. Claudio Lourenço é graduado em Licenciatura plena em História pela Universidade Cândido Mendes e pós-graduando em História da África pelas Faculdades Integradas Simonsen.
Referências:
Ritual de mumificação no Antigo Egito. O culto aos ancestrais foi comum entre vários povos da África. Só houve mudanças com a chegada
das
religiões
monoteístas,
que
buscaram extingui-los. Mas mesmo hoje, com grandes partes das populações islamizadas ou cristianizadas, ainda preservam-se grupos que praticam o culto milenar aos ancestrais.
Culto a um ancestral mumificado pela tribo Kukukuku da Nova Guiné.
JOHNSON, Paul. O Egito Antigo. Rio de Janeiro RJ. Ediouro, 2010. JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis, RJ. Vozes, 2011. SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses - 3a edição. Rio de Janeiro, RJ. Nova Fronteira, 2006.